Revista CULT (parcial) - edição 135

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ANo 12

r$ 9,90

www.revistacult.com.br

ENTREVISTAS

Caetano veloso “o Brasil desenha o futuro do mundo” Éric Marty o testemunho de viver com Barthes

REPORTAGEM

“Quer vender uma coisa chamada livro?”

DOSSIÊ

a LiTEraTUra norTE-aMEriCana do SÉCULo 20

FitZGerAld, FAUlKNer, HeMiNGWAY, SteiNBeCK, t. WilliAMS, PoUNd, eliot


ÍNdiCe

08 09

N o 135 MAio 2009

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do leitor

O ensaísta búlgaro Tzvetan Todorov critica a produção autocentrada dos escritores contemporâneos em seu novo livro

CUltUrA eM MoViMeNto O novo disco de Milton Nascimento • FilmeFobia, obra polêmica do diretor Kiko Goifman, estreia nos cinemas • Mostra reúne 30 anos de fotografia brasileira

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eNtreViStA

eNSAio Francisco Bosco: a Ópera-Fantasma de Nuno ramos

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rePortAGeM

eNtreViStA Éric Marty, editor das obras de roland Barthes, lança relato autobiográfico no qual resume o projeto crítico barthesiano

Como pontos alternativos de venda contribuem para a democratização do acesso ao livro

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MÚSiCA Norman Lebrecht: o fim da Decca, gravadora que introduziu o estéreo, o LP e a gravação digital

Com disco novo na praça, Caetano desmente o fim da canção, fala de política, filosofia e afirma que o Brasil desenha o futuro do mundo

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reSeNHA

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literAtUrA

liVroS Caixa de Pandora investiga as diferentes representações do mito de Pandora em obras de arte

em O Inominável, Samuel Beckett radicaliza a impossibilidade de expressão da realidade

Reprodução

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eNtreViStA Caetano Veloso

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rePortAGeM Fernando Young

“Quer vender uma coisa chamada livro?”


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Arquivo pessoal

ColABorAdoreS deStA ediÇÃo

ColUNA Marcia Tiburi: a revolta geral da sociedade contemporânea contra a pichação se ampara na hipótese de seu caráter violento

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norte-americana, junto ao programa da Pós-graduaçãc na Unesp – Araraquara. É pós-doutora em Tradução Liiterária pela Universidade de Dortmund – Alemanha

Márcia Tiburi, filósofa e escritora. É colunista da revista CULT e autora de

doSSiÊ

Mulher de costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofia em comum (record, 2008), entre outros

Literatura norte-americana do século 20 Período de formação por Luiz Angélico da Costa

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a prosa do pós-guerra por Sérgio Luiz Prado Bellei

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a poesia, seus ícones e movimentos por Maria Clara Bonetti Paro

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breve panorama da prosa teatral por Maria Sílvia Betti

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“o filme é melhor que o livro?” por Mauro Rosso

Julián Fuks, escritor e jornalista. É autor de Histórias

Rivadavia

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de literatura e cegueira (record, 2007) e mestrando em literatura hispanoamericana na USP

Maria Sílvia betti, professora-assistente de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês, pelo departamento de Letras Modernas da USP. É organizadora do livro Patriotas e traidores – Antiimperialismo e escritos políticos e sociais de Mark Twain (Editora Fundação Perseu Abramo, 2003), entre outros

Arquivo pessoal

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Maria Clara bonetti Paro, professora de literatura

oFiCiNA literÁriA

Mauro rosso, professor e pesquisador de literatura Brasileira. É autor de São Paulo, a cidade literária (Expressão e cultura, 2004) e Contos de Machado de Assis (editora loyola, 2005), entre outros

Reprodução

norman Lebrecht, escritor e crítico musical britânico. Apresenta o programa lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista CULT e autor de Maestro, ObrasPrimas & Loucura (record, 2008)

University of Arizona e em Teoria Literária pela Princeton University e pela University of Massachussetts. É autor de O livro, a literatura e o computador (educ, 2002), entre outros

44 literatura norte-americana do século 20

Banalogias (objetiva, 2007), entre outros

Arquivo pessoal

doSSiÊ

Francisco bosco, ensaísta e escritor. É colunista da revista CULT e autor de

Luiz angélico da Costa, doutor em letras e Linguística e professor emérito da UFBA. É autor do livro Limites da traduzibilidade (edUFBA, 1996), entre outros

Arquivo pessoal

Sérgio Luis Prado bellei, Ph.d em letras pela


do leitor Entrevista Júlio Medaglia

Oficina Literária – CULT 133

A CULT convidou um homem decente e lúcido pra explicar de fato o que acontece no reino das orquestras. Parabéns maestro, parabéns CULT.

Gostaria de parabenizar a revista CULT pela escolha da Oficina Literária da edição de março. Ao ler o texto e um pouco da história de vida de Luis Antonio, fiquei admirada e orgulhosa da postura da revista. Não há dúvidas do quanto a CULT acrescentou na vida deste homem. Foi uma excelente contribuição social da revista, frente a tantos desenganos e notícias superficiais que a mídia faz descer goela abaixo de seus espectadores, leitores e ouvintes. A CULT mostrou porque é uma revista diferenciada e compromissada com a qualidade e a função social de suas matérias.

Nicolau A.V.Fomez, pelo site

Dossiê Foucault – CULT 134 Resgatar Foucault de modo mais acessível é um ato de socialização do saber foucaultiano para todos que tentam se aproximar de suas ideias inspiradoras e marcantes. Eduardo Jorge Lopes da Silva, pelo site Excelente artigo, parabéns. Este fino biscoito não é para qualquer paladar. José Juvenal dos Santos, pelo site Como coordenadora de um Grupo de Pesquisa que aborda a temática da Cultura e Gênero, (UNESP-Marília), parabenizo a CULT pelo dossiê, principalmente pela análise dos desdobramentos dos estudos de Michel Foucault. Lidia Possas, pelo site

Coluna Marcia Tiburi Gostei do texto “O Brasil recalcado”, porque possui forte interdisciplinaridade. É hora de mudar o modo como reconhecemos “o outro”, e a autora foi precisa ao explicar as razões. Luiz Ismael Pereira, por e-mail

Conheço o Júlio há muito tempo. Ou melhor, pensava que conhecia: ele me surpreende positivamente a cada intervenção, quando o assunto é música e cultura para o povo. Parabéns à CULT por escolhê-lo para falar sobre essa mal executada sinfonia da Osesp. Nada contra o francês, mas um francês?! Maestro, continuo sentado na primeira fila de seus fãs e amigos.

Viviane de Paula Cañada, por e-mail

Walter Arruda, pelo site Concordo com praticamente tudo que o Maestro Júlio Medaglia disse. Com uma condição apenas: não seja ele o novo “maestro titular brasileiro”. Até porque, quando esteve à frente da Orquestra Sinfônica Municipal, o resultado foi bem diferente. Mas as ideias são boas! Paulo Celso Moura, pelo site O Maestro Júlio Medaglia tem uma ótima visão do que acontece com o dinheiro dos impostos que pagamos. Pelo jeito, precisaremos ir para o interior da Alemanha para ouvir música clássica. José Nachreiner Júnior, pelo site Finalmente alguém avaliou corretamente a gestão do Maestro Neschling na Osesp. Ele ganhava um salário ofensivo à maioria dos brasileiros e, como apontou Júlio Medaglia, pago pelo povo do estado de São Paulo. Cidades que nunca viram a Osesp financiaram suas viagens para o exterior. O governo Serra fez bem em demiti-lo, mas esses erros de administração não podem se repetir. Alfredo Sternheim, pelo site

TESTE CULT – Edição 134 Os dez primeiros participantes do teste CULT da edição anterior recebem um exemplar do livro O nascimento da biopolítica (editora Martins Fontes), de Michel Foucault. Os vencedores têm até trinta dias para retirar o livro na sede da revista (Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar, Paraíso, São Paulo/SP), de segunda a sextafeira, das 9h às 18h. - Artur Chagas - Christian Fernando Ribeiro Vinci - Cristiane Paiva - Daniele Pechuti Kowalewski - Julio Antonio de Macedo Junior - Luiz de Barros Moreira - Luiz Ismael Pereira - Maria Luiza Tonelli - Renato Brunassi Neves dos Santos - Wagner Santos Ferreira

As cartas devem ser encaminhadas para o e-mail cartas@revistacult.com.br o­ u para o endereço: Praça Santo Agostinho, 70 – 10º andar – Paraíso São Paulo – SP – CEP 01533-070 Por motivos de espaço, reservamo-nos o direito de publicar parcialmente ou resumir o conteúdo dos comentários e das cartas enviadas à redação

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Cultura em Movimento Divulgação

ENtre amigos A cantora e compositora Mariana Aydar diz que seu segundo disco, o recém-lançado Peixes pássaros pessoas, é um registro mais pessoal do que aquele feito em seu primeiro trabalho, Kavita 1, de 2006. São 13 canções escritas por amigos e parceiros, que buscam retratar o estado de espírito da artista paulista. O principal desses parceiros é o marido Duani, que assina também como produtor ao lado de Kassin, cujos trabalhos junto a bandas como Los Hermanos e Orquestra Imperial são reconhecidos pela crítica. Em entrevista à CULT, Mariana Aydar citou os compositores que mais admira e resumiu, com um samba-canção, seu estilo de vida: CULT – Um disco que você não se cansa de ouvir. Mariana Aydar – No momento tenho ouvido muito um disco que se chama Roberto Ribeiro et Simone [álbum lançado pelo sambista da Império Serrano ao lado da intérprete Simone, em 1973, pela gravadora Odeon].

CULT – Uma cantora popular que você admira. Mariana – Gosto muito da Luisa Maita, uma compositora que eu gravei no meu segundo disco [a canção “Beleza” é de sua autoria] e que também é uma excelente cantora. Eu admiro quem canta com emoção, acima da técnica, acima de qualquer coisa. CULT – Um compositor que você recomendaria. Mariana – Nelson Rufino [sambista baiano, cujas composições foram gravadas por Nara Leão, Martinho da Vila, entre outros]. Ele cria um tipo de samba de raiz que eu gosto muito; é dono de um estilo único, que resgata bastante as composições de Roberto Ribeiro, por quem eu tenho muita admiração. CULT – Um samba que define seu modo de viver. Mariana – O Paulinho da Viola tem uma frase que sempre me marcou bastante: “Meu mundo é hoje, não existe amanhã pra mim. Eu sou assim, assim morrerei um dia. Não levarei arrependimento, nem o peso da hipocrisia” [trecho da música “Meu mundo é hoje”].

CULT – O que você considera indispensável para uma artista? Mariana – Considero importante a sinceridade, acima de tudo. CULT – O que é o samba para você? Mariana – O samba é a matéria-prima de muita música popular brasileira. O samba é quase uma entidade, que está presente em toda a nossa cultura popular.

Peixes pássaros pessoas Mariana Aydar Prod.: Duani e Kassin Universal Music R$ 24,90 n°135

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Cultura em Movimento Cris Bierrenbach

Por que vale o ingresso?

FilmeFobia Direção: Kiko Goifman Produção: Brasil, 2008 Duração: 80 min. Elenco: Jean-Claude Bernadet e Cris Bierrenbach

Embora tenha vencido os prêmios de Melhor Filme do Júri Oficial e Melhor Filme da Crítica no Festival de Brasília de 2008, o longa-metragem FilmeFobia, do diretor Kiko Goifman, provocou opiniões diversas do público. O filme, que estreia em maio nos circuitos, narra a história do cineasta JeanClaude Bernadet e seu novo projeto: um documentário que busca promover encontros inusitados entre fóbicos e suas fobias. São personagens que possuem medo de sangue, de pombas e até de botões. O longa causou grande furor ao propor uma linguagem narrativa que não se aplica aos documentários, tampouco à tradicional ficção. Em entrevista à CULT, o diretor Kiko Goifman explica porque as pessoas deveriam vencer seus medos, assistir ao filme e tirar suas próprias conclusões: “FilmeFobia traz uma história inusitada. No mundo atual dominado por câmeras, o personagem principal do filme acredita que a única imagem que tenha alguma verdade é a de um fóbico enfrentando suas fobias. FilmeFobia é um filme de ficção com uma atmosfera de documentário. Vem causando polêmicas por onde passa. Tem poucas pitadas de terror e muitas de humor. As pessoas interpretam o filme de formas distintas, o que sempre vale para uma boa discussão na mesa do bar depois da sessão. Trabalhei com atores e fóbicos reais. Entre eles eu mesmo, que tenho fobia de sangue. Se você achar pouco ver sequências com fobias inusitadas como fobia de anão, de botões, de borboletas ou de ralos, vá ao cinema ver a cena de um jogo de pôquer no qual as cartas são feitas com fotos de cortes na pele. Prometo que meu desmaio é absolutamente verdadeiro e não é sempre que podemos ver um diretor de cinema desmaiar e todos terem que esperar no set de filmagem até que ele acorde e grite: ‘Corta!’”

Milton Nascimento & Belmondo A partir de um show realizado na Cité de La Musique, em Paris, Milton Nascimento e os irmãos Belmondo, Lionel (sax e flauta) e Stéphane (trompete) – filhos do consagrado ator Jean Paul Belmondo –, gravaram, em 2007, o disco Milton Nascimento & Belmondo, com releituras das principais músicas do compositor brasileiro, lançadas entre as décadas de 1960 e 1970. Acompanhadas pela Orchestre National d’Île-de-France, canções como “Travessia”, “Milagre dos peixes” e “Nada será como antes” ganharam tratamento harmônico diferenciado, destacando a versatilidade dos instrumentistas franceses, chamados pela mídia de seu país de “monstros sagrados” da música. É de se estranhar que somente neste mês de maio o álbum chega ao Brasil, pela Biscoito Fino, posto que se trata de arranjos inéditos de um dos maiores compositores da música popular brasileira. Seu lançamento, inclusive, foi destacado pelas principais publicações especializadas na Europa. Jon Lusk, crítico musical da BBC, escreveu à época que “embora a voz atual de Milton Nascimento não se compare ao que era em sua juventude, ela continua a nos maravilhar, assim como suas músicas”.

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Milton Nascimento & Belmondo Milton Nascimento, Lionel e Stéphane Belmondo Prod.: Ronan Palud Biscoito Fino R$ 28,90


CUltUrA eM MoViMeNto

Desde sua fundação em 2002, o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, já realizou mais de 140 mostras nacionais e internacionais. Com seus 35 mil metros de área construída e acervo composto de 2 mil obras de artistas renomados, como Cândido Portinari e tarsila do Amaral, o museu inseriu-se no grande circuito das artes visuais do país e América Latina. Em 2005, como forma de registrar essa história, criou-se o projeto de elaboração do livro do museu. Captados os recursos necessários, o projeto estendeu-se por três anos até sua conclusão. O livro, rico em imagens e informações sobre o acervo, divide-se em três temas: Museu Oscar Niemeyer: a resposta do Paraná aos novos desafios institucionais da arte no Brasil, Arquitetura, Arte e Museus: o olhar de Oscar Niemeyer e Um olhar sobre o acervo do MON. “A publicação foi precisa no sentido de registrar a inserção definitiva do estado do Paraná no circuito nacional e internacional das áreas de artes visuais, arquitetura, design e urbanismo”, afirma a arquiteta Ariadne Mattei Manzi, responsável pela organização do livro.

Orlando Azevedo

MUSEU oSCar niEMEYEr

Museu Oscar Niemeyer Org.: Ariadne Mattei Manzi 372 págs. – R$ 100,00 (vendido para todo o Brasil através da loja do museu: loja@mon.org.br / (41) 3350- 4467, via Sedex a cobrar)


eNtreViStA

CAetANo VeloSo

O pensamento na canção Com disco novo na praça, Caetano desmente o fim da canção, fala de política, filosofia e afirma que o Brasil desenha mesmo o futuro do mundo FRANCISCO BOSCO E EDUARDO SOCHA

P

ara Caetano, não há equívoco: o Brasil é “algo que desenha mesmo o futuro do mundo”. Que essa constatação não se torne, porém, motivo exclusivo de entojo nem de euforia. Podemos sim esbravejar contra nosso circo de mazelas políticas, manter a atitude melancólica e crítica diante da “brasilianização do mundo”, e ao mesmo tempo conviver com o regozijo de nossas conquistas e transformações nas últimas décadas. A ambiguidade que domina essa postura parece ser o motor fundamental de uma esperança (por mais residual que seja) calcada na lucidez e na responsabilidade de uma crítica propositiva, que não teme um certo messianismo em suas intenções: “Eu não sou religioso. Mas desejo mudanças do tamanho de milagres. Isso não me parece necessariamente irrealista”, diz Caetano ao comentar seu interesse pelas teses de Roberto Mangabeira Unger. Mas é dentro da canção popular – forma artística tão “velha como a humanidade” – que Caetano pretende dar o recado. Mantendo a coerência de seu permanente “nado contra a maré”, de sua revolta sutil contra o estabelecido impulsionada a partir do próprio estabelecido (incluindo até mesmo aquele da intelligentsia nacional que continuamente lhe cobra coerência), o novo disco de Caetano parece confirmar sua aspiração a uma coexistência de gêneros, à pluralidade cultural e à reinterpretação de diferentes tradições da canção popular, o que fica implícito já no subtítulo “transambas”. Pois se, como resumiu o professor e crítico Celso Favaretto (em entrevista dada à CULT há alguns anos), “Caetano Veloso é o pensamento na canção”, isso tem a ver com o fato de que sua música aponta para a necessidade de uma contínua reflexão formal sobre si mesma. Nesse processo autorreferencial, a música de Caetano consolida, por fim, um gesto artístico e crítico que transborda os limites da própria canção.

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CULT – Em seu blog, você se mostra encantado pela influência de São Paulo e procura até mesmo esterilizar todo juízo de valor relacionado à força dessa influência, quando coloca lado a lado o Museu da Língua Portuguesa, a Sala São Paulo, a daslu e o restaurante Fasano. Por que São Paulo não aparece em suas novas canções? Caetano – Porque moro no rio e passei todo o ano de 2008 no Rio, construindo o repertório do novo disco. É um disco carioca de nascença e de formação. Fala de lugares e pessoas do Rio. Sempre tenho saudades de São Paulo. E me orgulho muito de ver a força da cidade se afirmando cada vez mais. Você está certo em notar que é significativo que o Fasano e a Daslu apareçam ao lado do Museu da Língua Portuguesa e da Osesp. Várias pessoas no blog protestaram, como se eu tivesse dito uma blasfêmia. Mas o momento de percepção da força não é o momento do julgamento moral ou político. A visão que inclui o Fasano é da mesma natureza da visão que surge em “Sampa”. Acho tolice pensar que maculei meu texto sobre São Paulo por incluir conseguimentos empresariais marcantes, mesmo que envolvam denunciadas ilegalidades. Desejo é passar mais tempo em São Paulo e, mesmo sem isso, escrever músicas em que coisas e climas da cidade apareçam. CULT – Há muito afeto dedicado ao rio nas letras e na ambientação sonora deste último disco. Por outro lado, comparado àquilo que você fala de São Paulo, tem-se a impressão de que o rio está passando por um grande deficit de autoestima. É só impressão? Caetano – Não é só impressão. Embora eu preferisse não usar aqui a expressão “deficit de autoestima”. O Rio passa por longa ressaca da perda do status de capital e enfrenta gradativa relativização do status de centro cultural do país. Baianos entendem muito disso. Mas a autoestima arraigada na formação dos cariocas não se desfaz facilmente. Ela se conflitua, perde o relaxamento, mas estamos longe de poder falar em deficit.


Fernando Young


reportagem

Quer vender também uma coisa chamada “livro”? Pontos alternativos de venda contribuem para a democratização do acesso ao livro Wilker Sousa

V

J.U.Campos [Monteiro Lobato Licenciamentos]

ossa Senhoria tem o seu negócio montado, e quanto mais coisas vender, maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada ‘livro’? Vossa Senhoria não precisa inteirar-se de que coisa é. Trata-se de um artigo comercial como qualquer outro: batata, querosene ou bacalhau.” O trecho citado foi extraído de uma carta escrita por Monteiro Lobato a comerciantes brasileiros em 1918. Naquela época, havia no país aproximadamente 30 livrarias, a maioria delas concentrada no eixo Rio-São Paulo. Lobato adquirira a Revista do Brasil, publicação criada em 1916 por intelectuais paulistas, e a transformara, dois anos mais tarde, na editora Monteiro Lobato e Cia. Editores. Em

Monteiro Lobato, empreendedor do mercado livreiro: “Trata-se de um artigo comercial como qualquer outro: batata, querosene ou bacalhau”

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face da má distribuição dos livros e o baixo número de livrarias, o autor de Urupês necessitava de locais alternativos para comercialização dos títulos de sua editora. A saída foi recorrer a donos de bancas de jornal, mercearias, farmácias e papelarias. Os comerciantes aderiram e o escritor-empreendedor conseguiu formar uma rede com quase dois mil distribuidores em todo o país. Uma façanha para o mercado editorial daquele período. A empreitada de Lobato seria o prenúncio para um fenômeno moderno: a comercialização de livros fora das livrarias e a consequente ampliação do acesso a eles. A presença dos títulos em hipermercados, bancas de jornal, igrejas e até postos de gasolina permite aproximálos daquele público não habituado a frequentar livrarias. Segundo a última edição da pesquisa Retratos da Leitura do Brasil (2008), realizada pelo Ibope a pedido do Instituto Pró-livro, as vendas de livros em pontos alternativos correspondem a 65% do mercado. As bancas de jornal, por exemplo, respondem sozinhas por 19%. “Esse fenômeno se deve, fundamentalmente, à segmentação do mercado e à comodidade. Algumas editoras, por exemplo, investem cada vez mais em livros de bolso, visando esse nicho. Uma pessoa que não costuma frequentar livrarias pode, eventualmente, ir a uma banca, ver um livro e acabar comprando. Há também, no caso das igrejas [6% do mercado], aquele público que só encontra títulos na sua própria igreja e não em livrarias”, justifica o antropólogo Felipe Lindoso, autor de O Brasil pode se tornar um país de leitores? (Summus, 2004). Divanil Pires, proprietário da banca de jornal Oswaldo Cruz, na região da Avenida Paulista, constata que as vendas de livros têm crescido: “No meu ponto de venda, aumentaram pelo menos 30% em relação ao último ano. Algumas editoras, como a Record e a Planeta, seguiram o exemplo da L&PM e estão investindo nesse segmento”, comenta. Patrícia Pinheiro, gerente da loja de conveniência do Posto Hexa, próximo


Divulgação

Divulgação

reportagem

Espaços dedicados aos livros em uma filial da rede de hipermercados Extra (esq.) e na loja de conveniência Select do posto Hexa, São Paulo (dir.)

ao aeroporto de Congonhas, também se mostra satisfeita: “A venda é boa. Os clientes gostam muito. Vendemos, em média, 250 livros ao mês”. O público consumidor dos hipermercados é outro importante foco por parte de editoras e distribuidoras de livros. Para Julio Cesar Cruz, diretor da Catavento, distribuidora que atua nas cinco regiões do país, deve-se levar um produto que atenda às necessidades imediatas daquele público não leitor para, gradativamente, habituálo à leitura. “Primeiro nós temos que desmistificar o livro enquanto produto da elite. É ótimo o indivíduo ter acesso ao livro no supermercado. De repente, ele pega o produto, gosta e aquilo fez bem de alguma forma. Aí ele vai se tornar um leitor”, enfatiza. Ainda que os gêneros mais vendidos junto a esse tipo de público sejam autoajuda e aqueles relacionados ao desenvolvimento profissional, há algumas surpresas, como aponta Julio: “Quando nós trabalhávamos para as Lojas Americanas, sabíamos que predominava um público mais popular, mas, um dos livros que mais vendemos lá foi O Príncipe, de Maquiavel. Em outros supermercados, colocamos a versão de bolso de Além do Bem e do Mal, do Nietszche, e vendeu muito bem”. Outro fator que alavanca o consumo nesse segmento é o preço atrativo. Grandes redes de supermercados, como não dependem exclusivamente da venda de livros, podem, eventualmente, diminuir os preços e estimular a

compra dos títulos. Segundo Julio, um grande grupo de hipermercados em Brasília conseguiu vender 1.200 livros em apenas um fim de semana. O principal motivo: preço único de R$ 9,90. O mercado on-line e a má distribuição das livrarias A era digital modificou o cenário da venda de livros. De acordo com pesquisa realizada pela Nielsen/NetRatings, empresa norte-americana especializada em consumo online, 41% de 875 milhões de e-consumidores compram mais livros do que qualquer outro produto. O estudo contou com a participação de internautas de 48 países ao longo de 2007. Outro dado significativo da pesquisa é a posição do Brasil no ranking dos países que mais compram livros via internet – 5º lugar, posição à frente de potências como China (7º) e Reino Unido (10º). No topo da lista, está a Coreia do Sul. Cientes desse fenômeno, as livrarias brasileiras investem cada vez mais nesse tipo de mercado. A Livraria Cultura, uma das maiores do país, tem 18% de seu faturamento proveniente das vendas on-line. Outra grande do setor, a Martins Fontes, aumentou em 200% as vendas de sua loja virtual ao longo do último ano. A má distribuição de livrarias em território nacional permanece, a exemplo da época em que viveu Monteiro Lobato. A mais recente pesquisa do setor, intitulada Diagnóstico do Setor Livreiro, realizada pela ANL n°135

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Literatura

lançamentos Ousado e Galhofeiro Publicado originalmente em 1959, Zazie no metrô já vendeu mais de um milhão de cópias na França. A ousadia linguística de Raymond Queneau, aliada ao tom galhofeiro com que narra as aventuras de Zazie em Paris, rendeu elogios por parte da crítica. Roland Barthes, que assina o posfácio desta edição, enumera diversas qualidades que fazem do livro, segundo ele, um exemplo de romance “bem-feito”: “a duração, de tipo clássica; a duração, de tipo épica; a objetividade e o equilíbrio dos procedimentos narrativos”. O enredo traz a pequena Zazie às voltas com duas de suas obsessões: andar de metrô e comprar uma calça jeans. Porém, uma greve dos transportes parisienses impede Zazie de realizar seu primeiro desejo. Resta a ela comprar a calça. Na companhia de amigos de seu tio, a menina passeia na Paris dos anos 1950; cidade essa retratada de forma bem diferente daquela envolta pelo glamour. Zazie no metrô – Raymond Queneau – Trad.: Paulo Werneck – Cosac Naify – R$ 45 Vozes da poesia contemporânea Nesta antologia, organizada por Adilson Miguel, são apresentadas treze vozes da poesia brasileira contemporânea. Autores mais jovens, como Fabrício Corsaletti e Bruna Beber unem-se aos consagrados Antonio Cícero, Chacal e Fernando Paixão. Segundo afirma Ivan Marques, professor de Literatura Brasileira da USP, no posfácio do livro, “esta antologia comprova a riqueza da tradição poética brasileira, renovada pelos autores contemporâneos. E, como disse Antonio Cícero, nenhuma poesia é tão próxima de nós quanto ‘a poesia da nossa terra, da nossa língua e do nosso tempo’”. Traçados diversos: Uma antologia da poesia contemporânea – Org.: Adilson Miguel – Scipione 200 págs. – R$ 30,90 Obra embrionária Verdadeiro polímata, Mário de Andrade dedicou sua vida ao trabalho intelectual, seja na arte, seja na ampla pesquisa histórica e etnográfica em busca do genuíno caráter nacional. Em Obra imatura, estão reunidas as obras que representam as primeiras incursões de Mário na poesia, ficção e ensaio. A primeira delas é Há uma gota de sangue em cada poema, obra de 1917, que traz 13 poemas de caráter pacifista. Em Primeiro Andar, seleção de contos escritos entre 1914 e 1922, nota-se o percurso de mudança estética na obra do autor: ao longo das 11 narrativas, a erudição se funde à oralidade. Por fim, em A escrava que não é Isaura, de 1925, o pensador Mário estuda o processo de formação das vanguardas e o modo como eram absorvidas no Brasil. A edição traz ainda um dossiê de documentos referentes à criação das obras. Obra imatura – Mário de Andrade – Agir – 408 págs. – R$ 49,90

Insólito e fantástico Uma horda de anões prende João em sua própria casa, enquanto uma peste assola a cidade. Este é o ponto de partida da novela os anões, do escritor mineiro Luís André Nepomuceno. A causa da peste, a origem dos anões, as relações temporais, tudo fica em suspenso nessa narrativa que mescla elementos de realismo fantástico e personagens de histórias populares. Insólito e mistério misturam-se. As ações entrelaçam-se sem relação de causa e consequência dado o universo caótico que povoa a mente do protagonista: “Que era terça-feira, então eu acho que sei. Sei que isso agora é importante, no entanto, já acho que não sei”. os anões – Luís André Nepomuceno – 7 Letras – 116 págs. – R$ 29

Ensaios compilados Em Cinzas do espólio, estão reunidas reflexões do poeta, crítico literário e tradutor Ivan Junqueira acerca da poesia, prosa, ensaísmo e tradução literária. São prefácios, apresentações, conferências e alguns ensaios inéditos que compõem um mosaico de pensamentos sobre a literatura. Para Ivan, o livro “pode ser entendido como um tecido fragmentário e descontínuo cujas partes necessariamente não se articulam segundo nenhum tipo de coesão ou reciprocidade”. Cinzas do espólio dá continuidade à série de compilação de ensaios do autor, que integra ainda os títulos À sombra de Orfeu, O encantador de serpentes, O signo e a sibila e O fio de Dédalo. Cinzas do espólio – Ivan Junqueira – Record – 336 págs. – R$ 45

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Bel Pedrosa

Sophia Whately

O QUE ESTOU LENDO Paulo Pasta – artista plástico Acabo de ler o último romance de Bernardo Carvalho, O filho da mãe (Companhia das Letras, 2009). Acho que esse livro tornou mais claros para mim alguns traços recorrentes nas obras do autor. Um deles é essa espécie de necessidade de deslocamento na geografia do mundo, os variados lugares nos quais os personagens habitam ou para os quais se deslocam. É como se o autor usasse esse recurso para nos dizer, por negação, que na verdade não existe lugar algum. Há muita ação também, mas apenas para revelar a inutilidade das ações. O romance, além dessas características que mencionei, desdobra ainda as emoções das personagens, no que se aproxima de Nove noites (Companhia das Letras, 2002). Essa recorrência do negativo, no entanto, está finalmente a serviço da afirmação daquilo que, de fato, é, ou do que as coisas realmente são. Talvez por isso, ao ler o livro, nunca me senti enganado – o que, para mim, é a marca da arte de primeira.

Rubens Figueiredo – escritor e tradutor; autor de Barco a seco (Companhia das Letras, 2001), entre outros Terminei de ler no site Scielo (que reúne revistas universitárias do Brasil e da América Latina) o artigo “Situação de sítio” da professora Iumna Maria Simon (revista Novos Estudos, novembro de 2008). Foi a leitura mais importante que fiz ultimamente. A partir de uma análise do poema “Sítio”, de Claudia Roquete-Pinto, a autora equaciona com agudeza alguns dos principais problemas enfrentados pelos escritores (ou criados por eles mesmos) nas últimas décadas. Parece-me cada vez mais pertinente a hipótese de que, tolhidos por uma doutrina que subordina toda a criação literária à crise da representação e propõe a “desrealização do real” como única escapatória, os escritores (e não só os poetas) não têm conseguido dar às suas obras o alcance necessário para responder às transformações do nosso tempo − as mais drásticas de nossa história.

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Tuca Vieira

Crime e castigo Arthur Nestrovski – compositor e violonista, crítico musical da Folha de S. Paulo Nesses últimos anos, tem saído um bom número de trabalhos sobre música. Mas a bibliografia brasileira continua desproporcionalmente pequena, quando se pensa na dimensão que tem a música entre nós. Tanto maior a importância do livro O resto é ruído – Escutando o século 20 (Companhia das Letras, 2009), de Alex Ross, há mais de uma década crítico musical da revista New Yorker. Um catatau de quase 700 páginas, narrando e avaliando a música do século 20 – desde Mahler e Strauss até Arvo Pärt e John Adams –, em contraponto com a história social e política.

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COLUNA

COMPORTAMENTO

As memórias póstumas de dois barcos FRAncisco Bosco

U

m avião sobrevoa as montanhas de Nevada. Lá embaixo, onde há alguns anos antes havia ainda milhares de cavalos Mustang, agora encontra-se apenas um pequeno bando deles, não mais que meia-dúzia, incluindo um potro e uma égua em idade avançada. O avião está lá para caçá-los. Seu piloto – junto com o parceiro que está em terra, pronto para surpreender os cavalos no ponto ao qual o avião os impele – fizera isso a sua vida inteira. O avião, as montanhas, os cavalos, a caçada de laço, o sono ao relento: é a vida livre, vida de cowboys inimigos do trabalho alienado e assalariado. Os cowboys, “os últimos homens verdadeiros do mundo”, diz alguém. Mas o mundo mudara. A civilização trouxera emprego e extermínio em massa para cavalos e homens livres. Aquele bando sobrevivente de animais magros era a evidência melancólica desse ocaso. Os homens, por não saberem fazer outra coisa, vão ao seu encalço. Tocaiam-nos, enlaçam-nos, derrubam-nos, amarram-nos. Mas a cena tem algo de irreal, de covardia e de absurdo. São tão poucos os cavalos, que sua venda não pagará sequer o combustível do avião. São tão desprotegidos e apequenados, que a luta contra os homens e suas máquinas é moralmente intolerável. É uma luta vã. É o fim de um mundo. “É como capturar um sonho”, diz um cowboy. Dessa vasta landscape de Nevada, corta para uma charmosa galeria na Gávea, Rio de Janeiro. Ali, dentro de uma sala climatizada, encontram-se dois barcos abalroados um no outro. Seus cascos de madeira estão cobertos por uma camada de sabão. De dentro deles, por caixas de som, saem as vozes de um homem e de um coro. Na antessala, há uma encadernação em espiral com o título Mar morto (Soap-opera 2). Nessas páginas estão escritas as palavras do homem e do coro. Também aqui se trata do fim de um mundo. E o que Nuno Ramos fez, por meio desses barcos encavalados e como que petrificados, foi capturar um sonho. Mar morto, aqui, não é um topônimo. Não se refere ao mar orien-

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tal, alimentado pelo rio Jordão, em que de tão salgado nenhum peixe sobrevive. Não é desse mar mortífero, mar de sal, que se trata, mas de um mar mortificado, insípido, mar sem sal, o Mar, o grande mar de Ahab e Moby Dick, mar de Caymmi e Conrad, de Homero e Camões, agora ex-mar, “maníaco encanecido”, “poça pálida e rasa”. Mar domesticado, apequenado, transformado numa “banheira de água morna”. Pois é essa a morte que o naufrágio fossilizado dos barcos conjura. O sabão que os envolve confere a seu espetáculo uma intensa força dialética: o sabão esteriliza, mas é gosmento como a matéria putrefata dos mortos náufragos fundidos à água do mar; o sabão petrifica, mas seu visco evoca a lubricidade do mar misterioso, em cujas profun-

a instalação “mar morto (Soap Opera 2)”, do artista paulistano nuno ramos

Bruno Veiga

A Ópera-Fantasma de Nuno Ramos


COLUNA dezas tantos marinheiros acasalaram-se com Iemanjá e as sereias. O sabão é glória e conforto, natureza e cultura, presente e passado, vivo e mumificado. As vozes que se ouvem são as memórias póstumas dos dois barcos. Sim, soap-opera, em trocadilho literalizante (quando o habitual é o contrário), ópera do sabão. Mas sobretudo ópera-fantasma: uma obra de arte total, de que não vemos os atores, pois estão mortos ou reduzidos a uma consciência tagarelante que morre aos poucos, sem sentido épico. Nessa ópera, o coro representa o arcaico, o real, a natureza indomada. O coro declama trechos de grandes obras sobre o mar, sobre naufrágios: “Ai! Ai! Faze-nos ver nossos amigos/ sendo levados ao sabor das ondas/ nas praias onde o mar cobre e descobre/ continuamente os corpos já sem vida/ movendo-os de um lado para outro!”. Ao passo que a voz solitária debate-se dentro de um corpo-nau “preso dentro”, “dentro de um naufrágio”, enquanto morre “de tédio e aborrecimento, gozando o conforto perfeito dos seus pés quentinhos”. Como já havia feito em seu último e perturbador livro, Ó, em Mar morto Nuno Ramos instala e instaura um canto melancólico e sombrio (a que não falta certo humor) sobre a civilização. Esse canto é, quanto aos meios e aos fins, diferente daquele que encontramos na maior parte de seu brilhante ensaísmo, como se pode verificar nos textos reunidos em Ensaio geral. Nesses, há, a cada frase, a alegria do descortinamento do mundo pelas ideias

COMPORTAMENTO

O que Nuno Ramos fez, por meio desses barcos encavalados e como que petrificados, foi capturar um sonho e, reciprocamente, o júbilo pelos fenômenos em sua beleza revelados. Há uma confiança no pensamento e uma adesão serena a suas possibilidades. Já em Ó, Nuno parece aproximar-se mais de sua linguagem visual, que não é exata e límpida como o ensaísmo a que me referi, e sim excessiva, impura, até dilacerada. Como o próprio título do livro sugere, trata-se de algo entre a palavra e o grito, o semântico e o físico, entre matéria e linguagem. Parece haver essa tensão ou movimento pendular no interior da obra – visual, escrita, visual-escrita – de Nuno Ramos, tensão a que talvez ele tenha se referido ao dizer-se “sem conseguir escolher se a vida é benção ou matéria estúpida”. Da perspectiva de quem o lê e vê, é benção, mesmo se matéria estúpida. franciscobosco@terra.com.br

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LIvros

lançamentos

História de um símbolo mítico O pesquisador e crítico alemão Erwin Panofsky (1892-1968) tornou-se célebre por consolidar e difundir os procedimentos iconográfico e iconológico que continuam a orientar boa parte dos estudos acadêmicos em história da arte. Neste livro, escrito com sua mulher Dorothéa (Dora), Panofsky não escapa ao piadismo autorreferente ao evocar a “etimologia estranha” de seu objeto de estudo; como observa Leopoldo Waizbort no prefácio, Caixa de Pandora é de autoria de Pan+Dora, como o casal era conhecido entre os amigos. Os autores investigam as diferentes configurações representativas do mito de Pandora em obras de arte tanto pictóricas quanto literárias, desde a tradição medieval até o romantismo vitoriano. O eixo interpretativo da pesquisa inclui, por um lado, uma “história de vida” do símbolo mítico de Pandora em suas variadas configurações ao longo dos séculos e, por outro, a descrição das alterações em sua transmissão histórica, evidenciando com isso as principais mudanças da “mentalidade” e das “formas de consciência” que participaram da produção e recepção desse símbolo. Para mostrar a historicidade do objeto de estudo e suas transformações intra-artísticas e extraartísticas, os autores recorrem a diversos materiais como estátuas, peças de teatro, emblemas, gravuras, poemas, tapeçarias, pinturas e trabalhos de mitógrafos. Descobrimos, por exemplo, que Erasmo de Rotterdã (1466-1536) forneceu, em contraposição aos relatos difusos do período clássico, a famosa e “moderna” versão da “caixa de Pandora”: “Júpiter, furioso com Prometeu por causa do fogo que ele roubara do céu e entregara aos mortais (...), ordenou a Vulcano que modelasse a imagem de uma virgem, (...) Pandora. A jovem, possuidora de beleza, elegância, inteligência e eloquência, foi enviada a Prometeu junto com uma caixa, também de grande beleza, mas que escondia em seu interior todo tipo de calamidades (...)”. Segundo os autores, a importância e o interesse contemporâneo que recobrem esse mito, tão familiar quanto mal compreendido, exigem uma análise iconográfica profunda a fim de expor suas origens e transformações; análise esta que Pan+Dora realizam com precisão espantosa. A caixa de Pandora – Dora e Erwin Panofsky – Tradução.: Vera Pereira – Companhia das Letras – 256 págs. – R$ 45

Início da estética Durante o século 19, no período compreendido pelo “idealismo alemão”, a relação entre arte e pensamento, acenada pela reflexões de Kant, transformou-se em objeto privilegiado de especulação filosófica. Como atestam os trabalhos posteriores de Fichte, Schelling e Hegel, a estética consolidou-se como campo efetivo do conhecimento. Essa disciplina autônoma, que deve sua ressignificação moderna a Alexandre Baumgarten, procurava descrever as possibilidades e os modos pelos quais os fenômenos artísticos afetam diretamente nossos sentidos. Nesta coletânea de nove textos, os autores analisam algumas das principais questões enfrentadas pelo idealismo alemão em relação à estética, bem como suas influências e desdobramentos ulteriores. Arte e Filosofia no idealismo alemão – Org.: Marco Aurélio Werle e Pedro Galé (orgs.) – Editora Barcarolla 194 págs. – R$ 25

Filosofia e medicina na antiguidade Nesta seleção de textos do filólogo e latinista francês Jackie Pigeaud – autor de vários livros que estabelecem uma confrontação teórica entre filosofia e medicina – o tema da melancolia é o ponto central para uma análise mais ampla a respeito das relações entre os discursos sobre as doenças da alma e os discursos sobre literatura e poesia. Os ensaios baseiam-se, em particular, na recepção da obra de Aristóteles, que considerava a melancolia um fenômeno somático e uma disposição natural de temperamento dos “homens excepcionais”, que se manifestariam na arte e na filosofia. Metáfora e Melancolia: ensaios médico-filosóficos – Jackie Pigeaud – Trad.: Ivan Frias Editora PUC-RIO e Contraponto – 200 págs. – R$ 32

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[dossiÊ]

LITERATURA

NORTE-AMERICANA DO SéCULO 20

P

ara muitos críticos brasileiros, o conjunto da produção literária nos Estados Unidos é a mais impressionante do século 20. Entre os prosadores deste período, estão nomes como Sinclair Lewis, William Faulkner, Ernest Hemingway, John Steinbeck, Saul Bellow e Toni Morrisson, apenas para citar alguns vencedores do prêmio Nobel. Mas percebemos a fragilidade desse critério quando percebemos que ficam de lado nomes centrais da literatura mundial como Francis Scott Fitzgerald, J.D. Salinger e Philip Roth – talvez o maior escritor norteamericano vivo. A poesia, por sua vez, trouxe o imagismo de Ezra Pound, a erudição e acuidade sonora dos versos de T.S. Eliot , o antissimbolismo de William Carlos Williams e a inquietude de Allen Ginsberg, ícone da geração Beat. No teatro, Tennessee Williams e Arthur Miller representaram o contraponto à dramaturgia de molde realista, que deixava à margem questões histórico-sociais e seus impactos no indivíduo. Para a elaboração deste dossiê, a CULT contou com a participação de renomados especialistas que analisam o legado dos principais autores e obras deste fecundo período da literatura mundial. Optamos por circunscrever nossa abordagem a um panorama da prosa (nos dois primeiros textos), da poesia, do teatro e por fim à relação entre cinema e literatura. Assim, Luiz Angélico da Costa faz um levantamento das contribuições e pluralidades do cânone da prosa da primeira metade do século – período ao qual pertencem os ícones Faulkner, Fitzgerald e Hemingway. Na sequência, CULT apresenta ao leitor um trecho inédito da nova tradução de Absalão, Absalão!, um dos principais romances de Faulkner, que será lançado no mês de junho.

Índice do

DOSSIê

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Ainda na temática da prosa, Sérgio Luiz Prado Bellei analisa a produção da narrativa do pós-Segunda Guerra. Aspectos sociais, políticos e culturais norteariam de maneira decisiva a obra dos expoentes daquele período. Eventos como o uso da moderna máquina bélica a serviço da barbárie, a caça às bruxas capitaneada pelo senador McCarthy, a humilhante derrota no Vietnã culminariam em uma prosa marcada pelo medo, angústia e alienação, representada na obra de autores como Saul Bellow, Philip Roth e Joseph Heller. As principais vozes da poesia são contempladas no texto de Maria Clara Bonetti Paro. Dos desdobramentos do Alto Modernismo – representado essencialmente por T.S. Eliot e Ezra Pound –, passando pelos grupos Black Mountain, Beat e Language, até a poesia eletrônica contemporânea do EPC (Eletronic Poetry Center). Maria Sílvia Betti realiza um mapeamento da produção teatral. Inicialmente, a autora analisa os anos 1910 – período de constituição da identidade do teatro norte-americano. As novas concepções artísticas de então encontrariam em Nova York seu foco irradiador. Na sequência, são contempladas a efervescência cultural da década de 1930, a influência direta das transformações socioculturais da década de 1940 e a importância dos circuitos alternativos nas obras de 1950 em diante. Por fim, Mauro Rosso analisa a relação entre cinema e literatura. De que forma as produções de Hollywood se apropriam da tradição literária daquele país? Ao utilizar exemplos da produção cinematográfica, o autor apresenta confluências e disparidades entre as linguagens, de modo a oferecer ao leitor subsídios que permitam ultrapassar a superficialidade da corriqueira questão: O livro é melhor que o filme?

Período de FormaÇÃo O sonho do “grande romance

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a Prosa da Pós-guerra

americano” dividiu-se entre o

Da crise da representação na nova

enraizamento nas comunidades e a

ficção norte-americana do pós-guerra

evasão delas

à fabricação do caos na literatura

Luiz Angélico da Costa

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Sérgio Luiz Prado Bellei


de cima para baixo: t.s. eliot, F. scott Fitzgerald, William Faulkner e tennessee Williams, ícones da poesia, prosa e teatro

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a Poesia, seus ícones e moVimentos

57

breVe Panorama da Prosa teatral

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“o Filme é melHor Que o liVro?”

A difícil tarefa de apreender

O teatro norte-americano e as

A produção literária no país de

a pluralidade da poesia

contradições dos processos

Hollywood e sua profunda relação

norte-americana do século 20

sociais da nossa época

com o cinema

Maria Clara Bonetti Paro

Maria Sílvia Betti

Mauro Rosso n°135

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dossiê

Literatura norte-Americana do séc. 20

Período de formação Na época da Depressão e do Jazz, o sonho do “grande romance americano” dividiu-se entre o enraizamento nas comunidades e a evasão delas Luiz Angélico da Costa

Reprodução

Fitzgerald: a corporificação da impaciência, do querer ter e ser, do querer, ir e ficar

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D

e que maneira podemos dar unidade a obras tão díspares e marcantes como as que fazem parte do cânone da ficção deste período nos Estados Unidos? Sabemos que foram escritas por autores tão diferentes em sua história pessoal e cultural, como William Faulkner (1897-1962), Francis Scott Fitzgerald (1896-1940) e Ernest Hemingway (1899-1961), estrelas de primeira grandeza. Mas também por outros que (pela finalidade deste texto) serão praticamente apenas citados aqui. A intenção não é tirar o mérito desses autores e obras, mas de assinalar um fenômeno recorrente na produção e na recepção de alguns marcos da história literária de qualquer país, nação, povo, ou, mais precisamente, de qualquer comunidade. Entre estes, portanto, seria imperdoável esquecer Ralph Elisson (1909-1994) e seu O homem invisível (The Invisible Man), Sherwood Anderson (18761941) e as muitas sementes lançadas pelo seu primoroso Winesburg, Ohio – uma espécie de bildungs roman [romance de formação] – que viria a produzir admiráveis frutos no futuro, como o de sua influência na prosa de ficção curta de Raymond Carver (1938-1988), além de haver, de algum modo, influenciado em seu tempo a obra de Hemingway e Faulkner. Outro nome também inesquecível é o de Carson McCullers (1917-1967), vítima de uma saúde precária e uma inquietação psicológica. A literatura dos Estados Unidos deste período deve a ele três belos momentos da ficção: O caçador e um coração solitário (The Heart is a Lonely Hunter), Reflections in a Golden Eye e The Member of the Wedding. J. D. Salinger (1919-) e seu rumoroso O apanhador no campo de centeio (The Catcher in the Rye) são um caso à parte, ainda aberto talvez a uma revisão crítica.


dossiê

Literatura norte-Americana do séc. 20 Margaret Bourke White

Fila de pão, em Louisville, Kentucky, 1937: a realidade se sobrepõe à utopia do sonho americano

Origem nas questões sociopolíticas O que se pode afirmar com razoável certeza é que a prosa de ficção do período originou-se fundamentalmente em questões sociais, culturais e políticas através do viés ultraindividualizado de artistas enraizados em suas comunidades ou que procuravam erradicar-se delas. Faulkner seria o ícone no primeiro caso. Hemingway, no segundo. Fitzgerald, pelas próprias implicações de sua vida trágica, situou-se entre os dois extremos. Faulkner, em seu afã visceral de permanência em sua comunidade, chega a criar um território mítico (Yoknapatawpha), que é, antes de mais nada, o cerne espaço-temporal de toda sua obra. Hemingway traz de berço os impulsos do itinerante, do aventureiro, do man on the go – tão bem ilustrados em sua própria obra. Fitzgerald é a corporificação da impaciência, do querer ter e ser concomitantemente, do querer ir e ficar de modo indiscriminado, sendo esta a marca mais significativa de sua obra como um todo. Estes e outros artistas pertencentes a essa época de fortes pendências e grandes aspirações da sociedade americana – particularmente entre as duas grandes guerras, após o longo período de despojamento dos escombros da “casa

dividida” – refletem os anseios e conflitos de uma nação em busca de uma nova era. É o alvorecer do Modernismo na literatura e nas artes. É dessa época – da Depressão, do Jazz, da Beat generation – o sonho do “grande romance americano”, o qual individualmente é provável que jamais seja escrito, permanecendo como um dos elementos do ultrapassado “sonho americano”. Será como um incompleto O último magnata (The last tycoon: An unfinished novel) do sempre controverso Francis Scott Fitzgerald. Dessa divisão homem/artista (que paradoxalmente pode constituir-se na construção de uma obra de ficção), Fitzgerald não parece ter plena consciência, mas, em 1925, ano da publicação de O grande Gatsby (The great Gatsby), ele admite, em carta a John Peale Bishop, ser Gatsby um romance “blurred and patchy” (turvo e fragmentário). Na verdade, era só mais uma explosão dos entrechoques na mente do autor, sem os quais, é quase certo, não teria escrito sua novela exemplar. Mais contundente em sua prosa de ficção curta do que em seus romances, como se tivesse sempre mais pressa em viver do que em escrever, é Ernest Hemingway. É o Hemingway da narrativa curta – da noveleta-poema n°135

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dossiê

Literatura norte-Americana do séc. 20

tral, mas também a criação dramatúrgica, o projeto foi a mais importante iniciativa cultural desse período. Nesse contexto, marcado por florescente produção de esquerda, inúmeros grupos de teatro voltados ao experimentalismo dramatúrgico e à militância de esquerda viriam a desempenhar um papel particularmente relevante: o Labor Stage, o Theater of Action, o Theater Union foram apenas alguns dos nomes principais. Se os anos 1920 haviam se caracterizado pelos grandes musicais, a década de 1930, marcada pela ascensão do fascismo, se caracterizaria, no teatro norte-americano, pelo surgimento de grupos teatrais voltados a uma atuação politizada e crítica em relação ao pensamento da classe dominante e ao capitalismo. A necessidade de pensar sobre as questões sociais e políticas impunha a esses grupos a responsabilidade de representá-las artisticamente, e isso levou muitos deles a produzirem significativas inovações dramatúrgicas e cênicas. No âmbito da dramaturgia, a grande revelação desse período é Clifford Odets (1906-1963), ator que se tornou dramaturgo dentro do Group Theater e que inspirou a maior parte da dramaturgia norte-americana de esquerda desse momento e da década seguinte. “A Vida Impressa em Dólar” (“Awake

and Sing”), escrita por Odets em 1935, viria a ser a primeira peça montada profissionalmente pelo Teatro Oficina de São Paulo em 1961. Outros nomes importantes surgidos paralelamente na dramaturgia foram os de Paul Green (1894-1981), Irwin Shaw (1913-1984) e William Saroyan (1908-1981), autores que introduziriam transformações destinadas a equipar o teatro norte-americano para a representação artística do conjunto de forças sociais e históricas inerente ao contexto norte-americano. Essas transformações foram progressivamente contribuindo para diferenciar esse setor do teatro norte-americano não apenas do teatro europeu, mas também do teatro que caracterizava a Broadway. Outra inovação de máxima importância nos anos 1930 foi a aclimatação cultural e artística, através do trabalho do Group Theater, dos princípios de treinamento interpretativo de Konstantin Stanislavsky, pensador teatral e encenador do Teatro de Arte de Moscou. Diretores egressos do Group Theater como Elia Kazan (1909-2003) e Lee Strassberg (1901-1982) fundariam, algum tempo depois, o famoso Actors’s Studio, núcleo de preparação de atores cuja ressonância se faria sentir por várias gerações de atores e atrizes norte-americanos e estrangeiros, e que se mantém em atuação até a atualidade. Divulgação

Encenação da peça Longa viagem de volta para casa de Eugene O`Neill, pela Cia. Paulista Triptal de Teatro, em 2007

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As transformações sociais expressas no palco Um dos traços distintivos do teatro norte-americano foi sua capacidade de representar as transformações sociais aceleradas e intensas que sempre caracterizaram o país. Durante os anos 1940, após a entrada oficial dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, surgiu a necessidade de apresentação de peças tanto para civis como para soldados, valorizando-se nesse contexto também as encenações voltadas ao entretenimento. As décadas de 1940 e 50 foram marcadas pelas estreias de alguns dos mais marcantes musicais de todos os tempos: “Oklahoma” (1943), “Carroussel” (1945), “South Pacific” (1949), “The King and I” (1951), “My Fair Lady” (1956), “West Side Story”(1957) e “The Sound of Music” (1959). Tais produções foram grandes sucessos de público no gênero e trouxeram inovações coreográficas, técnicas e cenográficas que seriam prontamente absorvidas também pelo cinema. Mas é na segunda metade dos anos 1940 que iriam surgir, no campo da dramaturgia, dois nomes que viriam trazer transformações marcantes para a forma do drama moderno a partir de então, nos Estados Unidos e internacionalmente: Tennessee Williams (1911-1983) e Arthur Miller (1915-2005). “Zoológico de Vidro” (1946) é uma das peças mais características do estilo de Tennessee Williams, assim como “Um Bonde chama-


Literatura norte-Americana do séc. 20

do Desejo” (1948), “Gata em Teto de Zinco Quente” (1955) e a controvertida “Camino Real” (1953). “Morte de um Caixeiro Viajante” (1949) é uma das peças mais conhecidas de Arthur Miller, assim como “As Bruxas de Salém” (1953), “Panorama visto da Ponte” (1955) e “Depois da Queda” (1964). Desde muito antes da década de 1940, o apego de autores e críticos a um teatro de molde realista e dramático deixava necessariamente à margem da cena não apenas episódios de grande impacto histórico e coletivo, como a guerra, mas também o impacto subjetivo das grandes transformações sociais e materiais. Tennessee Williams e Arthur Miller desenvolveram soluções formais e estratégias representativas que permitiram avançar tanto num sentido como no outro. Tennessee impregnou o eixo da subjetividade de elementos tomados ao âmbito do épico: sua dramaturgia está impregnada de elementos ao mesmo tempo épicos e simbólicos, como exemplo o uso de fluxo narrativo e de memória, as projeções de slides, a ruptura com a representação verossimilhante do espaço e a criação de uma atmosfera determinada pela natureza da afetividade da personagem protagonista. Miller, por outro lado, vale-se da representação de fatos históricos ou de circunstâncias apoiadas em acontecimentos verídicos para representar simbolicamente tanto as perseguições políticas desencadeadas sob o macartismo como a tragédia do homem comum, que descobre tardiamente ter investido sua vida e suas esperanças nas expectativas associadas a um sistema que o transforma em sucata afetiva tão logo sua força produtiva se mostre em declínio. O papel dos circuitos alternativos As décadas de 1950 e 1960 se caracterizaram pelo extraordinário florescimento de uma esfera teatral alternativa em relação à Broadway. A proliferação de casas de espetáculos localizadas fora do eixo físico da Broadway e do Theater District fez surgir a designação off Broadway, rapidamente associada a autores e repertórios que não teriam acolhida no circuito comercial. Alguns anos depois, essa designação deixou de associar-se à localização física para referir-se à capacidade das plateias desses novos teatros, que não excediam o número máximo de 500 lugares. Processo análogo se verifica, na década seguinte, com o surgimento de um circuito alternativo em relação não apenas à Broadway, mas ao próprio off Broadway: tratava-se do off off Broadway, conceito que surge para designar as pequenas salas de espetáculo localizadas em garagens, pubs e cafés do East Village e de Tribeca,

Divulgação

dossiê

Cena da peça Um bonde chamado desejo: uma das peças mais características do estilo de Tennessee Williams

e que passou, pouco tempo depois, a designar espaços destinados a um número máximo de 100 espectadores e voltados a repertórios radicalmente experimentais tanto no sentido da concepção cênica como no da dramaturgia propriamente dita. O circuito de off off foi o nascedouro de todas as mais marcantes transformações cênicas e dramatúrgicas das décadas de 1960 e 1970, tendo sido responsável pela encenação dos primeiros trabalhos de autores como Edward Albee (1929-) autor de “A História do Jardim Zoológico” (1959), Amiri Baraka (1934-) autor de “Holandês” (1965), Sam Shepard (1943-), autor de “Criança enterrada” (1979) e de grupos como o Living Theater de Julien Beck e Judith Malina, o La Mama Experimental Theater Club, de Ellen Stewart, e o Wooster Group, de Elizabeth LeCompte e Willem Dafoe, entre tantos outros não menos significativos. No contexto do teatro norte-americano, colocam-se elementos para a discussão de alguns dos mais cruciais e instigantes desafios por parte dos que fazem teatro, dos que o assistem de fora e dos que buscam na linguagem teatral elementos para investigar algumas das principais contradições dos grandes processos sociais e históricos da nossa época. n°135

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DOSSIê

LITERATURA NORTE-AMERICANA DO SéC. 20

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA TEATRO

PROSA Longa jornada noite adentro Eugene O’Neill Trad.: Helena Pessoa Editora Peixoto Neto

O som e a fúria William Faulkner Trad.: Paulo Henrique Brito Cosac Naify

Apanhador no campo do centeio J. D. Salinger Trad.: álvaro Alencar, António Rocha, Jório Dauster Editora do Autor

Trópico de Câncer Henry James Trad.: Beatriz Horta José Olympio

Quatro peças de Sam Shepard Sam Shepard Trad.: Marcos Renaux e Otávio Frias Filho Paz e Terra

Luz em agosto William Faulkner Trad.: Celso Mauro Paciornik Cosac Naify

O velho e o mar Ernest Hemingway Trad.: Fernando de Castro Ferro Bertrand Brasil

A volta do parafuso Henry James Trad.: Chico Lopes Landmark

49 contos de Tennessee Williams Tennessee Williams Trad.: Alexandre Hubner, Fernando de Castro Ferro, Jorio Dauster, Sonia Moreira Companhia das Letras

Palmeiras selvagens William Faulkner Trad.: Newton Goldman e Rodrigo Lacerda Cosac Naify

O sol também se levanta Ernest Hemingway Trad.: Berenice Xavier Bertrand Brasil

As vinhas da ira John Steinbeck Trad.: Ernesto Vinhares e Herbert Caro Record

Agarre a vida Saul Bellow Trad.: Donaldson Garschagem Rocco

Adeus às armas Ernest Hemingway Trad.: Monteiro Lobato Bertrand Brasil

A leste do Éden John Steinbeck Trad.: Brenno Silveira Record

A marca humana Philp Roth Trad.: Paulo Henriques Brito Companhia das Letras

O diamante do tamanho do Ritz e outros contos F. Scott Fitzgerald Trad.: Cássia Zanon e William Lagos L&PM Editores

Ratos e homens John Steinbeck Trad.: Myriam Campello L&PM

Pastoral americana Philip Roth Trad.: Rubens Figueiredo Companhia das Letras

O curioso caso de Benjamin Button e outras histórias da era do jazz F. Scott Fitzgerald Trad.: Brenno Silveira José Olympio

A trilogia de Nova York Paul Auster Trad.: Rubens Figueiredo Companhia das Letras

Complexo de Portnoy Philip Roth Trad.: Paulo Henriques Britto Companhia das Letras

O grande Gatsby F. Scott Fitzgerald Trad.: Brenno Silveira Record

Um bonde chamado desejo Tennessee Williams Trad.: Vadim Nikitin Editora Peixoto Neto

Morte de um caixeiro viajante em Pequim Arthur Miller Trad.: álvaro Cabral Editora Itatiaia

POESIA Os cantos Ezra Pound Trad.: José Lino Grünewald Nova Fronteira

Obra completa – Poesia T.S. Eliot Trad.: Ivan Junqueira Arx

Três vidas Gertrude Stein Trad.: Vanessa Bárbara Cosac Naify

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oficina literária NÔMADE

MACACO NA CABEÇA para Joelson Ramos

Mede o peso da casa, olha as horas no braço nu, e para os lados, como quem não necessita de nada. De repente sem nenhum grito de protesto, põe a casa às costas e veste-se de mundo. Conclama todos os demônios, deita fora os semideuses e esfrega no chão dos nossos olhos a fuligem das estradas. O cheiro que dele fica empesteia o ar. É apenas um animal marcando seu território!

SOZINHO JUNTO Nos primeiros tempos eram guardados na memória e nos braços o sabor dos ventos que os tocavam. Depois, os ventos foram se tornando chuva, molhando as roupas seus trapos. E de ventos e chuvas, temporais. Com pedras de gelo e pó de labareda. Não surgiram mais os risos. Os rostos se amarrotaram.

Ousam. Causam ausências. Nos becos recordam, em círculos, a fera que afugenta a mancha do outro. A que analisa o asfalto. Quanto de nós é o que não somos? Que coisa é esta que assoma o animal em nós? Seremos o quê nestes corredores em transe, errando letras, soletrando ritmos ferrenhos e hediondos? Quem corrigirá a mão que nos aponta a morte? Que bala é esta? Que corpo merece estas moscas? Diante dos olhares serenos, entre aluviões, a flor.

PREMONIÇÃO Quando ter saudade de coisa que já não se olha há muito : eis o momento.

Ésio Macedo Ribeiro é doutor em Literatura Brasileira pela USP, escritor, bibliófilo e fotógrafo. Vive em Brasília e São Paulo. Publicou, entre outros, O riso escuro ou o pavão de luto: um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso (Edusp/Nankin, 2006)

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