Revista CULT (parcial) - edição 136

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ano 12

r$ 9,90

www.revistacult.com.br

enTreVisTa

Boris Fausto “o racismo no Brasil é mais complexo do que se imagina” arTiGo

o teatro e a expressão política do homem

dossiÊ

JÜrGen

HaBermas

um pensador da razão pública entrevista com o filósofo e sociólogo axel Honneth


ÍnDiCe

n o 136 JunHo 2009

Reprodução

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entreviSta Boris Fausto

30 Arquivo CULT

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Do leitor

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literatura

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evento realizado pela revista Cult supera objetivos

HomenaGem Decisivo para a compreensão da cultura contemporânea no Brasil, augusto Boal conciliou seu engajamento político a uma inventividade estética surpreendente

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enSaio Francisco Bosco: os livros encerram uma utopia das relações pessoais

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Correspondências entre mário de andrade e seu “tio” Pio lourenço revelam extenso debate intelectual e traços de uma sólida amizade

ConGreSSo De JornaliSmo Cultural

mÚSiCa norman lebrecht: Por que os artistas precisam de uma Convenção de Genebra?

entreviSta o historiador Boris Fausto fala sobre seu novo livro, O crime do restaurante chinês, e analisa os resquícios do populismo na atual política latinoamericana

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augusto Boal

Cultura em movimento 40 anos do Pasquim • Mostra Internacional de Teatro • Os cinco roteiros favoritos de Bráulio Mantovani • DVD traz três concertos para violino de Camargo Guarnieri

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HomenaGem

Coluna marcia tiburi analisa a estética do fingimento, da revolução à conservação

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livroS Cristo era um revolucionário? Para terry eagleton, crítico literário mais influente da inglaterra, a resposta é sim e não


ColaBoraDoreS DeSta eDiçÃo

autor de Patologias da modernidade: Um diálogo entre Weber e Habermas (annablume, 1997), entre outros

Arquivo pessoal

Wolfram Huke

Jessé de souza, professor de sociologia da uFJF. É

Francisco Bosco, ensaísta e escritor. É colunista da revista Cult e autor de

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Arquivo pessoal

Banalogias (objetiva, 2007), entre outros

DoSSiÊ

Razão e consenso em Habermas: A teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia (ed. uFSC, 2005); Kant e Habermas: a reformulação discursiva da moral kantiana (ed. PuCrS, 2002), entre outros

Habermas e a educação por Ralph Ings Bannel

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a face de Janus dos direitos por Delamar José Volpato Dutra

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direito e democracia por José Pedro Luchi

60

ambivalência moral e política do mundo moderno por Jessé de Souza

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duas perguntas para axel Honneth

Mulher de costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofia em comum (record, 2008), entre outros

José Pedro luchi, professor de filosofia da uFeS. É autor de A superação da filosofia da consciência em Habermas (ed. universitá Gregoriana, 1999), entre outros

norman lebrecht, escritor e crítico musical britânico. apresenta o programa lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista Cult e autor de Maestro, obrasprimas & loucura (record, 2008)

ralph ings Bannell, professor do departamento de educação da PuC-rJ. É autor do livro Habermas e a educação (ed. autêntica, 2006)

Arquivo pessoal

oFiCina literÁria

marcia Tiburi, filósofa e escritora. É colunista da revista Cult e autora de

Arquivo pessoal

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Arquivo pessoal

leira pela uSP e professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper líbero

Habermas, 80 anos um pensador da razão pública por Luiz Bernardo Leite Araujo

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Welington andrade, doutor em literatura brasi-

DoSSiÊ

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da uerJ. É co-organizador de Filosofia prática e modernidade (ed. uerJ, 2003) e autor do livro Liberalismo, religião e modernidade em Habermas (ed. loyola, 1996), entre outros

delamar Volpato dutra, professor de filosofia e direito da uFSC. É autor de

Jürgen Habermas

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luiz Bernardo leite araújo, professor de filosofia


entreviSta

BoriS FauSto

a atenção é a “naturalização do racismo”. a alusão à cor de arias por parte da imprensa e da justiça é constante e usada de forma a acentuar sua possível culpa. na sua opinião, tal comportamento permanece, ainda que de forma velada? Boris – aí há duas coisas. a primeira, mais complexa. o caso do arias [acusado do crime] mostra algo complexo sobre o racismo: ele existia na sociedade brasileira e ainda existe hoje, isso é inquestionável. É o chamado “racismo ordinário” – expressão que os franceses usam como algo que se relaciona ao cotidiano, que está na cara. esse racismo existe. Porque toda hora é o preto isso, o preto aquilo. mas ao mesmo tempo existe uma outra coisa: o fato de que o arias foi pouco a pouco se tornando um personagem simpático. Primeiro porque o discurso da imprensa vai mudando ao longo do processo e depois porque o promotor, em um de seus recursos, diz “aconteceu de novo a simpatia pelos delinquentes”. tanto que o Paulo lauro, advogado de defesa, que era mulato, saiu aplaudido ruidosamente do segundo julgamento. então, claro que existe o racismo, mas, em certas situações concretas, ele pode não prevalecer.

Esse crime é uma “ possibilidade de mostrar não

só a existência do racismo, mas como ele é um fenômeno mais complexo do que se imagina” CulT – essa simpatia que arias foi conquistando junto à opinião pública relaciona-se, em certa medida, com a semelhança física do acusado com o jogador leônidas da silva, estrela da seleção de 1938? a mudança do discurso relaciona-se com isso? Boris – o discurso da imprensa possivelmente, o do público certamente. eu fui um tanto prudente nessa associação, pois não está escrita em lugar nenhum. eu cheguei a essa associação porque o leônidas é uma figura muito presente na minha memória. eu o vi jogar no Pacaembu, quando veio para o São Paulo. Quando eu vi o arias, notei que era a cara do leônidas, até porque eu estava trabalhando com fotos da Copa do mundo, então explorei isso. CulT – no tratamento dado ao crime, a imprensa é ora condenadora e racista, ora simpática ao acusado arias. Como o sr. analisa a postura do jornalismo em relação ao crime? Boris – vou me ater ao jornal impresso. na época, assim como hoje, havia jornais mais sensacionalistas e outros mais sisudos. o Estadão censura o sensacionalismo. o Sérgio milliet, por exemplo, chegou a afirmar que “agora que a massa aprendeu a ler, os jornais

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se desvirtuaram da sua função”, ou seja, no Estadão a cobertura foi muito sóbria. Por outro lado, havia a cobertura do jornal A Gazeta, muito lido da época. era um jornal leve. não era uma coisa imprestável, de jeito nenhum, mas era mais sensacionalista. então o trato foi muito diferente. CulT – Trazendo o assunto para tragédias mais recentes, cito como exemplo a cobertura da morte do casal von richthofen e da menina isabella nardoni. Como o sr. analisa a diferença de tratamento por parte da imprensa entre essas tragédias e aquelas que ocorrem na periferia? Boris – aí há duas questões. a primeira delas é um tratamento da imprensa de acordo com a categoria social dos indivíduos. isso é inegável. no caso do crime que trato no livro, se fosse a morte de um “paulista de 400 anos”, ou seja, de uma família muito tradicional, a repercussão teria sido ainda maior. mas, apesar disso, a repercussão do crime do restaurante chinês foi grande. Quando você cita o caso do casal von richthofen e da menina isabella, são exemplos que vão caindo no esquecimento. no caso do crime do restaurante chinês, tem algumas coisas curiosas. antes, houve o “crime do castelinho”, que foi um crime de gente importante. Houve uma versão de que um membro da família teria matado a mãe, o irmão e se suicidou em seguida. essa versão colou, mas muita gente não acredita nela. Consta que o suicida morreu com dois tiros! o crime teve repercussão na época, mas inferior ao do restaurante chinês que permaneceu, inclusive porque o arias foi sendo julgado ao longo de anos. Ficava aquela questão: vai ter um novo julgamento. ele vai ganhar ou não? era uma expectativa quase futebolística. Durante a Copa do mundo, o crime entra em uma fase mais burocrática, com depoimentos de testemunhas etc. a Copa toma conta da imprensa. Quando ela acaba, e aproxima-se o segundo julgamento, o caso volta com destaque aos jornais até o desfecho. CulT – seu livro A Revolução de 30 é tido como referência nos estudos daquele período, bem como sobre a prática populista de Vargas. na sua opinião, quais traços do populismo ainda permanecem no atual contexto político da américa latina? Boris – Com algumas modificações, o Chavez é um populista adaptado aos novos tempos. É um populista a pleno vapor. no plano econômico, inflação não é problema para ele, o que é uma característica do populismo. Perón dizia: “não quero saber de inflação. isso é coisa de economista. eu sou político”. aí vem a pergunta: “o lula é um populista?”. É e não é. ele usa alguns dos recursos do populismo num outro contexto. Populismo econômico ele não fez, a não ser no gasto público e no emprego da turma. Houve o cuidado do Banco Central com a inflação e a busca persistente pela estabilidade econômica. os populistas não fazem isso. essa política foi herdada do Fernando Henrique, algo que o lula inteligentemente percebeu. ou seja, como ele poderia ter continuidade no poder jogando em duas frentes. assim ele conseguiu o encanto dos banqueiros e do pessoal do Bolsa Família.


entreviSta CulT – em 2004, o sr. afirmou em entrevista que “se o governo lula não desse certo, a crença do brasileiro de que é possível mudar as coisas pelo processo democrático se desgastaria”. Passados cinco anos, o sr. acredita que o governo deu certo? Boris – Começo pelo comparativo que fica mais fácil. Se olharmos para a argentina, venezuela e mesmo para a Bolívia – embora a Bolívia seja um caso distinto por conta da questão indígena – nós estamos em uma situação muito melhor. riscos de um regime formalmente autoritário, o que se relaciona àquela minha declaração, eu acho que não existem. o governo lula teve aspectos muito surpreendentes. Para o bem ou para o mal, houve uma capacidade de comunicação muito grande com a grande massa, o que prestigia a figura do chefe do executivo. realizou-se uma política social a qual lula e sua equipe de comunicação conseguiram passar que foi ele quem inventou, mas não foi. mas é fato que ele avançou, inclusive aumentando o número de pessoas beneficiadas. a área econômica foi outro grande mérito. Houve a manutenção, não só de uma equipe, mas de uma linha de política econômica que se revelou coerente. o tratamento da crise, por exemplo, na parte técnica, está sendo bem feito.

BoriS FauSto

Por outro lado, a ideia de que o Pt é um partido símbolo da ética na política – aspecto que, mesmo eu não sendo petista considerava o diferencial do partido – não se sustenta mais. a não ser para uma pessoa ingênua ou beneficiada pelo governo. mas, no balanço geral, eu diria que nós estamos razoavelmente bem. o que há é essa decepção com a ética e o aprofundamento do padrão não ético (para ser delicado), que são muito graves. a absorção dos escândalos como algo natural e a apatia política são aspectos negativos do governo lula.

O crime do restaurante chinês Boris Fausto Companhia das letras 264 págs. r$ 45

Apresenta�várias�histórias�sobre�perseverança�e mostra�que�muitas�vezes�o�que�pensamos�ser�um obstáculo,�pode�na�verdade,�estar�nos�ensinando�a sermos�fortes. “Keep�Going” nos�ensina�a�perseverar! E,�perseverar�não�significa�ignorar�as�dificuldades, mas�aceitá-las,�conhecê-las,�enfrentá-las�e�superá-las. Faça�como�o�jovem�Jeremy�e�se�deixe�envolver�pelas sábias�lições�deste�livro. Procure�na�livraria�mais�próxima!

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Literatura

lançamento

A Pasárgada de Mário e seus itinerários Correspondências entre Mário de Andrade e seu “tio” Pio Lourenço revelam extenso debate intelectual e traços de uma sólida amizade

N

ão bastasse a pluralidade de sua obra ficcional, Mário de Andrade (1893-1945) deixou à cultura brasileira um legado igualmente diverso de produções intelectuais em áreas como música, crítica de arte e folclore. Ao longo de seu percurso como artista e pesquisador, um gênero ocupou destaque em sua formação: a epistolografia. Desde os primeiros esboços literários até a súbita morte em 1945, o autor de Macunaíma manteve intensa correspondência com ícones da arte brasileira da época. Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Anita Malfatti e Cândido Portinari foram alguns dos confidentes com os quais Mário discutiu longamente acerca de sua produção ficcional, dos desdobramentos do movimento modernista e outros temas-chave de sua carreira. Recém-lançado, o livro Pio & Mário – Diálogo da vida inteira permite analisar as correspondências de Mário, não só do ponto de vista artístico-intelectual, mas também sob o viés familiar. Trata-se do conjunto das cartas trocadas com Pio Lourenço Corrêa (1875-1957), marido de Zulmira Moraes Rocha, prima do autor. Mário habituara-se desde a infância a chamá-lo tio. Dono da Fazenda Sapucaia, em Araraquara, refúgio onde Mário escrevera Macunaíma num arroubo de inspiração, Pio Lourenço “era pequeno, magro, de feições corretas. Tinha um olhar penetrante que parecia sempre comandar, exprimindo

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um temperamento autoritário como poucos”, como descreve Antonio Candido no prefácio do livro. O interlocutor de Mário era devoto do conhecimento. Dominava quatro idiomas e possuía uma notável coleção de enciclopédias e dicionários em sua biblioteca. Duas tragédias familiares marcaram o encontro entre o intelectual vanguardista e seu “tio” conservador. Em junho de 1913, quando faleceu Renato, irmão de Mário, Pio o levou pela primeira vez à Fazenda Sapucaia para recuperar-se de profunda depressão. Quatro anos mais tarde, quem faleceu foi Carlos Augusto de Andrade, pai de Mário e grande amigo de Pio. Naquele mesmo ano, começaram as correspondências, que cessariam somente em 1945. “A correspondência é uma versão miniaturizada do trajeto, visto na perspectiva da família, que Mário de Andrade percorreu desde o livro de estreia até sua glorificação final de escritor”, escreveu Gilda de Mello e Souza (1919-2005), autora de O arcaico e o moderno: história de uma amizade, ensaio que está no livro. “Metido com essa coisa de folclore”

Os assuntos abordados nas cartas vão desde o cotidiano da fazenda até questões pontuais sobre folclore, linguagem e criação literária. Desde o início da carreira, Mário costumava submeter sua obra ao crivo crítico de Pio. Embora avesso aos princípios modernistas, o “tio” não se furtava em reconhecer os méritos do jovem autor.

Acervo Ouro sobre azul

Wilker Sousa

Pio Lourenço Corrêa e sua esposa Zulmira Moraes fotografados por Mário de Andrade

Em carta de 21 de agosto de 1917, a respeito de Há uma gota de sangue em cada poema, livro de estreia de Mário, Pio comenta: “Gosto do seu fraseado, sadio, forte e original”, mas faz ressalvas em relação ao uso de versos livres: “O metro...eu não percebo nada de metro; outras técnicas de verso...eu não percebo nada disso”. Outra questão recorrente são as pesquisas de Mário em busca do caráter nacional. Em depoimento de agosto de 1927, Mário se diz “metido com essa coisa de folclore” e pede ao “tio” para que o ajude na busca de dados sobre o boi: “Escarafunche bem a memória, veja se se lembra de alguma espécie de documento folclórico referente a boi. No ano que vem publico


lançamento

Acervo Ouro sobre azul

literatura

Camargo Guarnieri, mário de andrade e lamberto Baldi, em 1945

um voluminho bem interessante sobre as ‘Melodias do Boi’. O primeiro capítulo ou parte do livro é mostrando a obsessão que o brasileiro tem pelo boi”. O livro só viria a ser publicado postumamente, mas a figura folclórica do boi seria trabalhada pelo autor de modo a ser incorporada à caracterização da identidade nacional. Na medida em que se passavam os anos, a melancolia acentuou-se em Mário. Inquietações e impasses sobre sua obra o consumiam. Questionavase sobre a importância dela e em que medida ficara refém do projeto estético modernista. Nos anos 1940, tido como um dos grandes nomes da arte brasileira, mostrava-se declaradamente avesso à fama e suas “chatices”. Não encontrava um tempo para ir à “chacra”, em Araraquara. Queria voltar à sua Pasárgada e desfrutar da hospitalidade e carinho de seus amigos Pio e Zulmira, como manifestou na última carta que enviou a Pio, quinze dias antes de sua morte,

em fevereiro de 1945: “Não sei quando poderei ir à chacra. E é impossível que o Sr. não saiba o quanto isso é o meu desejo. Mas afinal desde meados do ano passado que me vi enfim obrigado a encarar o problema da celebridade (...) Desde junho, quando não fui praí como pretendia, venho deixando a ida e o prazer ‘pro mês que vem’. Não sei quando chegará esse mês que vem (...) Acredite que o sorriso que estou esgarnizando [desculpe] é de bastante amargura. Estou mesmo carecendo de um bocado de sense of humor. Lembrança a Zulmira e acredite neste amigo fiel, Mário.” Pio & Mário - Diálogo da vida inteira mário de andrade e Pio lourenço Corrêa intr.: Gilda de mello e Souza ouro sobre azul / edições SeSC-SP 424 págs. – r$ 96

A IMPORTÂNCIA DAS CARTAS ENTRE PIO E MÁRIO a reunião das correspondências entre mário de andrade e Pio lourenço Corrêa é a maior e mais duradoura da epistolografia andradiana. São 189, entre cartas e bilhetes trocados de 1917 a 1945. a reunião do material é fruto da tese de mestrado intitulada A riqueza nas diferenças, defendida em 2007 por Denise Guaranha, na uSP. Durante quase quatro anos, foram levantadas cartas e imagens inéditas dos correspondentes. Segundo Denise, “somente Pio lourenço possuía 10.200 fichas com anotações sobre mário”. Para antonio Candido, “trata-se de uma correspondência diferente que convida o leitor a descobrir um personagem fascinante, um inesperado fazendeiro de grande cultura, cuja escrita correta e expressiva faz sentir, em cada linha, o cunho de uma personalidade singular”.


Homenagem

Augusto Boal

O teatro e a expressão política do homem Artista fundamental para a compreensão da cultura contemporânea no Brasil, Augusto Boal conciliou o engajamento político a uma inventividade estética surpreendente Welington Andrade

O

teatro brasileiro trilhou entre as décadas de 1950 e 1970 um sólido caminho rumo à notoriedade. Dotada do convite à polêmica, à prontidão crítica e à ousadia da experimentação, a criação teatral atraiu grande atenção do público e dos meios intelectuais no período. Brioso e onipresente, convicto de seu poder de fogo, o teatro do Brasil desenvolvimentista e, posteriormente, dos anos de chumbo alimentou a ilusão de que tudo dependia mais ou menos de sua ação: a classe teatral, amparada por uma intelectualidade vigilante e empenhada, não só “conscientizaria” o povo como também transformaria profundamente as práticas sociais. O percurso que congregou tantos artistas e pensadores em torno de um apaixonado clima de participação desembocava necessariamente na reflexão sobre o país. Nunca os meios culturais e artísticos produzidos e difundidos no Brasil deixaram-se seduzir tanto pela musa inspiradora da “realidade brasileira” quanto no período que compreende a segunda metade da década de 1950 e o final da década de 1970. As reflexões sobre aspectos específicos desta realidade saltaram dos estudos sociológicos e dos romances regionalistas e invadiram as mais variadas manifestações culturais organizadas a plenos pulmões nos grandes centros urbanos, impulsionadas pelos bons ventos econômicos que sopravam sobre a nação. Tentar compreender o Brasil profundo era o objetivo maior, e ele estava lá, iluminado pela lente do cinema novo; entoado também pelos inovadores acordes da música popular brasileira; e retratado ainda – somente para citar três típicos terrenos da cultura artística –, de modo desafiador, em espetáculos cênicos experimentais que tomavam lugar em palcos diversos. A cultura nacional, enfim, inspirava e expirava, por

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n°136

todos os seus orifícios, lufadas e mais lufadas do ar denso e complexo que, seja por opção programática, seja por modismo ou comodismo, convencionou-se chamar de “realidade brasileira”. Boal e o Teatro de Arena Augusto Boal (nascido em 1931 no Rio de Janeiro e morto no último dia 2 de maio) foi um dos mais ativos homens de teatro daquela geração, e o importantíssimo legado que ele deixou à memória cultural do país constitui uma peça fundamental para o entendimento da arte produzida em um período emblemático de nossa história recente e, consequentemente, da cultura contemporânea no Brasil. Animador cultural dos mais inquietos, Boal aliou as atividades de dramaturgo e encenador à de teórico (sua vasta formação intelectual levou-o a escrever sobre a própria prática, num caso raro entre nós), desenvolvendo concepções bastante originais e expondo ideias sempre muito polêmicas. Sua atuação à frente do Teatro de Arena de São Paulo – que se estende de 1956 a 1971 – investiu na formação dramatúrgica e aprofundou o trabalho de interpretação da equipe, adaptando tais elementos às condições brasileiras e ao formato do “teatro de arena”, o que resultaria numa experiência única no Brasil. Posteriormente, dedicou-se a pesquisas que conceberam o teatro-jornal e o teatroinvisível, alicerces da famosa metodologia que viria a desenvolver mais tarde, o Teatro do Oprimido, responsável por sua projeção internacional. O projeto original do Teatro de Arena (fundado por José Renato em 1953) visava facilitar o caminho dos iniciantes na carreira, propondo uma disposição cênica intimista: atores no centro, espectadores ao redor. Entretanto, o formato de arena somente deu prestígio ao


grupo quando Boal começou aliar às variáveis artísticas decorrentes dele elementos sociais tratados com grande arrebatamento emocional e intelectual. A encenação bem-sucedida de Eles não usam black-tie (1958), a cargo de José Renato, proporcionou ao Arena as condições de realizar o Seminário de Dramaturgia (iniciativa na qual Augusto Boal exerce papel determinante), que, além de pretender revelar novos autores, empreendeu buscas de soluções dramáticas e investigações de definições estéticas e políticas. O teatro político de Erwin Piscator, o realismo socialista e a forma dialética de Bertolt Brecht constituíam a bibliografia básica das atividades do Seminário, que acabou por gerar um espécime raro, uma das mais bem acabadas experiências de teatro épico no Brasil: Revolução na América do Sul, do próprio Boal. No texto, o autor abranda os procedimentos naturalistas, trocando o dramático pelo farsesco, a fim de denunciar a demagogia nacionalista, o populismo, as bandeiras pseudorrevolucionárias e o vazio dos mecanismos democráticos, que marcaram o clima eleitoral de 1960. Embora trate de muitos fatos e personagens esquecidos pela História, o texto permanece vivo ainda hoje, por conta de sua contundente sátira social. No Panorama do teatro brasileiro, Sábato Magaldi assim celebra a experiência: “Revolução guarda toda a vitalidade alegre e contagiante da farsa primitiva. Sente-se nela o sopro criador do teatro. Pelo trabalho consciente do dramaturgo, ela significa mais ainda: assimila, pelos seus vários aproveitamentos, as lições tradicionais do teatro, e mistura-as com os estímulos imediatos da experiência nacional – a revista e o circo. Torna-se um amálgama feliz de nossa aventura artística. Exprime, por esse lado, o que há de mais autêntico em nossa cultura: a aliança do aprendizado europeu e norteamericano com as forças espontâneas da nacionalidade.” Tropicalizando Brecht O tom que Revolução na América do Sul imprimiu ao Teatro de Arena marcou decisivamente o começo da influência do trabalho de Bertolt Brecht no Brasil. Para o autor de Mãe coragem, o teatro deve trabalhar metodologicamente com o questionamento crítico em todos os níveis de realização: o autor deve criticar a própria peça, o ator deve criticar a personagem (com a qual não deve se identificar sob o risco de perder a objetividade) e o público deve criticar a realidade, elaborando sua própria reflexão acerca do que presenciou. Assim é que as peças seguintes do Arena, escritas por Augusto Boal em parceria com Gianfrancesco Guarnieri, são do ponto de vista estilístico respostas brasileiras ao teatro épico, nas quais os autores procuraram assimilar o método

Augusto Boal

Reprodução

Homenagem

Augusto Boal [1931-2009]: criador de um teatro libertário e transformador, de clara expressão política

de Brecht, integrando-o a soluções dramatúrgicas originais, adaptadas às condições específicas do próprio grupo e do País, cujos acontecimentos fervilhavam tão intensamente. Em 1965, o Teatro de Arena estreou Arena conta Zumbi. Montagem de grande êxito, o musical criticava o golpe militar recém-deflagrado a partir da relação repressora entre os colonizadores portugueses e os negros. O sucesso levou ao Arena conta Tiradentes, encenado em 1967, também uma análise do momento político da época a partir do movimento libertário que poderia ter mudado os rumos da história do País: a Inconfidência Mineira. As montagens de Zumbi e Tiradentes proporcionaram o surgimento de dois textos críticos de Anatol Rosenfeld (“Heróis e coringas” e “O herói humilde – o herói e o teatro popular”), que, escritos no calor da hora, hoje são considerados obras fundamentais do ensaísmo teatral no Brasil. Aliás, vale notar que as peças, encenações e reflexões de Boal sempre foram alvos da análise dos mais renomados intelectuais brasileiros, conforme atestam as citações aqui presentes. Ao examinar as considerações teóricas expostas pelo diretor no texto introdutório da versão de Arena conta Tiradentes, publicada em livro, Rosenfeld observa que “as ideias expostas destinam-se a fundamentar um teatro que tenha eficácia para o público brasileiro e, mais de perto, para o público do Teatro de Arena, eficácia no sentido do acerto social deste teatro, isto é, da ‘humanização do homem’”, acrescentando que “apesar de todas as dúvidas, n°136

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Coluna

filosofia

Da revolução à conservação: a estética do fingimento Marcia Tiburi

A

adolescência é uma fantasia e como tal necessita de uma hermenêutica. Muito se falou sobre a invenção da infância desde a pesquisa de Philippe Áries em História Social da Criança e da Família. Raramente se fala da invenção da adolescência. A novidade é a ideia de invenção que até os dias de hoje não foi suficientemente assimilada pela cultura cotidiana acostumada a pensar de modo conservador, ou seja, reafirmando o axioma impotente “a vida como ela é” pelo qual se depreende que a vida não seria produção pessoal e coletiva, mas algo pronto em que se tornar adulto significaria necessariamente sucumbir ontologicamente a um modo de ser. Também a adolescência inventada para se contrapor ao ideal “a vida como ela é” tornouse a norma e assim perdeu seu poder revolucionário. A adolescência foi neutralizada. O ideal que se fez como imagem contracultural foi reduzido à norma conservadora plena dos efeitos práticos que vão do consumismo à depressão epidêmica – também ela derivada da indústria cultural da doença – nestes tempos que, sem medo, posso chamar de sombrios. Assim a adolescência é uma narrativa e um mito destes tempos. Qual seria a base profunda da adolescência que, aflorada, nos faria ver além do mito?

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O cheiro do espírito adolescente Confesso que também eu, nascida no tempo do que alguns analistas malhumorados chamaram de geração X, tempo de desespero/descaso/ausência de sonho, que não cabe questionar aqui, também eu escuto “Smells like teen spirit” de Kurt Cobain e lastimo seu suicídio. Não é possível deixar de ver que também ele se tornou – foi transformado? – o Jesus Cristo de uma geração. Vítima do ideal contracultural que resultou na ideologia da conservação de que não há saída para os descontentes além do suicídio. Kurt Cobain é também ele a invenção, mito tornado imagem que podemos imitar todos os dias. Mito que autoriza à depressão como uma saída existencial tornada romântica, irônica, disfarçando o mal-estar da cultura em estética musical. O paradigma publicitário do espetáculo não poupa nem um pobre jovem que morreu deprimido. Também ele se torna um ícone da religião oficial da sacrossanta mercadoria. Salva-se enquanto se condena ao nos dar as costas. Que a imagem de melancolia e dor possa fazer parte do espetáculo faz com que aqueles identificados com o paradigma grunge que não tenham sucumbido à própria dor pensem que estão melhores do que ele. A adolescência se tornou um paradigma e como tal a verdade do nosso tempo. Verdade a ser imitada. Ela foi

naturalizada como acontece com toda invenção cultural que passa de uma primeira natureza a uma segunda natureza por esforço do discurso e da ação dele decorrentes. Todo discurso precisa de sacerdotes, e encontra seus ventríloquos. À força de um discurso repetitivo sobre a existência do que a psicologia chamou de “puberdade” criou-se uma narrativa mítica que teve seu panteão na história do rock e do cinema. Podemos dizer que não há adolescência sem o tempo da suspensão: sem os heróis funâmbulos na corda bamba que lida com a infância e a nunca alcançada idade adulta. Heróis são mortos ilustres e servem para ser imitados. Não é possível dizer sem dor que também Kurt Cobain vendeu-nos a adolescência, o mito da eterna juventude, assim como antes dele Dean, Joplin, Hendrix. Os heróis adolescentes não podem ficar velhos, devem morrer para garantir o ideal da marca que representam. A marca é o mito da eterna juventude. O que importava nas imagens de mortos dos mitos, mesmo quando já não eram púberes, sempre foi a inexistência de relação com a “vida real”, aquela que envolve algo como a responsabilidade e que pode para muitos ser mais que desagradável. Melhor a morte. Para os vivos a vida fora da imagem aparece como uma sobra da morte. Nada mais que a sobra. E a adolescência o fantástico ideal inventado

Arquivo pessoal

O cheiro do espírito adolescente


Coluna pelos adultos para exorcizarem de si mesmos os seus fantasmas de morte e aniquilação projetados na eterna juventude autocontente, marginal, ou melancólica, mas sempre fantasiada. O adulto simula a adolescência para poder exorcizá-la deixando que outros vivam o ideal do qual ele está salvo, ou para imitá-la em sua aparência como código de uma esperança que não pode ser vivida senão pela emulação. Espectros de adolescentes, espantalhos sobreviventes perambulam em shoppings e ruas. Por trás de seus rostos plastificados, leitores atentos da história podem ver a caveira – a alegoria de Walter Benjamin – pronta a virar pó. A caveira finge ser um belo jovem, cuja canção melancólica podemos ouvir em CDs bem produzidos; cujas roupas surradas podem ser compradas a preços altos em lojas de grife. Éramos jovens A adolescência é um sistema. Com seus códigos e padrões, ela compreende também uma estética (a roupa do adolescente é paramento e uniformização) que tem sua moral (o comportamento é um teatro) e, em sua base, um fundamento. O fundamento da adolescência não se sustenta sem o tempo histérico da juventude à mostra que pode, apenas por isso, por poder ser imitada, ser também vivida. Não podemos esquecer que a adolescência é construída por um discurso. A palavra “jovem” foi abandonada tanto no senso comum como nas pesquisas científicas, antropológicas ou médicas. Isto porque a palavra “adolescência” pretende determinar uma compreensão moderna – pósmoderna? – do fenômeno da juventude sem que a juventude permaneça em cena, assim também não precisamos pensar em nossa “velhice”. Aqueles que falam “jovem” ficam com cara de “velho”, enquanto aqueles que dizem adolescente pretendem ter chegado ao cerne da questão: não

filosofia

são jovens nem velhos, camuflam-se sob o direito linguístico de pertencer ao padrão, enquanto dele se esquivam discursando como se fossem o outro, o que está a salvo daquilo que critica. A pronúncia substitui o saber em uma sociedade de rituais vazios. A crença na adolescência se dá pelo discurso e, como tal, envolve efeitos práticos. Todos participam dele. Até crianças pequenas são capazes de se autorreconhecerem como pré-adolescentes. São capazes de esperar pelo tempo da “adolescência”. Moças afirmam que homens são eternos adolescentes. Homens esperam que mulheres mantenham o visual adolescente. Contardo Calligaris escreveu um belo livrinho chamado A adolescência (Publifolha, 2000) no qual faz um uso adequadíssimo da expressão “moratória” primeiramente usada por Erik Erikson no final dos anos 1960 para designar o “tempo” da adolescência como vivência de uma crise. Moratória é um termo rico para pensar a qualidade de uma sociedade que evita a todo custo a angústia da morte, em termos mais amenos, da finitude, de nossa temporalidade restringida pela morte da qual o tempo da velhice é sinal. O peso da adolescência como estética e moral em nossa cultura define a vida inteira vivida como moratória. Adolescer sempre foi sinônimo de esperança, sempre foi desejar um outro tempo. No entanto, a covardia adulta que inventa a adolescência, bane o jovem para exorcizar o velho, mantendo a suspensão na linguagem, constrói um espaço de exceção, uma espécie de estado de sítio infinito no tempo. Vivemos sem sentido, em crise econômica, ecológica e política, presos em um limbo entre o que fomos e um devir sempre temido. A adolescência como ideal é o que nos ajuda a fingir que “a vida é como ela é”. marcia.tiburi@terra.com.br

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um penSaDOr Da raZÃO pÚblIca

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HabermaS e a eDucaÇÃO

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a Face De JanuS DOS DIreItOS

ÍNDiCe

O desafio hoje é o de compreender a O período de formação, o “giro linguísti-

formação do indivíduo como membro de

sobre a relação entre política, moral e

co”, e sua presença no debate contem-

grupo social, e como cidadão de uma co-

democracia em Habermas

porâneo

munidade política maior Delamar José Volpato Dutra Ralph Ings Bannel

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n°136

Ralph Ings Bannel


R

epresentante maior daquilo que se convencionou “segunda geração” da Escola de Frankfurt (grupo que reuniu teóricos como Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, a partir da década de 1930), Jürgen Habermas é hoje, sem dúvida, o pensador vivo mais importante da Alemanha. Autor de livros que propõem articulações inovadoras no campo clássico das teorias do direito, da moral e da educação, Habermas também participa como decisivo interventor no debate público europeu. Suas reflexões sobre questões urgentes da contemporaneidade vão desde o consenso normativo da bioética aos rumos regulatórios da União Europeia, da discussão institucional sobre a democracia no século 21 à reavaliação do papel das religiões na atual esfera política. Habermas completa 80 anos neste 18 de junho. No entanto, para além da importância da efeméride, parece cada vez indispensável ao debate brasileiro a compreensão dos aspectos centrais da teoria de Habermas, de seu work in progress, até para que possamos “perceber nossa própria sociedade de outro modo, mais crítico e menos auto-indulgente e superficial”, como nos informa o admirável texto de Jessé Souza, que participa deste dossiê. Vale lembrar que Habermas é notoriamente reconhecido como autor difícil, na medida em que integra com diferentes tradições do pensamento ocidental. Isso não deveria impedir, entretanto, a compreensão pa-

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Direito e democracia

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ciente do trabalho conceitual decisivo que acompanha suas análises. Este dossiê CULT pretende, com a ajuda de especialistas brasileiros no assunto, apresentar alguns dos tópicos que participam desse trabalho conceitual. Como introdução ao dossiê, Luiz Bernardo Leite Araujó fala dos anos de formação de Habermas e de sua inflexão intelectual definida como o “giro linguístico” da teoria social, ou seja, o encaminhamento teórico em direção ao “agir comunicativo”, apanágio pelo qual o filósofo alemão tornou-se conhecido. Ralph Ings Bannel resume o pensamento habermasiano sobre o processo de educação, tomado em seu sentido amplo, voltado à formação do indivíduo tanto como membro de grupo social específico quanto como cidadão de uma comunidade política maior. Delamar Volpato Dutra descreve o alinhamento conceitual proposto entre democracia, moral e direitos humanos. José Pedro Luchi sintentiza a filosofia do direito habermasiana, disposta em três eixos de ação: coerção, estabilização social e controle administrativo. E Jessé Souza analisa um dos conceitos-chave do pensamento de Habermas, o de “esfera pública”, e descreve a centralidade deste conceito para o debate no Brasil hoje. Por fim, uma pequena entrevista com o filósofo alemão Axel Honneth, atual diretor do Instituto de Pesquisa Social (onde se consolidou a Escola de Frankfurt) e ex-assistente de Habermas, na qual avalia a influência de Habermas sobre suas pesquisas atuais.

Ambivalência moral do mundo moderno

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[DOSSIÊ]

Habermas, 80 anos

Duas perguntas para Axel Honneth

As três dimensões fundamentais do

No Brasil, onde o debate acadêmico ainda

O filósofo e sociólogo alemão mostra a

Direito: coerção para a liberdade,

imagina um país dominado pelo “jeitinho”,

contribuição de Habermas para a Teoria

estabilização social e controle

a teoria habermasiana pode ser ricamente

Crítica e situa sua própria obra em relação

econômico e administrativo

aproveitada

ao eixo central da teoria habermasiana

José Pedro Luchi

Jessé Souza n°136

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dossiê

Jürgen HaberMas

Pequeno Glossário Habermasiano Agir comunicativo – distingue-se do agir finalista, normativo e expressivo, e da razão instrumental, pelo fato de trazer em si o momento do entendimento livre de dominação. Tudo que age comunicativamente apresenta quatro pretensões de validade, exprimidas ou inexprimidas: inteligibilidade, verdade, correção (em referência a normas) e veracidade. Esfera Pública – conceito usado para a descrição do espaço comunicativo entre a esfera civil privada (às vezes considerada como mercado) e o Estado. Ela é caracterizada pelo acesso livre, universal, desimpedido, pela publicidade e, com isso, pela possibilidade da crítica ao Estado autoritário e da decisão autônoma do cidadão. A esfera pública cidadã resulta do Iluminismo e do capitalismo de pequena escala e de concorrência. Ela sucumbiu sob as condições da sujeição à lógica do poder econômico e da substituição política de publicidade por publicity. Ela não é nenhuma instituição ou organização, mas se produz, como o mundo da vida no todo, por meio de agir comunicativo de forma, em geral, compreensível, ou seja, numa orientação leiga. Sua qualidade democrática é avaliável em termos procedimentais, a saber, o quão livre, igual e aberto é o acesso às expressões públicas de opinião e o quão racional é o nível de trato do problema. Não deve ser confundida com os resultados de pesquisas de opinião, pois ela não pode ser apurada individualmente e se expressar privadamente, mas só no interior de uma práxis comunicacional em comum (ver o texto de Jessé Souza neste dossiê). Metafísica – Metafísica é, para Habermas, um nome coletivo para tudo aquilo que ele quer superar no

pensamento filosófico tradicional: a tentativa de recondução de todos os fenômenos a um princípio fundamental, um conceito poderoso de teoria, que eleva esta acima de toda práxis, qualquer doutrina idealista das ideias, todo pensamento do ser, mas também a filosofia da consciência de Descartes, para qual o “eu penso” era o ponto-final da autocertificação. Com isso, ideias centrais do pensamento filosófico de Platão até Hegel são rejeitadas. Mundo da vida – constitui, segundo Axel Honneth, o “horizonte de suposições de fundo intersubjetivamente partilhadas, no qual todo processo de comunicação precedente está inserido”. Esse conceito tomado de Husserl contrapõe a ingenuidade desejada e refletida do dia-a-dia ao imperativo do sistema social de funções. A colonização do mundo da vida é o cerne de seu diagnóstico crítico da época na Teoria do agir comunicativo. Política deliberativa – Diferente da teoria político-científica das instituições, Habermas propõe concentrar-se nos discursos e processo intersubjetivos de entendimento entre os cidadãos. A deliberação oferece a oportunidade de envolver, além de ambos os recursos dinheiro e poder, o terceiro recurso, a solidariedade que se forma comunicativamente. As qualidades argumentativas de processos de deliberação trazem adicionalmente momentos de racionalidade no processo político que não têm uma chance por ocasião da mera negociação de acordos de interesse. O sistema político é então não mais a ponta nem o centro da sociedade, mas um sistema comunicativo de ações, entre outros. Racionalidade – Racionalidade é uma disposição de sujeitos aptos ao

diálogo e à ação, cujas asserções e comportamentos estão abertos a uma avaliação de outros. Uma asserção pode ser denominada racional só se preencher as condições necessárias ao entendimento com outros sobre algo no mundo. Ela tem que apresentar uma pretensão de verdade, ser adequada à situação e também ser autêntica. Sistema – Conceito oposto a mundo da vida. No desenvolvimento social, formas sistêmicas de integração diferenciam-se progressivamente do mundo da vida. Sistemas são organizados e delimitados através dos respectivos mecanismos especiais da coordenação das ações, ou seja, o sistema jurídico através do direito, o sistema político enquanto estado através do direito e através da disposição sobre o poder organizado como meio de sanção para decisões obrigatórias. Situação ideal de fala – Ela é caracterizada por quatro condições: esfera pública, distribuição equitativa dos direitos de comunicação, não violência e autenticidade. Ela é entendida como parâmetro, como ideia reguladora, não porém como projeto a ser concretamente realizado. Verdade – Ela é definida como aceitabilidade racional nas condições de uma situação ideal de fala. A definição clássica de uma correspondência do pensamento com os fatos, desde o “giro linguístico” [ver texto de Luiz Bernardo Araújo], não é mais possível, pois também fatos têm só uma aparição linguística. Mais tarde, Habermas pretende, entretanto, salvar novamente o potencial excedente da pretensão clássica de verdade contra suas formulações atuais muito ousadas.

(Termos adaptados do livro Compreender Habermas, de Walter Reese-Schäfer, publicado pela Editora Vozes, em 2009)

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DOssiê

JürgeN HABerMAs

um pensador da razão pública O período de formação, o “giro linguístico” na Teoria Crítica da sociedade, e a presença de Habermas no debate contemporâneo

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abermas é um dos mais importantes e influentes pensadores da atualidade, tendo se notabilizado pela destreza em transitar por diversas áreas do conhecimento sem perder a visão de conjunto própria do saber filosófico. Trata-se de um teórico interdisciplinar, cujos trabalhos transcendem as rígidas fronteiras entre as disciplinas acadêmicas, e de um escritor prolífico, com mais de quarenta obras publicadas ao longo dos últimos cinquenta anos, além de um intelectual público que discute as principais controvérsias políticas, morais, científicas e culturais de nosso tempo, contribuindo inclusive com intervenções em revistas e jornais de prestígio, como a Der Spiegel e o Die Zeit de sua Alemanha natal. Ele mesmo considera a ‘esfera pública’, entendida como espaço do trato comunicativo e racional entre as pessoas, o tema que o persegue a vida toda. Sua existência foi marcada, na infância, pela experiência traumática de intervenções cirúrgicas numa fissura labiopalatal; na adolescência, pelo nazismo e a Segunda Guerra Mundial – apesar da “sorte de ter nascido mais tarde”, já que, aos dezesseis anos, testemunhou a derrocada do regime nazista sem ter participado das atrocidades reveladas após 1945 nos processos contra criminosos de guerra –, e no decorrer de sua vida adulta pelas inquietações ligadas aos destinos da sociedade alemã do pós-guerra, tanto na abertura cultural para o Ocidente quanto na reeducação política sob impulso democrático. Habermas é um filósofo rigoroso e suas análises meticulosas requerem do leitor não apenas paciência conceitual, mas também vasto conhecimento da história das ideias.

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Luiz bernardo LeiTe arauJo

teórico interdisciplinar, cujos trabalhos transcendem as rígidas fronteiras entre as disciplinas acadêmicas n°136

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dossiê

Jürgen HaberMas

Direito e democracia Para Habermas, existiriam três dimensões fundamentais do Direito: coerção para a liberdade, estabilização social e controle econômico e administrativo José Pedro Luchi

E

m 1981, Habermas havia publicado sua “obra maior”, a Teoria do agir comunicativo. Em 1992, foi dada a público uma concretização encorpada daquela teoria para o campo específico do Direito e da Política no volume que em português se chama Direito e democracia entre facticidade e validade. O próprio autor entende esse livro como resposta sobre o que poderia ainda significar uma postura socialista após a queda do socialismo real, a saber, “conjunto das condições necessárias para formas de vida emancipadas, sobre as quais os participantes mesmos precisam primeiro se entender”. Direito como lugar de uma interna conexão entre Facticidade e Validade O Direito moderno afirma que o sujeito privado está autorizado a impedir que outros, inclusive o Estado invadam seu âmbito de liberdade. Por outro lado, o Estado moderno monopoliza os meios de constricção legítima, isto é, a aplicação de penas. O Direito implica desde a origem uma competência para coagir, que deve ser legitimada. Uma vez que quem infringiu a lei impediu a liberdade de alguém, Kant legitima a coerção como “impedimento do impedimento à liberdade”, através da qual a liberdade é reafirmada. Fica liberada aos sujeitos a motivação para a observância da lei: eles podem fazê-lo meramente pela legalidade, isto é, para conformar seu comportamento à letra da lei e assim não sofrerem sanções, ou podem observar a lei com motivação moral, pelo dever. Porém as regras jurídicas devem poder ser observadas por causa de sua validade racional, devem merecer o respeito do ponto de vista moral, devem portanto ser legítimas, o que não é de modo nenhum

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contraditório com sua força coercitiva, porque essa mesma serve à liberdade universalmente efetivada. Normas jurídicas, são, portanto, ao mesmo tempo, sob aspectos diversos, leis de coerção e leis de liberdade. Tal perspectiva de Habermas explode o reducionismo do positivismo jurídico, que apaga a questão da validade normativa do direito, enfocando apenas se a lei foi formalmente colocada de modo correto, isto é, coerentemente, por uma autoridade competente e que tenha força para fazê-la cumprir. Pelo contrário, o Direito deve vincular aquilo que o positivismo cinde: justiça e legalidade jurídica. A legitimidade da norma jurídica é medida pela aceitabilidade racional das pretensões de validade que tal norma levanta; o primeiro critério para isso é o procedimento racional do processo legislativo de onde as normas surgiram. Tal legitimidade não depende de a norma ser ou não observada de fato, mas, inversamente sua observância efetiva varia com a fé na sua legitimidade. Quanto menos legitimada uma norma ou um conjunto de normas, mais sua observância dependerá de intimidação, poder das circunstâncias, costume ou mero hábito. Normas em geral correspondem a expectativas recíprocas de comportamento das pessoas: que ação um está autorizado a esperar do outro. O agente está autorizado, diante da norma jurídica, tomar uma dupla posição. Ele pode considerá-lo, empiricamente, como um fato do mundo que limita seu espaço de ação e, calculados os efeitos da observância e da infração da norma, agir voltado para o sucesso. Pode também agir voltado para o entendimento com outros atores, considerando o dever moral-público de observá-la. Mas a validade jurídica requer que a norma mesma possa merecer respeito isto é, que ela possa


JürgeN HABerMAs

Eurico Zimbres

DOssiê

congresso nacional, brasília. para Habermas, “o processo legislativo forma no sistema do Direito o lugar próprio da integração social”

ser obedecida por sua legitimidade. Então, “o Direito positivo precisa ser legítimo”. Uma ordem jurídica legítima deve garantir para cada um as mesmas liberdades; leis morais preenchem por si essa condição, mas leis jurídicas precisam ser assim estabelecidas pelo legislador político. “O processo legislativo forma então no sistema do Direito o lugar próprio da integração social”. Isso significa que os legisladores não são autorizados a agir na posição estratégica de sujeitos privados que buscam seu próprio sucesso, mas precisam assumir a posição de agentes voltados para o entendimento, isto é, de cidadãos autônomos, cujas sentenças devem poder ser aceitas por todos os participantes. Assim, no conceito de Direito já está instalado o princípio democrático de que a sua legitimidade só pode ser assegurada pela aceitabilidade de suas regras por parte de todos os cidadãos livres e iguais, o que tem uma força altamente sóciointegrativa.

Aceitando a lei como legítima, os cidadãos a aceitam como se eles a tivessem dado a si mesmos. Só assim o direito pode conservar uma força sociointegrativa. A fonte da solidariedade que o direito moderno possibilita se radica ultimamente num consenso de fundo, característico do agir voltado para o entendimento. A mera força policial não garante a longo prazo o cumprimento da lei, porque então se deveria colocar um policial ao lado de cada cidadão, e em seguida, um fiscal ao lado de cada policial, e assim por diante. A efetivação do sistema de Direitos depende de um consenso dos cidadãos. Direito como estratégia de estabilização social O tecido social se mantém coeso através da aceitação de regulamentações, com base na legitimidade de razões. Aceitamos razões se elas resistirem a questionamentos; caso contrário as razões deixam de sê-lo e as concreções sociais que sobre elas se baseavam tendem a se dissolver. n°136

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