Revista Cult 126

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ANO 11 R$ 9,90

ENTREVISTA

Gianni Vattimo

“A sexualidade é um aspecto essencial da nossa finitude” LITERATURA

Vitor Ramil Ingo Schulze

1968 muito além de maio

Os episódios em que a história se encheu de liberdade e esperança devem ser lembrados para tentar fazer com que vença a esperança dos vencidos


Editorial

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Diretora e Editora - Daysi M. Bregantini Diretor de Redação - Marcos Fonseca Editor de Filosofia - Eduardo Socha Estagiário da redação – Daniel Marques Revisor - Ricardo Miyake Foto da capa – Protesto contra guerra do Vietnã no Grant Park, Chicago, agosto de 1968. Corbis/LatinStock Diretor de arte - Maurício Francischelli Assistente de Arte – Fábio Guerreiro Colaboradores desta edição – Álvaro Bianchi, Carlos Guilherme Mota, Eduardo Sterzi, Elísio Estanque, Francisco Bosco, Franklin Leopoldo e Silva, José Estevam Gava, Luiz Bernardo Pericás, Márcia Tiburi, Marcio Seligman-Silva, Massimo Di Felice, Ruy Braga, Sean Purdy Departamento Financeiro - Ana Lúcia P. Silva Departamento administrativo - Dejair Bregantino Assinaturas - Samanta Costa - Tel.: (11) 3385 3385 e-mail: assinecult@editorabregantini.com.br samanta@editorabregantini.com.br Publicidade em São Paulo: Júlia Farina (executiva de negócios) e-mail: juliafarina@editorabregantini.com.br Gilberto R. Rala (executivo de negócios) e-mail: gilberto@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385 3385 Publicidade em Brasília: Front Comunicação - Pedro Abelha e-mail: pedroabelha@terra.com.br Tel.: (61) 3321 9100 Gráfica - Parma Distribuição exclusiva no Brasil (Bancas) - Fernando Chinaglia CULT - REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA é uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 - 10º andar Paraíso - São Paulo - SP - CEP 01533-070 Tel.: (11) 3385-3385 - Fax: (11) 3385 3386

A decisão editorial de produzir um dossiê sobre os acontecimentos de 1968 foi cautelosa e exigiu reflexão. A CULT não poderia deixar de falar sobre o assunto, mas muito se escreveu a respeito, principalmente este ano, em que os fatos completam quarenta anos. Havia o risco de o leitor já estar cansado do assunto. Por isso, CULT optou por editar um conjunto de análises mais objetivas e que traçassem um retrato das revoltas ampliado para “muito além de maio”. O resultado, você confere, é um respeitável documento jornalístico. Nele, destacam-se as participações dos professores Ruy Braga - o pensador deste dossiê -, Alvaro Bianchi, Carlos Guilherme Mota, Elísio Estanque, Luiz Bernardo Pericás, Sean Purdy, complementadas por um ensaio primoroso do querido professor Franklin Leopoldo e Silva. Outro mestre da filosofia, que participou ativamente das manifestações de 1968, na Itália, também adensa as próximas páginas. É Gianni Vattimo, 72 anos, um vigoroso intelectual que viaja pelo mundo proferindo famosas e concorridas palestras. Ele esteve no Brasil e, na passagem por São Paulo, reuniu-se com alguns colegas, ciceroneado pelo também italiano, mas já um pouco brasileiro, Massimo Di Felice. Vattimo é um estudioso do pensamento de Nietzsche, Heidegger e Gadamar e elaborou o chamado “pensamento fraco” (pensiero debole), em oposição ao “pensamento forte” da metafísica clássica. Ele é o entrevistado deste mês. O último texto sobre os 50 anos da Bossa Nova, críticas literárias, resenhas e as colunas de Marcia Tiburi e Francisco Bosco completam a edição. Boa leitura!

Daysi Bregantini daysi@editorabregantini.com.br

Matérias e sugestões de pauta: redacao@revistacult.com.br Espaço CULT espacocult@revistacult.com.br

ISSN 1414707-6 – nº 126 – julho/2008 – ano 11

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Fernanda Paola

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Índice

06 do leitor 08 cultura em movimento

Editora Record renova até 2018 direitos de publicação da obra de Graciliano Ramos

12 entrevista

O filósofo italiano Gianni Vattimo explica a teoria do pensamento fraco e fala sobre política, religião e militância homossexual.

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artigo Massimo Di Felice e o pensamento pós-moderno

20 livros

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filosofia Coletânea de textos analisa a inflexão no pensamento de Goethe

Márcio Seligman-Silva faz uma análise crítica de Celular, livro do escritor alemão Ingo Schulze Eduardo Sterzi escreve sobre Satolep, do escritor gaúcho Vitor Ramil

34 filosofia

26 bossa nova

A colunista Marcia Tiburi fala do habitante póshumano da pós-história

O movimento que extrapolou os limites musicais, designando tudo o que pretendia ser moderno e arrojado

36 ensaio

O colunista Francisco Bosco e o pensamento ambivalente

38 dossiê Reprodução

A rebelião estudantil Por Ruy Braga Jean Pierre Vernant, um helenista nas barricadas Por Álvaro Bianchi A batalha de Chicago Por Luiz Bernardo Pericás A rebelião estudantil nos Estados Unidos Por Sean Purdy Quarenta anos depois Por Elísio Estanque Os estudantes e a condição proletária Por Ruy Braga Os bondes da história Por Carlos Guilherme Mota Memória e esperança Por Franklin Leopoldo e Silva

66 oficina literária 5


Cultura em Movimento

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Editora Record renova até 2018 os direitos de publicação da obra de Graciliano Ramos Fotos/Divulgação

Com 12 títulos do autor desde que trouxe Vidas secas para seu catálogo, em 1975, a Record prepara uma campanha para homenagear Graciliano e atrair uma parcela maior de leitores brasileiros para a obra do escritor alagoano, morto em 1953. Na segunda quinzena de julho, começam as comemorações dos 70 anos de Vidas secas. Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record, conversou com a CULT. Existiam outras editoras interessadas? Pelo menos mais duas editoras haviam abordado os herdeiros. Quem negocia pela família? São 14 herdeiros, mas dona Luísa Ramos Amado, única filha viva do autor, tem grande

Fotos/Divulgação

Belos sambas, grandes letras

representatividade entre eles. Qual a importância de Graciliano? Difícil responder a essa pergunta sem cair em platitudes. Alguém pode questionar que, com Machado de Assis e Guimarães Rosa, Graciliano Ramos compõe a grande tríade do romance brasileiro? Publicar Graciliano é uma honra: é um autor cujo peso no panorama literário brasileiro cresce a cada década desde que Vidas secas foi publicado. E assim continuará. Para se ter uma idéia, as vendas da obra de Graciliano na Record cresceram 20% de 2005 para cá. Isso também representa um patrimônio financeiro, mas para a Record a importância de ter os direitos de Vidas secas, São Bernardo e toda a obra do autor não pode ser expressa contabilmente.

Cada um tem o seu Pedimos ao maestro Abel Rocha que confessasse seus gostos mais cafonas. O diretor da Banda Sinfônica de São Paulo abre o coração e revela seu apreço pela música do começo dos anos 1960.

A modernidade da tradição Marcos Sacramento Biscoito Fino Preço: R$ 28,90 O repertório é primoroso. Vai do clássico Paulinho da Viola (na parceria com Sérgio Natureza em “Vela no breu”), passa pelo erudito de Paulo César Pinheiro (“Canto das três raças”, com Mauro Duarte) e fecha apoteótico, com Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira (“Apoteose do samba”). No recheio, Nélson Cavaquinho/Guilherme de Brito (“Mulher sem alma”), J. Cascata/Leonel Azevedo (“Lábios que beijei”) e Ataulfo Alves (“Infidelidade”). As mulheres são terríveis (“dei meu nome a ela... sem saber que eu era demais entre os seus amores”, diz Guilherme de Brito, reforçado por Ataulfo: “era o dono do negócio, sem saber que havia um sócio na firma do nosso amor”), mas também se queixam com Noel Rosa (“ele é o veneno que eu escolhi”, em “Pela décima vez”) e Assis Valente (“Fez bobagem”), reunidos numa só faixa. Outras felizes fusões: Chico com Wilson Batista e Marino Pinto (“A volta do malandro” emendando com “Largo da Lapa”) e o Caetano (“Genipapo absoluto”) que se segue a Péricles Cavalcanti (“Dos prazeres, das paixões”). Tudo embalado pela voz limpa e afinada de Marcos Sacramento e o violão gostoso de Maurício Carrilho. Em sete das onze faixas, a dupla tem a marcante companhia de Marcos Suzano na percussão. 8

“Há uma série de músicas da época de minha infância, que se observadas e ouvidas hoje em dia podem até ser definidas como cafonas, mas são tão representantes de uma época e de uma maneira de ver o mundo que as prezo muito ainda hoje. Gosto de todo aquele repertório do Renato e seus Blue Caps (famoso grupo de Iê-iê-iê do começo dos anos 1960), Trio Ternura e Trio Esperança (conjuntos vocais que também alcançaram sucesso na televisão), Nilo Amaro e seus Cantores de Ébano (grupo que misturava o gospel com a MPB)”.


Fotos/Divulgação

Sérgio Ricardo fala sobre Ponto de partida, seu novo trabalho CULT - Como aconteceu esse intercâmbio com a nova geração? Sérgio Ricardo - Através de Marina Lutfi, minha filha, que é cantora e amiga dos melhores músicos cariocas da nova geração. Eu já vinha do projeto Palco Livre, no qual se apresentavam jovens talentosos, que varreram meus preconceitos contra a juventude que se alienara durante os anos da ditadura. Muitos deles superavam a minha geração no domínio técnico dos instrumentos e no conhecimento musical, sem contar que davam prosseguimento ao processo criativo de nossa música, restabelecendo o elo cultural que se supunha rompido. A realização deste CD foi uma festa.

CULT - Dá para viver de música no Brasil? SR - Só dá para o artista que vive em palcos. Fora do palco, só como compositor, é doloroso pelo desamparo em que se encontra a profissão no tocante aos direitos autorais. É preciso encarar esse

CULT - Aos 75 anos de idade e quase 60 de carreira, acha que o Brasil melhorou culturalmente? SR - Acho que o país melhorou tecnologicamente, mas culturalmente tenta se recuperar. CULT - O episódio em que você quebrou o violão... dá para falar sobre isso? Esse fato o persegue? Todo mundo pergunta (ainda) sobre esse contecimento? SR - Não dá mais para falar sobre esse assunto. Com meu livro Quem quebrou meu violão, já encerrei o caso para limpar a área de minha memória. Não me lembro de mais nada. O fato me persegue, sim. Não há uma entrevista em que não venham perguntas sobre o assunto. CULT - Trabalhar com seus filhos foi uma experiência importante? SR - Sou um pai de sorte. Adriana, Marina e João são superdotados musicalmente. Por mim, esse disco poderia ser cantado por eles. Adriana e Marina cantam melhor do que eu. João toca violão melhor do que eu. A presença deles no disco deu um colorido que eu não conseguiria sozinho. Eu que deveria ensiná-los, ao contrário, aprendo com eles. 9

O escritor Milton Hatoum, descendente de libaneses, enumera cinco obras indispensáveis da literatura árabe: 1) Tempo de migrar para o norte, do escritor sudanês Tayeb Salih. Tradução de Safa Jubran e publicado pela Editora Planeta. 2) Porta do Sol, do escritor libanês Elias Khoury. Tradução de Safa Jubran e publicado pela Editora Record. 3) O Beco do Pilão, do escritor egípcio Naguib Mahfuz. Tradução de Paulo Daniel Farah e publicado pela Editora Planeta. 4) Eu vi Ramallah, do escritor e poeta palestino Mourid Barghouti. Tradução de Safa Jubran e publicado pela Editora Casa da Palavra. 5) A obra poética de Adonis (Ali Ahmad Said), um dos mais importantes e influentes poetas árabes, cuja obra foi traduzida em várias línguas. Nos três últimos anos Adonis foi indicado para o Nobel. No Brasil, alguns de seus poemas foram traduzidos por Michel Sleiman.

Divulgação/Adriana Vichi

CULT - Existe uma preocupação em atualizar a Bossa Nova? SR - Em nenhum momento isso nos passou pela cabeça. Algumas de minhas canções escolhidas para o CD são do tempo em que passei pela Bossa Nova, mas ganharam um tratamento diferenciado, mais coerente com a tônica adotada.

problema de forma consistente e definitiva, a exemplo dos países desenvolvidos.

Pela ordem


entrevista

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Gianni Vattimo

O capitaliSmo é, em grande parte, responsável pela infelicidade Arquivo Pessoal

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ianni Vattimo nasceu em Turim, no norte da Itália, em 1936. Formou-se em Filosofia na universidade local e nela ensina até hoje (pretende aposentar-se em 2009). Fez especialização na Universidade de Heidelberg, Alemanha, e passou por universidades norte-americanas como professor visitante. Autor de O fim da modernidade (ed. Martins Fontes) e organizador, com Derrida, da coletânea A religião (Estação Liberdade), publicou também A sociedade transparente (Relógio D’Água), entre outras obras, algumas inéditas no Brasil. Vattimo foi deputado no Parlamento Europeu, viaja pelo mundo proferindo palestas, sempre para grandes platéias, lotadas, e

escreve em jornais e revistas. Gosta do contato com estudantes, é generoso e encantador. Um homem brilhante, com um currículo extenso, que entretanto não o torna inacessível. Está sempre disposto a atender às inúmeras solicitações. Em junho, passou por São Paulo e encontrou-se com colegas como Marcia Tiburi, Vladimir Safatle, Juvenal Savian, Ruy Braga e Nello Barille, entre outros. Na visita ao Brasil, foi acompanhado pelo professor italiano Massimo Di Felice, da ECA/USP. Nesta entrevista exclusiva, Vattimo fala sobre pensamento fraco (pensiere debole), filosofia, religião e política, além da militância homossexual, iniciada nos anos 1950, quando tal atitude era muito mais que arriscada. 12


Fernanda Paola

CULT - O senhor escreveu no livro Adeus à verdade que um dos resultados da filosofia de F. Nietzsche e de Martin Heidegger é que o “ser” não “é”, mas “acontece”, advém. Como se chega a essa concepção do “ser”, que pode ser interpretada como uma forma de dizer que o “ser” não “é”? Ou como uma forma de dizer que o “ser” é instável? Gianni Vattimo - Não direi que o ser é instável porque isso seria, também, um modo de descrevê-lo. Chamá-lo de evento corresponde realmente à experiência de sua indescritibilidade. O ser, como tal, não pode ser um “objeto” diante de nós; não podemos dizer que “é” isto ou aquilo. O que podemos dizer é que “aí nos encontramos” junto ao “ser”, tanto nós como as coisas que são dadas em nossa experiência. Certamente, podemos, também, sempre tentar dizer quem somos nós e quais coisas são as coisas. Mas sempre dentro de um horizonte de possibilidade que não é, mas acontece, conosco e através de nós, e que é próprio porque é um horizonte, isto é, nunca um objeto de nossa consciência. Podemos falar, mas, na realidade, somente e sempre respondendo como a um apelo que se dá, também, enquanto o escutamos e o interpretamos. CULT - Vivemos uma época sem verdade? G. V. - Não creio que vivemos sem verdade. Antes de tudo, a verdade não é a descrição adequada de como as coisas são, porque uma tal descrição requer sempre que haja alguns critérios pelos quais se possa avaliar a adequação, e esses critérios fazem parte do evento e não do mundo dos objetos. Nesse caso, aqui se encontram proposições verdadeiras porque adequadas segundo os critérios que nós usamos; mas estes critérios não são passíveis de uma descrição objetiva, eles são a nossa historicidade. Ou seja, estou fazendo um discurso inteiramente compreensível à luz de Kant e do existencialismo. CULT - O pensamento cristão de que “a verdade vos libertará”, é possível no interior de uma lógica?

Gianni Vattimo, Marcia Tiburi e Nello Barile

G. V. - Eu diria que a verdade, como disse Jesus Cristo, é o verdadeiro niilismo, se ela for entendida no sentido que ilustrei acima: a verdadeira verdade não é a proposição descritiva adequada, é o horizonte do ser dentro do qual as proposições se tornam possíveis. Não somos espectadores passivos das coisas, somos interlocutores e intérpretes da mensagem que o próprio ser nos envia. CULT - Quem são os filósofos italianos que, para o senhor, estão construindo uma obra importante? No Brasil conhecemos pouco do pensamento filosófico italiano contemporâneo. G. V. - É difícil dizer, porque também, freqüentemente, com eles, estou em polêmica; temos idéias divergentes. Entre aqueles que mais estimo, mas com os quais também polemizo, estão Massimo Cacciari e Emanuele Severino. Depois, tenho colegas com os quais me sinto mais em sintonia, de Enzo Vitieello a Bodei e Píer Aldo Rovatti, até Santiago Zabala, com quem constantemente colaboro. Mas a filosofia não é uma ciência e não me parece que se possa falar de um trabalho comum, porque não se trata de uma pesquisa científico-positiva. 13

CULT - O senhor foi deputado do Parla­ men­to Europeu. Como foi essa expe­ riência? G. V. - Quanto mais os anos se passam, tanto mais me parece uma perda de tempo. Quando estive no Parlamento (entre 1999 e 2004), havia uma grande esperança da constituição européia, que teria feito da Europa um único tema político capaz de fazer-se sentir no plano internacional. Hoje, nós conquistamos uma ampliação para outros dez países, mas ainda sem nenhuma constituição, e me parece que a desconfiaça em relação à expressão cidadão europeu é bastante justificada. CULT - Depois de tantas experiências, como o senhor se define politicamente? G. V. - Por mais que soe escandaloso, me defino como um comunista. O comunismo real – aquele de Stálin – caiu, e, portanto, pode-se, de novo, ser comunista enquanto partidário de uma sociedade sem classes. Sempre penso na definição de comunismo dada por Lênin, mais eletrificação soviética. Hoje, no mundo capitalista, há muita eletrificação (desenvolvimento tecnológico, aumento do produto interno bruto, globalização), mas


Livros

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Resenha

Fria Ítaca No romance Satolep, de Vitor Ramil, o retorno à origem é, antes de tudo, um retorno ao trauma por Eduardo Sterzi

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alter Benjamin, num ensaio bastante conhecido, distingue os dois modelos fundamentais do narrador tradicional: o primeiro seria o camponês sedentário, que permaneceu toda a vida em determinado lugar e está a par de todas as suas histórias; o segundo, o marinheiro mercante, que vagou pelo mundo e, ao retornar, conta do que viu e viveu nas lonjuras. Embora, como nota o mesmo Benjamin, já a narrativa medieval, ao produzir-se paradigmaticamente na convivência de mestres sedentários e aprendizes errantes, combinasse ambas as figuras de narrador, foi o romance – forma por excelência, desde seus inícios, da narrativa em crise, ou, antes, e dito com maior precisão, da crise da narratividade – que complicou de vez as coisas. Se buscássemos isolar as duas figuras ideais do narrador moderno (que, nascido com o romance, se impôs também ao conto e

Divulgação/Cosac Naify

à novela, e mesmo à poesia narrativa e, na medida em que aí haja um narrador implícito, ao drama e ao cinema), chegaríamos, talvez, a dois personagens complexos, desassossegados: o primeiro, aquele que, tendo persistido em certo lugar (como o camponês da narrativa tradicional), vai, porém, muito além dessa limitada localização física por meio da imaginação exacerbada, ou mediante, ainda, um raciocínio infinito que, com freqüência, confina com a loucura; o segundo, aquele que regressa do mundo (como o marinheiro), mas, em vez de relatar suas aventuras estrangeiras, transforma as tensões da volta – com sua dialética intranqüila de reconhecimento e auto-reconhecimento, de desconhecimento e autodesconhecimento – em matéria da narrativa. É uma engenhosa imbricação dessas duas possibilidades de narração que fornece, por assim dizer, a estrutura do romance Satolep, de Vitor Ramil. O personagem principal, que faz também as vezes de narrador, é um fotógrafo que, “depois de haver habitado casas de muitas cidades e países”, retorna a

Narrador personagem visita diferentes casas pelo mundo e depois retorna a sua cidade natal 22


Divulgação/Cosac Naify

sua Satolep natal (num percurso semelhante ao do próprio autor, que voltou à Pelotas de sua infância depois de alguns anos vivendo no Rio de Janeiro – e talvez seja supérfluo frisar que Satolep, o nome da cidade imaginária, é palíndromo de Pelotas). O regresso do fotógrafo se dá na data de seu trigésimo aniversário. Conforme registra, seus pais e irmão mais velho ainda moram na cidade, mas ele, sem explicação, evita encontrá-los. Para não ser identificado e conduzido à família, apresenta-se aos amigos que vai fazendo com um nome provavelmente falso, Selbor. O grupo de amigos inclui alguns dos principais nomes da cultura pelotense (digo, satolepense) e, mais amplamente, sulrio-grandense das primeiras décadas do século 20: antes de qualquer outro, o escritor João Simões Lopes Neto, autor de Contos gauchescos e Lendas do sul, livros de exceção, decisivos na constituição do regionalismo moderno brasileiro, mas ainda hoje menos lidos do que merecem, apesar de suas numerosas reedições; e também o cineasta Francisco Santos, diretor de alguns dos primeiros filmes de ficção rodados no Brasil, e o poeta e jornalista Lobo da Costa. Outras figuras, menos historicamente determináveis, atravessam o caminho de Selbor,

seja o Cubano (viajante com quem o fotógrafo se encontra no trem, ainda antes de chegar a Satolep, e no qual se pode descobrir uma referência oblíqua a Alejo Carpentier), seja o Compositor (vizinho do protagonista, amigo de Simões Lopes Neto), seja Calvero (cômico inglês que visita a cidade, alusivo a Chaplin, por meio do nome de seu papel em Luzes da ribalta). Pelas conversas de Selbor com tais personagens, assim como pelas menções a suas obras ou idéias, a narrativa vai deixando aflorar, aqui e ali, todo um submerso breviário estético comum ao autor e, supostamente, àqueles precursores, espécie de reproposição ficcional de argumentos que Vitor Ramil já elaborara teoricamente em outros de seus escritos, entre os quais se destaca A estética do frio, publicado em edição bilíngüe português-francês em 2004. Em Satolep, essa estética se deixa sintetizar numa frase do Cubano, proferida quando a cidade despontava no horizonte: “O frio geometriza as coisas”. Em suma, se o regresso de Selbor ao Sul comportava uma busca algo indeterminada – busca pela “alma” perdida, segundo os termos em que ela é tentativamente enunciada ainda nas páginas iniciais –, essa busca se resolve na construção de uma poética, que atende sobre23

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As histórias da geração que disse não ao conformismo Entrevistas e colaborações inéditas Chico Buarque, Edu Lobo, Vladimir Palmeira, Frei Betto, Lucia Murat, Iesa Rodrigues, Tárik de Souza, Jamari França, Macksen Luiz, entre outros

Visite o hotsite do livro www.zahar.com.br/1968


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Resenha

tudo ao imperativo lançado por um enigmático personagem ao fotógrafo: “Aprenda a ver”. Este personagem é crucial, não só pela sentença que orienta e mesmo expande, dali por diante, a busca de Selbor. Se, na tipologia dos narradores modernos, Selbor corresponde ao dramatizador das tensões do retorno, surge agora o até então secreto deuteragonista que vem ocupar a posição do imaginador ilimitado. Trata-se de um rapaz que, como Selbor há alguns anos, está deixando Satolep, rumo ao Norte. Contratado pelo pai do rapaz, Selbor faz a última fotografia da família reunida em frente ao sobrado em que viviam. Concluída a sessão, Selbor pega carona no carro com que o motorista deixará o menino na estação ferroviária. Acaba descendo também na estação, para fotografá-la, e, depois que o rapaz embarca, constata que ele esquecera uma pasta cheia de papéis. Sem conseguir devolver a pasta ao ra-

paz, termina, por acaso, lendo a primeira das várias folhas nela guardadas. Para seu espanto, identifica o próprio nome entre as palavras ali grafadas. De início, temendo a indiscrição, Selbor reluta em ler o material que tem em mãos, mas acaba cedendo à curiosidade. A primeira página, assombrosamente, relata os acontecimentos daquela tarde, inclusive a sessão fotográfica, embora tivesse sido escrita pelo rapaz antes que ocorressem. Logo Selbor perceberá que as folhas consistem todas em antecipações textuais de fotografias que ele ainda faria. A vertigem que, compreensivelmente, assalta Selbor contagia, em alguma medida, o romance, conferindo um sentido abissal à alternância, estabelecida desde as primeiras páginas de Satolep, entre os trechos narrados pelo protagonista, impressos, como de praxe, em tinta preta sobre o papel branco, e os fragmentos de prosa elíptica e fulgurante, impressos em negativo e ladeados por

fotografias antigas, de autoria dúbia (aqui, atribuídas a Selbor), que Vitor Ramil encontrou num Álbum de Pelotas publicado em 1922. Curiosamente, Satolep compartilha com dois livros especialmente relevantes da ficção brasileira contemporânea – As horas podres, de Jerônimo Teixeira, e A história dos ossos, de Alberto Martins – uma série de características. A mais evidente, a narração dividida em dois planos, revezados nas obras de Ramil e Teixeira, consecutivos na de Martins, e, em todas elas, antes em choque que em harmonia um com o outro. E mais profundas: o tema do retorno à cidade que se deixara para trás; a visão dessa cidade como uma potencial ruína (“Seguem minhas visões de Satolep em ruínas”, diz a primeira frase do romance de Ramil); e tudo confluindo numa narrativa da origem da escrita a partir do trauma. Porque uma tremenda constatação é comum aos narradores dos três li-

Divulgação/Cosac Naify

Livros

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vros: todo retorno à origem revelase, ao fim, um retorno ao trauma; na origem das coisas, está menos a fonte tranqüila de que emanaria o ser do que uma catástrofe originária (e isto talvez valha ainda mais para as obras de arte do que para os homens). Ninguém retorna para o útero, mas para o desabrigo. Daí que uma espécie de refrão, dito pelo Cubano a Selbor, atravesse Satolep: “Nascer leva tempo”. A predominante positividade que o lugar de origem parecia ter até agora na estética do frio é levado em

Satolep ao seu dialeticamente necessário momento negativo. Se, nas obras de Kafka e Musil, Claudio Magris divisou “uma odisséia sem Ítaca”, na qual o herói está acometido de “um eterno nomadismo” que o leva sempre em direção a “novas constelações e interpretações do ser”, em Satolep discerne-se, ao longe, a possibilidade de uma Ítaca úmida e fria, que jamais está dada de uma vez por todas, mas tem de ser construída, na arte como na loucura, a partir de ruínas e fantasmas.

Satolep Vitor Ramil Editora CosacNaify R$ 39,90 - 288 págs.

Eduardo Sterzi é doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp e atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na USP

Divulgação

Pedro Herz – presidente da Livraria Cultura “Estou lendo O conto do amor, escrito por Contardo Calligaris (psicanalista italiano radicado no Brasil há duas décadas), lançado no começo deste ano pela editora Companhia das Letras. Este é seu primeiro romance, apesar dele já ter reunido seus principais artigos escritos para o jornal Folha de S.Paulo, em livro publicado também em 2008. Ainda estou no começo da minha leitura, mas já é possível perceber que a análise psicológica dos personagens continua sendo uma temática importante para a narrativa de Calligaris.”

Arquivo Pessoal

O QUE ESTOU LENDO

Roberto Pompeu de Toledo – escritor e colunista da revista VEJA “Eu costumo ler romances à noite, à tarde livros que tenham relação com algum artigo que eu estou publicando, e jornais e revistas pela manhã. Posso falar que o romance que eu reli e que me impressionou recentemente foi O som e a fúria, do norte-americano William Faulkner. São três irmãos que narram um capítulo cada um. No primeiro o irmão com deficiência mental discorre sobre vários temas sem lógica nenhuma. O segundo é tratado por um irmão suicida e o último reúne todos os temas tratados pelos outros. Esse romance faz parte do grupo que eu considero o melhor da literatura mundial.”

Arquivo Pessoal

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Welington Andrade – professor de Técnica de Redação da Faculdade Cásper Líbero “Estou lendo Os ratos, do escritor gaúcho Dyonélio Machado. Trata-se da história de um homem que sai pela cidade onde mora (Porto Alegre, no início do século 20) em busca de dinheiro para pagar a conta do leiteiro. A partir desta trama aparentemente banal, Dyonélio (1895-1985) – que também era psiquiatra, jornalista e militante do PCB – explora uma expressiva fusão entre as sondagens psicológica e social, traduzida em uma prosa que prima pela concisão. Vale destacar que a recente edição da Planeta traz um precioso posfácio escrito por Davi Arrigucci Jr.”

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Música

) Bossa Nova

MOMENTO BOSSA NOVA A expressão “bossa nova” extrapolou os limites musicais, designando tudo o que pretendia ser moderno e arrojado por José Estevam Gava

Reprodução/Mario Roberto Duarte

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Congresso nacional, obra do “projeto messiânico” de Niemeyer e JK

bem conhecida a onda bossanovista que varreu o país há exatos 50 anos e que em tantos domínios se intrometeu - de novos produtos à culinária, da política aos esportes - tudo embalado pelo novo estilo de se fazer samba que, recém-nascido, já se exportava para o mundo como produto nacional de qualidade. Era uma época de expansão nas comunicações de massa e dinamização na economia impulsionada pela crescente industrialização. A população se concentrava nas cidades e o espírito consumista e hedonista já começava a marcar o compasso de nossas vidas. Neste cenário de grandes transformações, tudo tinha necessariamente de ser revestido com a marca do “moderno”. Na segunda metade da década de 1950, a obsessão pelo novo assumiu ares de proje-

to de construção nacional; meio pelo qual se tentava deixar para trás um passado agrário e antiquado. O limiar dos anos de 1950 havia marcado o início do sonho concretista brasileiro, por intermédio do qual as vanguardas artísticas e intelectuais defendiam valores positivos ligados à idéia de construção em si, planejamento e progresso social. A arquitetura de Oscar Niemeyer e o movimento bossa nova ecoaram de forma exemplar o ideal de racionalidade que ali já estava posto. Juntaram-se a um projeto de fundo messiânico, que envolveu esforços para superar a lacuna que nos separava das nações desenvolvidas. Era uma tentativa de ultrapassar a realidade colonial, o regionalismo e o espaço social caótico e multicultural por intermédio de um racionalismo rigoroso e, sobretudo, planificador. Essas vanguardas 26

construtivas assumiram uma missão civilizatória que resultou num projeto nacional de modernidade, bem de acordo com a época de expansão urbana e urgente incentivo à indústria do governo JK. A expressão “bossa nova” explodiu mesmo em 1960 e foi empregada para designar tudo o que se queria moderno e atual, ou, pelo menos, transformado. Representava um estado de espírito bem afinado com seu tempo, descontente e desconfiado da tradição. A bossa nova extrapolava em muito os limites musicais, designando tudo o que pretendia ser arrojado. Veio coroar e em certa medida dar fechamento a um período que vibrava com as perspectivas de prosperidade, hoje saudosamente lembrados como tempos “dourados”. O cenário brasileiro era todo propício a otimismos: o país começava a ter visibilidade internacional graças ao futebol campeão do mundo, aos destaques de Maria Ester Bueno no tênis e Éder Jofre no boxe. Tínhamos a canção popular com uma batida diferente, uma capital projetada, clima tropical, paz e tranqüilidade. Para que mais? Assim surgia a bossa nova como representação de um novo estilo de vida; nascida localmente, mas criadora de um imaginário otimista que se alastrava e apostava num futuro brilhante. Época muito rara, das poucas em que o brasileiro sentiu-se convidado a viver instantes de confiança no futuro, ainda que fazendo vistas gros-


Presidente Bossa Nova Infiltrada em muitos e diversos campos, a bossa nova definiu e adjetivou um variado leque de situações e personagens. Por isso, o fenômeno chega a ser referido como uma verdadeira invasão a assolar o país e também o mundo. Por sua força sugestiva, relacionada a inovação e movimento, a nova onda encontrou ampla e rápida difusão, fazendo parte do imaginário de uma época. No contexto da transição para os anos 1960, a bossa nova inaugurou um período de ciclos e marcas, impulsionando a formação de segmentos de mercado e produtos que em pouquíssimo tempo atingiriam a consolidação na forma de rótulos. Obviamente que em tal cenário, nem a política sairia ilesa; nada mais natural do que termos um presidente bossa nova. Melhor ainda se esse presidente liderasse mudanças rápidas e significativas nas feições do país, fosse belo,

jovial e tivesse... bossa. O discurso de Juscelino Kubitschek, presidente entre fevereiro de 1956 e janeiro de 1961, trazia consigo imagens de riqueza, progresso e grandeza, com ênfase, sobretudo, econômica. Estava em jogo o projeto desenvolvimentista baseado no pensamento de Celso Furtado, que previa a rápida substituição das importações e transformação da economia brasileira de uma base agrário-exportadora para uma base urbano-industrial, com forte intervencionismo estatal. Nesse contexto, o governo veiculou enorme ânsia pelo crescimento, mobilizando a população e a classe empresarial em torno da idéia de que a prosperidade econômica era necessária e inevitável. A nostalgia por essa mobilização parece causada não tanto pelas ousadias, abusos e realizações do governo de JK, mas sim pela promessa de mudanças estruturais na economia que talvez fizessem superar nossa condição de país periférico, dependente e socialmente injusto. Muitas histórias vinculam Juscelino à bossa nova musical. Conta-se que o senador Vitorino Freire costumava receber colegas políticos e o próprio JK em seu apartamento de Copacabana - o mesmo ambiente em que também se davam algumas reuniões dos jovens músicos bossa nova. Conta-se, ainda, que Juscelino, ao freqüentar a noite do Rio, normalmente se encontrava com Ronaldo Bôscoli, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e Tom Jobim e que em razão disso tenha surgido a oportunidade para Tom e Vinicius comporem a Sinfonia da Alvorada, utilizada na inauguração de Brasília em 21 de abril de 1960. Verdades ou mitos, não importa, tais imagens da nossa história recente deixaram saudades pelo idealismo romântico nelas embutido. Naqueles tem27

Reproduçaõ

sas (ou mesmo ignorando) os mais sérios problemas nacionais. O jornalismo ilustrado participou ativamente desse cenário de renovação bossanovista em todas suas vertentes. A lendária revista O Cruzeiro, por exemplo, ativa de 1928 a 1983, não apenas deu visibilidade à nova onda, como era de ofício, mas se apoderou da sigla, lançou uma Bossa Nova no Jornalismo e levou adiante uma transformação gráfica, fazendo de si própria o dado novo, introduzindo novas e inventivas diagramações que revolucionaram o modelo de fotorreportagem até então praticado. Devemos nos lembrar, também, da reforma gráfica que o Jornal do Brasil já vinha fazendo com auxílio do desenhista e escultor Amílcar de Castro e do lançamento da revista Senhor, em março de 1959, concebida por designers gráficos e pelo pintor Carlos Scliar.

Discurso de JK deu ênfase a imagens de progresso e grandeza

pos de liberalização dos costumes, soava bem moderno um presidente que tomava aulas de violão com Dilermando Reis, adorava dançar, namorar, voar e fazer coisas acontecerem da noite para o dia. Por tudo isso, JK nunca perderia o título de Presidente Bossa Nova, mas seu sucessor Jânio Quadros, no poder entre fevereiro e agosto de 1961, também foi, a seu modo, um presidente a altura do título. Muito menos charmoso e glamourizado do que Juscelino, sem o perfil sedutor e polido que se esperava de um estadista, Jânio virou bossa nova ao proporcionar quebras nos protocolos e hábitos políticos, além de tomar algumas medidas bastante polêmicas e excêntricas. Apesar do curto e atribulado ­governo, Jânio


Filosofia

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Gianni Vattimo

Goethe anti-romântico Coletânea de textos analisa a inflexão neoclássica no pensamento do autor alemão por Eduardo Socha

Reproduçaõ

G

eralmente associada ao estágio pré-romântico da literatura alemã, a obra de Goethe evidencia, contudo, uma difícil transição do período em que prevalecia o sentimento de alienação do mundo para um momento de serenidade clássica baseada nos gregos. De fato, se o autor de Os sofrimentos do jovem Werther alcançou renome produzindo a principal obra do Sturm und Drang (“tempestade e ímpeto”), nem por isso deu continuidade à sensibilidade romântica no interior de sua poética. Para compreender a ruptura com a tendência romântica e o retorno à simplicidade das formas clássicas no percurso de Goethe, o livro organizado pela historiadora da arte Claudia Valladão de Mattos focaliza as relações da estética do poeta alemão com a pintura de paisagem. Relações inusitadas, porém fundamentais: longe de constituir apenas um interesse episódico, o contato com as teorias e as pinturas de Jakob Philipp Hackert (17371807) – um dos principais artistas alemães da pintura de paisagem – teria sido determinante para a própria transformação do pensamento de Goethe e para seu repúdio sistemático ao romantismo. Trazendo dois ensaios sobre essa transformação e sobre a influência de Hackert na formação da pintura no Brasil, o livro apresenta ainda a tradução de um texto teórico do pintor, que foi revisado por Goethe e inserido na biografia que preparou sobre o artista. Também integra a edição o poema “Amor: o pintor de paisagem”, de Goethe, “transgermanizado” por Haroldo de Campos. Ao descrever a maneira pela qual a arte de Hackert serviu de base para o revisionismo estético de Goethe (em sua busca pela reconciliação “saudável” entre

sujeito e natureza, perdida nos rompantes do espírito romântico), o livro chama a atenção para uma fase decisiva de seu percurso intelectual e, com isso, mostra um caso emblemático e determinante de reorientação literária a partir da pintura.

As escavações de Pompéia, tela do pintor Jakob P. Hackert: reorientação do pensamento de Goethe

Trecho: “a arte de Hackert apresentava-se como a realização de uma via artística modelar, que poderia servir como contra-exemplo aos jovens artistas que corriam o risco de serem captados pela estética romântica que ganhava fôlego em toda a Europa. Os românticos, segundo Goethe, haviam abandonado o exemplo dos gregos e tinham se entregado às armadilhas de suas fantasias” (p. 60)

Goethe e Hackert: Sobre a pintura de paisagem Claudia Valladão de Mattos (org). Ateliê Editorial R$ 25 - 152 págs.

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Piratas, Mas democráticos Tariq Ali descreve a ascensão da “nova esquerda latino-americana”

A

década de 1990 forjou – e com boas razões – o lamento das últimas “viúvas da esquerda”, que deveriam finalmente aceitar a distopia social movida pela eficácia da máquina de concentração capitalista. Era preciso esquecer o passado, eliminar distinções caquéticas como ideologia de “direita” e de “esquerda”, ridicularizar anseios progressistas, rezar aos pés do Mercado, demonizar o Estado e resignar-se diante da globalização neoliberal, apresentada de maneira tão irrevogável quanto a lei da gravidade. Menos de vinte anos depois, sabemos que a história, no entanto, ao contrário do que previu a soberba neoconservadora de um economista de Chicago, não chegou ao fim. É claro que os apóstolos do neoconservadorismo estão firmes em sua tarefa sacrossanta de glorificar o fluxo irrestrito do capital e de abençoar a transformação da miséria e do desastre em commodity. Nessa tarefa, alguns deles não hesitam, por exemplo, em chamar rapidamente de “idiota latino-americano” (sim, existem livros com essa expressão) todo aquele que neste canto profere blasfêmias às convicções da ratio neoliberal – blasfêmias apoiadas em estatísticas e principalmente na verdade crua que a grande mídia escarnece. Como a história não chegou ao fim, aqueles que não aceitaram participar do luto hipotético e não quiseram participar do coro dos vencidos hoje são nova-

mente escutados. E têm muita coisa a dizer. As vozes e os motivos de esperança para que “justiça social” não se reduza a um mero slogan publicitário são diversos. Mas, em particular, ativistas influentes do movimento antiglobalização, entre eles, Noam Chomsky e Naomi Klein, e mesmo economistas “tolerados” pelo mercado, como Joseph Stiglitz, vêm chamando a atenção nos últimos anos para as transformações políticas em curso na América Latina. Em que pese o aparato montado para desqualificar a esquerda democrática na Venezuela, na Bolívia e no Equador, há um interesse cada vez maior pela região cuja linha administrativa se afirma como alternativa real e verdadeiramente popular à idolatria inebriante das leis do mercado. Mas o que desperta esse interesse e quais mudanças estão em jogo? Para dar conta da resposta, o novo livro de Tariq Ali busca mesclar biografias, um breve histórico das “viúvas” e das conquistas recentes daquilo que considera a “revolução bolivariana”, além de uma análise sobre o processo astuto – e de modo algum “conspiratório” – da desinformação midiática a respeito da política praticada nesses países. Análise panfletária? Talvez. Mas o rigor quanto ao apuro dos dados vindos da própria mídia, assim como o posicionamento ideológico declarado já no início do livro, eximem o autor de qualquer má31

fé. Em relação ao Chile e ao Brasil, por exemplo, sua opinião é categórica: “A tragédia brasileira requer um moderno Eurípedes, que possa nos levar do suicídio de (...) Getúlio Vargas ao sangue que escorre das feridas auto-infligidas pelo presidente-operário Lula”. Ao falar dos casos Celso Daniel e Palocci, o autor não esconde a prudência que se deve tomar quanto às considerações que rotulam, sem distinção, toda a política do continente com o chancela “esquerda latino-americana”. Pois a história mostra que eliminar distinções (sejam elas caquéticas ou não) sempre provoca o surgimento de distorções, lamentos e novas “viúvas”. (Eduardo Socha)

Piratas do Caribe O eixo da esperança Tariq Ali Editora Record R$ 47 - 322 págs.


dossiê

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1968, muito além de maio

Índice do Dossiê

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Jean Pierre Vernant, um helenista nas barricadas A trajetória de Vernant foi semelhante a de muitos intelectuais que viram nos acontecimentos de 1968 a falência política do Partido Comunista Por Alvaro Bianchi

44 A batalha de Chicago

“Agosto de Chicago” teria sido o equivalente, nos EUA, ao Maio de 1968 em Paris Por Luiz Bernardo Pericás

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1968: A rebelião estudantil nos Estados Unidos

O crescimento econômico no pós-guerra criou também as forças que iriam contestar a estabilidade social Por Sean Purdy

51 Quarenta anos depois Refletir sobre o significado de 1968 na atualidade é prova de que seu espírito continua vivo Por Elísio Estanque

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Os estudantes e a condição proletária

As manifestações de 1968 devem ser compreendidas à luz da universalização e esgotamento do modelo fordista Por Ruy Braga

57 Os bondes da história Com a palavra, o historiador Por Carlos Guilherme Mota

61 Memória e Esperança

As revoluções aspiram ao poder para transformar a realidade; em 1968, o que se queria transformar era a realidade do poder por Franklin Leopoldo e Silva

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Reprodução/Robert Altman

A rebelião estudantil: para além do espetáculO

J

á se tornou um lugar-comum dizer que 1968 ficou marcado na memória coletiva de muitos povos como um instante de profundas transformações sociais. Para os vietnamitas foi o ano da Ofensiva do Tet, o grande ataque desferido pelos norte-vietnamitas contra o exército estadunidense e que antecipou o fim da Guerra do Vietnã. Nos Estados Unidos, tratou-se de um tempo marcado pelos avanços do movimento pacifista, pelas ocupações de várias universidades e pelo assassinato de Martin Luther King – seguido da morte de 46 pessoas em Washington. Para os franceses, 1968 indicou a hora das barricadas em Paris e da maior greve geral jamais ocorrida em um país capitalista avançado: 10 milhões de trabalhadores parados. Além disso, os estudantes e os jovens operários em greve criaram comitês conjuntos de mobilização e solidariedade em diferentes cidades, em uma aliança política que desafiou a “velha esquerda” francesa organizada no “maciço PCF-CGT” e abriu espaço para o advento de uma “nova esquerda” radical e antiburocrática. Em 1968, o Brasil assistiu ao assassinato pela polícia do estudante Edson Luís de Lima Souto no restaurante “Calabouço”, no Rio. Seguiram-se a Passeata dos 100 mil, o fechamento da Faculdade de Filosofia da USP após o confronto entre estudantes dessa universidade e os do Mackenzie – na famosa “Batalha da Maria Antônia” – e a prisão de 1.200 estudantes que participavam clandestinamente do 30o. Congresso da UNE em Ibiúna. Apesar das diferentes fontes da contestação – por certo, não havia uma razão unificada a incitar os acontecimentos – é possível reconhecer nesse ano um momento no qual, para lembrarmos Lênin, “os de baixo” – estudantes, operários, negros, gays, mulheres... – não queriam mais obedecer e “os de cima” não podiam Marcha de 700.000 pessoas, em Washington, DC

por Ruy Braga mais dominar como antes. Estudantes mexicanos, japoneses, alemães, tcheco-eslovacos, poloneses, estadunidenses, franceses, brasileiros... atuaram como protagonistas nessa verdadeira onda mundial de revoltas que sacudiu o mundo. Escrevendo vinte anos após 1968, o escritor francês Guy Debord protestou: “O primeiro intuito da dominação espetacular era fazer sumir o conhecimento histórico geral, quase todas as informações e todos os comentários razoáveis sobre o passado recente. Uma evidência tão flagrante não precisa ser explicada. O espetáculo organiza com habilidade a ignorância do que acontece e, logo a seguir, o esquecimento do que, apesar de tudo conseguiu ser conhecido. O mais importante é o mais oculto. Há vinte anos nada é tão dissimulado com mentiras dirigidas quanto a história de maio de 1968. No entanto, lições úteis foram tiradas de alguns estudos desmistificados a respeito dessas jornadas e suas origens; mas é segredo de Estado.” O dossiê que o leitor tem em mãos buscou resgatar, desafiando a ignorância e o esquecimento que lograram encarcerar a rebelião mundial estudantil no estreito terreno da crítica dos valores, parte da memória coletiva acerca do ano de 1968. Uma porção relacionada aos conflitos entre classes sociais, à luta antiimperialista e à grande política. Além das análises sobre a origem daquelas manifestações, os ensaios aqui reunidos permitem também compreender suas implicações atuais. Pois, se é verdade que a onda mundial de rebeliões estudantis da década de 1960 não conseguiu instalar a imaginação no poder, é igualmente certo que 1968 inspirou um “novo movimento estudantil” radical e antiburocrático a desafiar um poder regressista. E ontem como hoje, o tendão da melhor força é a rebelião estudantil. Mas isso ainda é um segredo de Estado...

Ruy Braga é professor do Departamento de Sociologia da USP e Diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) 39


dossiê

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1968, muito além de maio

Jean Pierre Vernant, um helenista nas barricadas A trajetória de Vernant foi semelhante a de muitos intelectuais que viram nos acontecimentos de 1968 a falência política do Partido Comunista por Alvaro Bianchi

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ano de 1968 alterou radicalmente o modo como os intelectuais franceses viviam a política. A própria noção de intellectuels nasceu na França em meio ao debate político em torno do affaire Dreyfus e a reação de cientistas, médicos, artistas, poetas e filósofos que se manifestavam nas páginas do jornal L’Aurore em favor da revisão do processo do capitão. Mas foi com a Segunda Guerra Mundial que essa intelectualidade passou por uma maior radicalização. Muitos passaram a integrar as fileiras da resistência à ocupação nazista, como o historiador medievalista Marc Bloch, fuzilado pela Gestapo em 1944, e outros tantos que integraram o Partido Comunista, como o helenista Jean Pierre Vernant. Nascido em 1914, Vernant foi aprovado no exame de agrégation em Filosofia em 1937 e passou a lecionar essa disciplina em uma escola de Toulouse, em 1940. Dois anos depois, ajudou a fundar a Armée Secrète e teve um papel ativo na resistência. Com o codinome de Colonel Berthier coordenou as operações das Forces Françaises de l’Intérieur na região de Haute-Garonne e comandou a libertação de Toulouse em agosto de 1944. Apesar dessa intensa atividade política, Vernant nunca aceitou posições de responsabilidade no interior do Partido Comunista. Na verdade, manteve sempre uma atitude seu apoio ao partido, sem nunca renunciar à crítica, até romper com ele definitivamente em 1970. 40

Os recorrentes atritos de Vernant com a direção do Partido revelam a angustiante relação dos intelectuais franceses com o stalinismo. Já em 1939 apareciam os primeiros sinais dessa tensão. Quando seu irmão Jacques denunciou a assinatura do pacto germano-soviético, Jean-Pierre manifestou também sua oposição ao pacto respondendo-lhe que “a verdadeira coragem está em, no seu íntimo, não ceder, não se curvar, não desistir. Ser um grão de areia que as máquinas mais pesadas, aquelas que esmagam tudo por onde passam, não conseguem destruir”. Foi por não ceder, curvar-se ou desistir que sua militância no PCF foi sempre tormentosa. Guerra da Argélia Com a guerra da Argélia, primeiro, e em 1968, depois, essa relação se tornará ainda mais tensa, resultando na ruptura de Vernant com o PCF. Se a trajetória de Vernant merece ser aqui recordada é porque ela foi, também, a de muitos intelectuais que viram nos acontecimentos de 1968 uma demonstração clara da falência política do PCF. A guerra da Argélia foi uma experiência política crucial para uma geração de intelectuais e jovens que depois iria participar ativamente dos acontecimentos de 1968. Ela promoveu uma profunda divisão na sociedade francesa e alimentou uma crescente radicalização dos conflitos políticos. O papel dos comunistas na luta pela independência das colônias francesas


Reprodução/Louis Monier

Jean Pierre Vernant (1914 - 2007): exigência de uma política da verdade

na África oscilou, entretanto, repetidas vezes. Em 1938, o secretário-geral do PCF, Maurice Thorez, assim se pronunciava contra a independência: “Se a questão decisiva do momento é a luta vitoriosa contra o fascismo o interesse dos povos coloniais é o de sua união com o povo da França e não uma atitude que poderia favorecer os empreendimentos do fascismo.” Seja agitando a ameaça fascista, seja alertando a respeito do perigo do fundamentalismo islâmico, repetidas vezes o PCF se pronunciou contra os movimentos concretos de independência no Magreb. Quando, em maio de 1945, argelinos atacaram colonos europeus após manifestações organizadas pelo Parti du Peuple Algerien (PPA), uma delegação de representantes do Partido Comunista da Argélia e do Partido Comunista Francês se reuniu com o governador geral para denunciar “as provocações dos agentes hitlerianos do PPA e do PPF [Parti Populaire Français, a organização fascista dirigida por Jacques Doriot] e de outros agentes camuflados nas organizações que se pretendem democráticas ao serviço do imperialismo fascista”. Os comunistas exigiram do governador penas severas para aqueles elementos que tinham por objetivo “provocar uma guerra civil” e uma

“repressão implacável”. Mas os representantes não se manifestaram a respeito dos milhares de argelinos mortos pelas forças de repressão imediatamente após os acontecimentos de maio. Defesa de uma política da verdade Vernant, desde o primeiro momento foi um radical defensor da independência das colônias africanas e, principalmente, da Argélia, e essa foi razão para uma forte crítica ao PCF. Em um artigo publicado com o pseudônimo de Jean Jérôme na revista Voies nouvelles, em 1959, Vernant discutiu um documento de fevereiro de 1958 da Federação de França da FNL intitulado Le PCF et la révolution algérene. Nesse documento era denunciada violentamente a política do PCF, acusado de não se comportar de modo conforme a seus princípios. Vernant apontava que a crítica não era toda justa, uma vez que se referia a uma política de dois anos antes, e supostamente já sido corrigida pelo Partido, que desde 1957 se pronunciava abertamente pelo direito de independência da Argélia. Mas Vernant justificava a desconfiança da FNL com o PCF: as retificações da política argelina do Partido não foram explicitadas; elas não se apoiavam sobre uma reflexão crítica do próprio passado. Mas o reconhecimento e a denúncia dos erros cometidos, continuava o historiador, seriam a condição prévia de uma mudança política eficaz. O que Vernant exigia era que a verdade viesse 41


Oficina literária

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Abilio Godoy

Glúteos Ele responde que todo brinquedo tem o direito de ser inútil. Não sei o que quer dizer, mas a resposta me magoa. Vontade de chorar. Demoro um tempo para entender que foi um sonho. 5h47. Só três minutos. Não vale a pena ficar aqui. Começo a me trocar. Frio. O sonho ainda se mistura. Choro. Com o alívio, a culpa de se entregar. Uma fraca. Lá fora, as pessoas têm problemas. Sempre tanta coisa triste no hospital. Meu analista me disse que não passo de uma histérica. Disse isso olhando para as minhas pernas. Todo brinquedo tem o direito de ser inútil. Escrevo várias vezes numa folha de papel. Sobre a esteira, o mundo fica mais simples. A partir de determinada freqüência cardíaca, o presente é mais presente. Preciso superar a culpa. Foi o analista que me disse. Remorso por pensamentos malignos é sinal de infantilidade. Os primeiros olhos do dia me tiram de mim mesma. O instrutor dá um tapa nos meus glúteos. Sente mais orgulho deles do que eu. Fui eu que fiz essa escultura: você está a cada dia mais gostosa. Sinto meu rosto pegando fogo. Acho que dói mais nele do que em mim. Quando termino o último ponto, a garotinha me pergunta se vai ficar uma cicatriz. Faço que sim com a cabeça. Ela chora. Só uma marquinha. Não é isso: me sinto burra pelo que aconteceu. Sorrio: você sabe guardar segredo? Abro alguns botões da minha blusa e mostro o nome tatuado. Pisco o olho e bato com a mão espalmada na própria testa. Rimos juntas por algum tempo. Claro que sim. Afinal, o que eu não faria por você? A pele enrugada dos seus dedos desliza sobre minha bochecha num

carinho paternal. Você vai ser uma grande cirurgiã. Vontade de abraçá-lo. Obrigada, doutor. O senhor não vai se arrepender. Viro-me e sinto os dedos dele me beliscando. Sorrio constrangida. Meus olhos se enchem de lágrimas. No dia do acidente, ele me disse que estava cansado dos meus ciúmes e das minhas cobranças. Para me fazer chorar, disse que ainda me amava. Quero que você morra, foi a minha resposta. A última coisa que eu disse antes que ele vestisse o capacete e saísse batendo a porta. Quando eu fizer trinta anos, metade dos homens vai parar de olhar para mim. Não adianta fazer essa cara. Você sabe que é verdade. Não importa. Talvez signifique alguma liberdade. Não se preocupe: não sou hipócrita. Não vou fingir que não tenho medo. Casar não resolve nada. O único plano de fuga é morrer antes dos trinta. Um perfeito cavalheiro. O que não quer dizer que não seja um babaca. Ao fundo, o som monótono do piano. Aparecer com flores, abrir a porta, puxar a cadeira, pagar, usar camisinha. Ele domina o protocolo – não esconde a ansiedade de me vencer. Quanto mais perfeitos eles se mostram, quanto melhor é sua técnica, maior é a vontade que sinto de dizer não. Os dedos do pianista tropeçam numa tecla equivocada. A dissonância me lembra o ruído dos freios do caminhão. Minhas mãos se afastam da dele. Meu olhar desencoraja a insistência. Todo brinquedo tem o direito de ser inútil. O analista tem razão: eu não passo de uma histérica.

Abilio Godoy, 25, é mestrando em Teoria Literária pela USP e autor de O bem, o mal e a poesia (Com-Arte,2004) e Hiato (7 letras, 2007). Blog do autor: http://abilio-godoy.blogspot.com

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