06 do leitor 07 cultura em movimento
Índice
Reprodução
(
Homenagens a Machado de Assis e Bienal Internacional do Livro
12 entrevista
José Miguel Wisnik fala sobre literatura, Brasil e futebol
18 literatura
João Cezar de Castro Rocha escreve sobre a obra de Antonio Candido
24
esporte O jornalista Paulo Vinícius Coelho explica por que o futebol não deve ser considerado um esporte olímpico
26 música
O crítico inglês Norman Lebrecht mostra os bastidores das principais gravadoras e declara o fim da indústria fonográfica
34 filosofia
Coleção temática da Editora Globo voltada ao público leigo não prejudica rigor conceitual
28 reportagem
O abandono dos monumentos históricos no centro de São Paulo
37 ensaio
O colunista Francisco Bosco e o cinema político de Pedro Almodóvar
40 filosofia
A colunista Marcia Tiburi escreve sobre O abutre de Kafka, e o Prometeu moderno
42 dossiê
Maurício Francischelli
A educação pela revolução Por Wolfgang Leo Maar Viver bem, viver melhor Por Robespierre de Oliveira O filósofo refratário Por Jorge Coelho Soares Da “cultura afirmativa” à subjetividade criativa Por Rodrigo Duarte Tecnologia e política em Marcuse Por Marilia Mello Pisani
66 oficina literária 3
Editorial
)
Editora - Daysi M. Bregantini Diretor de Redação - Marcos Fonseca Editor de Filosofia - Eduardo Socha Repórter - Daniel Marques Revisor - Ricardo Miyake Imagem da capa - Toni D’Agostinho Diretor de arte - Maurício Francischelli Assistente de Arte - Fábio Guerreiro Colaboradores desta edição - Francisco Bosco, João Cezar de Castro Rocha, Jorge Coelho Soares, Marcia Tiburi, Marilia Mello Pisani, Osvaldo Manuel Silvestre, Paulo Vinícius Coelho, Robespierre de Oliveira, Rodrigo Duarte, Wolfgang Leo Maar Departamento administrativo - Dejair Bregantino Departamento financeiro - Ana Lúcia P. Silva Assinaturas - Samanta Costa - Tel.: (11) 3385 3385 e-mail: assinecult@editorabregantini.com.br samanta@editorabregantini.com.br Publicidade em São Paulo: Júlia Farina (executiva de negócios) e-mail: juliafarina@editorabregantini.com.br Gilberto R. Rala (executivo de negócios) e-mail: gilberto@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385 3385 Publicidade em Brasília: Front Comunicação - Pedro Abelha e-mail: pedroabelha@terra.com.br Tel.: (61) 3321 9100 Gráfica - Parma Distribuição exclusiva no Brasil (Bancas) - Fernando Chinaglia CULT - REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA é uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 - 10º andar Paraíso - São Paulo - SP - CEP 01533-070 Tel.: (11) 3385-3385 - Fax: (11) 3385 3386 Matérias e sugestões de pauta: redacao@revistacult.com.br
O pensador alemão Herbert Marcuse nasceu em 1898, em Berlim, e morreu 81 anos depois, em 1979. Acreditou na necessidade da transformação radical da sociedade capitalista, foi um teórico da revolução e contribuiu diretamente para que se desencadeasse a rebelião estudantil de 1968. Conhecido como o ideólogo da contracultura, sua obra, que une filosofia, teoria social e política revolucionária, sustenta o dossiê desta edição, mais uma vez com a participação de bons especialistas. Apesar da importância, Marcuse ainda é pouco lido no Brasil e o objetivo da CULT é contribuir com a divulgação do seu pensamento, cada vez mais atual. Uma reportagem sobre o desrespeito com que os monumentos históricos são tratados no centro de São Paulo reflete o que acontece no Brasil e a necessidade de uma atitude firme de proteção ao nosso patrimônio. Convidamos os leitores a participar dessa “vigia”: escreva e envie fotos, denunciando destruições em seu bairro ou em sua cidade. Elas serão publicadas e, posteriormente, encaminhadas às autoridades. Não vai resolver o problema, mas pode ajudar. CULT abre espaço para o esporte. Convidamos o jornalista Paulo Vinícius Coelho, conhecido como PVC, para uma pensata sobre futebol em época de Olimpíadas e, como ele conhece bem o assunto e disso ninguém duvida, confira o resultado. Prestamos, ainda, uma homenagem ao professor Antonio Candido, intelectual admirado e querido por todos, coisa rara na história cultural brasileira. Ele completou 90 anos em julho com seus filhos, netos e bisnetos. Leia um texto de João Cezar de Castro Rocha sobre sua obra.
Boa leitura!
Daysi Bregantini
Espaço CULT espacocult@revistacult.com.br
daysi@editorabregantini.com.br
ISSN 1414707-6 – nº 127 – AGOSTO/2008 – ano 11
4
Cultura em Movimento
) PELA ORDEM
CADA UM TEM O SEU
Arquivo pessoal
Embora a ópera seja considerada um gênero refinado, Vicente Amato Filho, diretor artístico da Associação Paulista dos Amigos da Arte (APAA), encontrou na própria música clássica sua faceta cafona. O também responsável pela
“Geralmente, as pessoas acham que a ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi, é cafona por apresentar músicas muito leves, populares e despretensiosas. Eu simplesmente acho uma obra lindíssima e bem construída. Cada vez que ouço me emociono como se fosse a primeira vez. Pode ser cafona e brega, mas para mim é uma ópera deliciosa. Aliás, este ano La Traviata foi a ópera que abriu a Temporada Lírica do Theatro São Pedro, recebendo uma ótima crítica da revista italiana Opera por sua representação elegante, de figurinos coloridos e por ter sido transportada para uma época atemporal.”
1) Twin peaks (1990-1991) Título original: Twin peaks Duração: 47 min (cada episódio) Elenco: Kyle MacLachlan e Lara Flynn Boyle 2) Cidade dos sonhos (2001) Título original: Mulholland drive Duração: 145 min Elenco: Naomi Watts e Justin Theroux
Divulgação
BIENAL DO LIVRO
3) Veludo azul (1986) Título original: Blue velvet Duração: 120 min Elenco: Isabella Rossellini e Dennis Hopper 4) A História real (1999) Título original: The straigth story Duração: 112 min Elenco: Sissy Spacek e Richard Farnsworth 5) Império dos sonhos (2006) Título original: Inland empire Duração: 180 min Elenco: Laura Dern e Ian Abercrombie
Reprodução
A 20ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo apostou na ampliação do “Salão de Idéias”, mesa de debate que reúne nomes consagrados da literatura brasileira e mundial. A maratona de discussões acontece em um auditório com capacidade para 396 pessoas, em quatro sessões diárias e gratuitas. Nesta edição, a Bienal contará com 350 expositores nacionais e estrangeiros, representando mais de 900 selos editorias. O “Salão de Idéias” já confirmou a presença de vários estrangeiros para os debates, como o mexicano Guillermo Arriaga, o russo Yuri Felshtinsky e o norte-americano John Stacks. Entre os destaques nacionais estão Lygia Fagundes Telles, Marçal Aquino, Marcelino Freire, Marcia Tiburi e Ângela Lago. A Bienal do Livro inaugura dia 14 e permanece aberta ao público até o dia 24 de agosto, das 10h às 22h. O pavilhão será montado no mesmo endereço dos anos anteriores: Parque de Exposições Anhembi, na Avenida Olavo Fontoura, nº 1209, bairro de Santana.
Neste mês de agosto, o cineasta David Lynch vem ao Brasil para lançar o livro “Em águas profundas: criatividade e meditação”, no qual descreve sua filosofia de vida e relata alguns de seus principais momentos atrás das câmeras. Para exemplificar a fértil carreira do diretor norte-americano, o jornalista e crítico de cinema Cássio Starling preparou uma lista com as cinco principais obras de David Lynch:
temporada lírica do Theatro São Pedro revelou à Revista CULT, sem medo de julgamentos, o seu gosto mais brega.
Entrada: R$ 10,00 Crianças de até 12 anos, pessoas com idade acima de 60 anos, portadores de necessidades especiais, professores, profissionais do livro e bibliotecários têm entrada franca. 8
Circuito de Fotografia O MELHOR DA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA
rafia
fotog
cuito m/cir
te.co
sp-ar
I
UITO
CIRC
EM UAT E IG T R EA
D
11 a 14 setembro das 13h às 21h Shopping Iguatemi 9º andar | entrada franca
galerias participantes: arte 57 SP | galeria de babel SP | galeria baró cruz SP | galeria bergamin SP | bolsa de arte de porto alegre RS | galeria brito cimino SP | casa triângulo SP | dan galeria SP | fass SP | h.a.p. galeria RJ | instituto moreira salles SP | galeria millan SP | paulo darzé galeria de arte BA | projecto/s SP patrocínio
realização
9
entrevista
)
José Miguel Wisnik
o futebol e o Brasil Para uma compreensão mais justa da experiência brasileira em toda a sua complexidade é necessário pensar o futebol Francisco Bosco
“U
spianista”, como gosta de dizer, jogando com sua formação de pianista erudito (depois cancionista popular) e professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, José Miguel Wisnik vem se dedicando, nos últimos anos, a pensar a experiência brasileira por meio da canção, da literatura e da relação entre elas. É certo que seus ensaios sobre a canção remontam à década de 1970 (quando já eram originais e seminais sob diversos aspectos), bem como sua atividade docente na USP, mas foi talvez a publicação do livro Sem receita (Publifolha), em 2004, que permitiu ao leitor enxergar o caráter de reflexão sistemática de seus textos, que têm como horizonte a questão sobre a formação do Brasil, suas singularidades, seus feitos e fracassos, suas soluções e impasses. À altura do processo histórico em que nos encontramos, pareceulhe, acredito, que, para trazer à tona uma compreensão mais justa da experiência brasileira em toda a sua complexidade e ambivalência, era necessário pensar o futebol. Veneno remédio: O futebol e o Brasil é um livro que faltava: uma obra que se propõe – e cumpre – nada menos do que pensar “a experiência total do futebol na vida brasileira”. É dessa totalidade, onde figuram aspectos diversos e até contraditórios, que Wisnik extrai uma leitura aguda do Brasil, marcada por uma dialética sem descanso, onde cada estigma pode revirar em originalidade, e cada sucesso pode reverter a um fracasso. Em meio a uma série de compromissos e viagens, nacionais e internacionais, Wisnik atendeu gentilmente a um pedido da CULT e concedeu-nos a seguinte entrevista.
Francisco Bosco – Gostaria de começar essa entrevista com o que considero, talvez, a questão mais importante de seu livro. Peço licença ao leitor para formular uma pergunta um pouco longa. No último capítulo de Veneno remédio você estabelece uma relação entre os três clássicos da interpretação do Brasil das décadas de 1930-40, Casa grande & senzala, Raízes do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo. Você lembra que, no primeiro, de Gilberto Freyre, o olhar se debruça sobre a vida privada; o terceiro, de Caio Prado Jr., é um estudo sobre a “empresa colonial” portuguesa no Brasil; e o do meio, de Sérgio Buarque, é um meio-termo, ou uma síntese tensiva, entre essas perspectivas privada e pública. Pois bem, uma virtude inequívoca do seu livro é a capacidade de pensar, simultaneamente, o macro e o micro, a democrática pelada na praia e o movimento do capital transnacional, os cálculos perversos do capitalismo e a experiência subjetiva que lhe é irredutível, em suma, o público e o privado. A pergunta que lhe faço é, portanto, a seguinte: até que ponto você acha que um olhar exclusivamente voltado para uma “teoria da dependência” – que não leva em conta nossas “originalidades 12
Divulgação/Adriana Vichi
culturais populares”, isto é, “a sobra”, “o excedente humano” da empreitada colonial – está capacitado a compreender o Brasil em sua complexidade e ambivalência? José Miguel Wisnik – Quando li A utopia brasileira e os movimentos negros, de Antonio Risério, uma frase me “ferroou” particularmente, entre tantas coisas estimulantes e provocadoras que há no livro. Ele dizia que os três grandes clássicos da interpretação do Brasil, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Jr., estavam velhos e vencidos, a não ser que algo em nós tratasse de reencontrar neles uma vitalidade que nos diga respeito hoje (nos termos de Risério, a culpa desse anacronismo é nossa, que “não temos tido a disposição de mantê-los vivos para nós mesmos”). Eu estava escrevendo o último capítulo de Veneno remédio, e aquilo me concernia e me flagrava. Em matéria de “disposição”, a minha era exatamente essa, a de procurar o lugar onde eles se atualizam. Risério não chegava a dizer como se fazia esse movimento, no qual eu me via envolvido, às cegas ou não. Mais tarde, li a sua resenha do meu livro sobre futebol aqui na CULT, em que você – Francisco Bosco – começa citando exatamente a frase do Risério, sem saber que ela tinha me atingido a tal ponto. Agora, a frase retorna indiretamente no argumento da sua pergunta. De fato, tomados isoladamente, os três clássicos da interpretação do Brasil podem soar, hoje, datados e distantes. Para complicar mais, eles parecem falar de três países diferentes e incompatíveis: num deles, somos “desterrados em nossa terra” (ver o primeiro parágrafo de Raízes do Brasil); no outro, somos um exemplo da mais perfeita integração em terras tropicais (ver a primeira frase de Casa grande & senzala); no terceiro somos, nem desterrados nem integrados, apenas um 13
LITERATURA
)
ENSAIO
LEITURA DE FORMAÇÃO A contribuição de Antonio Candido é realmente inaugural, e não apenas no cenário brasileiro João Cezar de Castro Rocha
Julia Moraes/Folha Imagem
20
A
ntonio Candido propôs um modelo alternativo à história literária tradicional, estabelecendo um vínculo inalienável entre a escrita da história literária (brasileira) e a reflexão acerca da literatura comparada. Tal opção foi mais bem esclarecida no estudo da obra de Cláudio Manuel da Costa, na qual a “imaginação da pedra” buscaria conciliar tradição árcade e paisagem local mineira, como se anunciasse o metro mesmo da literatura brasileira em gestação, sempre a meio caminho entre o próprio e o alheio. É claro que essa oscilação definiu o melhor do modernismo brasileiro e não deixa de ser provocador pensar na célebre viagem às cidades mineiras, realizada pela caravana modernista em 1924, como se estivéssemos diante de uma complexa continuidade descontínua com o poeta da “imaginação da pedra”. No entretempo dos séculos 18 e 20, os românticos teriam aprofundado a vocação herdada dos árcades, conferindo-lhe uma intensidade inédita. Se “o movimento arcádico significou, no Brasil, incorporação da atividade intelectual aos padrões europeus tradicionais”, o movimento romântico, “originado de uma convergência de fatores locais e sugestões externas, é ao mesmo tempo nacional e universal”. Portanto, a formação da literatura brasileira supôs um trabalho específico de incorporação do que de melhor se produziu na cultura ocidental. Trata-se, porém, de incorporação ativa, na qual o elemento “externo” – a cultura ocidental – é transformado em elemento “interno” – cuja transformação resultará na possibilidade de criação de uma literatura nacional, na qual o próprio se alimenta do alheio e por isso não pode dele alienar-se, sob pena de afogar-se num provincianismo insular. Ressaltese a coerência do método: no que se refere ao estudo de obras particulares, Candido também se baseou na dialética do fator externo que se transmuda em dado interno ao texto como a prática definidora da fatura literária. É nesse sentido forte que a literatura será compreendida – enquanto modo privilegiado de acesso à formação cultural da sociedade. Daí o caráter “decisivo” dos momentos históricos privilegiados – decisivos porque instantes e, por isso, instâncias de autoconsciência do próprio desejo de tornar-se (não ingenuamente ser) brasileiro. No parágrafo de encerramento do livro, o tema retorna na imagem do “processo por meio do qual os brasileiros tomaram consciência da sua existência espiritual e social através da literatura”. Nesse caso, o sistema literário supõe o exame da dinâmica criada entre os vértices do triângulo composto por autor, obra e público – os elementos sistêmicos da história literária de Candido. Assim compreendida, a história literária revela-se uma inovadora análise combinatória, com base na consideração das
inúmeras possibilidades de relacionamento entre os termos “autor”, “público” e “obra” – e nada impede que novos termos se imponham, tornando a equação ainda mais complexa. Ora, vislumbra-se com facilidade a novidade metodológica dessa idéia: em tal ordem sistêmica, não há resultados “necessários”, mas condições possíveis, circunstâncias favoráveis ou obstáculos definitivos. E talvez nenhum instante tenha sido mais decisivo na recepção da Formação do que o entendimento de uma passagem difícil – tanto mais complexa quanto mais simples é sua formulação: “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas... Os que se nutrem apenas dela são reconhecíveis à primeira vista, mesmo quando eruditos e inteligentes, pelo gosto provinciano, e falta de senso de proporções. Estamos fadados, pois, a depender da experiência de outras letras, o que pode levar ao desinteresse e até menoscabo das nossas.” Destaca-se, de imediato, o reconhecimento da relação intrínseca com a literatura portuguesa, ou seja, com a cultura ocidental – afirmação derivada da dialética entre tendências universalistas e particularistas; dialética que constitui o eixo da cultura brasileira, na perspectiva de Candido. O ponto é compreensivelmente indigesto, dado o antilusitanismo programático de boa parte da intelectualidade nacional – desde a primeira geração romântica e com ecos claramente audíveis na revolução modernista. A afirmação desabusada de nossa dependência inexorável em relação à literatura portuguesa completava-se na lembrança da imperiosa necessidade de familiarização com muitas outras literaturas estrangeiras, sob risco de incorrer em inevitável provincianismo. Num caso como o brasileiro, nacionalismo rapidamente se confunde com provincianismo e o antídoto mais eficaz contra sua irrupção continua sendo a manutenção de um diálogo ativo com o que de melhor se produz para além das fronteiras pátrias. O elemento decisivo é a oscilação entre o próprio e o alheio, a necessidade de afirmar-se a partir do comércio com o outro – o lema de Rimbaud bem poderia ser a epígrafe da Formação: “Je est un autre”. Trata-se de resgatar o negaceio entre a necessidade imperiosa de enriquecer-se no hálito forâneo e o desejo ingente de criar voz autêntica – nunca xenófoba, porém; portanto, por que negar as raízes portuguesas, entre tantas outras fontes? Estratégia de Macunaíma, apetite de antropófago: a Formação reata as pontas de uma amizade que o tempo consumiu – é como se Mário e Oswald de Andrade 21
reportagem
)
Denúncia
Abandono histórico O desprezo das autoridades para com os símbolos do centro da Paulicéia deixa marcas indeléveis em obras de escultores consagrados, apagando da história da cidade de 454 anos retratos de acontecimentos marcantes Daniel Marques
28
Fotos: Daniel Marques/Maurício Francischelli
Praça das Esculturas A Praça da Sé, considerada o marco zero da cidade de São Paulo, ficou cercada por tapumes durante um ano, como parte dos projetos de revitalização do centro histórico, porém o descaso público em conjunto com a deterioração natural permanece agindo sobre as valiosas esculturas do local. A concepção original da Subprefeitura da Sé de recuperar o grande espelho d’água, que circunda entre obras modernas de reconhecidos artistas plásticos, como o Condor, de Bruno Giorgi, e o Totem da Sé, de Domenico Colabrone, foi concluída, mas da fonte ainda jorra uma estranha água esverdeada. O prédio do Palácio da Justiça com sua fachada apontada para os jardins da praça também sofre um processo minucioso de restauração que deve ser finalizado em março de 2009. Destoando do cenário limpo e bem cuidado, ergue-se uma escultura sem título do mineiro Amílcar de Castro, instalada em 1979, com fundo para a renovada Catedral da Sé. A iniciativa de recuperar a praça não foi estendida a essa peça arquitetônica: a falta de cuidados deixou a chapa de ferro com coloração típica de ferrugem, não evitou as pichações de giz e tinta e permitiu a colagem de um cartaz contra a fome, bastante comum no centro histórico da capital paulista. À vista, nenhuma viatura da Guarda Municipal, enquanto quatro carros faziam a ronda da Prefeitura de São Paulo no mesmo momento.
29
36
ensaio
(
Coluna
O Cinema Político de Pedro Almodóvar Para o cineasta, a realidade é uma imperfeição incurável que nos obriga primordialmente a amá-la Francisco Bosco
A
os dezesseis anos, Pedro Almodóvar mudava-se para Madri, sozinho e sem dinheiro, a fim de estudar cinema. Muitos anos depois, ele diria dessa experiência: “Eu me acostumei à realidade (eu a assumi, como se assume a doença de alguém que se ama)”. Essa relação, ou melhor, esse vínculo entre realidade, doença e amor é o que, em sua obra, instaura uma insuspeitada dimensão política. Mas esse mesmo vínculo é o que decisivamente diferencia o cinema político de Almodóvar de um pensamento político tão bem intencionado (talvez) quanto desastroso (certamente): para este, a realidade também é uma doença, uma imperfeição cuja complexidade deve ser reduzida a golpes de idealismo e brutalidade; enquanto, para Almodóvar, a realidade é uma imperfeição incurável que nos obriga primordialmente a amá-la. O amor à realidade, que exige a assunção de sua complexidade irredutível, surge aí como prevenção da brutalidade – e é nesse ponto que seu cinema se torna político. Vistos dessa perspectiva, o desejo e a paixão são manifestações da realidade que, reveladas em sua trama complexa, opõem-se a que seja injusto o juízo sobre a realidade e os sujeitos que dela participam. Mesmo que não seja deliberado – e afinal isso nunca importa –, o que aí ocorre é uma atitude política que visa à justiça.
Trata-se, digamo-lo de saída, de uma política da proximidade. A aproximação é sua estratégia artística de desmonte dos estereótipos (e sabemos o quanto os estereótipos propiciam e justificam bodes expiatórios sociais, tentações segregacionistas, juízos moralistas etc.). Tanto identidades sociais estereotipadas quanto gestos éticos condenáveis a priori são submetidos a um olhar aproximador que lhes desvela dimensões surpreendentes que, por sua vez, tendem a desmontar, suspender ou mesmo reverter o juízo do espectador. Assim, uma travesti, por exemplo, é mostrada em sua vida privada, dissolvendo o estereótipo social por excelência que se tornam as travestis enquanto aos olhos dos outros possuem uma identidade exclusivamente pública e sexual; uma freira está grávida; uma outra travesti é machista e moralizadora; um expolicial na cadeira de rodas passa de baluarte moral a responsável indireto pela condenação de um jovem inocente, e assim em diante. Nenhum personagem e nenhum ato estão isentos de ambigüidades e complexidades éticas, basta que se aproxime o suficiente deles para percebê-los desse modo. Essa aproximação não diz respeito apenas ao movimento do artista, mas também dos personagens. Há nestes uma abertura ao outro tantas vezes imediata, a que a seguinte frase, citada num mis-en-abîme em Tudo 37
sobre minha mãe, serve de efígie: “Sempre confiei na bondade dos desconhecidos”. Assim, nesse mesmo filme, Manuela torna-se imediatamente amiga de Rosa, a quem acolhe em sua casa; Huma, a atriz famosa, contrata Manuela como seu braço direito depois de conhecê-la numa única noite; Rosa, a freira, por definição abre-se ao outro em sua estranheza radical. Em Fale com ela, a toureira Lídia pede ao então desconhecido Marco que a leve a Madri. Em todos – e sobretudo nas mulheres – há essa abertura transparente ao outro desconhecido, essa vontade de aproximação. Se em A má educação essa lógica é invertida, isso ocorre sem prejuízo da aproximação como atitude artístico-política, e como que para evidenciar seu caráter de contraponto ratificador. Essa inversão dá-se do seguinte modo. Em Tudo sobre minha mãe e, radicalmente, como veremos, em Fale com ela, é a revelação da dimensão amorosa de um ato ético em princípio condenável que fará o juízo recuar. Naquele, a travesti Lola, portadora do vírus da Aids, engravida e contamina a jovem freira Rosa (que morre em conseqüência do parto), mas, pelo mesmo lance, devolve o filho perdido a Manuela. Há aí uma cadeia amorosa que percorre Manuela, Lola e Rosa, e a que o acaso – outra imperfeição da realidade – confere uma ambivalência irredutível, de morte e
Coluna
)
Filosofia
O Abutre de Kafka e o Prometeu Moderno Do enigma da inação ao poder da impotência Marcia Tiburi
N
um pequeno conto chamado “O abutre”, das Narrativas do espólio, de Kafka (na invulgar tradução de Modesto Carone), o narrador conta, em primeira pessoa, que um abutre, após bicar suas botas e meia, estraçalhava-lhe os pés. Outro homem, ao ver a cena, perguntou-lhe por que permitia a ação do abutre. O narrador apenas pode informar que estava indefeso, que após enxotá-lo, e até tentar enforcá-lo, decidiu sacrificar-lhe os pés no lugar do rosto primeiramente almejado pelo abutre. O homem, indignado com o fato de que alguém se deixasse torturar daquela maneira, sugeriu buscar sua espingarda em casa para dar um tiro no animal. Demoraria uma meia hora, tempo que o sujeito dos pés carcomidos não sabe se suportaria. Sem ter nada a perder, aceitou a oferta de ajuda. Enquanto isso, conta-nos o narrador, o abutre escutou calmamente a conversa entre os dois entendendo tudo o que conversavam entre si: “(...) levantou vôo, fez a curva da volta bem longe para ganhar ímpeto suficiente e depois, como um lançador de dardos, arremessou até o fundo de mim o bico pela minha boca. Ao cair para trás, senti, liberto, como ele se afogava sem salvação no meu sangue, que enchia todas as profundezas e inundava todas as margens”.
Talvez esse tenha sido um pesadelo de Kafka. Não importa. É dos contos mais enigmáticos que se pode ler. Evidente surrealismo que nos faria simplesmente admirar a idéia na contramão do real, o conto, no entanto, carrega uma pista simbólica que não pode ser deixada de lado na análise daquilo que nos impele a agir. Também Prometeu, no mito fundador da relação entre o homem ocidental e o conhecimento, teve um de seus órgãos, o fígado, carcomido pela eternidade por um abutre. Pagou pelo seu feito. Prometeu foi punido pelos deuses do Olimpo, por ter dado aos homens o fogo, em seu caráter altamente simbólico de alcance do conhecimento. O homem de Kafka, no entanto, não pode ser punido por nada porque não fez nada a ninguém. Não pode ser acusado não apenas porque sendo moderno já não é controlado pelos deuses nem conhece a eternidade, mas porque está só em seu sofrimento. A culpa objetivamente não existe, talvez pese fantasmagoricamente sobre o sujeito causando-lhe a dor. O conto, porém, não nos informa sobre nada disso. Só o que sabemos é que ele não pode fazer nada, está indefeso. Indignados como o homem da espingarda, este outro civilizado que nos habita, perguntamo-nos, por quê? A resposta está ali. Após tentativas de escapar, até a tentativa de 40
enforcar o animal, sucumbe-se à sua força. O abutre é mais forte do que o homem e, por isso, este é carcomido por aquele e não, obviamente, o contrário. O homem nem pode sofrer de solidão, pois desde sempre está acompanhado pelo abutre. Seria o abutre um emblema da melancolia que da punição de Prometeu com a angustiante prisão no abismo ao homem encurralado de Kafka, não cessa seu gesto de tortura da qual é impossível fugir? Talvez o abutre seja o emblema de todo o sofrimento que acompanha o homem e que jamais permitirá que ele viva só. É o sofrimento que nos vigia e que se apresenta com a única e incontornável solução que se apresenta, ontem como hoje, como pergunta: por quê? É a relação entre a força do abutre e a fraqueza do homem que sinaliza o ensinamento do conto em seu caráter de fábula deixado, por Kafka, à interpretação de seu leitor. Sabemos que as Narrativas do espólio não deviam ser publicadas, e, por isso, esse leitor não estava, para ele, de modo algum, sacramentado. Pertencem-nos apenas pelo caráter clandestino do fado que ousa interromper o desejo de qualquer um. Não é menor a clandestinidade daquilo que ele nos revela e que reside no homem como uma interrupção de tudo o que ele projetou para si em termos de felicidade,
conquista do sucesso, realização, satisfação. O abutre não é apenas a incapacidade de ser feliz ou a vigilância que o nosso próprio sofrimento, tão atuante quanto o desejo, opera sobre nós. Ele não é apenas a figura da desgraça que nos abate. Ele é a confusa performance da impotência da ação que se apresenta mais forte do que toda a nossa capacidade de agir. “O abutre”, de Kafka, é nosso. Ele nos coloca diante do desenho completo que carrega o enigma da inação. Se os personagens de Kafka representam uma alegoria, ela diz respeito ao que em nós desiste de agir por impotência enquanto um outro, sabendo o que deve ser feito, possuindo uma arma redentora, vai a buscar socorro sem nunca voltar. Ambos os personagens falam da condição humana. Do ser humano que entregue às próprias tentativas e esperanças é sempre por último observado pelo que nele há de mais forte, a sua própria impotência. Enquanto é observado pelo próprio princípio do mal que tem olhos só para si, nele se opera o seu próprio reconhecimento na satisfação de que, por fim, tudo encontre alento pelo simples fato de que somos um com ele. O abutre que hoje age sobre as bases (o abutre carcome nossos pés com os quais poderíamos ir a algum lugar; ontem, carcomia o fígado, órgão que produzia a bile e,
em seu negror, a melancolia) morre, como no homem de Kafka, por seu próprio gesto capaz de ir ao mais fundo de nós. Aquilo que nos carcome é o que nos olha entendendo todos os acordos que possamos fazer para derrotá-lo. É aquilo que tendo o máximo poder sobre nós se afoga em nosso próprio sangue. Está em nós e inundou todas as nossas margens. Derrotar o abutre é derrotar a si mesmo. A inação do homem, sua incapacidade de fazer um mundo diferente – mais justo, menos violento – deveria ser usada a seu favor, como resistência. A inação do homem também nos ensina que o abutre pode ser morto. Ainda que o carreguemos como parte do líquido da vida e fiquemos mancos para sempre. Tal é a potência dúplice da ação: é preciso fazer, é preciso resistência, mas é igualmente preciso entender a força da impotência.
marcia.tiburi@terra.com.br
41
dossiê
)
Herbert Marcuse
Reorganizar a S
eria impossível compreender as origens do brio revolucionário que circulava no ano de 1968 sem olhar detidamente para o quadro teórico da produção universitária no período. Circunstâncias políticas e sociais, relativamente exteriores ao ambiente acadêmico, certamente prepararam o bojo histórico necessário para a irrupção de um sentimento generalizado de inconformismo, levando estudantes e operários a ocuparem as ruas. No entanto, é preciso reconhecer que o substrato teórico capaz de impulsionar esse desejo de emancipação veio, em sua maioria, do contato com as idéias radicais de pensadores do meio universitário. É nesse sentido que poderemos entender como o nome de Herbert Marcuse (1898-1979) permaneceu tão ligado aos movimentos de 1968, a ponto de constituir um dos “3 M de 68” (ao lado de Marx e Mao) aos quais as inúmeras pichações nos muros de Paris e Berlim faziam referência. A força disruptiva de seu pensamento, o engajamento político e a presença carismática como professor da Universidade de San Diego (Califórnia) tornaram o filósofo alemão uma das figuras mais citadas e conhecidas nos EUA, na Europa e também no Brasil. Que isso não nos iluda, porém, quanto à justa apreensão de suas idéias. Como lembra Jorge Coelho Soares, que participa deste dossiê, Marcuse virou “mercadoria de grande aceitação” no mercado dos bens simbólicos. O autor de Eros e Civilização, tomado por ideólogo da sociedade não-repressiva, converteu-se assim numa espécie de alusão prêtà-porter para todo arroubo revolucionário caótico e para qualquer elogio ao irracionalismo. Na realidade, falava-se muito, lia-se pouco. O frisson marcuseano dos anos 60 e 70, assim como o brio revolucionário correspondente, acabou dando lugar, enfim, a uma certa negligência
Índice do Dossiê
comedida nos anos 80. No próprio meio universitário, o pensamento pós-estruturalista e a segunda geração da Escola de Frankfurt assumiriam, por assim dizer, os postos de “teorias da moda” da filosofia continental. Para além do Marcuse datado e reduzido a “filósofo da moda”, o dossiê desta edição procura esclarecer diversos aspectos de sua obra que lhe asseguram uma vigorosa pertinência intelectual nos debates contemporâneos. Questões ligadas à ecologia, à relação entre tecnologia ciência e política, à alienação do consumo, ao lugar privilegiado da arte, às políticas concretas de emancipação coletiva, e mesmo à crítica do marxismo soviético sempre fizeram parte do horizonte teórico de Marcuse, o que torna a releitura (ou ainda, a leitura) de sua obra mais do que necessária. CULT convidou alguns dos principais especialistas brasileiros para introduzir, portanto, os tópicos fundamentais do pensamento marcuseano. Wolfgang Leo Maar oferece um resumo das motivações políticas do filósofo, comprometidas com a idéia indissociável de democracia e revolução; Robespierre de Oliveira fala sobre a releitura marcuseana da história da filosofia, visando à formação essencial da Teoria Crítica; Jorge Coelho Soares faz um balanço das diversas fases da recepção da obra de Marcuse no Brasil; Rodrigo Duarte mostra a evolução das suas reflexões na arte e na cultura; Marília Pisani sintetiza a crítica à razão instrumental e à pretensa neutralidade do desenvolvimento científico e tecnológico. A interação dessas diferentes perspectivas poderá contribuir, assim, para uma análise mais ampla das experiências de 1968 e, sobretudo, para o reconhecimento das tarefas mais urgentes que os atuais desafios políticos nos impõem. (Eduardo Socha)
44 A educação pela
revolução
O que distingue o pensamento de Marcuse é o modo pelo qual democracia e revolução permanecem vinculadas Wolfgang Leo Maar 42
48 Viver bem, viver melhor A releitura da filosofia na formação da teoria crítica aponta para a transformação utópica - e possível - da realidade social Robespierre de Oliveira
a emancipação Reprodução
52 O filósofo refratário
As apropriações da obra de Marcuse no Brasil pertencem ao processo de abertura intelectual do país Por Jorge Coelho Soares
56
Da “cultura afirmativa” à subjetividade criativa
Um breve panorama das reflexões estéticas de Marcuse Por Rodrigo Duarte
43
60
Tecnologia e Política em Marcuse
A crítica de Marcuse à suposta neutralidade da ciência exige ao mesmo tempo a concepção de uma “nova humanidade” Por Marilia Mello Pisani
dossiê
)
Herbert Marcuse
Da “cultura afirmativa” à subjetividade criativa Um breve panorama das reflexões estéticas de Marcuse Rodrigo Duarte
A
reflexão sobre as artes sempre teve destaque na obra filosófica de Marcuse, o que atesta o tema de sua tese de doutoramento, defendida em 1922, em Freiburg, intitulada O romance de artista alemão (Der deutsche Künstlerroman), trabalho que era fortemente influenciado pela Teoria do romance, de Lukács, e pelas Preleções sobre a estética, de Hegel. Dessa época até 1929, quando se estabeleceu novamente em Freiburg, Marcuse viveu em Berlim – onde nascera em 1898 –,
participando ativamente de círculos intelectuais em que a estética e a política (e a correlação em ambas) constituíam o tema principal de discussão. O motivo do retorno de Marcuse a Freiburg foi o fascínio que o pensamento de Heidegger tinha lhe causado, mas, por volta de 1932, ele se decepcionou com o autor de Ser e tempo e se aproximou de Max Horkheimer, o que, na prática, significou também um reforço no antigo pendor pela estética, já que o interesse teórico do “Instituto de Pesquisa Social”, dirigido por esse
último, tendia cada vez mais para questões de filosofia da cultura e da arte. O resultado mais sensível dessa influência, que indica também o estabelecimento de um pensamento próprio de Marcuse, é o ensaio “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, o qual trata do comprometimento histórico da alta cultura com as necessidades ideológicas da burguesia setecentista em ascensão, na medida em que a arte erudita desviava, segundo Marcuse, a atenção da maioria do povo da situação de miséria em que se encontrava, ajudando, com isso, a consolidar Divulgação
Encenação de Terror e miséria no Terceiro Reich, de Bertold Brecht: “O potencial político da arte reside apenas em sua dimensão estética. Sua relação com a práxis é sempre indireta (...) Nesse sentido, pode haver um potencial subversivo maior na poesia de Baudelaire e Rimbaud do que nas peças didáticas de Brecht” (Marcuse, Dimensão Estética)
56
o poder da nova classe dominante. Nesse ensaio, Marcuse relembra inicialmente a concepção da Antiguidade Grega, segundo a qual as manifestações culturais se encontram numa esfera separada, que transcende o âmbito da reprodução da vida e que divide a sociedade entre uma esmagadora maioria que deve realizar o trabalho físico e os poucos escolhidos que têm o ócio (em grego: Skolé, de onde veio a palavra latina schola) para se dedicar às coisas do espírito: ao verdadeiro, ao bem e ao belo. Nesse período da história, o próprio discurso das classes dominantes não esconde a concepção de que existem, por um lado, pessoas inferiores, às quais cabe a dura labuta física, e, por outro lado, seres humanos superiores – responsáveis pelas atividades intelectuais que propriamente engrandecem a humanidade.
Cultura afirmativa
Embora as origens da “cultura afirmativa” se encontrem nessa cisão, ocorrida já na Grécia antiga, entre a produção material da vida e as realizações do espírito, o interesse principal de Marcuse recai na Idade Moderna, quando, por uma exigência de estratégia ideológica, o discurso da nova classe dominante – a burguesia – não pode mais, em sua pretensão de universalidade, excluir abertamente as classes subordinadas do acesso aos bens culturais, principalmente porque não está seriamente em questão a melhoria efetiva de suas condições materiais de vida: “Na época burguesa a teoria da relação entre o necessário e o belo, entre trabalho e prazer experimentou modificações decisivas. Em primeiro lugar desapareceu o modo de ver segundo o qual a ocupação com os valores supremos seria apropriada como profissão por determinados setores sociais. Em seu lugar surge a tese da universalidade e validade geral da ‘cultura’. A teoria antiga afirmara de boa consciência que a maioria dos homens são obrigados
(sic) a despender sua existência com a provisão das necessidades vitais, enquanto uma pequena parcela se dedica ao prazer e à verdade. Por menos que tenha se modificado a situação, a boa consciência desapareceu” (Sobre o caráter afirmativo da cultura [CA] in “Cultura e Sociedade”, p. 94). Na medida em que se constitui numa perfeição abstrata, a qual se encontra, por definição, para além do reino do esforço físico com vistas à reprodução da vida, a fruição estética teria vindo a calhar para os objetivos políticos da burguesia, que comportam uma admissão apenas simbólica das classes desfavorecidas, ao lado de sua exclusão factual das benesses do progresso econômico. É a partir dessa constatação que Marcuse define claramente o que ele chama de “cultura afirmativa”: “(...) é aquela cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual-anímico, nos termos de uma esfera de valores autônoma, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso, universalmente obrigatório, incondicionalmente confirmado, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo de fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si ‘a partir do interior’, sem transformar aquela realidade de fato” (CA, p. 64). No contexto dessa discussão, a noção de “alma” assume a função de correlato subjetivo daquilo que é a cultura afirmativa no plano da objetividade. A raison d´être dessa correlação é que a experiência, realizável por qualquer indivíduo, de que ele possui em sua interioridade um âmbito inexpugnável, no qual pode estar só consigo mesmo e que pode ajudá-lo a suportar os embates que o trabalho alienado impõe à sua pessoa, é o solo subjetivo da propagação da idéia de que as mais sublimes manifestações culturais estão acima dos maiores sofrimentos e, por outro lado, 57
acessíveis apenas àqueles capazes de compreendê-las ou pelo menos reconhecer o seu valor: “A alma prospera no interior do indivíduo apesar de todos os obstáculos e desvios: o menor dos espaços vitais é suficientemente grande para poder se estender ao infinito plano das almas” (CA, p. 109).
Arte como resistência à reificação
Embora em “O caráter afirmativo da cultura” haja passagens nas quais Marcuse reconhece que o “idealismo burguês não é somente uma ideologia” e que “a cultura afirmativa foi a forma histórica em que se preservaram as necessidades dos homens que iam além da reprodução da existência” (CA, p. 99) e que, portanto, “o direito se encontra do seu lado” (CA, p. 119), prevalece, nesse ensaio, a idéia do papel ideológico e até mesmo opressor desse modelo de cultura. Quase duas décadas depois, em Eros e civilização, diferentemente do texto publicado em 1937, Marcuse atribui à arte a capacidade de se transformar num fator de resistência contra a reificação. Para essa substancial mudança na maneira de ver a arte culta contribuíram fatores de ordem biográfica e intelectual, como, por exemplo, o contato mais direto com a cultura de massas no exílio norte-americano (e sua comparação com a arte culta européia) e a recepção da psicanálise, como trai o próprio subtítulo da obra de 1955: “Uma investigação filosófica em torno de Freud”. Nos capítulos iniciais de Eros e civilização, Marcuse apresenta as condições e motivações que ajudaram a estabelecer o princípio de desempenho como versão tipicamente ocidental do princípio de realidade, o qual assume uma dimensão tanto mais opressiva quanto mais “avançado” é o capitalismo. Em seguida, ele apresenta (nos capítulos 7 a 9), os elementos que poderiam ajudar a estabelecer uma nova concepção de sociedade e cultura, para além das coerções da produção e reprodução materiais.
dossiê
)
Herbert Marcuse
Tecnologia e Política em Marcuse A crítica de Marcuse à suposta neutralidade da ciência exige ao mesmo tempo a concepção de uma “nova humanidade” Marilia Mello Pisani
A
s reflexões de Herbert Marcuse sobre as transformações nas formas de vida sob o impacto da revolução científico-tecnológica são desenvolvidas em seu livro Ideologia da sociedade industrial [1964], mas aparecem pela primeira vez nos textos dos anos 1940, nos quais ele recorre a uma vasta bibliografia sobre o impacto das transformações tecnológicas na estrutura da sociedade e no indivíduo. Nesses textos o filósofo realiza uma interessante analogia entre as sociedades nazista (nacional-socialista), capitalista e socialista soviética. O que elas têm em comum é a predominância de uma determinada “racionalidade técnica”, que se expressa pelo uso da tecnologia como forma de controle e coesão social – um controle que começa com a introdução das máquinas nas fábricas e se estende para toda forma de organização da vida social, da organização do trabalho ao lazer e descanso, assim como para a própria subjetividade e até a sexualidade. Em Estado e indivíduo sob o NacionalSocialismo, Marcuse mostra que a emergência de uma nova moral sexual sob o nazismo serviu aos interesses do Estado nacional-socialista, um Estado organizado como uma máquina onde todas as suas partes estão devidamente coordenadas. Na Alemanha nazista todos os indivíduos se tornaram “apêndices da maquinaria”; os seus desempenhos individuais foram completamente ajustados à operação da máquina, “cronometrados e coordenados de
Nova Orleans, após o furacão Katrina em 2005: pela “razão sensível”, Marcuse propõe uma nova relação entre homem e natureza
60
acordo com suas exigências”, “eles próprios foram coisificados e se tornaram parte fixa da máquina”. Segundo Marcuse, o nacional-socialismo realizou uma “tecnicização da moral”, fazendo da moral uma parte da tecnologia “em sentido literal”. Esse sistema “tem uma estrutura técnica e sua coerência é um procedimento técnico”, pois “na tecnologia, não há verdade ou falsidade, certo ou errado, bom ou mal – há apenas adequação ou inadequação a um fim pragmático”, o que justificaria o extermínio em massas enquanto um procedimento meramente técnico. Esta definição de “técnica” nos conduz a uma discussão espinhosa na reflexão de Marcuse sobre o tema: a crítica da neutralidade da técnica e da ciência.
Reprodução
Crítica da neutralidade da ciência e da técnica
Nos anos 40, a crítica da neutralidade da técnica e da ciência não aparece de forma tão evidente quanto nos textos dos anos 60. Em Algumas implicações sociais da tecnologia moderna [1941], Marcuse estabelece uma distinção entre “técnica”, entendida enquanto conjunto de instrumentos que podem servir tanto ao controle quanto à libertação, e “tecnologia”, definida como um modo de produção específico que utiliza a técnica como instrumento de controle. Porém, a partir dos anos 60 essa distinção se torna menos nítida, o que põe sérios problemas para a análise do tema no autor. Essa indiferenciação tornou Marcuse alvo de severas críticas, tanto por parte das esquerdas marxistas quanto dos liberais conservadores, ambos rejeitando a crítica do progresso tecnológico e científico desenvolvida pelo filósofo. Podemos supor que essa “mudança de foco” seja uma conseqüência de dois fatores. Primeiro, a incorporação de uma literatura crítica sobre a técnica e a ciência moderna que surge ao longo dos anos 40 e 60, como a crítica das ciências modernas de Edmund Husserl, as reflexões de Martin Heidegger sobre a questão da técnica, assim como as do filósofo da técnica Gilbert Simondon. Um segundo fator pode ser resultado do novo contexto histórico do pós-Segunda Grande Guerra. Podemos sugerir que um evento crucial separa as reflexões de Marcuse acerca da 61
técnica entre o período dos anos 40 e 60 – a explosão das bombas atômicas no Japão em 1945. Esse evento deu início à corrida armamentista, impulsionada pelas descobertas científicas e tecnológicas, e à competição entre as potências socialistas e capitalistas, resultando na aceleração da produção de mercadorias e na emergência do modelo americano de sociedade de consumo, como forma de competir ideologicamente com a ex-URSS. Marcuse defende a tese de que a coexistência entre as duas potências competidoras foi o motor para a produção crescente e enorme produtividade, promovendo a estabilidade do capitalismo. A partir desse momento a “tecnologia transformou-se num novo sistema de dominação”. Antes mesmo da explosão das bombas, na Primeira Guerra, a aliança entre ciência e guerra já havia se tornado evidente. Porém, podemos considerar esse um acontecimento significativo na medida em que suas proporções e magnitude marcaram para sempre o imaginário coletivo, tornandose, assim, um evento que nunca mais pôde ser esquecido. Desse modo, no pós-guerra a questão da neutralidade da técnica e da ciência adquire novo significado: a ciência passa a ser questionada não só em suas aplicações, mas em sua própria “pureza”, em sua neutralidade. Nos anos 60 Marcuse defende a tese de que a tradicional separação entre “ciência pura” e “ciên cia aplicada” se tornara ilusória. Marcuse tem plena consciência do conteúdo progressista que a afirmação da neutralidade da ciência desempenhou no início do projeto científico como uma forma de libertar a ciência e a técnica das normas impostas. Ela foi destruidora do dogmatismo e da superstição medieval, da justificação teológica da desigualdade e da exploração e da autoridade irracional. Entretanto, esse fato histórico foi ultrapassado e essa “separação que foi uma vez libertadora e progressiva é agora destrutiva e repressiva”. Não basta apontar para a relação entre a ciência e o capitalismo, como se a evolução atual da sociedade fosse compreensível apenas mostrando que o capitalismo se apropriou da ciência e que os resultados de sua evolução são conseqüências de uma má utilização desta e da técnica – há algo além que é preciso demonstrar. Para Marcuse, o problema está na
Oficina literária
)
Renato Oliveira
Personagem Solitário Andando saco a caneta Do lado direito da minha jaqueta Seguro-a Enquanto penso na letra Do papel branco manchado do resvalar do pote da tinteiro Escrever é, nos pés da literatura, encerrar com um conto outro ponto repleto de fadas disfarçadas de bruxas malvadas peladas e resfolegadas É quando merece a morte Ou quando se merece na morte Um pouco mais do teu sofrimento; divino Para provar que no coração existe a emoção mais forte
Renato Oliveira, de Londrina (PR), é jornalista e escritor
A Oficina Literária é uma seção exclusivamente voltada para a publicação de inéditos. Os interessados em publicar seus textos – que serão avaliados pela equipe da revista e não devolvidos – devem enviar seus originais pelo e-mail: oficinaliteraria@revistacult.com.br ou pelo correio para: Revista Cult – Oficina Literária, Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar – Paraíso – São Paulo, SP – CEP: 01533-070. Os textos devem ser encaminhados inseridos no corpo da mensagem e não anexados. O tamanho não pode ultrapassar três mil caracteres com espaço. O envio de qualquer trabalho para a Oficina Literária implica o reconhecimento do direito não-exclusivo de reprodução da obra pela revista. A autoria e o conteúdo dos textos são de responsabilidade única e exclusiva do participante, devendo ele observar a legislação autoral vigente. Ao encaminhar o trabalho, os interessados devem fornecer os seguintes dados: nome completo, endereço, telefone para contato e e-mail. A Editora Bregantini, ao receber os inéditos, está autorizada pelos autores a publicar o material, de forma integral ou resumida, na Cult ou no site da revista.
66