Revista CULT (parcial) - 128

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PROGRAMAÇÃO AGOSTO/SETEMBRO 2008

RIO DE JANEIRO

Av. Almirante Barroso, 25 - Centro

EXPOSIÇÕES Tazio Secchiaroli – O Cinema no Olhar Até 21 de setembro, terça a sábado, das 10h às 22h, e domingo, das 10h às 21h Local: Galeria 1 Classificação Etária: livre

CURITIBA

Rua Conselheiro Laurindo, 280 - Centro

ESPETÁCULOS Musical Leny Andrade De 5 a 7 de setembro, sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 19h Classificação Etária: livre Local: Teatro da CAIXA

Musical Olívia Hime Dia 16 de setembro, terça, às 21h Classificação Etária: livre Local: Teatro da CAIXA

SALVADOR

Rua Carlos Gomes, 57 - Centro

EXPOSIÇÃO Circo Nerino Até 28 de setembro, às 20h Classificação Etária: livre Local: Galeria do Pátio

SÃO PAULO

Praça da Sé, 111 - Centro

OFICINA Ciclo de Oficinas de Música e Desenvolvimento Humano De 23 de agosto a 20 de setembro, de segunda a sexta, das 9h às 13h, e sábado, das 14h às 18h Classificação Etária: livre Local: Auditório/Sala de Ensaios (Praça da Sé, 111)

BRASÍLIA

SBS Quadra 4 - Lotes 3/4 - Asa Sul

ESPETÁCULO Tchu-Tchu-Tchu com a Cia. Paraladosanjos Dias 23 e 24 de agosto, sábado, às 16h e às 19h, e domingo, às 16h Classificação Etária: livre Local: Teatro da CAIXA

Acesse o site caixacultural.com.br e conheça a programação completa.


(

Fotos/Divulgação/José Paulo Lacerda

06 do leitor 08 cultura em movimento

ÍnDiCe

Circuito de Fotografia reúne recortes artísticos e expoentes do fotojornalismo

12 entrevista

Ministro Mangabeira Unger propõe novo modelo de desenvolvimento para o brasil

20 literatura

Machado de Assis, sob disfarce, na sala de estar

28 filosofia

Marilena Chaui escreve sobre o livro A retórica de Rousseau, de bento Prado Jr.

34 livros

Marcia tiburi analisa obra de Rodrigo Duarte sobre teoria crítica

39 ensaio

36 livros

o colunista Francisco bosco e o autoaniquilamento como método

A questão jurídica em Paul Ricoeur

42 filosofia

Arquivo da família

A colunista Marcia tiburi escreve sobre o complexo de ofélia, heroína suicida de Shakespeare

44 dossiê

Uma introdução a Pierre bourdieu Por Maria da Graça Jacintho Setton Articulações inovadoras entre ciência e política Por José Sérgio Leite Lopes A dinâmica dos meios de comunicação Por Clóvis de Barros Filho Hierarquias da cultura Por Ilana Goldstein bourdieu e a educação Por Ana Paula Hey e Afrânio Mendes Catani

66 oficina literária

Década de 1970 – Bento Prado Jr. no jardim da casa onde escreveu os ensaios de A retórica de Rousseau, Maintenon, a 68 km de Paris

3


)

Divulgação/Jose Yalenti

Cultura em Movimento

CIRCUITO DE FOTOGRAFIA Consolidada como uma das principais exposições de imagens do país após estrear em 2007, o Circuito de Fotografia é organizado pela SP Arte e apresenta em sua segunda edição a coleção de 15 galerias de arte, com 120 fotógrafos nacionais e internacionais, reunindo um total de mais de 200 obras. A mostra, que reflete o crescimento desse segmento e ocupa espaços cada vez maiores em museus, reúne trabalhos contemporâneos, recortes artísticos e expoentes do fotojornalismo. Todos com assinaturas dos principais nomes da fotografia, como a pioneira do realismo moderno Rochelle Costi, Claudia Jaguaribe e sua crítica

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ecológica, e o mestre da contraluz Jose Yalenti. A mostra também reúne três exibições temáticas: “São Paulo, minha estranha cidade linda”, realizada pela galeria Arte 57 com fotos de Cláudio Edinger, “A flecha em repouso”, idealizada pelo artista Mario Cravo Neto, e “Jean Mazon”, que apresenta os principais trabalhos do fotojornalista da extinta revista O Cruzeiro. O público poderá conferir o Circuito de Fotografia de 11 a 14 de setembro, no pavilhão do 9º andar do Shopping Iguatemi, na avenida Faria Lima, 2232, São Paulo. O local permanece aberto das 14h às 21h, com entrada franca.


PELA ORDEM

1) O poderoso chefão 2 (1974) Roteiro: Mario Puzo e Francis Ford Coppola Direção: Francis Ford Coppola Elenco: Al Pacino e Robert De Niro 2) Contra a parede (2004) Roteiro: Fatih Akin Direção: Fatith Akin Elenco: Birol Ünel, Sibel Kekilli

3) Tartarugas podem voar (2004) Roteiro:Bahman Gohbadi Direção: Bahman Gohbadi Elenco: Avaz Latif, Soran Ebrahim

Arquivo Pessoal

O escritor Guillermo Arriaga, que concorreu ao Oscar de melhor roteiro com o filme Babel em 2006, veio ao Brasil para lançar o seu mais novo romance, Esquadrão guilhotina. Pedimos a ele para elaborar uma lista com os cinco roteiros mais bem construídos da grande indústria cinematográfica.

CADA UM TEM O SEU

4) Filhos do paraíso (1997) Roteiro: Majid Majidi Direção: Majid Majidi Elenco: Mohammad Amir Naji, Amir Farrokh Hashemian 5) Cidade de Deus (2002) Roteiro: Bráulio Mantovani, baseado no romance de Paulo Lins Direção: Fernando Meirelles Elenco: Alexandre Rodrigues, Matheus Nachtergaele

Divulgação

O ator Carlos Moreno, que estreou no teatro com o grupo de comédia Pod Minoga Studio e recentemente lançou um livro de memórias pela Edições SESC sobre o período, não sentiu vergonha em revelar à revista CULT o seu gosto mais cafona: a música romântica de Ângela Maria, Isaurinha Garcia e Djalma de Oliveira. “Para as pessoas pode parecer brega, mas eu admiro as cantoras Ângela Maria e Isaurinha Garcia e o intérprete Djalma de Oliveira, todos expoentes da vertente romântica da década de 1950 da música popular brasileira. Impressiona bastante a maneira como eles interpretam suas canções. Considero o estilo bastante teatral, repleto de gestos e cenas. São cantores muito melodramáticos, que falam sobre o amor de maneira maravilhosa e apresentam uma narrativa sentimental muito bonita. Acho que eu sou um pouco assim também.”

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entrevista

)

Roberto Mangabeira Unger

A RECONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA Com a proposta de uma esquerda imaginativa e transformadora Francisco Bosco

“O

Brasil precisa deixar de ter medo de idéias” – essa frase, dita recentemente pelo atual ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, emite uma verdade tanto sobre o país quanto sobre o ministro. De um lado, ela evoca nossa propensão crônica para a imobilidade, nossa incapacidade de sairmos do atoleiro da cena pré-política, por assim dizer, das denúncias de corrupção, das mais diversas falcatruas, das tramas fisiológicas do legislativo etc. Mas, de outro lado, e é isso o que importa, essa frase tem uma dimensão auto-referente: Mangabeira Unger é um homem de idéias, um pensador audacioso e original, e, ao mesmo tempo, um homem de vocação pública, voltado para a ação. É fundamental compreender isso a seu respeito, ou seja, que sua “imaginação 12

institucional” destina-se à transformação do real histórico. Ela não é, como querem alguns (que geralmente ou são ignorantes, não o tendo lido, ou agem de má-fé), a obra escapista e delirante de um doidivanas. Só que seu pensamento não se conforma ao “falso critério do realismo político: a proximidade com o existente”; ele se propõe o desafio de imaginar uma ampla reconstrução da democracia, para além dos impasses e do conservadorismo que segundo ele definem a esquerda, hoje, em âmbito mundial. As diretrizes dessa transformação são apresentadas no livro cuja edição brasileira está sendo lançada nesse momento, O que a esquerda deve propor (originalmente escrito em língua inglesa e intitulado What should the left propose?). São algumas das idéias desse livro, e seu sentido geral, que Mangabeira Unger se dispôs a apresentar a CULT, na entrevista que se segue.


CULT – O senhor afirma que “duas concepções de esquerda deveriam lutar”, nesse momento histórico, em âmbito mundial, “pela primazia”. Uma delas é a que expressa a orientação da social-democracia, que o senhor considera insuficiente, porque resignada a um “conservadorismo institucional”, contentando-se com práticas de redistribuição compensatória. A outra, cujas diretrizes o senhor estabelece em seu livro, não se conforma ao “falso critério do realismo político” – a “proximidade com o existente” – e propõe uma ampla “experimentação institucional”. Gostaria que o senhor desenvolvesse essa distinção. Roberto Mangabeira Unger – Há duas concepções filosóficas da esquerda, hoje. A concepção dominante combina uma valorização do objetivo da igualdade com um conservadorismo institucional. Diz ser fiel ao objetivo da igualdade, mas combina essa fidelidade à igualdade com a aceitação das instituições sociais, econômicas e políticas existentes. Por isso um aparente radicalismo da fé igualitária se enquadra dentro do horizonte restrito do mundo estabelecido. Essa concepção filosófica serve para as duas principais formas aparentes da esquerda que existem no mundo hoje. De um lado há uma esquerda recalcitrante e protetora; ela quer cercear o mercado e a globalização, ainda que não tenha alternativa a eles. E quer cerceá-los para proteger os direitos adquiridos de suas bases históricas, que são sobretudo os operários organizados e sediados nos setores intensivos do capital. A outra esquerda aparente no mundo hoje é uma esquerda rendida e humanizadora, que aceita o mercado e a globalização em sua forma atual e tenta humanizálos por meio de políticas sociais. A mesma concepção filosófica com sua combinação paradoxal de alegado igualitarismo e conservadorismo institucional serve para essas duas esquerdas.

Fotos/Divulgação/José Paulo Lacerda

CULT – E o que o senhor propõe? RMU – Eu proponho uma outra esquerda, uma terceira esquerda, imaginativa e transformadora. Essa outra esquerda insiste em transformar as formas institucionais estabelecidas da economia de mercado, da sociedade civil livre e da democracia política. Ela tem por guia um método e um objetivo. O método é o experimentalismo institucional, colocado no lugar do conservadorismo institucional. É a idéia de que as formas institucionais estabelecidas nos países ricos – nos países que nós brasileiros 13


20

Odilon Moraes


Resenha

(

Livros

Machado de Assis. Sob disfarce, na sala de estar Cabe ao século 21 redescobrir o bruxo do Cosme Velho Welington Andrade

P

Os “olhos de ressaca” de Capitu, no traço de Odilon Moraes

ara o público leitor contemporâneo, Machado de Assis é basicamente um ironista ameno, um hábil criador de sentenças elegantes, cuja filosofia cortante, expressa em tom médio, refinado, faz da leitura de seus romances, contos, crônicas e peças de teatro uma agradável experiência. Um autor que merece figurar em bons dicionários de citações, constantemente reproduzidas em revistas de grande circulação para satisfação imediata dos bem pensantes. Entretanto, tudo leva a crer que poucos leitores sejam capazes de identificar a sofisticada técnica machadiana da “literatura de sala de estar”, onde costuma ocorrer, inclusive, a maior parte de suas tramas. Por meio dela, o autor é capaz, de acordo com a precisa definição de Antonio Candido, de “sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida” (fórmula que sugere um estimulante paralelo com a obra de Kafka, sobre a qual Adorno chamou a atenção para o fato de que nela o chocante não é o monstruoso e sim a naturalidade com que é apresentado), ou investigar 21

Machado: apenas um ironista e criador de sentenças elegantes?

o que está por trás da aparência de normalidade, ou insinuar que o ato excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro, ainda segundo o crítico. Vale lembrar a vasta galeria de personagens do bruxo do Cosme Velho – burgueses de reputação ilibada, transitando tranqüilamente pelos


Fotos/Divulgação/João Caldas

Seleção

) Livros

UMA OUTRA EMOÇÃO O espetáculo Salmo 91 recebeu o Prêmio Shell de melhor texto de teatro em 2007, outros prêmios igualmente importantes e muitos aplausos. O texto foi editado em livro e seu autor, o dramaturgo e jornalista Dib Carneiro Neto, fala sobre o lançamento.

Texto escrito para teatro, em livro, tem a mesma emoção? A mesma, certamente não. É outra a emoção. Para quem viu a peça encenada, é uma forma de usufruir isoladamente de uma das inúmeras linguagens de que é composta a rica arte teatral, no caso, o texto. Para quem não viu a peça, a imaginação tem mais chance de correr solta, exatamente como se dá com a literatura: a magia das palavras atuando em nossa sede de fantasia, em nosso infinito poder de imaginação. E, no caso de Salmo 91, um livro que é a adaptação teatral de outro livro (Estação Carandiru, de Drauzio Varella), há ainda justamente esse adicional atraente (ser uma adaptação). As pessoas podem ler os dois livros e comparar as mesmas histórias escritas em formatos diferentes. Além disso, avalio que ter Salmo 91 editada em livro pode ser um rico instrumento de trabalho e estudo para quem lida com teatro, na medida em que, em primeiro lugar, é um texto adaptado e, portanto, pode ser usado como parâmetro para quem estiver interessado nesse tópico específico, ou seja, o da dramaturgia que toma por base outro

gênero literário e o transforma em teatro. Em segundo lugar, como é uma peça em forma de dez monólogos, imagino que o livro possa ser usado, por exemplo, para testes de atores em seleções de elenco ou em avaliações de alunos em escolas de interpretação: basta escolher um dos dez monólogos, ensaiar e apresentar ao professor, avaliador ou diretor. Tem projetos de escrever outras peças? Minha primeira peça, Adivinhe quem vem para rezar, montada entre 2005 e 2006 por Paulo Autran e Claudio Fontana, com direção de Elias Andreato, acaba de ser montada por grupos no Paraguai e no Chile. Tenho outra adaptação de livro, Depois daquela viagem, de Valéria Piassa Polizzi, em fase de pré-produção para montagem em 2009. Tenho um texto inédito, Paraíso, nas mãos do diretor Gabriel Villela, o mesmo de Salmo 91. E, por encomenda do próprio Gabriel Villela, acabo de aprontar uma nova tradução de Calígula, de Albert Camus, para ser montada ainda em 2008, com os mesmos atores de Salmo 91. 26

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MOVIMENTO MUSICAL


Filosofia

)

Livros

Questão de justiça Em O justo, Paul Ricoeur busca uma extensa compreensão filosófica dos fundamentos jurídicos Eduardo Socha

R

eunidos em dois volumes, os textos de O justo, originalmente lançados em 1995, envolvem questões fundamentais do âmbito jurídico, inscritas contudo no interior de uma rigorosa filosofia do direito, que não se exime da reflexão sobre os momentos de instauração prática do judiciário, com seus tribunais, juízes, cerimonial do processo, e sobretudo com o pronunciamento de sentença, quando finalmente o direito é dito. Ricoeur situa o direito em uma posição privilegiada e ambivalente no espectro social da práxis, a saber, no interstício entre a moral e a política; posição esta que garante aos dispositivos de atuação jurídica uma relevante especificidade filosófica, mas que não teria sido adequadamente avaliada entre os pensadores da moral e da política. Tal constatação não deixa de provocar um certo espanto ao ser declarada por um dos maiores intelectuais franceses do pós-guerra. De fato, já no prefácio do primeiro volume, Ricoeur confessa que uma das mais antigas preocupações como professor de filosofia era “a pouca importância dada em nossa disciplina às questões pertinentes ao plano jurídico, em comparação com a atenção dispensada às questões referentes à moral ou à política” e que “essa negligência surpreende sobretudo por ser relativamente recente”. Mesmo em autores como Hobbes, Maquiavel, Smith, Kant e Hegel, prossegue o autor, o objeto principal de discussão é o elo entre ética e política ou a seqüência moral-direito-política, deixando-se de lado propriamente

a específica questão jurídica. Assim, no primeiro volume, após o exame semântico do conceito de responsabilidade, Ricoeur analisa as instâncias de justiça, desde a interpretação ao ato de julgar, à condenação e reabilitação. Também passa em revista pela teoria de John Rawls, apoiada em bases kantianas de aplicação procedimental do princípio de justiça, e pela relação entre juízo estético, uma das expressões do juízo reflexivo kantiano, e juízo político, presente na filosofia de Hannah Arendt. O eixo deste primeiro volume, como mesmo reconhece o filósofo, é o vínculo entre a idéia de justiça como regra moral e a justiça como instituição. Já no segundo volume, divido em três partes – Estudos, Leituras e Exercícios – Ricoeur concentra-se no adjetivo substantivado – o “justo” – de maior escopo conceitual do que o vínculo presente no primeiro livro. Assim

como em A Memória, a História, o Esquecimento (veja resenha na CULT 124), livro no qual Ricouer estabelece de maneira clara um horizonte teleológico de argumentação – o problema do julgamento e do perdão –, neste volume dedicado ao conceito de “justo” em sua acepção primordial, ou seja, à própria circularidade que une “cada uma das fases da busca ética e moral”, o horizonte está no signo da obrigação moral que realiza a transição entre uma ética fundadora e mais comum e a dispersão de “éticas regionais” – éticas aplicadas a diferentes esferas de ação, por exemplo a ética na medicina, a ética de negócios, a ética do meio ambiente etc. Organizada de maneira prodigiosa, trata-se de uma obra cuja envergadura teórica corresponde, afinal, à ambição de preencher uma importante lacuna no campo discursivo de uma filosofia voltada à dimensão prática de justiça.

O Justo (2 volumes) Paul Ricoeur Tradução: Ivone Benedetti Martins Fontes 500 págs. R$ 75,00

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Liberalismo como moldura da biopolítica Na seqüência do curso Segurança, território, população, ministrado no ano anterior no Collège de France (e publicado recentemente no Brasil), Foucault consolida sua pesquisa voltada à história dos dispositivos de segurança associados ao conceito de “biopolítica”: a racionalização liberal imposta, desde o século XVIII, pelas práticas governamentais sobre todos os aspectos da condição humana, da subjugação dos corpos ao controle populacional. Neste livro, Foucault propõe uma análise da razão governamental que orientou a história do liberalismo, detendo-se em dois exemplos contemporâneos: o liberalismo alemão da metade do século 20 e o liberalismo norte-americano da Escola de Chicago. • Nascimento da Biopolítica Michel Foucault Trad.: Eduardo Brandão Martins Fontes 474 págs. R$ 74,50

Unidade teórica em Nietzsche Em carta a seu editor, em 1886, Nietzsche confessava que sua imersão na “nova literatura”, que então procurava inaugurar, havia lhe imposto como contra-partida um silêncio completo; fato que justificava a ausência de prefácios na edição original de suas obras. Por ocasião da segunda edição dessas mesmas obras, o filósofo prepara então cinco prefácios que, retrospectivamente, deveriam demonstrar a verdadeira coesão de seu pensamento, cuja aparência fragmentária teria levado a uma série de interpretações equivocadas. Neste livro, Henry Burnett analisa cada um dos prefácios, apontando, nas conexões existentes entre as obras, o “solo comum” e implícito que poderia ser consubstanciado no desenvolvimento temático da transvaloração. • Cinco prefácios para cinco livros escritos Henry Burnett Ed. Tessitura 135 págs R$ 25,00 37


Coluna

)

Filosofia

Complexo de Ofélia Se Hamlet fosse mulher Marcia Tiburi

A

encenação de Hamlet dirigida por Aderbal Freire-Filho no teatro da FAAP neste ano de 2008 põe Ofélia, a heroína suicida de Shakespeare, no cenário brasileiro. Bem interpretada pela atriz Georgiana Góes, o mérito simbólico maior dessa figuração de Ofélia é o da preservação do caráter de ninfa das águas da heroína da fragilidade tão bem desenhada por Shakespeare. Ofélia tem um papel muito importante no texto shakespeariano e um pouco de atenção ao seu lugar ilumina o campo da fantasia que uma peça como Hamlet necessariamente provoca, seja na interpretação da vida, da arte ou da subjetividade de cada um. O dedo de Hamlet facilmente toca a ferida da vida, da arte e do eu de cada um de nós. Ofélia é o emblema da precariedade em nós. Hamlet a tem na mão como a caveira. Tem a cada um de nós. Mas precisamos falar mais dessa “ninfa” que move a peça. Um ator nunca faz o que quer com seu personagem, antes atualiza junto a ele suas próprias potências. A direção de Freire-Filho ocorreu no espírito da única fidelidade que é possível haver no teatro, aquela que concerne ao texto em sua atualização para o tempo em que é encenado. Além dela, outra fidelidade bem mais clandestina esteve em cena. A que diz respeito ao fato de que Ofélia é uma jovem nobre dinamarquesa. No espírito da coerência temos nesta encenação uma Ofélia branca, de cabelos castanhos claros, na qual é a delicadeza que dá o tom, e a ingenuidade

emoldurada pela alegria da boa moça que caracteriza, ontem como hoje, um traço fundamental da estética aplicada às mulheres. Temos aí uma estética feminina. É claro que estou a falar de “estética feminina” como estereótipo, como código de uma cultura, de uma classe social ou econômica que faz valer seus valores também no que diz respeito à aparência das mulheres. O feminino define-se como código estético rígido que envolve uma moral, um modo de comportarse, um modo de aparecer que impõe a suavidade, embora haja com total truculência simbólica. Ofélia é personagem totalmente sujeita ao que uma visão patriarcal pode fazer de uma mulher. Diferentemente das heroínas fortes de outras peças de Shakespeare, Ofélia é apenas a parte negativa de Hamlet, a mulher que ele, entre ser e não ser, confuso diante dos horrores familiares a que era submetido, não quis. Ofélia é rejeitada no bojo da loucura teatral e histérica de um outro, o melancólico Hamlet, e sucumbe por não haver, para ela, outra saída. Os olhos patriarcais pousam desde sempre sobre Ofélia, que a eles se sujeita como boa moça. É sempre o que se espera das mulheres. A leitura inevitável é a de que uma boa moça, mesmo enlouquecendo, o deve fazer de modo comportado. Sua loucura tem coreografia mansa e cantante, seu suicídio é suave e deslizante. Quase não é um suicídio. Será, no entanto, apenas a loucura que precede o suicídio pouco voluntário que mostrará o desencanto daquele estereótipo. É 42

a loucura –não se perca de vista que Ofélia enlouquece, Hamlet apenas finge – que inverte a perspectiva e mostra o que há de bizarro na postura da boa moça perdida de si por conta da rejeição e das ofensas de um louco astucioso. A verdade sobre a loucura de ambos é o que se perde. Sabemos apenas que Ofélia morre sem muito propósito. Para garantir a tragédia, Shakespeare precisava matar Ofélia e evitar qualquer chance de um final feliz. Ela complementa a infelicidade de Hamlet como seu complemento menor e mais frágil. “Fragilidade, teu nome é mulher” seria o nome da peça se a protagonista fosse Ofélia. A direção em questão poderia ter pensado uma Ofélia-Moema e enveredado num rigor de atualização pelo caminho brasileiro que envolve as ninfas das águas. Não nos esqueçamos de nossa Ofélia-índia que, lançada nas águas violentas do mar que embala a partida do Caramuru – o “dragão do mar” – de Santa Rita Durão, também morre acidentada-suicidada. Que tais suicídios não sejam corajosos, mas “acidentais”, nos põe diante da pergunta pelo significado da morte de Ofélia em seu nexo com o fato de que ela seja mulher e que deva morrer na água. A pergunta não vem sem a face descarnada tão própria à peça de Shakespeare: a verdade da mulher, o lugar que lhe cabe, é a loucura que faz par com a morte em um retorno que não se dá ao pó. Ofélia morta na água é um emblema auto-referencial. Sabe-se dessa verdade emblemática em si mesma pela cena dos


Reproduçaõ

coveiros a lançar caveiras para fora do chão como que a fazê-las “nascidas”. Já não é a Vênus nascida das águas como em Botticelli que vem apresentar a verdade num mundo que perdeu seu sonho, mas a ninfa que a representa sucumbe à água como sucumbiria à terra da qual nunca, quiçá, deveria ter saído. Que o paralelo da mulher seja com a caveira é evidente quando Hamlet segura a caveira de Yorick e rememora a mulher que se maquia sem saber que tudo é vanitas. O feminino é o sistema da exclusão: feminino é aquilo que existe para ser excluído. O feminino é a isca do estado de exceção: confinar a mulher em um não-ser político pela estética. A cena do afogamento de Ofélia na montagem em questão, cujas águas são simbolizadas por um véu, não poderia ser mais exata na definição do sistema do feminino. Ofélia simboliza todo o ofuscamento que o representa. É por isso que ela está posta no lugar arquitetônico exigido a uma mulher na tragédia. Nicole Loraux foi quem percebeu a existência de um motivo “altamente simbólico” para que uma mulher seja morta nos textos gregos. Seja o sacrifício das virgens, seja o suicídio das esposas, nenhuma mulher pode existir sem seu homem. Ela

serve a uma ordem. Ofélia é a heroína suicidada de um mundo bem posterior, já sem deuses, no qual, no entanto, a ordem da servidão permanece. Não sabemos de sua versão dos fatos. Nem saberemos de seu suicídio: será realmente um acidente, ou será uma fuga da desgraça de desposar um histérico? Talvez, ironicamente, Shakespeare a tenha salvo de algo pior do que a morte. Foi Gaston Bachelard em A água e os sonhos quem definiu a natureza da mais frágil das heroínas de Shakespeare: “A água é a pátria das ninfas vivas, é também a pátria das ninfas mortas. É a verdadeira matéria da morte bem feminina”. Bachelard vê, “desde a primeira cena” entre Hamlet e Ofélia, o príncipe como uma espécie de assassino. O que é lógico de se pensar, pois que tanto maior é o suicídio de Ofélia quanto maior a culpa de Hamlet. Uma morte bem feminina é tão sem virilidade que nem pode ser escolha. Hamlet, para Bachelard, segue “a regra da preparação literária do suicídio –, como se fosse um adivinho que pressagia o destino, sai de seu profundo devaneio murmurando: eis a bela Ofélia! Ninfa, em tuas orações, lembra-te de todos os teus pecados”. Ofélia é a ninfa, a mulher das águas que, a rigor, ainda não é 43

mulher e, se levarmos a sério a hipótese do coveiro que se pronuncia na peça, nem chegou a ser, posto que, quando morta, já não é mulher. Ninfa, ela deverá “morrer pelos pecados de outrem” como diz Bachelard. Morrer como suas antecessoras trágicas, porque não há mulher sem o homem que a assuma. Mas quando uma mulher não se assume como guardiã do feminino, ela já não precisa da prisão simbólica a que, ontem como hoje, define também suicídios simbólicos altamente favoráveis para uma sociedade patriarcal que, ao esperar suicídios, comete assassinatos. Melhor, no entanto, pensar em Hamlet hoje como um psicopompo. Aquele que conduz a uma morte necessária. O complexo de Ofélia que se define pela necessidade que tem uma mulher, sempre em queda nas águas da indefinição da própria identidade, de ser reconhecida por um homem para ser alguém: em tempo, que morra com ela.

marcia.tiburi@terra.com.br


dossiê

)

Pierre Bourdieu

UM ESPO A

valiar o impacto que a sociologia de Pierre Bourdieu (1930-2002) provocou no pensamento do século 20 certamente envolve uma espécie de constrangimento. Em primeiro lugar, porque Bourdieu construiu um enorme corpo teórico, incluindo estudos em quase todos campos de interação social; seja na economia, na religião, na arte, na política, na comunicação ou na educação, suas análises buscaram compreender os fenômenos sociais tanto sob uma perspectiva estrutural, na interposição entre agentes dominantes e dominados em um campo social determinado, quanto sob a perspectiva “concreta” desses mesmos fenômenos, a exemplo das análises empíricas sobre alta-costura, sobre as visitas aos museus na Europa, sobre o mercado imobiliário, sobre o agenda setting no jornalismo, ou até sobre os jogos olímpicos. Ao tentar resumir a multiplicidade de sua produção, em um dossiê de poucas páginas, corre-se o risco portanto das distorções que todo grande pensador pode eventualmente sofrer. Mas a tarefa se torna ainda mais problemática quando sabemos que Bourdieu é um dos autores mais lidos nas ciências humanas. De fato, alguns dos conceitos operacionais criados pelo sociólogo, como “capital cultural”, habitus, “campo” [ver quadro neste dossiê], hoje são colocados em circulação no meio acadêmico como instrumentos indispensáveis para

Índice do Dossiê

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Uma introdução a Pierre Bourdieu

Pela discussão do gosto, Bourdieu denunciou as distorções na produção da cultura e na sua difusão educacional Maria da Graça Jacintho Setton 44

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Articulações inovadoras entre ciência e política A posição política de Bourdieu está diretamente associada aos instrumentos de libertação fornecidos pela pesquisa científica José Sérgio Leite Lopes


ORTE DE COMBATE as diversas práticas sociológicas que não se limitam ao diagnóstico das assimetrias econômicas de classes. Valem para o conhecimento transversal que perpassa desde a medicina social até o jornalismo. Além disso, seu engajamento, suas intervenções como figura marcante no debate público francês e nos movimentos globais contra o neoliberalismo (basta recordar sua participação na greve de 1995 que paralisou o sistema de transportes na França), concederam-lhe uma popularidade controversa e bastante rara entre os intelectuais, sobretudo a partir da década de 70. Na melhor tradição de Zola, Bourdieu acreditava que o intelectual deveria servir aos interesses de uma verdadeira práxis de transformação social, apontando os mecanismos de reprodução de toda dominação simbólica. O papel da sociologia, subsidiária de uma ampla teoria reflexiva, seria o de fornecer então as armas teóricas necessárias para esse desvelamento da realidade e para sua conseqüente transformação. É nesse sentido que “a sociologia é um esporte de combate”, boutade que virou título de um documentário sobre o cotidiano do sociólogo. A originalidade de metodologia de Bourdieu e sua relação com os saberes instituídos, por outro lado, não deixaram de ser alvo de ataques passionais. Afinal, se num primeiro momento soube assimilar o cânone formado por Marx,

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A dinâmica dos meios de comunicação

A sociologia de Bourdieu desmascara os interesses na produção da notícia, mas também suas críticas acadêmicas mais ingênuas Clóvis de Barros Filho

Durkheim e Weber, além de internalizar os aportes teóricos que o estruturalismo oferecia à compreensão das diferentes dinâmicas culturais, nem por isso imunizou as críticas ao aos rígidos estamentos universitários; fato que lhe rendeu severa antipatia entre alguns de seus pares. Assim, apesar das dificuldades de dar conta em poucas páginas de uma obra tão polêmica e multifacetada como a de Bourdieu, o dossiê desta edição privilegiou aqueles aspectos que pelo menos asseguram um panorama consistente de suas idéias principais e de seu ativismo político. Como introdução, Maria das Graças Setton fala sobre a formação do “gosto”, sob a ótica de Bourdieu; José Sérgio Leite Lopes, sobre sua trajetória e participação política; Clóvis de Barros Filho, sobre sua sociologia da comunicação; Ilana Goldstein, sobre a sociologia da cultura; Ana Paula Hey e Afrânio Catani, sobre sua decisiva contribuição para a educação. Em entrevista, Bourdieu afirmou que “atualmente estamos engajados num combate, em defesa de uma civilização, e o Brasil, que sofreu a política neoliberal (...) mas que tem grandes recursos culturais, históricos, pode ser um dos lugares de resistência”. Compreender Bourdieu significaria, portanto, compreender também nosso imperativo de resistência. (Eduardo Socha)

59 Hierarquias da cultura A sociologia da arte de Bourdieu procurou evidenciar a estreita ligação entre política e preferências estéticas Ilana Goldstein

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62 Bourdieu e a educação

Pelo sistema de ensino, as diferenças iniciais de classe são transformadas em desigualdades de destino escolar e em forma específica de dominação Ana Paula Hey e Afrânio Mendes Catani


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Pierre Bourdieu

Pequeno glossário da teoria de Bourdieu Os conceitos de Bourdieu, aqui expostos de maneira esquemática, devem ser compreendidos em sua interdependência, ou seja, na relação de um ao outro. Como adverte o próprio autor, em Réponses: “noções

campo: noção que caracteriza a autonomia de certo domínio de concorrência e disputa interna. Serve de instrumento ao método relacional de análise das dominações e práticas específicas de um determinado espaço social. Cada espaço corresponde, assim, a um campo específico - cultural, econômico, educacional, científico, jornalístico etc -, no qual são determinados a posição social dos agentes e onde se revelam, por exemplo, as figuras de “autoridade”, detentoras de maior volume de capital.

como habitus, campo e capital podem ser definidos, mas somente no interior do sistema teórico que eles constituem, nunca isoladamente.”

capital: ampliando a concepção marxista, Bourdieu entende por esse termo não apenas o acúmulo de bens e riquezas econômicas, mas todo recurso ou poder que se manifesta em uma atividade social. Assim, além do capital econômico (renda, salários, imóveis), é decisivo para o sociólogo a compreensão de capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos), capital social (relações sociais que podem ser convertidas em recursos de dominação). Em resumo, refere-se a um capital simbólico (aquilo que chamamos prestígio ou honra e que permite identificar os agentes no espaço social). Ou seja, desigualdades sociais não decorreriam somente de desigualdades econômicas, mas também dos entraves causados, por exemplo, pelo déficit de capital cultural no acesso a bens simbólicos. estratégia: em Coisas Ditas, Bourdieu afirma que “a noção de estratégia é o instrumento de uma ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente, suposta pelo estruturalismo (que recorre por exemplo à noção de inconsciente) [...] Ela é produto do sentido prático.” habitus: sistema aberto de disposições, ações e percepções que os indivíduos adquirem com o tempo em suas experiências sociais (tanto na dimensão material, corpórea, quanto simbólica,

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cultural, entre outras). O habitus vai, no entanto, além do indivíduo, diz respeito às estruturas relacionais nas quais está inserido, possibilitando a compreensão tanto de sua posição num campo quanto seu conjunto de capitais. Bourdieu pretende, assim, superar a antinomia entre objetivismo (no caso, preponderância da estruturas sociais sobre as ações do sujeito) e subjetivismo (primazia da ação do sujeito em relação às determinações sociais) nas ciências humanas (ver estratégia). Segundo Maria Drosila Vasconcelos, trata-se de “uma matriz, determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas.” papel da sociologia: para Bourdieu, “a sociologia não mereceria talvez nenhuma hora de atenção se tivesse como objetivo apenas descobrir os fios que movem os indivíduos que ela observa, se ela esquecesse que tem compromisso com os homens, justamente quando estes, à maneira das marionetes, participam de um jogo cujas regras ignoram, enfim, se ela não tivesse como tarefa restituir o sentido dos próprios atos destes homens” (Le bal des célibataires, inédito no Brasil) sentido prático: origem das práticas rituais que estabelecem a coerência parcial em um determinado campo. violência simbólica: termo que explicaria a adesão dos dominados em um campo: tratase da dominação consentida, pela aceitação das regras e crenças partilhadas como se fossem “naturais”, e da incapacidade crítica de reconhecer o caráter arbitrário de tais regras impostas pelas autoridades dominantes de um campo. (Eduardo Socha)


Uma introdução a Pierre Bourdieu Pela discussão do gosto, Bourdieu denunciou as distorções na produção da cultura e na sua difusão educacional Maria da Graça Jacintho Setton

C

reprodução

onsiderado um dos maiores sociólogos de língua francesa das últimas décadas, Pierre Bourdieu é um dos mais importantes pensadores do século 20. Sua produção intelectual, desde a década de 1960, estende-se por uma extensa variedade de objetos e temas de estudo. Embora contemporâneo, é tão respeitado quanto um clássico. Crítico mordaz dos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais, Bourdieu construiu um importante referencial no campo das ciências humanas. No entanto, mesmo sendo reconhecida pela originalidade, a obra de Bourdieu é objeto de grande controvérsia. A maior parte de seus críticos, numa leitura parcial de seus trabalhos, classifica-o como um teórico da reprodução das desigualdades sociais. Não obstanPierre Bourdieu: a sociologia é uma ciência que incomoda te, a reflexão de Bourdieu se destaca por uma singularidade. Para ele, os condicionamentos materiais e simbólicos agem sobre nós (sociedade e indivíduos) numa complexa relação de interdependência. Ou seja, a posição social ou o poder que detemos na sociedade não dependem apenas do volume de dinheiro que acumulamos ou de uma situação de prestígio que desfrutamos por possuir escolaridade ou qualquer outra particularidade de destaque, mas está na articulação de sentidos que esses aspectos podem assumir em cada momento histórico. Para o autor, a sociologia deve aproveitar sua vasta herança acadêmica, apoiar-se nas teorias sociais desenvolvidas pelos grandes pensadores das ciências humanas, fazer uso de técnicas estatísticas e etnográficas e utilizar procedimentos metodológicos sérios e vigilantes para se fortalecer como ciência. Bourdieu fez de sua vida acadêmica e intelectual uma arma política e de sua sociologia uma sociologia engajada, profundamente comprometida com a denúncia dos mecanismos de dominação em uma sociedade injusta. De acordo com sua perspectiva, a sociedade ocidental capitalista é uma sociedade hierarquizada, 47


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Pierre Bourdieu

A dinâmica dos meios de comunicação A sociologia de Bourdieu desmascara os interesses na produção da notícia, mas também suas críticas acadêmicas mais ingênuas Clóvis de Barros Filho

Reprodução

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I

nfelizmente o sociólogo Pierre Bourdieu legou poucos estudos e reflexões sobre os meios de comunicação. Apesar de uma produção abrangente que discute desde problemas relativos à estrutura do ensino (A reprodução), passando por complicadas questões sobre o gosto, a arte (A distinção, As regras da arte), e até mesmo tratando questões ligadas ao mercado imobiliário (As estruturas sociais da economia), Bourdieu pesquisou muito pouco sobre a comunicação. Seu principal texto sobre o assunto foi publicado no Brasil, em livro, intitulado Sobre a televisão. Texto este muito aquém de seus outros trabalhos. Tanto no número de páginas, quanto no rigor de pesquisa e na profundidade do assunto. Coube então aos seus discípulos, engajados no campo da comunicação, usar as ferramentas oferecidas por ele para o estudo da mídia. Partindo dos referenciais teóricos de Bourdieu, podemos afirmar que o gosto, determinante de nossas inclinações aos atos de consumo midiático, tem uma origem social. Assim como a própria produção desta. E, por essa razão, ambas devem ser objetos de investigação sociológica. Sociologia do consumo midiático. Sociologia de sua produção. Problemas intrínsecos para quem faz uso dessa maneira de ver o mundo. Com base em A distinção (1975), de Bourdieu, podemos constatar que tanto a produção como o consumo de produtos ligados aos meios de comunicação de massa não apenas possui uma origem social. Ela também discrimina e hierarquiza seus agentes. Classifica socialmente. Diferencia o leitor da revista CULT da leitora da

revista Contigo, e exclui prováveis consumidores de revistas pornográficas que utilizam papel couché fosco. O consumo de mídia é, portanto, objeto de distinção social. Assim como também discrimina os agentes sociais que trabalham nesses meios, bem como seus textos.

Teoria sobre dominação

A definição do que é um meio de comunicação legítimo é, assim, uma questão de primeira importância para todos os agentes do grupo social. Afinal, alguns meios dominantes, como a Rede Globo e a Editora Abril, por exemplo, pretendem conservar o status quo midiático, enquanto outros, como a Rede Record e SBT, editoras periféricas e portais de internet apostam na subversão da ordem estabelecida, isto é, da relação de forças que estrutura o espaço da comunicação. Por isso, essa relação de forças acaba se objetivando numa relação de valores. Afinal, toda a vida organizada em sociedade, a menos que se recorra à violência física, deve ser reconhecida e aceita como legítima. Por isso, a sociologia que estuda os meios de comunicação, como proposto por Bourdieu, é indissociável de sua teoria sobre a dominação. É pela demanda de seus produtos (vulgo Ibope) e pelas manifestações dos telespectadores que os dominantes asseguram suas posições. Abre-se, aqui, todo um campo de análise dos conflitos e da violência simbólica em jogo pelos meios, na qual os dominados participam da construção de legitimidade imposta, aceitando suas posições e ratificando um tipo dominante de se fazer produtos midiáticos. Mas se a mídia é um objeto

Redação do jornal inglês The Daily Telegraph: a produção da notícia não decorre de um hedonismo naïf , como acreditam alguns pensadores pós-modernos

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sociológico que recentemente se impõe, constitui-se num objeto de investigação particularmente dramático para o sociólogo. O consumo midiático que, de certa forma, o traduz fenomenicamente, é um imenso depósito de pré-construções naturalizadas, portanto ignoradas enquanto tais no cotidiano, que funcionam como instrumentos habituais de construção. Todas as categorias comumente empregadas na identificação de suas tendências, idade – jovens e velhos –, sexo – homens e mulheres –, renda – ricos e pobres –, são contrabandeadas do senso comum, pelo discurso científico, sem muita reflexão. Alem disso, o padrão de quem avalia um produto televisivo, por exemplo, é o padrão enraizado pela trajetória social desse avaliador nas suas experiências com os diversos programas de televisão com que teve contato desde a infância. Essas categorias de análise do produto midiático fazem parte de todo um trabalho social de construção de grupo e de uma representação desse grupo infiltrada na ciência do mundo social. É o que explica tanta facilidade de adaptação. Facilidade exagerada, talvez. Aceitas as categorias, listas e mais listas de dados estão à disposição do pesquisador para confirmação ou refutação parcial. A investigação sobre as inclinações de audiência deste ou daquele nicho – respeitados os critérios estatísticos de amostragem – ganham aura de constatação científica. A indiscutibilidade desse tipo de resultado legitima procedimentos e suas premissas. Encobre seu caráter arbitrário. Isso porque as escolhas técnicas, as mais aparentemente empíricas, são inseparáveis das escolhas de construção de


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Pierre Bourdieu

Bourdieu e a educação Pelo sistema de ensino, as diferenças iniciais de classe são transformadas em desigualdades de destino escolar e em forma específica de dominação Ana Paula Hey e Afrânio Mendes Catani

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partir dos anos 1960, e durante quase 45 anos, Pierre Bourdieu produziu um conjunto de análises no âmbito da sociologia da educação e da cultura que influenciou decisivamente algumas gerações de intelectuais, obtendo o reconhecimento de pesquisadores, estudantes e ativistas que atuam em várias outras esferas da sociedade. Em “Uma sociologia da produção do mundo cultural e escolar”, introdução a Escritos de educação (1998), que reúne 12 textos do sociólogo francês, Maria A. Nogueira e Afrânio Catani escrevem o seguinte: “Ao mesmo tempo em que colocava novos questionamentos, sua obra fornecia respostas originais, renovando o pensamento sociológico sobre as funções e o funcionamento social dos sistemas de ensino nas sociedades contemporâneas, e sobre as relações que mantêm os diferentes grupos sociais com a escola e com o saber. Conceitos e categorias analíticas por ele construídos constituem hoje moeda corrente da pesquisa educacional, impregnando boa parte das análises brasileiras sobre as condições de produção

e de distribuição dos bens culturais e simbólicos, entre os quais se incluem os produtos escolares”. Bourdieu, em seus escritos, procurou questionar, nas sociedades de classes, temática que persegue muitos intelectuais: a compreensão de como e por que pequenos grupos de indivíduos conseguem se apoderar dos meios de dominação, permitindo nomear e representar a realidade, construindo categorias, classificações e visões de mundo às quais todos os outros são obrigados a se referir. Compreender o mundo, para ele, converte-se em poderoso instrumento de libertação – é esse procedimento que ele realiza, dentre outros domínios, no educacional. A cultura vem a ser um sistema de significações hierarquizadas, tornando-se um móvel de lutas entre grupos sociais cuja finalidade é a de manter distanciamentos distintivos entre classes sociais. A dominação cultural se expressa na fórmula segundo a qual a cada posição na hierarquia social corresponde uma cultura específica (elitista, média, de massa), caracterizadas respectivamente pela distinção, pela 62

pretensão e pela privação. Definida por gostos e formas de apreciação estética, a cultura é central no processo de dominação; é a imposição da cultura dominante como sendo “a cultura” que faz com que as classes dominadas atribuam sua situação subalterna à sua suposta deficiência cultural, e não à imposição pura e simples. O sistema de ensino desempenha papel de realce na reprodução dessa relação de dominação cultural, funcionando ainda, para Bento Prado Jr., “como chancela de diferenças culturais e lingüísticas já dadas, antes da escolarização, no quadro da socialização primeira, que é necessariamente diferencial, segundo a inscrição das famílias nas diferentes classes sociais. (...) O código lingüístico da burguesia (com seus cacoetes, idiotismos, sua particularidade) será encontrado, pelos futuros notáveis, nas salas de aula, como a linguagem da razão, da cultura, numa palavra, como elemento ou horizonte da Verdade. O particular é arbitrariamente erigido em universal e o ‘capital cultural’ adquirido na esfera doméstica, pelos filhos da burguesia,


reprodução

“Tratando todos os educandos como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais de cultura”

lhes assegura um privilégio considerável no destino escolar e profissional. No Destino, enfim” (“A Educação depois de 1968”, em Os Descaminhos da Educação, ed. Brasiliense).

A escola como reprodutora da dominação

A função do sistema de ensino é servir de instrumento de legitimação das desigualdades sociais. Longe de ser libertadora, a escola é conservadora e mantém a dominação dos dominantes sobre as classes populares, sendo representada como um instrumento de reforço das desigualdades e como reprodutora cultural, pois há o acesso desigual à cultura segundo a origem de classe. O filósofo idealista Alain (Émile Chartier, 1868-1951) foi professor durante décadas na Khâgne (classes preparatórias às Escolas Normais nas áreas de letras e filosofia, onde são recrutados os intelectuais de maior prestígio no campo intelectual francês) do Lycée Henri IV (Paris) tendo, dentre centenas de outros alunos, Raymond Aron, Simone Weill e Georges Canguilhem. Em 1932, Alain

escrevia em Propos sur l´éducation – Pédagogie enfantine, de maneira apologética, que “se pode perfeitamente dizer que não há pensamento a não ser na escola”. Bourdieu construirá sua trajetória analítica no domínio da sociologia da educação procurando opor-se a um idealismo como o preconizado por Alain, em que a reflexão é destituída de qualquer fundamento histórico, como na velha tradição francesa. Em artigo de 1966, “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”, rompe com as explicações fundadas em aptidões naturais e individuais e critica o mito do “dom”, desvendando as condições sociais e culturais que permitiriam o desenvolvimento desse mito. Desmonta, também, os mecanismos através dos quais o sistema de ensino transforma as diferenças iniciais – resultado da transmissão familiar da herança cultural – em desigualdades de destino escolar. Explora a relação com o saber, em detrimento do saber em si mesmo, mostrando como os estudantes provenientes de famílias desprovidas de 63

capital cultural apresentarão uma relação com as obras da cultura veiculadas pela escola que tende a ser interessada, laboriosa, tensa, esforçada, enquanto para os alunos originários de meios culturalmente privilegiados essa relação está marcada pelo diletantismo, desenvoltura, elegância, facilidade verbal “natural”. Ao avaliar o desempenho dos alunos, a escola leva em conta, conscientemente ou não, esse modo de aquisição e uso do saber. Segundo Bourdieu, “para que sejam desfavorecidos os mais favorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”. Bourdieu constrói seu esquema analítico relativo ao sistema escolar e às relações não explícitas que o


Oficina literária

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Élida Lima & Rodrigo Barata

Jogos de outono Élida Lima nos reconhecemos quando caiu o outono. não havias trazido o teu casaco. eu estava bem agasalhada, mas ainda não era preparada para o fri... qualquer frio. eu queria esfregar teus ombros estreitos, esquentar o teu nariz nos meus......... largos planos. não o fiz. minha viagem supersônica que não sabia respeitar o orgânico das coisas. mas te entreguei sem convidar para os meus jogos. não, as minhas brincadeiras de aquecer. eu ia precisar do teu calor. foi a primeira vez que o outono caiu para mim. o outono foi a primeira estação que eu senti cair.

Furibundo Rodrigo Barata estava a andar ao sabor de suas botas, ao lavor de suas pernas longelíneas, ao compasso desritmado de seus braços, ao enevoar de seus óculos, como um palhaço trágico que acabara de fugir de um circo em chamas, para onde vão estes palhaços trágicos, se nem as cinzas do espetáculo eles carregam em si?

Élida Lima, paraense, é publicitária Rodrigo Barata, paraense, é professor de literatura

A Oficina Literária é uma seção exclusivamente voltada para a publicação de inéditos. Os interessados em publicar seus textos – que serão avaliados pela equipe da revista e não devolvidos – devem enviar seus originais pelo e-mail: oficinaliteraria@revistacult.­com.br ou pelo correio para: Revista Cult – Oficina Literária, Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar – Paraíso – São Paulo, SP – CEP: 01533-070. Os textos devem ser encaminhados inseridos no corpo da mensagem e não anexados. O tamanho não pode ultrapassar três mil caracteres com espaço. O envio de qualquer trabalho para a Oficina Literária implica o reconhecimento do direito não-exclusivo de reprodução da obra pela revista. A autoria e o conteúdo dos textos são de responsabilidade única e exclusiva do participante, devendo ele observar a legislação autoral vigente. Ao encaminhar o trabalho, os interessados devem fornecer os seguintes dados: nome completo, endereço, telefone para contato e e-mail. A Editora Bregantini, ao receber os inéditos, está autorizada pelos autores a publicar o material, de forma integral ou resumida, na Cult ou no site da revista.

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Banco do Brasil. 200 anos fazendo o futuro.

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