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ANO 11 • R$ 9,90 • www.revistacult.com.br
ENTREVISTA
André Comte-Sponville: “É preciso resgatar as idéias de dignidade e fidelidade” REPORTAGEM
Mercado editorial Um ano de conquistas
DOSSIÊ
Deus no pensamento contemporâneo
PROGRAMAÇÃO NOV./DEZ. 2008
RIO DE JANEIRO
Av. Almirante Barroso, 25 – Centro – (21) 2544 4080
EXPOSIÇÃO Chá no Saara
De 18 de novembro de 2008 a 25 de janeiro de 2009 Terça a sábado, das 10h às 22h Domingo, das 10h às 21h Classificação: livre Entrada franca Galeria 1
CURITIBA
Rua Conselheiro Laurindo, 280 – Centro – (41) 2118 5409
MÚSICA Paulinho Moska
De 5 a 7 de dezembro de 2008 Sexta e sábado, às 21h Domingo, às 19h Classificação: livre Teatro da CAIXA Cultural
SALVADOR
Rua Carlos Gomes, 57 – Centro – (71) 3322 0219
EXPOSIÇÃO O Ritmo em Imagens – O Samba de Roda Baiano De 4 de novembro a 21 de dezembro de 2008 Terça a domingo, das 9h às 18h Entrada franca Galeria Arcos
SÃO PAULO
Av. Paulista, 2.083 – Cerqueira César – (11) 3321 4400
EXPOSIÇÃO Ensaio sobre o Feminino
De 6 de dezembro de 2008 a 18 de janeiro de 2009 Terça a sábado, das 9h às 21h, e domingo, das 10h às 21h Classificação: livre Entrada franca Galeria da Paulista
BRASÍLIA
SBS Quadra 4, Lotes 3/4 – Asa Sul – (61) 3206 9450
EXPOSIÇÃO
Terça a domingo, das 9h às 21h Classificação: livre Entrada franca
Franz Weissmann – Imagens da Imensidão De 15 de outubro a 23 de novembro de 2008 Galeria Principal
Fotografias de Edward Curtis e Claudia Andujar De 4 de dezembro de 2008 a 18 de janeiro de 2009 Galeria Principal e Píccolas
Acesse o site www.caixa.gov.br/caixacultural e conheça a programação completa.
(
ÍndiCe
Divulgação/Sylvie thybert
6 do leitor 8 cultura em movimento
Charles Gavin comenta o livro 300 discos importantes da música brasileira
14 entrevista
André Comte-Sponville fala sobre seu percurso intelectual e a necessidade em renovar a espiritualidade
22 seleção cult
Cultura para presente
30 reportagem
maior número de leitores e eventos literários aquecem mercado do livro
34
literatura pedro Juan Gutiérrez fala sobre literatura, arte e sexo
38 artigo
A experiência religiosa entre os jovens brasileiros
42 música
norman lebrecht reconta a trágica saga da família Wittgenstein
66 oficina literária
reprodução
44 dossiê
A persistência de Deus por Juvenal Savian Filho Deus no pensamento de Bergson por Franklin Leopoldo e Silva Da religiosidade à responsabilidade por Rafael Haddock-Lobo Um argumento negligenciado por Alberto Augusto Perazzo A Filosofia Analítica da religião por Roberto H. Pich
editorial
)
“Pouca ciência afasta de Deus. Muita, a Ele reconduz.” Louis Pasteur Editora - Daysi M. Bregantini Diretor de Redação - Marcos Fonseca Editor de Filosofia - Eduardo Socha Editor assistente - Wilker Sousa Site - Vanessa Carvalho Pesquisa - Mariana Fonseca Repórter - Daniel Marques Imagem de capa - Salvator mundi, de Antonello de Messina, 1475 Diretor de arte - Maurício Francischelli Editor de arte - Fábio Guerreiro Revisora - Ana Cristina Teixeira Colaboradores desta edição - Abílio M. Godoy, Alberto Augusto Perazzo, Franklin Leopoldo e Silva, Gabriel Bueno Brito de Oliveira, Gunter Axt, Jorge Cláudio Ribeiro, Juvenal Savian Filho, Rafael Haddock-Lobo, Renato Telles e Silva, Roberto H. Pich Departamento Financeiro - Ana Lúcia P. Silva e-mail: financeiro@editorabregantini.com.br Departamento administrativo - Dejair Bregantino Assinaturas - Tel.: (11) 3385-3385 e-mail: assinecult@editorabregantini.com.br Relações Públicas - Flávia Moreira e-mail: eventos@revistacult.com.br Publicidade em São Paulo: Gilberto R. Rala (executivo de negócios) e-mail: gilberto@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385-3385 Publicidade em Brasília: Front Comunicação - Pedro Abelha e-mail: pedroabelha@terra.com.br Tel.: (61) 3321-9100 Gráfica - Parma Distribuição exclusiva no Brasil (Bancas) - Fernando Chinaglia CULT - REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA é uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 - 10º andar Paraíso - São Paulo - SP - CEP 01533-070 Tel.: (11) 3385-3385 - Fax: (11) 3385-3386 CULT ON LINE www.revistacult.com.br Matérias e sugestões de pauta: redacao@revistacult.com.br Espaço CULT espacocult@revistacult.com.br
Na origem da Criação, escreveu o filósofo Jean Guitton, não há acontecimento aleatório, não há acaso, mas um grau de ordem infinitamente superior a tudo aquilo que podemos imaginar: ordem suprema que regula as constantes físicas, as condições iniciais, o comportamento dos átomos e a vida das estrelas. Poderosa, livre, infinitamente existente, misteriosa, implícita, invisível, ela está ali, eterna e necessária, por trás dos fenômenos, acima do Universo, mas presente em cada partícula. Tudo o que nos cerca hoje, desde o espetáculo do sol até o perfume das flores, tudo isso existia já no germe dos primórdios: o Universo sabia que, em sua hora, o homem viria. Não aparecemos assim, um belo dia, porque um par de dados cósmicos rolou para o lado bom. A vida e a inteligência não aparecem no Universo em conseqüência de acidentes, nos quais estaria ausente qualquer finalidade. O Universo, em sua imensa complexidade, e apesar de suas aparências hostis, é feito para gerar vida, consciência e inteligência. Matéria sem consciência não é senão ruína do Universo. Deus é o Criador e nos fez à sua própria imagem. Isso é uma questão de fé. São Tomás de Aquino exerce uma influência tão profunda no pensamento contemporâneo porque foi o primeiro que postulou uma harmonia entre o que se crê e o que se sabe, entre o ato de fé e o ato de saber. O resto é vertigem filosófica. Neste dossiê, o último do ano, a discussão é a nossa própria existência. “O Universo é uma máquina de fazer deuses...” Foi o último suspiro filosófico de Henri Bergson. Mas Deus é Um. A revista CULT circulou em 2008 com edições que hoje estão catalogadas em bibliotecas e universidades e são utilizadas como material de pesquisa. O conteúdo da CULT é apresentado em teses acadêmicas e trabalhos de conclusão de curso. A nossa proposta editorial de oferecer ao leitor dossiês que abordam temas relevantes, escritos por grandes especialistas, e de tratar de fatos culturais genuínos é reconhecida. Não somos chancelados por uma mega-editora, ao contrário. Mas - e isso é facilmente comprovável - a CULT é a revista mais indicada, lida e discutida dentro das escolas. Ninguém a joga fora depois que lê. O que distingue uma revista de qualidade é que ela é essencial ao conhecimento. E isso é uma questão de fé. Agradecemos aos nossos leitores e desejamos amor e paz em 2009. Daysi Bregantini daysi@revistacult.com.br
ISSN 1414707-6 – Nº 131 – DEZEMBRO/2008 – ANO 11
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CCJ
apresenta
“Hadassah, do esboço ao vitral” de Marc Chagall
© Marc Chagall, La tribu de Gad, 1959-1960, licenciado por AUTVIS, Brasil, 2008.
© Marc Chagall, La tribu de Lévi, 1959-1960, licenciado por AUTVIS, Brasil, 2008.
© Marc Chagall, La tribu de Benjamin, 1959-1960, licenciado por AUTVIS, Brasil, 2008.
Até 15 de fevereiro de 2009 Realização
Organização
Apoio Cultural
Centro da Cultura Judaica | R. Oscar Freire, 2500 - Sumaré | Tel. (11) 3065-4333 | www.culturajudaica.org.br
do leitor
) DOSSIÊ - GOETHE Fui procurar a revista nas bancas e comprei três, porque quero dar de presente para dois colegas, também professores. É emocionante ver que Goethe está na capa de uma revista, pois isso significa que muita gente terá acesso à sua imensa obra. Quero parabenizar a CULT por preparar um dossiê absolutamente perfeito. Goethe nas bancas! Esse dia, quem diria, chegou. Bernardo A. R. Alves, pelo site Parabéns à revista CULT pela responsabilidade atribuída à professora Magali Moura (autora do texto “As razões de Werther”) que, como esperava, deu um show! Antonio Carlos Poerner, pelo site Parabéns pela apresentação do dossiê sobre Johan Wolfgang von Goethe! Ilona Rechlin (Instituto Goethe), por e-mail O amor não correspondido, as desilusões, os sonhos e a esperança fazem deste poeta o orgulho da Alemanha. É um prazer para nós, leitores e aprendizes da paixão goethiana! Joaquim Mattar, pelo site Nunca, em toda a minha vida, imaginei um dia ler sobre Goethe na internet. Eis
RESULTADOS DO TESTE CULT: Edição 130 A revista CULT premia com um exemplar do livro Os sofrimentos do jovem Werther, de J. W. Goethe, cada um dos dez primeiros participantes do teste da edição anterior sobre o ícone da literatura alemã. Os vencedores têm até trinta dias para retirar o prêmio na sede da revista (Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar, Paraíso, São Paulo/SP), de segunda a sexta, das 9h às 18h. Confira os nomes:
que abro o computador e me deparo com o texto “As razões de Werther”, da professora Magali Moura. Precioso. Um domingo inesquecível. Antenor V. Salinas, pelo site Parabéns pelo dossiê: está muito interessante; todos os artigos estão bem escritos, claros e objetivos; felizmente, sem aqueles “tratados de filosofia do penetral”, como diria o Suassuna. Aliás, gostaria muito de ver mais dossiês sobre personagens do mundo literário; o próprio Suassuna seria uma sugestão, ou o Italo Calvino, com um bom artigo, dentre outros, sobre o grupo Oulipo. O Francisco Bosco é uma das melhores coisas na revista; sua coluna é sempre a primeira coisa que eu leio. Mas, nessa edição, creio que ele se superou! É raro ver uma combinação tão feliz de ensaio e literatura com tal grau de síntese e beleza. Felipe Vasconcelos, por e-mail ENTREVISTA MINISTRO JUCA FERREIRA Gostei da entrevista. Parece que, enfim, temos um ministro dedicado. Vamos conferir. Maria Regina M. de A. Prado, pelo site Ministro Juca Ferreira, atenção: nós confiamos em você! Claudia M. D. Pereira, pelo site
• Eric Ferreira Dantas • Juliana Alves • Guaraci Quinto • Osvaldo Eduardo • Flávio Carlos Pagliuca • Gabriel Camargo • Isabel Cristina Bava • Wagner Santos Ferreira • Rodrigo Oliveira • Silvio Medeiros
As cartas devem ser encaminhadas para o e-mail cartas@revistacult.com.br ou para o endereço: Praça Santo Agostinho, 70 - 10º andar - Paraíso - São Paulo - SP - CEP 01533-070 6
A
HB
I CONGRESSO de
JORNALISMO
CULTURAL 4 a 8 de maio de 2009 das 10h às 17h Os caminhos do Jornalismo Cultural As projeções indicam que o mercado mundial de bens culturais vai crescer o dobro do PIB global nos próximos 10 anos e o Brasil é um dos líderes desse crescimento. O projeto visa promover a reflexão e o debate sobre o pensamento contemporâneo, as várias identidades culturais e o espaço nas publicações para a difusão dessa diversidade. As palestras serão ministradas por profissionais reconhecidos no meio acadêmico e ícones do jornalismo cultural. A programação inclui painéis de crítica musical, literatura, cinema, televisão, internet, teatro. O desenvolvimento da linguagem, pauta, edição e a formação do jornalista cultural.
realização:
espaço revista cult
V U T
Cultura em Movimento
) Divulgação
POR QUE VALE O INGRESSO? O Centro Cultural Banco do Brasil inaugura, a partir de 17 de dezembro, a mostra “Estratégia do sonho: o primeiro cinema de Bertolucci” e exibirá 12 filmes da fase inicial da carreira de Bernardo Bertolucci, cineasta italiano que influenciou uma geração de artistas. O curador Joel Pizzini atendeu à revista CULT e elaborou uma breve explicação do por quê as pessoas deveriam presenciar a retrospectiva do diretor.
Bernardo Bertolucci, referência para gerações de cineastas
características ser épico e intimista ao mesmo tempo. Outro aspecto, que será inclusive debatido em uma mesa de discussão em São Paulo, é como Bertolucci teve uma sintonia muito fina com o Cinema Novo. Recentemente, ele declarou que era fã do cinema brasileiro: ao assistir Deus e o diabo na terra do sol, em Cannes, ele classificou Glauber Rocha como um dos quatro maiores diretores do cinema de vanguarda. O cinema de Bertolucci proporciona, além da reflexão, o prazer estético. Era próprio da época ter a visão do sonho, de buscar um sentido maior para as ações da vida por meio do cinema. E isso é encantamento e sensibilidade. Me interessa muito esse tipo de projeto, pois é uma forma de reatar com o melhor da nossa tradição. Os filmes de Bertolucci são atemporais, uma vez restaurados e colocados em condições de exibição, são belíssimos em qualquer momento. O título da mostra, “Estratégia do sonho”, já reflete como esse tipo de filme tem um poder onírico muito forte: é a política e a poética finalmente juntas.”
Divulgação
“A possibilidade de ver filmes da primeira fase da obra de Bertolucci, como La commare secca até o La luna, portanto que cobre o período de 1972 a 1979, é praticamente inédita. Outro aspecto é a qualidade da exibição, em película e no formato de 35 mm. Com a qualidade preservada, é possível identificar que esses longas têm como principais
Cena do filme La luna, de 1979
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Divulgação
O melhor da música brasileira Aficionado pela história da música popular, o baterista e pesquisador Charles Gavin conta como foi lançar uma obra essencial, e polêmica, para analisar os discos que são referências para qualquer colecionador. O livro 300 discos importantes da música brasileira traz artistas reconhecidos e outros que beiram o esquecimento, com fotos inéditas e resenhas críticas. CULT - Como você avalia o projeto de resgatar a história da música brasileira? Charles Gavin - Não só eu, mas as outras pessoas que também trabalharam na criação deste livro, como o Carlos Calado, o Tárik de Souza e Arthur Dapieve têm a mesma necessidade de passar para frente aquilo que aprendeu. O 300 discos é algo completamente diferente. É mais repleto de textos e envolve escolhas polêmicas. Qualquer lista, aliás, é polêmica, pois sempre faltará algum determinado objeto. Por isso que eu acho que uma iniciativa como essa faz a diferença. É importante resgatar, falar sobre obras antigas e sobre a memória da música nacional. Um grande benefício disso tudo é melhorar nossa própria auto-estima do ponto de vista coletivo. É uma forma de mostrar coisas que nós devemos nos orgulhar. CULT - Você ficou com a sensação de ter deixado de fora muitos discos importantes? CG - Senti como tivesse deixado vários de fora (risos). Embora o livro tenha três discos do Jorge Ben, tive muita vontade de colocar mais. Um artista como ele teria toda a sua discografia em um livro como este, mas foi possível colocar aquilo que é absolutamente essencial. No final do processo, você acaba refletindo sobre quantas injustiças foram realizadas durante as escolhas. Fatalmente sofreremos críticas por ter deixado um ou outro álbum de fora. Será inevitável e eu tenho tranqüilidade em lidar com esse tipo de crítica. 9
CULT - Algum disco que não queria colocar? CG - Não exatamente com algum específico, mas desde o começo eu achava que não deveríamos ampliar nossa pesquisa até o ano de 2007. E dentro dessa mesma discussão, tivemos que decidir sobre algo bastante polêmico: qual disco do funk carioca seria importante colocar no projeto? Confesso que no primeiro momento eu questionei essa idéia. Não que eu não goste de funk, mas à época eu achei estranho misturar bossa nova, samba e outros estilos. O Tárik de Souza respondeu que a idéia era exatamente essa, misturar todos esses estilos e dar um painel completo da história da música brasileira. Eu fui rapidamente convencido por esse argumento. CULT - A oportunidade de encontrar esses discos na internet é importante? CG - Acho que essa questão tem dois lados diferentes. A facilidade de você encontrar na internet um disco do Zé Ramalho, por exemplo, que não é mais encontrado em lojas é fantástica. O grande problema é que as pessoas baixam discos na internet que raramente trazem informações sobre as músicas, não trazem as capas dos discos – algo muito importante para o conceito de álbum. Essa falta de informação é algo que considero perigoso. Eu sou de uma geração do “disco”, que tem seu Lado A e seu Lado B. É uma maneira de ouvir música completamente diferente da de hoje, em que a pessoa solta o play no computador enquanto faz seus trabalhos diários. CULT - Quanto de patrocínio vocês captaram para o livro e por que as vendas somente na Livraria Cultura? CG - Para se ter uma idéia de quantos reais são necessários para viabilizar a produção do livro, é preciso analisar a que preço ele será vendido. Os 300 discos será vendido a R$ 230, somente na Livraria Cultura. Ele foi rodado em uma das melhores gráfica do país, que é a Pancron. É um livro de arte extremamente caro e está sendo vendido abaixo do preço de custo. A distribuição foi dividida em três partes. Uma é destinada ao patrocinador, que faz o que ele bem entende com o livro. A segunda, mínima, é para eu distribuir entre jornalistas que participaram da criação, além dos músicos citados. A terceira é destinada ao projeto Sou da Paz, que fará a venda dos produtos por meio da Livraria Cultura e terá toda a renda utilizada em trabalhos sociais. Por que realizar a venda dessa maneira? Porque esse livro já foi pago com dinheiro público, como incentivo da Lei Rouanet.
entrevista
)
André Comte-Sponville
Cético, espiritual e popular Figura consagrada na mídia, André Comte-Sponville enfrenta os riscos de popularizar a filosofia dos antigos sem reduzir a precisão conceitual Eduardo Socha
Divulgação/Sylvie Thybert
“O
niilismo faz o jogo da barbárie”, afirma André Comte-Sponville, 56, um dos filósofos mais populares e respeitados hoje, na França, cuja obra já foi traduzida para mais de 20 idiomas. Na contra-corrente de escritores populares que tematizam o problema da religião no mundo contemporâneo, mas que participam de uma cruzada radical e militante pelo ateísmo – figuras como Michel Onfray, Christopher Hitchens e Richard Dawkings – Comte-Sponville opta pelo meio-termo e defende um “ateísmo fiel”, uma espiritualidade forte porém contrária à idéia transcendente de Deus, uma espiritualidade guiada apenas pelas virtudes e pela sabedoria da tradição filosófica cética e humanista. Um pensamento da imanência como resposta às convulsões morais do nosso tempo? Para o filósofo, sem dúvida. O saber filosófico deveria superar a crença religiosa, inclusive em sua dimensão espiritual, o que não implica aversão à religião nem queda ao niilismo. “A laicidade não significa ódio às religiões”, ao passo que o niilismo, em seu esvaziamento ético, “conduz à idolatria mercantil” e à violência, diz o pensador que, no início deste ano, foi convidado pelo presidente Sarkozy a compor o Comitê Nacional de Ética da França. “Liberal de esquerda”, como mesmo se define, Comte-Sponville acredita que a função política do intelectual é o de “trazer um pouco de complexidade ao debate público” e não o de “dar lições de moral” ou “dizer em quem votar”. Seus livros (entre eles, o hit das prateleiras filosóficas, Pequeno tratado das grandes virtudes) são marcados pelo estilo direto e acessível, o que levou o autor a receber o anátema de “nouveau philosophe”, em referência aos autores dos anos 1970 e 1980 que foram criticados por incentivar uma popularização quase caricatural da filosofia. O autor se defende: “Pelo
contrário. Sou um filósofo antigo: procuro pensar à maneira dos antigos, especialmente Epicuro e Espinosa, para resolver problemas atuais”. Nesta entrevista, concedida à CULT, ComteSponville fala da crise econômica atual, de sua atuação política e de sua temática principal: a renovação da espiritualidade e de uma felicidade ancorada na lucidez dos antigos. 14
CULT - A atual crise dos mercados, o crescimento do debate ecológico, a precarização do emprego, são indicadores da falência de um modelo econômico que se consolidou principalmente a partir dos anos 1990, quando o “fim da história” chegou mesmo a ser declarado. No começo daquela década, porém, o senhor se perguntava “quem vai salvar o capitalismo de si mesmo?” e afirmava o absurdo de uma organização social baseada na mercadoria como valor supremo. Como avalia essa situação hoje, quase vinte anos depois? André Comte-Sponville - A idéia de fim da história sempre me pareceu uma bobagem, pois é indissociável de uma visão teleológica da história, como aquela de Hegel, por exemplo, o que, para mim, a torna inválida. Penso como Espinosa: acredito nas causas eficientes, nunca nas causas finais. Ora, se a história não tem finalidade, ela também não tem um fim, ou melhor, só terá fim com a extinção da humanidade. Isso, sem dúvida, acontecerá, mas ainda não chegamos lá. Quanto à crise econômica atual, ela não é a primeira nem a última. Não se trata do fim do mundo, nem do fim do capitalismo. Por mais grave que seja, a crise vai passar, até chegar a próxima. De todo modo, essa crise confirma mais uma vez que o mercado necessita de limites externos, que os Estados são fundamentais para impor tais limites (que hoje chamamos de “regulações”). É o que eu já mostrava, há muitos anos, no meu livro sobre o capitalismo. A economia é incapaz de colocar limites a si própria, e a situação atual demonstra muito bem isso. Se soubermos tirar lições dessa crise, ela pode, a médio prazo, ter até um efeito positivo. Mas o que não passará, pelo menos não nos próximos decênios, é a anunciada catástrofe ecológica. O esgotamento das energias fósseis, a rarefação da água doce, a diminuição da diversidade biológica, a desertificação, a superpopulação... são problemas consideráveis que durarão muito mais do que os subprimes. É urgente resolver agora, pois o destino do planeta e das nossas crianças está aí, não em Wall Street.
O que também não passará, ao menos não no curto prazo, é a crise cultural, moral, espiritual do Ocidente. Afinal, o que ainda pode oferecer ao mundo uma sociedade que não acredita em mais nada além do dinheiro e do sexo? Pois hoje parece que vivemos duas formas de niilismo ou de idolatria: idolatria do sexo (niilismo pornográfico) e idolatria do bezerro de ouro (niilismo mercantil). Fazem religião a partir disso. Os niilistas são aqueles que não têm mais ideais, nem moral, nem outra arte que não seja mercantil ou pornográfica. Que tristeza, que estupidez! Nihil significa “nada”. O niilismo, no sentido em que tomo a palavra, é o fato de não crer em nada, ou em nada mais do que um fragmento insignificante do real: é uma decadência da qual também precisamos urgentemente escapar. CULT - A violência é um tópico em seus livros. O Brasil vive, nos últimos anos, uma certa estabilidade econômica, e sua população é marcada por uma forte espiritualidade (que para o senhor é fundamental em toda organização social). Entretanto, a violência permanece como grave problema. Além de condições econômicas e sócio-históricas, o senhor acredita que a violência também é resultado dessa crise niilista? ACS - O Brasil está melhorando, como a China, como a Índia, e essas são excelentes notícias. O destino do mundo está em jogo nesses lugares, pelo menos tanto quanto em Nova York ou Paris. Estou convencido de que, nesses três países, a vitalidade da cultura fará a diferença, inclusive em sua dimensão religiosa. O cristianismo, o confucionismo ou o hinduísmo forjaram a cultura desses povos. Por que deveriam renunciar a eles? Seria uma forma de amnésia ou de negacionismo. A laicidade, à qual sou muito ligado, não é nem o anticlericalismo, nem o ódio às religiões. Você sabe que sou ateu. Isso não me impede de perceber a grandiosidade dos Evangelhos, dos Analectos de Confúcio ou dos Upanixades... As religiões fazem parte da história da humanidade. Por que deveríamos odiá-las ou desprezá-las? Que é necessário combater os fanáticos 15
SELEÇÃO
) cUlt
CUltURa paRa pREsEntE A revista CULT apresenta algumas dicas de presentes para as festividades de fim de ano Fotos: Gabriel Bueno Brito de Oliveira
Fotografia tensão calma O habitual frenesi da megalópole paulistana dá lugar à calmaria noturna. Em seu primeiro livro, Arnaldo Pappalardo registra São Paulo sob três focos distintos. Imagens abstratas, extraídas a partir de fragmentos das ruas paulistanas, compõem a primeira parte. Em um segundo momento, a cidade vertical é o tema central. Por fim, Arnaldo registra anônimos na cidade. Tensão calma arnaldo Pappalardo (Cosac Naify) 104 págs. - R$ 69
cadernos etíopes Este livro reúne diários de viagem e imagens feitas na Etiópia, por J. R. Duran. Segundo o autor, Cadernos etíopes “reúne todas as suas preocupações filosóficas e estéticas”. Sob o escaldante sol africano, Duran percorreu cinco tribos do país e delas extraiu histórias instigantes e imagens que fundem simplicidade e sensualidade. Cadernos etíopes J. R. duran Posf.: augusto Massi (Cosac Naify) 192 págs. - R$ 65
Clarice - Fotobiografia Das origens da família na Ucrânia, passando pela infância no Recife e os anos de casamento vividos no exterior até o Rio de Janeiro – cidade onde viveu a maior parte da vida, interrompida em 9 de dezembro de 1977. Os acontecimentos marcantes da vida e obra de Clarice Lispector são registrados a partir de álbuns de família, reproduções de originais, bilhetes e raras capas de livros. Clarice – Fotobiografia nádia Battella Gotlib (Edusp / Imprensa Oficial) 656 págs. - R$ 90
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Preparativos de viagem Organizado pelo próprio autor, Preparativos de viagem é uma coletânea de poemas cujo tema central, a viagem, ganha diferentes prismas metafóricos. Ora refere-se à grande viagem ao longo do tempo, ora à poesia extraída de uma simples viagem pelas ruas da cidade. Ao lado de cada poema, estão os facsímiles dos manuscritos. Preparativos de viagem Mario Quintana (Editora Globo) 168 págs. - R$ 30
Borges & casares Por despojamento e diversão, os escritores Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares escreviam narrativas juntos. Um modelo para a morte, Os suburbanos e O paraíso dos crentes são frutos dessa parceria. O primeiro é um conto, enquanto os demais, roteiros cinematográficos. O que há de comum entre eles é o enredo policial, além do rigor lógico na construção da trama e dos personagens. Um modelo para a morte / Os suburbanos / O paraíso dos crentes Jorge luis Borges e aldolfo Bioy casares (Editora Globo) 240 págs. - R$ 36
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SELEÇÃO
) cUlt
assinaturas
cult Há 11 anos, CULT consolidou-se como referência em jornalismo cultural praticado com profundidade e compromisso com o leitor. Seu conteúdo apresenta reportagens, ensaios, resenhas e dossiês no âmbito da cultura, filosofia, ciências sociais e demais áreas do conhecimento. A qualidade diferenciada faz de CULT uma revista com prazo de validade maior do que as demais publicações do gênero. Prova disso, é a crescente utilização de revista como fonte de pesquisas acadêmicas.
assinaturas: Anual: R$ 52 Semestral: R$ 103 Tel.: (11) 3385-3385
Divulgação/João Musa
osesp A programação da Osesp em 2009 traz novidades. Em abril e setembro haverá duas óperas: “Falstaff”, de Guiseppe Verdi, e “O cavaleiro da rosa”, de Richard Strauss. O mês de outubro será dedicado ao piano. Finalizando a temporada, haverá apresentações de trilhas sonoras de sucessos do cinema. O período para novas assinaturas é de 18 de novembro a 15 de dezembro. Temporada 2009 Osesp de R$ 195 a R$ 742 (estudantes e maiores de 60 anos pagam meia, com base no valor avulso dos ingressos)
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Divulgação
Ricardo Kotscho - jornalista, repórter do portal iG e da revista Brasileiros “Tenho lido muito pouco e isso é um grande defeito para qualquer jornalista. Mesmo assim, o último livro que me fascinou foi 1808, do Laurentino Gomes. Essa obra é importante por duas razões. Primeiro, ela é reflexo de uma grande reportagem, um trabalho extenso de pesquisa e apuração que serviria de inspiração para muitos profissionais. A segunda, mais relevante, é que este livro nos ajuda a compreender o Brasil, tamanha a importância desse período histórico para nossa formação. Ao analisar a vinda da corte portuguesa, no começo do século 19, é possível apontar a origem de grandes problemas da sociedade brasileira atual.”
Divulgação
O QUE ESTOU LENDO
Tereza Cristina Vitali - Diretora geral da Faculdade Cásper Líbero “Estou lendo As intermitências da morte, do português José Saramago (livro publicado no Brasil pela editora Companhia das Letras, em 2005). Além desse livro, também estou lendo A sabedoria dos monges na arte de liderar, de Anselm Grun (publicado no Brasil pela Editora Vozes, em 2006).”
Divulgação
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Luiz Zanin Orrichio - jornalista, crítico de cinema de O Estado de S. Paulo “Conheci tardiamente a obra do chileno Roberto Bolaño e fiquei encantado. Li o romance Os detetives selvagens e fiquei fascinado pela prosa do autor. Tocaram-me muito sua fluidez, seu senso de liberdade, a maneira como toma o leitor pela mão e o conduz a um universo que vai se tornando progressivamente estranho, no limite do onírico. É dos raríssimos escritores que conseguem tirar o leitor do seu eixo de certezas assumidas e colocá-lo numa situação de desamparo criativo. Noturno do Chile talvez seja seu romance mais redondo, mas acho Os detetives selvagens insuperável.”
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Reportagem
) Mercado editorial
Balanço positivo Maior número de leitores e eventos literários aquecem o mercado do livro em 2008
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ienal Internacional de São Paulo, Feira de Frankfurt, vendas em ascensão. O ano de 2008 será lembrado como um dos mais positivos para o mercado editorial brasileiro. Ano passado, o faturamento do setor foi de mais de 3 bilhões de reais, com volume de vendas de 329 milhões de exemplares. Para este ano, as principais editoras do país estimam um crescimento ainda maior. O aumento do número de eventos, cujo protagonista é o livro, tende a fomentar o hábito de leitura e, conseqüentemente, o crescimento das vendas. A Bienal do Livro de São Paulo, por exemplo, reuniu 730 mil visitantes em apenas 11 dias. Em outubro, a Feira de Frankfurt, a maior do mundo no segmento livros, contou com a participação de 43 editoras brasileiras, das quais 93% atingiram seus objetivos, segundo a CBL (Câmara Brasileira do Livro). “Foi um ano de crescimento em todos os sentidos. Vendemos mais, produzimos mais”, comenta Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Cosac Naify. Cassiano não é o único a celebrar o bom desempenho de vendas. Joaci Pereira Furtado, coordenador da Globo Livros, destaca o surgimento de um novo público consumidor como fator importante para o sucesso de vendas: “Creio que todas as casas publicadoras têm lucrado com o ingresso das classes C e D no universo dos consumidores, fenômeno que se vem observando desde o ano passado”. Rosely Boschini, presidente da CBL, acredita que o cenário atual é positivo, mesmo em tempos de crise econômica internacional. “Historicamente, crises econômicas não chegam a afetar profundamente o mercado editorial. Pelo contrário, é comum que as pessoas busquem formas de lazer mais baratas, como o livro, por exemplo”.
Bienal No Parque de Exposições do Anhembi, milhares de pessoas transitam pelos corredores. Aquelas que vieram de carro gastam, no mínimo, 30 reais, sendo 20 para o estacionamento e 10 para a entrada. Vez ou outra, sacolas se tocam em meio à multidão. Editoras buscam atrair o público com seus estandes pomposos. Já os preços, são, em sua maioria, os mesmos do catálogo. Poucos são os descontos. Ainda que tenha reunido público expressivo em seus 11 dias de duração, a Bienal do Livro de São Paulo teve número de visitantes 9% aquém do esperado. “O problema da Bienal é que, no intuito de popularizar o evento e atrair um número cada vez maior de visitantes, ela se torna cada vez menos atraente para o público consumidor de livros. As bienais se parecem cada vez mais com shoppings centers: estruturas enormes, sem critérios de organização por tipo de editora”, afirma Cassiano Elek. Segundo Alexandre Martins Fontes, diretor executivo da editora Martins Fontes, “O leitor que costuma freqüentar livrarias não gosta da Bienal”. Se a mega-estrutura e o frenesi podem causar repulsa em parcela do público, em contrapartida, o evento pode atrair pessoas que não possuem o hábito de freqüentar livrarias. Com a ampla disponibilidade de livros nas grandes livrarias, além da facilidade em se comprar pela internet, a Bienal busca reencontrar seu papel. Lançamentos nacionais e internacionais, que antes eram encontrados somente no evento, hoje podem ser facilmente achados em livrarias ou na internet. “Para pessoas que vêem a Bienal apenas como uma grande livraria, é muito mais cômodo comprar pela internet ou ir a uma mega store, por exemplo. Mas a Bienal é muito 30
Divulgação/Fabricio Maruxo
Wilker Sousa
Bienal Internacional de S達o Paulo: 11 dias dedicados ao livro
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Artigo
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religião
Os rostos jovens de Deus A experiência religiosa entre os jovens brasileiros Jorge Claudio Ribeiro
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Fábio Pozzebom/ABr
lguns jovens percebem Deus sobretudo como um ser superior; menos como uma forma de energia; pouco importante, como um ser pessoal. Como decifrar esses resultados? A primeira providência é acautelar-se, porque tais representações envolvem polissemias, o que impõe precisar os termos. “De qual Deus se trata?” Depende. A palavra “Deus” – que sempre deveria ser escrita entre aspas, tamanha a sua diversidade – resulta do amálgama de significados produzidos em cada sociedade, derivando de acontecimentos e idiossincrasias geracionais e individuais. A flexibilidade da idéia de Deus a torna uma das grandes idéias humanas, diz Karen Armstrong, historiadora das religiões. Ela acrescenta que as imagens elaboradas por uma geração podem não fazer sentido para outra. O hermeneuta John-Dominic Crossan anota que os deuses acumulam uma bagagem histórica, assim como os humanos. Portanto, Zeus, Júpiter e Iahweh não são apenas nomes diferentes para uma realidade suprema, mas consolidam experiências humanas diversas. Assim, a imagem do transcendente é fruto do ramo religioso na frondosa árvore da experiência humana, enraizada Cerca de 40 mil no húmus da história. jovens acompanharam A segunda polissemissa de Bento XVI mia refere-se à própria em maio de 2007 38
juventude, uma categoria escorregadia – “a juventude é apenas uma palavra”, provoca Pierre Bourdieu. Um enigma, pois. Atualmente, esse grupo já não é mais definido a partir de referências biológicas ou etárias, mas é encarado como entrecruzamento de determinações culturais, sociais e econômicas, e de trajetórias singulares. Dessa forma, não há “uma” juventude, e sim “juventudes”, cada qual com suas histórias, seu potencial e desafios. Forças gigantescas, que regem a globalização econômica e cultural, se abatem sobre os jovens e moldam diversamente suas experiências, inclusive religiosas. Como características gerais, os jovens são apontados como entes liminares, sequiosos de experiências, que oscilam entre o excesso e a incerteza, que passam por rupturas e por um segundo nascimento. Um olhar “de microscópio” sobre a alma de uma juventude imersa em aceleradas mudanças ilumina processos que, em outras idades, se instauram mais lenta e imperceptivelmente. O ponto de partida da presente análise é um segmento dotado de expressivo grau de empoderamento. Foram pesquisados universitários, oriundos de famílias com alto capital cultural e com renda pelo menos média, que partilham uma weltanschauung (cosmovisão) mundializada, vivem na metrópole e têm boas perspectivas de emprego. Essas condições interferem na experiência religiosa, pois fornecem alto grau de autonomia. Conduzido desde 1997 por uma equipe docente, o estudo de um caso particular (aqui, a PUC-SP) pode ajudar na compreensão de outras situações, não de forma literal, mas sim ao revelar dinâmicas presentes em outras juventudes. O que nossos jovens teriam a dizer de tão importante? Até que ponto procede a observação de que parte dessa juventude perdeu as crenças, mergulhou no niilismo, no consumismo e, de quebra, afastou-se das práticas
religiosas? Nossa pesquisa detectou que, pelo contrário, os sujeitos desenvolvem uma intensa religiosidade que provê a energia para seus experimentos, inaugurações e a passagem para a vida adulta. O conceito de religiosidade ainda não atingiu plena consolidação semântica e disputa espaço com “espiritualidade” ou “sacralidade”, palavras com outras conotações. Entendemos que a religiosidade é uma capacidade humana, histórica e culturalmente determinada, que elabora sentidos para a totalidade da existência. Nossa concepção se nutriu das reflexões de Georg Simmel (1858-1918), que a descreve como uma disposição fundamental da alma, uma energia sem forma que confere cor e grandeza aos altos e baixos da vida, estabelece um relacionamento espiritual contínuo em relação ao conjunto da existência, e a conforma com o destino interno da alma. Para o autor, uma pessoa erótica é sempre erótica em sua natureza, mesmo que não tenha criado, ou se venha a criar, um objeto de amor; assim como também uma pessoa é sempre dotada de religiosidade, mesmo que não acredite em Deus. Entendemos que, tal como uma glândula, a religiosidade “secreta” sentidos para a vida e, por isso, está na origem das religiões, das artes, da política e do conhecimento. A religiosidade sintetiza tanto materiais quanto dinâmicas derivadas da vida social e de cada etapa da vida. Atualmente, um poderoso fornecedor desses materiais tem sido a modernidade secularizada e globalizada, que se proclama reino da razão e na qual declinou a hegemonia da religião. Quanto às dinâmicas, a socióloga Danièle Hervieu-Léger sugere duas: a subjetivação, que situa na biografia pessoal o locus da elaboração de sentidos; a individualização, ou o direito irrestrito do indivíduo à escolha de crença e à bricolagem religiosa (do francês bricolage, corresponde a do it yourself e se aproxima de “gambiarra”, em 39
dossiê
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Deus no pensamento contemporâneo
Deus no pensamento contemporâneo Neste dossiê, convidamos filósofos e especialistas para falar sobre a intrigante persistência da idéia de Deus, de religiosidade e de espiritualidade, em autores centrais da filosofia ocidental do século 20. Trata-se de compreender primeiramente quais as motivações que sustentariam tal interesse filosófico, após a proscrição da questão divina dentro da ontologia e mesmo após o declarado colapso da metafísica no século 19, que chegou a impulsionar, por exemplo, Nietzsche em direção ao niilismo e a uma das epígrafes mais populares da história da filosofia. No primeiro artigo, Juvenal Savian Filho faz um panorama da quaestio Dei, desde a ruptura da Modernidade com a tradição aristotélico-escolástica até o pensamento de filósofos contemporâneos vivos que consideram positivamente a questão, como Régis Debray, Alain Badiou, Charles Margrave Taylor, Robert Spaemann. Os artigos posteriores estão divididos de acordo com as duas grandes orientações que a filosofia
Índice do Dossiê
assumiu no século 20, a “filosofia continental” (desenvolvida principalmente na França e na Alemanha) e a “filosofia analítica” (de maior ênfase na Inglaterra e nos EUA). Na vertente “continental”, Franklin Leopoldo e Silva analisa a temática da religião segundo Henri Bergson, pensador indispensável para compreendermos alguns dos temas mais relevantes que animaram a filosofia do século 20; Rafael Haddock-Lobo apresenta as noções de ética, religiosidade e justiça na obra de Emmanuel Lévinas. Já Roberto Pich explica o conceito e o desenvolvimento mais recente da “filosofia analítica da religião”, enquanto Alberto Perazzo fala sobre o pragmaticismo de Charles Peirce e, em particular, sobre o “argumento negligenciado” para a “Realidade de Deus”. Longe de ser exaustivo, este dossiê pretende apenas demonstrar a vivacidade discursiva de um dos temas que, apesar de proscrições e colapsos, continua a estar presente na ordem do dia da filosofia.
46 A persistência de Deus Deus é a personagem cuja morte mais foi proclamada na história da filosofia. O que explicaria, porém, sua persistência nessa mesma história? Juvenal Savian Filho
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50 Deus no pensamento de Bergson
A religião entre a intuição e a instituição Franklin Leopoldo e Silva
Reprodução
São Jerônimo com o anjo (1616), Jusepe de Ribera
53 Da religiosidade
57 Um argumento
60 A Filosofia Analítica
O nome ético de Deus, segundo Emanuel Lévinas
O pragmaticismo de Charles Peirce aposta na experiência divina como “devaneio” e traz três argumentos para investigar a Realidade de Deus
Cobrindo o terreno da “teologia filosófica”, a filosofia da religião estabelece-se a partir de duas questões: “O que é ter conceito de Deus?” e “É possível ter conhecimento de Deus?”
à responsabilidade
Rafael Haddock-Lobo
negligenciado
Alberto Augusto Perazzo
da Religião
Roberto Hofmeister Pich 45
dossiê
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Deus no pensamento contemporâneo
Crítica ao sagrado
Mas deve-se ressaltar aqui que, pouco tempo mais tarde, a própria palavra “ética” seria abandonada por Lévinas, justamente por ela ainda se referir a uma noção por demais ocidental. É nesse sentido que Lévinas passa a adotar o nome “santo” para significar esta relação com o outro. Isso porque “santidade” (kadosh em hebraico) quer dizer “separação” e passa a configurar a infinita distância que separa o eu e outro, pelo qual sou responsável e obrigado a responder-por. Com isso, ele empreende uma crítica ao que chama de “sagrado”, ou seja, a estrutura religiosa que sacraliza a alteridade e impede uma verdadeira relação 54
com isto que escapa à qualquer estrutura. Na verdade, esta crítica ao sagrado pode ser estendida à qualquer estrutura religiosa, que sempre seria tal aprisionamento, bem como qualquer instituição. Para o filósofo lituano, como se pode ver em Autrement qu’être ou au-delà de l’essence (uma de suas grandes obras, junto a Totalidade e infinito), o sentido do pronome “eu”, no acusativo do imperativo abraâmico “eis-me aqui”, remete à responsabilidade pelo outro, mas isso como reflexo do laço religioso entre homem e Deus. Para Lévinas não se pode falar em “eu” senão como uma espécie de “eu convocado” pela própria convocação, à qual só se pode
Reprodução
responder “sim”, convocação esta que me obriga a comparecer e a me tornar responsável por este outro que, ao mostrar, já apagou todos seus rastros, sem que eu jamais possa ver sua face. Nos termos desta outra ética proposta pelo filósofo, seria através de uma certa “economia do rastro” que o rosto do outro aparece a mim. Esta “epifania do rosto do outro” (um rosto sem face, pois representa a face de qualquer outro que me convoque) é o que Lévinas vai chamar do brilho do rosto do outro que, no entanto, não permite que eu o veja senão como um rastro, como momento fugaz que sempre já passou e que nunca pode ser pensado como presença.
Máxima expressão de Deus
O sacrifício de Abraão (1601/02), Caravaggio
Tudo isso pode parecer um pouco estranho ou enigmático. E talvez seja, já que o intuito do filósofo é o de sustentar certo mistério no pensamento, que nunca soube suportar o indizível. Mas se o enfoque deste pensamento, no final das contas, volta-se para a responsabilidade, isso pode ficar mais fácil de se compreender. Se o que há é uma infinita distância entre eu e outro, então não se pode mais falar de nenhuma espécie de “presença” ou acesso total nesta relação. De certo modo, o que Lévinas quer apontar é que o outro, mesmo nunca estando presente a mim, continua a ser o que me convoca à responsabilidade e ao responder-por. Este princípio de alteridade absoluta (o caráter totalmente outro do outro) que se reflete no rosto de qualquer outro é, na verdade, a máxima expressão de Deus: o Todo-Outro. E quando Lévinas aponta a este “nome ético de Deus”, ele quer reforçar a idéia de que mesmo Deus deve também ser pensado para além da ontologia (o pensamento do Ser) e da teologia (o pensamento de Deus) e visto sob a égide da ética (o pensamento do Outro). E, com isso, pode-se voltar àquela ótica do rastro que se antecipou: como outro rastro ou, talvez mais ainda, como a atividade produtora de rastros (sendo o rastro de todos os rastros), Deus também não pode ser pensado nos moldes da presença. E isso a ponto de Lévinas dizer que o que se entende por “ser criado à imagem e semelhança de Deus” nada mais quer dizer que o fato de sempre nos encontrarmos no seu rastro. Para ele, o Deus revelado da nossa espiritualidade judaico-cristã conserva todo este infinito da sua ausência que, como se viu, existe na própria ordem pessoal. No próprio capítulo 33 do Êxodo já se pode ler algo semelhante: “Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode me ver e continuar vivendo”. E Iahweh disse ainda: “Eis aqui um lugar junto a mim; põe-te sobre a rocha. Quando passar a minha glória, colocar-te-ei na fenda da rocha e cobrir-te-ei com a palma da mão até que eu tenha passado. Depois tirarei a palma da mão e me verás pelas costas. Minha face, porém, não se pode ver”. Lendo esta passagem, Lévinas vai dizer que se Deus se mostra apenas em seu rastro, o imperativo de “ir na Sua direção” consiste, então, em não em seguir esse rastro, mas sim ir em direção aos outros, aos existentes. Em uma palavra: em vislumbrar o brilho no rosto do outro. 55
Oficina literária
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Viegas Fernandes da Costa TERESA Teresa baixou os olhos, mirou seus seios. “São meus!” – exclamou. Desceu as mãos. Perdeu-se. “Meu deus!” Teresa desceu a saia, o pudor. Desceu os pêlos, a pele. Desceu tudo seu. Desceu as escadas à rua. Desceu à praia, ao mar. “Sou eu!” Desceu tanto, entretanto, que desceram todos, os outros, à rua, à praia. Desceram palavras como pedras, desceram rebentos à carne. Disseram-na feia, disseram-na velha, disseram-na vulgar. Teresa não disse nada! Lavou os cabelos, longos e negros. Lavou-se toda, por fora, por dentro. Lavou-se inteira, Teresa. “É Teresa!” – explicavam. Sempre há quem chega tarde. “Sou eu!” Lavou-se ao avesso, estendeu-se em nudez. Esparramou-se um seio, outro também. Toda flacidez, as coxas luziam, os braços, o ventre. Teresa sorria! “Meu deus!” Já plena e lavada, Teresa subiu à praia, à rua, às escadas, ao povo reunido que a cercou: “Então?” – perguntou. Não houve pedras, não houve palavras. Não houve nada! Desde então todos sabem: Teresa é mulher, e toda manhã cruza a cidade ao mar, nua, toda ela, pêlos, pele e prazer. Toma seu banho, estende seu corpo, e volta para casa. Teresa é mulher invejada!
Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor. Autor de Sob a luz do farol (crônicas, 2005) e De espantalhos e pedras também se faz um poema (Poemas, 2008). É servidor da Biblioteca Universitária da Univ. Regional de Blumenau, onde coordena e edita o site de literatura Sarau Eletrônico
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