132
ANO 12
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ENTREVISTA
Bruno Latour
“Os brasileiros sempre foram pós-modernos”
ARTIGO De que maneira você resolveria um problema como Hitler?
DOSSIÊ
Alma russa
Dostoiévski, Gógol, Tchekhov, Tolstói Considerada bárbara no século 19, a Rússia reuniu ícones da prosa mundial e mudou os rumos da literatura moderna
JUCA DE OLIVEIRA
ROLF BECK
ELBIPOLIS ORQUESTRA
JOSHUA BELL
RUDOLF BUCHBINDER
MOZART PIANO QUARTET ORQUESTRA DE CÂMARA DE ZURIQUE
SINFÔNICA HELIÓPOLIS
ORCHESTRE D’ÎLE DE FRANCE
YOEL LEVI
DUBLIN PHILHARMONIC ORCHESTRA
ABR 14* e 15 – SALA SÃO PAULO ELBIPOLIS ORQUESTRA, Hamburgo CORAL DA ACADEMIA DO FESTIVAL DE MÚSICA DE SCHLESWIG-HOLSTEIN Rolf Beck, regente Solistas: a serem definidos Narração: Juca de Oliveira, representando Georg Friedrich Haendel Daniel Warren, representando seu biógrafo, Romain Rolland Programa: Haendel Gala MAI 11* e 12 – TEATRO ALFA MOZART PIANO QUARTET JUN 9* e 10 – SALA SÃO PAULO RUDOLF BUCHBINDER, piano e direção ORQUESTRA DE CÂMARA DE ZURIQUE JUN 22* e 23 – TEATRO ALFA JOSHUA BELL, violino Frederic Chiu, piano JUN 30* JUL 1 – SALA SÃO PAULO ERIK SCHUMANN, violino SINFÔNICA HELIÓPOLIS Roberto Tibiriçá, regente AGO 15 e 18* – SALA SÃO PAULO DUBLIN PHILHARMONIC ORCHESTRA Derek Gleeson, regente Peter Tuite, piano Celine Byrne, soprano Adrian O’Brien, uilleann pipes AGO 31* SET 1 – SALA SÃO PAULO ORCHESTRE NATIONAL D’ÎLE DE FRANCE Yoel Levi, regente Jonathan Gilad, piano OUT 13* e 14 – SALA SÃO PAULO KATIA & MARIELLE LABÈQUE Duo de piano, acompanhado pelo GRUPO PIAP de percussão, em programa que inclui o Bolero de Maurice Ravel. Programação sujeita a alterações. * Apresentação para Assinantes.
KATIA & MARIELLE LABÈQUE
APOIO INSTITUCIONAL
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iSSN 1414707-6 – Nº 132 – FEvEREiRO/2009 – ANO 12
OS ÍCONES DA LiTERATURA MUNDiAL A professora Aurora Bernardini levanta a questão: como se explica que no século 19, na Rússia – considerada bárbara pelo Ocidente – tenha surgido uma leva de escritores que figuram entre os mais importantes da modernidade? Como eles ainda influenciam a literatura mundial? O dossiê desta edição traça um painel histórico-literário da Rússia do século 19 e ressalta a obra de quatro expoentes de sua ficção: Nikolai Gógol, Liev Tolstói, Anton Tchekhov e Fiódor Dostoiévski. CULT antecipa, com exclusividade, um trecho do romance Ressurreição, de Tolstói, que será lançado no segundo semestre deste ano pela Cosac Naify com tradução de Rubens Figueiredo. As boas notícias continuam. A UNESCO anunciou 2009 como “o ano de Gógol” e vários países preparam exposições e eventos em comemoração ao bicentenário de seu nascimento; em junho, no Brasil, a íntegra de seus textos para teatro será lançada com tradução de Arlete Cavaliere pela editora 34. Desde janeiro deste ano, a CULT disponibiliza seu acervo, um dos mais completos sobre cultura e ciências humanas já publicados no país, no site www.revistacult.com.br. Os textos foram digitalizados e o conteúdo integral dos dossiês publicados mensalmente desde 1997 está aberto para pesquisa. Foi um árduo trabalho de equipe com a intenção de democratizar o conhecimento. Em agosto de 2009, serão acrescentados os dossiês do primeiro semestre. Acesse nosso site e informe-se sobre o I Congresso de jornalismo cultural, que acontece no TUCA, em São Paulo, de 4 a 8 de maio. O ano está repleto de boas novidades e continuamos juntos, obrigada. Boa leitura, Daysi Bregantini daysi@revistacult.com.br
ÍNDiCE
N O 132 FEvEREiRO 2009
14 ENTREviSTA Bruno Latour
Reprodução/Centre Pompidou 2008
22 CRÍTiCA
06
DO LEiTOR
08
CULTURA EM MOviMENTO Estreia peça Um dia (quase) igual a outro, de Dario Fo, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1997
14
30
MÚSiCA Norman Lebrecht analisa a escolha de Linz, cidade natal de Hitler, como a capital cultural da Europa em 2009
32
LivROS Leituras brasileiras sobre Lévi-Strauss
LiTERATURA O cavaleiro de Sainte-Hermine, livro inédito de Alexandre Dumas descoberto pelo pesquisador Claude Schopp
22
REPORTAGEM TUCA reúne em seu acervo documentos de uma trajetória de arte e engajamento
ENTREviSTA O antropólogo e filósofo francês Bruno Latour fala sobre a importância de criar novas disciplinas e novas coletividades
21
26
34
Marcia Tiburi escreve sobre as vantagens do feminismo na vida dos homens
CRÍTiCA Juan José Saer, cujo romance As nuvens é lançado no Brasil, fez do rigor e do radicalismo a marca de seu diálogo cifrado com a tradição literária
FiLOSOFiA
36
COLUNA Francisco Bosco e a semelhança entre Danuza Leão e a vereadora Lucinha
Divulgação
As Nuvens, de Juan José Saer
Arquivo pessoal
COLABORADORES Elena Vássina, pós-doutora em Cultura e Literatura pelo instituto Estatal de Pesquisa da Arte (Rússia) e professora de pós-graduação em Literatura e Cultura Russa na USP.
Arlete Cavaliere, professora livre-docente e coordenadora da área de Língua e Literatura Russa da USP. Traduziu O inspetor geral (Peixoto Neto, 2007), de Nikolai Gógol, e trabalha atualmente na tradução do teatro completo do autor, a ser publicado em junho.
42
(Cosac Naify, 2005) de Liev Tolstói; O assassinato e outras histórias (Cosac Naify, 2003) e A gaivota (Cosac Naify, 2004), de Anton Tchekhov. É autor dos livros Barco a seco (Companhia das Letras, 2001) e Contos de Pedro (Cia das Letras, 2006).
DOSSiÊ
38
Marcia Tiburi, filósofa e escritora. É colunista da revista CULT e autora de Mulher de costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofia em comum (Record, 2008), entre outros. Arquivo pessoal
Reprodução
Literatura Russa do século 19 ARTiGO
Banalogias (Objetiva, 2007), entre outros.
professor associado do laboratório de sociologia e etnologia da Universidade de Paris X - Nanterre e da Universidade Americana de Paris.
O século 19 na Rússia e os ícones da prosa mundial por Aurora Bernardini
56
Tolstói: a literatura que não é literatura por Rubens Figueiredo
62
Anton Pavlovitch Tchekhov por Elena Vássina
OFiCiNA LiTERÁRiA
lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista CULT e autor de Maestros, ObrasPrimas & Loucura (Record, 2008). Arquivo pessoal
52
A concepção de arte em Dostoiévski por Fátima Bianchi
Norman Lebrecht, escritor e crítico musical britânico. Apresenta o programa
Julián Fuks, escritor e jornalista. É autor de Histórias de literatura e cegueira (Record, 2007). Mestrando em literatura argentina na USP, estuda a obra de Juan José Saer.
Fátima Bianchi, professora de Língua e Literatura Russa na USP e representante da Sociedade Brasileira de Dostoiévski no Comitê da International Dostoevsky Society.
Márcio Seligmann-Silva, professor de Teoria Literária na Unicamp e pesquisador do CNPq. É autor de Ler o livro do mundo (iluminuras, 1999), Adorno (PubliFolha, 2003) e O local da diferença (Editora 34, 2005).
Arquivo pessoal
A arte de gógol por Arlete Cavaliere
66
Marcelo Fiorini, documentarista, antropólogo e
DOSSiÊ
48
em Literatura Russa da USP e tradutora de Cartas a Suvórin (Edusp 2002), de Anton Tchekhov.
Murat Eyuboglu
44
Aurora Bernardini, professora de pós-graduação
Francisco Bosco, ensaísta e escritor. É colunista da revista CULT e autor de
Márcio Seligmann-Silva propõe uma nova reflexão sobre as “ciências humanas” na era biopolítica e da virada imagética
42
Bel Pedrosa
Rubens Figueiredo, tradutor de Anna Kariênina
do leitor DOSSIÊ A CULT nos faz sempre pensar. O dossiê “Deus no pensamento contemporâneo” é instigante e importante. Ao longo da história, inventamos e criamos deuses para suprir nossa pequenez e justificar nossa condição humana, especialmente o nosso altruísmo (benevolência, solidariedade e até amor), que, de outra forma, seria apenas um sinal de fraqueza própria e da fraqueza de outrem. A polêmica enriquece a inteligência. Parabéns!
Se a filosofia matou Deus e o ressuscitou, a problemática sempre estará presente, basta alguém explorá-la e pronto: temos mais um estudo sobre isso. Seja como for, a temática tende a permanecer, mesmo em grandes mentes – o que é de se estranhar depois de todos os escritos filosóficos que chegaram a enterrar a questão. Lucas Frederico, pelo site
Adilson Roberto Gonçalves, por e-mail
Não sou leitor assíduo da revista, mas a capa com a chamada para o dossiê “Deus no pensamento contemporâneo” me fisgou inapelavelmente. Luto pelo diálogo e interação da filosofia e da teologia, da fé e da razão.
Damos o nome de Deus a uma entidade que representa o que não podemos ou não sabemos explicar: a vida e a morte. Religiões são apenas obras do homem, que desse mistério se aproveitam para obter poder e manipular. Disso somos todos vítimas.
Revista Cult, parabéns pelo dossiê “Deus no pensamento contemporâneo”. Fascinante! Engrandecedor!
Gerry Desmond, pelo site
José Eduardo Guimarães, por email
O que percebo é o rolamento de uma espécie de niilismo absoluto. Estou com Comte-Sponville ao falar sobre duas formas deste fenômeno: niilismo pornográfico e niilismo mercantil. Acrescento ainda o niilismo de imagem. Eis a trindade da decadência hodierna.
Excelente artigo. Para dar continuidade a temas clássicos, sem redução à precisão conceitual, sugiro a publicação de uma entrevista com algum pensador, sobre um assunto sempre conflitante: a eterna querela entre filosofia e literatura.
Ary Carlos Moura Cardoso, pelo site
Silvio Medeiros, pelo site
Fernando da Costa de Paula, por carta
ENTREVISTA ANDRÉ COMTE-SPONVILLE A entrevista com André Comte-Sponville, que trata com sutileza e veracidade um assunto tão delicado, ficou muito boa. Também não se pode esperar menos vindo de uma revista magnífica como esta. Parabéns. Johnny Pinheiro, pelo site
As cartas devem ser encaminhadas para o e-mail cartas@revistacult.com.br o u para o endereço: Praça Santo Agostinho, 70 - 10º andar - Paraíso - São Paulo - SP - CEP 01533-070 6
n°132 fevereiro 2009
DO LEiTOR COLuNA FRANCISCO BOSCO
TESTE CuLT - EDIÇÃO 131
Há anos sou leitor assíduo da CULT. Com a entrada de Francisco Bosco, passei a ser leitor compulsivo. Escrevo por causa da angústia que me invadiu ao não encontrar sua coluna na última edição da revista. Tenho certeza que falo por vários leitores que começariam mal 2009 sem a sua escrita alentadora.
Os dez primeiros participantes do teste da edição anterior recebem um exemplar do livro Valor e Verdade (Martins Fontes), de André Comte-Sponville. Os vencedores têm até trinta dias para retirar o livro na sede da revista (Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar, Paraíso, São Paulo/SP), de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h.
José Paulo Fiks, por e-mail Nota de redação: caro José Paulo, por razões editoriais, as colunas de Francisco Bosco e Márcia Tiburi não foram publicadas excepcionalmente na edição de dezembro.
- Jorge Flauzino - Osvaldo Eduardo Marichal Alamo - Roni de Melo Piuchi - Ofélia Maria Marcondes - Silvio Medeiros - Mayra Soares - Pedro Pimenta - Elaine Cristina Poço - Lucius Provase - Alessandra Oggioni
TEMPORADA INTERNACIONAL 2009 CONCERTOS NA SALA SÃO PAULO
ORCHESTRE DES CHAMPS-ELYSÉES PHILIPPE HERREWEGHE
ORQUESTRA FILARMÔNICA DE ISRAEL ZUBIN MEHTA
27 e 28 de abril
10 e 11 de agosto
ORCHESTRE DE LA SUISSE ROMANDE MAREK JANOWSKI
CAMERATA SALZBURG LEONIDAS KAVAKOS
JEAN-YVES THIBAUDET
29 e 30 de agosto
4 e 5 de maio
NATHALIE STUTZMANN
CONCERTO KÖLN VIVICA GENAUX
INGER SÖDERGREN
REGÊNCIA
REGÊNCIA PIANO
MEZZOSOPRANO
26 e 27 de maio
HILARY HAHN VIOLINO
16 e 17 de junho
EMERSON STRING QUARTET 3 e 4 de julho
REGÊNCIA
VIOLINO
CONTRALTO PIANO
21 e 22 de setembro
ARCADI VOLODOS PIANO
20 e 21 de outubro
ORQUESTRA DA WIENER AKADEMIE MARTIN HASELBÖCK REGÊNCIA
CHORUS SINE NOMINE 27 e 28 de outubro
Está aberta a venda de novas assinaturas da Cultura Artística. Informações: (11) 3258 3344. Visite www.culturaartistica.com.br PATROCÍNIO
Cultura em Movimento Divulgação
A obra de Jorge Guinle
Divulgação
Cavalo de Troia (1986)
Importante expoente da “Geração 80”, o pintor Jorge Guinle, filho do milionário Jorge Guinle, ganha a sua primeira grande retrospectiva. A exposição “Jorge Guinle: belo caos”, com curadoria de Ronaldo Britto e Vanda Mangia Klabin, traz 33 quadros e 20 desenhos, que retratam o estilo passional, ora frenético, ora relaxado, do artista que nasceu em Nova York e viveu principalmente entre Paris e Rio de Janeiro. Guinle costumava pintar seus quadros no chão, imprimindo a eles formas com cores vivas e vigorosas, revelando a forte influência de artistas como Henri Matisse e De Kooning e de figuras ligadas à pop art norte-americana. Sua produção, no entanto, é interrompida em seu auge: a morte prematura, aos 40 anos, pôs fim a uma carreira breve, porém significativa para a história da arte brasileira. Fora de ordem cronológica, a mostra apresenta quadros que datam do início da década de 80, quando Guinle começou sua carreira artística. A intenção, de acordo com a curadoria, foi de estruturar a exposição seguindo apenas uma ordenação estética. No texto de apresentação, os curadores Ronaldo Britto e Vanda Mangia Klabin, afirmam que “a obra de Jorge Guinle tornou-se quase sinônimo de pintura brasileira contemporânea. Ela traduz à perfeição a forma convulsa do mundo atual: belo caos”.
Jorge Guinle: belo caos Curadoria: Ronaldo Britto e Vanda Mangia Klabin Local: Museu da Arte Moderna de São Paulo, Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº - Portão 3 Data: 4 de fevereiro a 22 de março Horário: terça a domingo e feriados, das 10h às 18h Preço: R$ 5,50
Dispneia parafernália (1981)
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i congresso de
jornalismo
cultural 4 a 8 de maio de 2009 das 10h às 17h Local: TUCA (Teatro da Universidade Católica/PUC - SP)
apoio cultural:
Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo
Associação Brasileira de Imprensa
apoio institucional:
realização: espaço revista cult Mais informações: (11) 3385-3385 • congresso@revistacult.com.br • www.espacorevistacult.com.br
entrevista
bruno latour
De volta para o futuro Para o antropólogo francês, os brasileiros são os mais preparados para a criação de novas disciplinas e novas coletividades Marcelo Fiorini
C
om a publicação de sua obra Jamais Fomos Modernos em 1994, Bruno Latour tornou-se célebre em muitos países do mundo quase que instantaneamente. Mas não na França, onde seu pensamento demorou para ser aceito e só começou a ganhar espaço graças ao impacto e à acolhida que seus livros tiveram entre a antropologia da atualidade. Nesse livro, Latour retraça a história ideológica do desenvolvimento da “razão ocidental” e a crítica como uma ilusão que jamais chegou a penetrar mesmo nas práticas mais centrais ou nos espaços mais conceituados da cultura euro-americana. Para Latour, esse desenvolvimento da “razão ocidental” leva à depuração da cultura a que chamamos de modernidade. Novo iconoclasta do pensamento na França, híbrido de sociólogo, filósofo e antropólogo, inovador polêmico, educador transdisciplinar, ao se conversar com Latour fica-nos a nítida impressão de que estamos diante de um pensador que representa hoje uma grande corrente filosófica do futuro, que estará em voga talvez daqui a 20 ou 30 anos. Mas Latour nos mostra também que esse futuro já estava lá em nosso passado. Um dos aspectos mais surpreendentes de seu pensamento é de fato sua maneira de abordar o passado e a chamada “periferia” da denominada civilização “ocidental”, que ele considera uma aberração. Latour mostra como os “centros” de propagação dessa cultura, que são representados pelos laboratórios de ciências hoje em dia, são semelhantes ao que a própria ciência considera periférico e exótico. Para Latour, são os que se consideram modernos que são exóticos, e o Brasil nunca
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foi realmente moderno, pois nosso país (felizmente) pulou esse retrocesso, cuja expressão maior hoje em dia são os fundamentalismos orientais e ocidentais, espelhos monstruosos de si mesmos. Questionando persuasões filosóficas inteiras de Descartes à sociologia moderna, passando por Émile Durkheim, Karl Marx ou a filosofia analítica, impugnando divisões artificiais que, segundo ele, levaram à separação entre a natureza e a cultura, do inato e do aprendido, além da distinção entre as coisas e os objetos, Latour estende suas análises prático-teóricas à filosofia, à economia, à ecologia, à política. Para Latour, o que é importante nas ciências sociais agora é se interessar pela questão da produção das instituições que permitem a criação das coletividades e das associações que se desenvolvem no mundo de hoje, que não mais tem relação com a que antes chamamos de natureza e sociedade. Como passamos a maior parte do tempo na história da filosofia, da sociologia, da antropologia, ou mesmo em todas as ciências sociais, a traduzir o que encontramos nos termos de uma ideologia que nada veio nos explicar, um paradigma assimétrico que apenas traduz os termos de uma cultura nos termos de outra, Latour acredita que o campo das investigações hoje em dia começa a abrir para pesquisas mais híbridas que irão realmente transformar as nossas persuasões e disciplinas. Esse processo, para Latour, já está acontecendo, é preciso apenas tirar nossas “lentes de contato” para vê-lo. É preciso também que reconheçamos os meios para refazer um mundo no qual possamos coabitar com outros seres, o que, segundo Latour, os brasileiros estão mais preparados para fazer do que os franceses.
Louis Monier/La Découverte
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entrevista
bruno latour
CULT - Um de seus trabalhos mais conhecidos no Brasil é o livro Jamais fomos modernos. Qual é a relação desse livro com a antropologia ? Bruno Latour - Em primeiro lugar, a tese desse livro não faz muito sentido ao se falar no Brasil, porque os brasileiros nunca foram modernos. Foram sempre, de uma certa forma, pós-modernos. Este livro foi traduzido em 25 línguas e teve um impacto bastante diverso nos países em que foi publicado. Na França, por exemplo, seu impacto não foi muito grande. O que quis fazer foi uma antropologia daqueles que são chamados “modernos”. A distância que tomamos normalmente na antropologia quando nós nos afastamos de nossa cultura para estudar uma outra, por exemplo, para conviver com pessoas com quem não convivemos geralmente, é equivalente neste livro a uma tomada de distância interior, um distanciamento diante da história do chamado “mundo ocidental” nos últimos 300 anos, para mostrar como algo se passou durante este período, algo ligado à atividade científica e técnica, mas que não tem nada a ver com o que se diz ter acontecido.
Os brasileiros nunca “ foram modernos. Foram sempre, de uma certa forma, pós-modernos
”
CULT - O modernismo seria então uma invenção exótica? BL - Eu diria que esse livro procurou lutar contra o equivalente do exotismo nas sociedades que se denominam modernas, o que se pode chamar de “ocidentalismo”. Assim como há um orientalismo para o Oriente, como definiu-o Edward Said, há um exotismo de nós mesmos, quero dizer, da Europa ou da Euro-América. É isso que está ligado à ideia de uma antropologia. Fazíamos a antropologia dos outros, mas não a antropologia de nós mesmos, com exceção das margens, dos aspectos marginais de nossa sociedade, do que sobreviveu: da magia, das festas, da sociabilidade. Mas jamais fazíamos a antropologia do centro que constitui nossas atividades. Eu mesmo aprendi antropologia com excelentes antropólogos na África negra, e quando retornei à Europa, fiquei surpreso com essa assimetria. Quando nós fazemos antropologia (no exterior de nossa cultura), estudamos coisas que nos parecem realmente centrais para as comunidades nas quais passamos a viver. Mas, quando retornamos aos europeus ou aos euroamericanos, pensamos que a antropologia se refere somente à parte marginal. Tudo isso mudou muito. Esse livro foi escrito
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há 20 anos. Hoje em dia, muitas vezes os antropólogos não mais podem fazer uma pesquisa de campo em outra sociedade, em outros países, pois o acesso a essas áreas tem sido progressivamente restrito ou fechado (é o caso praticamente de toda a África e do Meio Oriente; o que nos resta de fato é apenas a América Latina e talvez uma parte da Ásia). Isso tem redefinido a antropologia como uma reflexão também sobre o centro da sociedade dita moderna, de forma que hoje em dia, essa ideia já se tornou banal, ao passo que na época que escrevi meu livro não era bem assim. CULT - Qual é a tese desse livro e por que que ele é subintitulado como “ensaio de antropologia simétrica”? Isso foi uma ideia original, ou algo desenvolvido a partir do trabalho de outros autores? BL - Há a controvérsia entre a tese que considera que nós fomos modernos e a tese que não, e tudo repousa sobre uma teoria da ciência. Esse era o problema da área de estudo na qual eu continuo a trabalhar: a science studies, que faz uma antropologia das ciências. É a ideia também do meu livro. Jamais fomos modernos fez talvez, e estranhamente, muito sucesso mesmo se sua tese não foi ainda muito testada empiricamente. Quanto ao termo “simétrico” provavelmente já existia. De toda forma, ele é bastante comum, poderia se dizer também, no lugar de “antropologia simétrica”, antropologia “equilibrada” ou mesmo “equitável”. Eu escolhi “simétrica” por causa da conotação desse termo na área de estudos das ciências (science studies). Ele implica também uma simetria entre a ciência e a não ciência, ou a ciência ligada ao problema da história das ciências. Mas abandonei o termo “simétrica”, pois ele tem o inconveniente de supor que, quando fazemos essa simetria, guardamos os dois elementos que opomos, por exemplo, a natureza e a cultura. CULT - O senhor pode nos explicar sua teoria sobre a rede de atores e como ela se diferencia da sociologia tradicional como uma nova forma de sociologia? BL - “A rede de atores” é algo que desenvolvemos, meus colegas e eu, por razões simplesmente práticas. A explicação sociológica das atividades científicas que nos é fornecida não nos leva a lugar nenhum. Portanto, depois de muito tentarmos explicar as coisas socialmente, nos apercebemos que a falta estava na própria teoria social implícita na sociologia tradicional, de Durkheim. Se não conseguíamos jamais explicar a ciência é porque a ciência não é, ela mesma, social, no sentido de que suas coletividades estão cheias de falhas. Ao invés disso, a sociologia que utilizamos pode descrever suas associações. Nós denominamos de “rede de atores” essa sociologia alternativa à sociologia durkheimiana, e depois a colocamos sob a rubrica de Gabriel Tarde, pois muitas dessas ideias já haviam sido desenvolvidas por Tarde há mais de
ENTREviSTA 100 anos, sem que antes nos apercebêssemos. Essas ideias faziam parte, portanto, já dos primórdios da sociologia. De qualquer forma, um dos pioneiros na redescoberta do trabalho de Gabriel Tarde é um brasileiro, Eduardo vargas, que há muito tempo tem publicado sobre o assunto.
a antropologia “Fazíamos dos outros, mas não a antropologia de nós mesmos, do centro que constitui nossas atividades
”
Portanto, a teoria da rede de atores consiste em fazer no lado social o que a antropologia das ciências faz do lado da natureza. A simetria que eu usava anteriormente fez com que eu me apercebesse que tanto a natureza como o social (a sociedade) são semelhantes. Essa divisão entre natureza e cultura é uma forma de se fazer política, de reunir as coisas em duas coletividades, por razões que vêm da modernidade. Tudo o que eu faço nos estudos da ciência (science studies) é mostrar que esse agrupamento de seres a que chamamos natureza, esse amálgama de seres independentes, é uma coletividade mal constituída. O conceito de “natureza” não tem sentido, pois não há de fato a natureza. Hoje, temos a prova com os trabalhos de Descola e outros. Mas o que me interessa na sociologia (o que é diferente do que faz Descola) é a outra coletividade: a sociedade. Nós podemos mostrar que a sociedade é mal constituída, desorganizada, imprópria. Como agora dissolvemos essa dicotomia entre a natureza e a sociedade, nos restam coisas interessantes a fazer, como investigar suas associações, suas conexões e suas políticas de agrupamento: isso é o que me interessa. CuLT - O senhor escreveu também sobre a ecologia e a necessidade de vê-la de uma forma diferente. Pode explicar-nos sua perspectiva sobre a ecologia? BL - A partir do momento que as duas grandes “coletividades” da tradição modernista, a sociedade e a natureza, foram diluídas, quero dizer, redistribuídas e divididas por causa das crises práticas da ecologia, a noção de reunião ou reconstituição desses coletivos – sejam eles humanos ou não humanos– tornou-se a questão política mais importante. A separação entre esses dois conjuntos era, antes também, uma questão
BRUNO LATOUR
política. A ecologia não modificou isto, ela continua definindo os campos da sociedade e da natureza, salvo pelo fato que a isso, ela adicionou a ideia que os americanos chamam de bioprocess, uma forma legítima de inventar a questão da ecologia política. De fato, o importante agora - depois de abandonar as duas coletividades a que me referi – de um lado, a natureza, de outro, a sociedade– é se interessar na questão da produção das instituições que permitem pesquisar essas associações. Essa é a grande questão da ecologia política que encontramos agora por todos os lados: o caso dos parques naturais, do aquecimento global, dos problemas das cidades. Essa é a própria visão do global. isso é preciso construir agora, mesmo que não sejamos mais “ecologistas” no sentido tradicional, pois os ecologistas estão divididos sobre estas questões, já que eles são também naturalistas. É o que descrevo como a necessidade atual da entrada da ecologia na política. CuLT - No que consistem exatamente essas novas coletividades que não cabem mais na dicotomia natureza e sociedade? BL - Escrevi um livro inteiro sobre esta questão da política da natureza que é no fundo uma espécie de ficção de filosofia política. Esse livro tenta reconstituir quais seriam essas assembleias legítimas, uma vez que “natureza” e “cultura” não são assembleias legítimas. Essas coletividades se referem às duas questões de que tratamos: o número de seres a considerar, quantos são? E em seguida, a questão mais delicada, politicamente falando, a da hierarquia que existe entre os seres e a questão: podemos viver juntos? isso vai do mais prático ao mais complexo. A cosmologia, que era antes uma questão estudada por antropólogos, torna-se agora uma questão empírica e uma questão política. CuLT - O senhor pode nos explicar essa recusa em seu trabalho de separar a economia e a política? BL - Eu não me sinto muito confortável na economia, pois ela não é realmente meu domínio. Meu argumento é que, entre os chamados “modernos”, não foi sobre natureza no sentido científico que eles realmente se ocuparam. A natureza interessa aos cientistas, e portanto, a muita pouca gente. É a natureza no sentido da economia que teve um papel importante na modernização, no que chamamos de marchandisation, que foi inventada entre 1750 e 1850 (período sobre o qual Foucault escreveu excelentes trabalhos). Esse é o momento da criação da natureza econômica. Os argumentos que usamos para falar da natureza não são os dos biólogos. Os biólogos sempre souberam que a natureza da qual eles falam faz um mundo de coisas, muito além do que faz “a natureza” dos filósofos. Mas aprendemos a crer piamente que a natureza n°132 fevereiro 2009
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Literatura
lançamentos O Conde de Monte Cristo Publicado originalmente em folhetins dominicais, entre os anos 1844 e 1846, O Conde de Monte Cristo, clássico do romancista francês Alexandre Dumas (1802-1870), ganha edição de luxo no Brasil pela editora Jorge Zahar. Ilustrado com 170 gravuras de época e acrescido de 500 notas explicativas, o romance é editado em caixa com dois volumes. Os pormenores da queda, da vingança e da ascensão do jovem Edmond Dantès estão registrados nas mais de mil páginas deste recém-lançado título, traduzido na íntegra a quatro mãos por André Telles e Rodrigo Lacerda O Conde de Monte Cristo – Alexandre Dumas – Trad.: André Telles e Rodrigo Lacerda – (Zahar) – 1376 págs. - R$ 129 Os dentes do dragão Lançado pela primeira vez em 1990, Os dentes do dragão, coletânea de entrevistas do modernista Oswald de Andrade (1890-1954), tem segunda edição revista, ampliada e organizada por Maria Eugênia Boaventura. A coletânea abrange o período seguido da Semana de Arte Moderna de 1922 até a morte do autor. A edição conta com introdução da organizadora, índice onomástico, cronologia e bibliografia. O literato Oswald de Andrade deixou suas palavras na poesia, prosa e teatro, como em, respectivamente, Poesia Pau-Brasil, Memórias sentimentais de João Miramar e O rei da vela. Os dentes do dragão – Oswald de Andrade – Org.: Maria Eugênia Boaventura – (Globo) 432 págs. – Preço: a definir
A filosofia da composição Há críticos que se debruçam sobre o estudo das possíveis intenções e motivos que levaram determinado autor a compor sua obra. Raríssimas são as ocasiões em que o próprio escritor esmiúça os pormenores de sua poética. Assim fez Edgar Allan Poe, em A filosofia da composição. Neste ensaio, Poe apresenta de forma detalhada as etapas de composição de seu famoso poema O corvo. Métrica, musicalidade e toda a arquitetura do poema são descritos por Poe, de forma clara e objetiva. Esta edição, com prefácio de Pedro Süssekind, traz ainda as traduções de O corvo realizadas por Machado de Assis e Fernando Pessoa. A filosofia da composição – Edgar Allan Poe – Trad.: Léa Viveiros Castro – (Editora 7 Letras) 64 págs. – R$ 25 Andrei Rublióv O roteiro literário do segundo longa metragem do russo Andrei Tarkovski, intitulado Andrei Rublióv, permaneceu censurado na União Soviética de 1966 até 1971. A despeito da censura, o filme sagrou-se vencedor do prêmio da crítica internacional de Cannes, em 1969. O texto, com episódios não incluídos no filme, tornou-se livro e chega pela primeira vez ao mercado brasileiro. Rublióv é um jovem pintor idealista que se torna monge. Ao sair do mosteiro, depara-se com os dilemas e a degradação do homem. Ante esses embates, o personagem vivencia um profundo conflito entre o mundo espiritual e o material. Andrei Rublióv – Roteiro literário – Andrei Tarkóvski – (Martins Editora) – 312 págs. – R$ 44
No coração das trevas Em uma de suas diversas viagens pelo mundo, o escritor Joseph Conrad visitou o coração da África, em 1890. Conrad subiu o rio Congo, no comando do navio da marinha britânica. Ao presenciar os abusos praticados durante o período de exploração colonial, Conrad ficou profundamente abalado. Sua intensa experiência em solo africano resultou em No coração das trevas. O livro traz Marlow, narrador que, a exemplo de Conrad, expõe sua visão crítica e contundente em relação à política colonial empreendida na África. No coração das trevas – Joseph Conrad – Trad.: José Roberto O’Shea – 144 págs. – R$ 18
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Maria do Carmo Bergamo
Mamede Jarouche – professor e tradutor do livro das mil e uma noites, pela editora globo “Por prazer, estou relendo Falsafa - A filosofia entre os árabes, escrito por Miguel Attie Filho (publicado pela editora Palas Athena, em 2002). É uma obra interessante que fala sobre a importância da literatura árabe na formação da filosofia medieval. Para trabalho, estou envolvido com um livro já fora de catálogo, chamado Os prolegômenos ou Filosofia social (publicado pela editora Safady, em 1958), escrito no século 14, pelo autor norte-africano Ibn Khaldun. O texto é considerado um dos fundadores da sociologia moderna e discute as causas da decadência das civilizações orientais, além de ajudar na compreensão da cultura muçulmana. A única tradução existente no Brasil foi feita nos anos 1950, diretamente do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. No entanto, não houve até hoje qualquer reedição desta obra fundamental”.
Arquivo pessoal
tadeu Chiarelli – curador, integrante da equipe diretora do Museu de Arte Moderna de são paulo “Como estou passando férias em Istambul, aproveito para conhecer um pouco da arte da fotografia na Turquia. Por isso estou lendo agora From Sebah & Joaillier to foto Sabah – Orientalism in photography, de Engin Ozendes (lançado pela editora Yapi Kredi Publication, 1999). A autora, além de traçar um interessante panorama sobre a fotografia na Turquia durante o século 19, traz dados significativos sobre seu papel como instrumento que reforça todos os estereótipos relativos ao “exotismo” da Turquia, da mulher turca, dos costumes locais etc. Uma crítica que desmonta a suposta ‘verdade fotográfica’ a partir de um ponto de vista não eurocêntrico”.
Arquivo pessoal
O QUE ESTOU LENDO
pedro Alexandre sanches – jornalista, autor de Como dois e dois são cinco, boitempo editorial “O livro mais importante que li recentemente é Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988, de Beatriz Kushnir. Ele propicia algo que paradoxalmente nós, jornalistas, temos negligenciado: investiga e procura entender as entranhas da profissão, sempre empenhada em criticar, mas nem tanto assim em se autocriticar. O livro da Beatriz esmiúça um contexto que a mim revelou-se incômodo e desconcertante. Ela dá conta do trânsito que, na vigência da ditadura militar, havia entre as redações, as delegacias policiais e os gabinetes da Censura. Simbolicamente, me fez (e me faz) refletir sobre o que acredito serem extrapolações da profissão que escolhi exercer, quando jornalistas se deixam confundir com censores, ou com policiais, ou com advogados de acusação (ou mesmo de defesa), ou com juízes. Foi uma grande aula de jornalismo, ministrada por uma não jornalista”. n°132 fevereiro 2009
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reportagem
Registros de uma história TUCA reúne em seu acervo documentos de uma trajetória de arte e engajamento
Divulgação
Wilker Sousa
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REPORTAGEM
Wilker Sousa
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o longo de 43 anos, o TUCA – Teatro da Universidade Católica de São Paulo – tornou-se cenário de acontecimentos marcantes para a história da arte e política do país. A partir de sua inauguração, em setembro de 1965, com o espetáculo Morte e vida severina, expoentes da cultura, da academia e da política passaram pelo palco do teatro. Chico Buarque, Caetano Veloso, Nara Leão e Elis Regina ali realizaram shows. Reuniões da UNE (União Nacional dos Estudantes) e do SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) tiveram importante papel de resistência frente ao regime militar e fizeram do TUCA um polo de discussão da intelectualidade brasileira da época. Registros dessa história estão preservados e reunidos pelo CDM TUCA (Centro de Documentação e Memória do teatro TUCA). Criado em 2006, o CDM reúne periódicos, documentos, fotografias, cartazes, plantas arquitetônicas e gravações em áudio – armazenados em 220 caixas-arquivo e divididos por dossiês temáticos. “A PUC serviu de casa para os protestos nas décadas de 60 e 70. O TUCA foi se tornando um espaço de liberdade. Considerando essas questões importantes, nós achávamos que tínhamos que preservar não só o prédio mas também toda a documentação que tinha as pegadas dessa história”, comenta Ana Salles Mariano, diretora do CDM TUCA. Anteriormente, os documentos estavam soltos, não catalogados. A ideia de criar o centro de documentação tem como objetivo organizá-los e disponibilizá-los adequadamente para consulta pública. “Os documentos tinham grampos de ferro, estavam em caixas não apropriadas. Então, foram feitos o rearranjo e a limpeza de todo esse material”, afirma Ana. A responsável pela organização do acervo é a cientista social Luiza Helena Novaes. O acesso ao acervo, porém, não ocorre da forma ideal para um centro de memória. Luiza recebe os pesquisadores na mesma sala em que são armazenados os documentos, o que é prejudicial à conservação. A intenção é criar uma nova sala, destinada à recepção dos consulentes. Para tal, o CDM TUCA criou um projeto de captação de recursos. Além
parte das 220 caixas-arquivo onde estão armazenados os documentos do CdM tUCA
da construção da nova sala, o projeto visa à aquisição de mobiliário e equipamentos adequados para o armazenamento e catalogação de todo o material. “Precisamos de estantes deslizantes, computadores para montar realmente esse centro. O que temos hoje são esses documentos já organizados de algum modo, mas ainda não estão adequadamente conservados porque falta mobiliário”, comenta Ana Salles.
O CDM TUCA reúne periódicos, fotografias, cartazes, plantas arquitetônicas e gravações em áudio que documentam 43 anos de história Para dar sequência ao projeto e ampliar seu acervo, o TUCA conta com a doação de documentos. Pessoas que possuem materiais – sejam eles fotográficos, textuais ou audiovisuais – podem doá-los e, consequentemente, contribuir para o enriquecimento do acervo. n°132 fevereiro 2009
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Coluna
música
De que maneira você resolveria um problema como o Führer? A Linz09, que começará neste mês, precisará lidar com um problema histórico bastante espinhoso
Norman Lebrecht
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ainda que não haja nenhuma placa em qualquer parede, Linz ainda é a cidade de Hitler, assim como Salzburg é a de Mozart e Stratford é a de Shakespeare. Desde que foi nomeada a Capital da Cultura, estive ansioso para ver como Linz iria responder ao desafio – ainda mais que cultura, para Hitler, sempre caminhou ao lado de política e de raça. Para fugir desse estigma, Linz precisaria desconstruir e redefinir o significado de cultura em uma sociedade heterogênea. Mas como fazer isso? Recentemente, descobri. O primeiro ato de Linz09 será a exposição “Linz: a capital cultural do Führer”, que mostrará os projetos criados por Hitler e as obras artísticas que ele programava exibir no maior museu da Europa. Ao longo de oito meses, o evento sobre Hitler representará a Reprodução/Otto Normalverbraucher
m fevereiro de 1945, enquanto os russos se aproximavam de Berlim, Adolf Hitler ordenou que seu segundo arquiteto favorito, Hermann Giesler, reproduzisse em pequena escala, a cidade onde nasceu, Linz, e a colocasse em seu bunker. Uma das últimas fotografias tiradas de Hitler mostra-o sentado em uma mesa baixa, estudando a ponte Nibelungen, que ele havia construído sobre o rio Danúbio, como um prelúdio para obras mais grandiosas. Em seu último testamento, Hitler deixou para a cidade de Linz sua coleção de arte particular. Linz, na fantasia de Hitler, iria se tornar a capital cultural da Europa. Neste ano, esse sonho será realizado. Após uma decisão inesperada, talvez tomada durante uma bebedeira, Linz foi a cidade escolhida para suceder Liverpool como centro artístico para o ano de 2009. É uma decisão que vai além da sátira e da razão. Mesmo que houvesse razões culturais para celebrar a cidade de Linz – e de fato existem algumas – qualquer pessoa que vive na União Europeia sabe, com certeza, que o ano de 2009 marca o aniversário de 70 anos da guerra instaurada por Hitler e também os 120 anos de seu nascimento. Nenhum ano com o algarismo nove em sua composição é um bom ano para falar sobre a genialidade de Linz, independentemente do tempo que se passou. Em Linz propriamente dita, não há como escapar do nome que começa com a letra H. A ponte Nibelungen ainda cruza o rio, e é impossível não reparar na varanda da Prefeitura, de onde o führer realizou seu primeiro discurso para as massas, em março de 1938. Moradias baratas que ele construiu para operários durante o boom nazista ainda são conhecidas como “Hitlerbauten”. Embora ele tenha nascido em um subúrbio do vilarejo de Braunau e
Vista da ponte Nibelungen em Linz, eleita capital cultural da Europa
COLUNA
Divulgação/Robert Striegl
sufocante mediocridade da arte do Terceiro Reich, e permitirá a comparação com quatro escultores austríacos da década de 1930: Barlach, Kasper, Thorak e Wotruba. “A única forma de lidarmos com Hitler é sendo completamente honestos”, afirma Martin Heller, diretor artístico da Linz09, dando a impressão de que deu essa mesma resposta diversas vezes. Quando chegou em Linz, Heller, um artista pós-moderno da Suíça, notou que não havia nenhum transporte público ligando Linz ao campo de concentração Mauthhusen, localizado nas proximidades da cidade. “Vamos incluir o campo de concentração em nosso programa cultural e instalar uma linha de ônibus para fazer o trajeto”, promete. “O prefeito tem sido prestativo. Não há limites sobre o que podemos discutir”. Uma difusa rede de túneis localizados nos subterrâneos de Linz, utilizados como esconderijo e depósito durante a guerra, será exposta durante a programação como metáfora para a memória silenciada. Expor o passado, no entanto, não é o bastante. Heller, que comandou o museu de design de Zurique e a Exposição Nacional da Suíça em 2002, trará à mostra Linz09 seu léxico de ironias pós-modernas e a linguagem da pop art. Seu slogan publicitário é um ovo frito ao lado de uma vírgula invertida. Não procure por significados: eles não existem. Heller pretende fragmentar a percepção de cultura até o ponto em que ela perca toda sua dimensão política. “Em um determinado momento, cheguei a dizer que não deveríamos sequer chamá-la de Capital da Cultura”, revelou durante a cerimônia de posse. “Vamos apenas afirmar que queremos ser interessantes. Não somos Salzburg ou Viena. Linz será diferente - a cidade precisa ser diferente.” Um teste para essa tendência iconoclasta será Anton Bruckner, o sinfonista monumental nascido na vila de Ansfelden e enterrado na cripta do monastério de Santo Florian, que Hitler pretendia transformar na “Bayreuth de Bruckner”. Preterido apenas por Wagner na paixão musical do führer, Bruckner era figura constante nas rádios durante as solenidades do partido nazista. Integrar Bruckner à programação de Linz09 é quase tão complicado quanto neutralizar a figura de Hitler. Salzburg, em seu ano de Mozart em 2006, levou aos palcos todas as suas óperas. Linz, em vez de interpretar as onze sinfonias e as diversas missas, programou apenas uma sinopse enxuta: todo o trabalho de Bruckner em uma hora, ou os grandes hits de Bruckner. O objetivo é tanto um tributo lacônico quanto um comentário irônico. Reduzido a uma hora, Bruckner ou irá adquirir uma nova roupagem ou irá provocar risadinhas públicas. É tudo uma questão de contexto. Em vez de imitar a mostra realizada em Liverpool sobre o batido Klimt, Linz está saqueando os museus da
MúSICA
Cartaz publicitário para linz09: “não procure por significados; eles não existem”
Áustria para montar uma exibição que poderá colocar uma peça religiosa medieval ao lado de um nu pintado por Paul Klee, sugerindo uma continuidade da cultura que supera a distinção de épocas transitórias marcadas por fé e por ideologia. Heller sabe que isso também não irá reabilitar a cidade. Transformada por Hitler, Linz, que de pequena cidade comercial tornou-se um importante centro industrial, permanece dominada por operários e altamente multicultural, com visível influência da minoria islâmica. Em vez de impor noções monolíticas sobre cultura, Heller e seus curadores solicitaram contribuições do público. Choveram mais de 1.700 ideias e muitas fazem parte da programação: roteiros sobre órgãos, novas linhas de ônibus e arte sobre os telhados. Há também os prédios públicos obrigatórios no programa: um novo centro para Ars Electronica, um dos principais grupos em arte tecnológica, e uma casa de óperas construída pelo arquiteto londrino Terry Pawson. De todo modo, o objetivo de Linz09 é fugir das amarras da cultura oficial e abrir espaço para novidades criativas. n°132 fevereiro 2009
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artigo
ciências humanas
(e sua formação) é contabilizado na economia enquanto mais um dos bens de produção etc. As ciências humanas e a teoria literária precisam estar à altura destas novas paisagens biopolíticas e imagéticas que agora determinam nossa cultura. O desafio que temos diante de nós impõe também uma releitura da história cultural do ponto de vista destas novas questões. Assim frequentamos a história literária novamente, para pensar com ela questões de gênero, raciais, a relação entre a palavra e a imagem, a história de nosso inconsciente, de nosso corpo, da pele, do falocentrismo, do estado de exceção etc. Essas questões que se colocam para nós hoje refazem nossos modos de abordar os fatos culturais. Se já não acreditamos mais em uma história cultural narrada segundo os padrões antropomórficos de uma epopeia de sua formação, por outro lado nossa relação com o passado tornou-se mais predatória: o relemos e o recriamos a partir de nosso presente, utilizando-o abertamente como tijolos para nossas novas criações poético-intelectuais. A crítica poética primeiro romântica ganhou uma qualidade inusitada agora. Não se trata mais de se pensar, no caso específico da teoria literária, em uma disciplina acessória das Letras, voltada para uma reflexão crítica que seria secundária em relação à verdadeira interpretação literária. Isto já não valia mais para os românticos de Iena, muito menos deverá valer hoje, pese todo positivismo ainda existente e nossa tendência a fetichizar os manuscritos, arquivos e biografias dos autores. Tampouco a posição primeiro-romântica é suficiente, pois nossas questões agora são outras. Daí a necessidade que sentimos nos últimos anos de nos aproximar de outras disciplinas, para tentar dar conta das novas exigências de quem lida com a literatura. Temos bebido sem acanhamento em autores como Freud, Lacan, N. Abrahan, entre outros, na tradição da psicanálise; da filosofia frequentamos Derrida, Deleuze, Foucault, Ricoeur, Agamben, que nos trouxeram questões atuais que nos ajudam a rever nosso manancial de problemas, temas e modos de abordagem; com autores da história da arte, como A.Warburg, G.Didi-Huberman, H.Bredekamp, aprendemos a não pensar mais a história de modo linear, segundo escolas, estilos e épocas. Isto sem falar em outros autores muito lidos também por nós, como Benjamin, Flusser e Blanchot, que não se deixam reduzir a uma área ou disciplina e que nos ensinaram a realizar o desejo romântico de uma crítica poética, ao mesmo tempo que descortinaram uma série de questões que até eles estavam distantes de nossas pesquisas e inquietações. Eles permitiram um novo tipo de atualidade para nossas pesquisas, para utilizar um termo caro a Walter Benjamin.
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Intérpretes da cultura Essa atualidade é do tipo que ao mesmo tempo sabe pensar cada fato da cultura como pertencente a uma complexa rede simbólico-cultural e de poder, e também extrair este fato de seu contexto usual para iluminá-lo com uma nova luz, que revela outras leituras, liberta seus sonhos que dormitavam virtualmente neles. A abordagem de todo fato cultural deve sempre partir de uma reflexão crítica sobre a nossa atividade de intérpretes da cultura: a atualidade determina nosso trabalho. Deste modo não tem sentido se falar em uma separação entre trabalho teórico e trabalho, digamos “documental”, com a literatura ou qualquer outra manifestação cultural. Toda leitura é dependente de um modo de se recortar e interpretar o mundo. Separar teoria e interpretação é tão absurdo quanto querer se movimentar apenas no espaço, sem a dimensão temporal. Daí ser legítimo se pensar hoje que temos que ter a coragem de não só ir além da teoria literária, mas de superá-la – numa Aufhebung criativa e sempre autocrítica. Esta mesma coragem, de resto, deve nos dar ímpeto para alargar as fronteiras da própria área, que também deveria se reinventar a cada momento. Se não deve existir uma submissão da teoria literária ao meio da literatura, que tradicionalmente é pensado como a linguagem verbal, logo, não podemos pensar mais uma teoria literária tout court e sim em uma teoria da cultura. Isso, de certa forma, é o que os leitores mais interessantes dos fenômenos culturais têm feito, como Walter Benjamin, Vilém Flusser, Marshall McLuhan, Derrida, Deleuze, Mike Bal, Aleida Assmann, Baudrillard, entre outros. Neste sentido a teoria literária e sua história são deglutidas pela teoria da cultura. Ficar preso no seu âmbito significa não reconhecer a virada culturalista e se prender a paradigmas desgastados, que não acompanham as transformações da sociedade. Assim, a teoria literária tradicional não dá conta do fim do cânone, assim como não pode, sem entrar em diálogo com outras disciplinas, lidar com a web e a virada imagética. Se é verdade que desde o romantismo não sabemos mais definir o literário e o que é arte, e de certa forma a teoria literária e a teoria da arte estavam aí para tentar procurar limites para seus objetos, agora como que passamos para o outro lado da margem: não se trata mais de procurar os limites, muito pelo contrário, passamos a valorizar a ruptura das fronteiras entre as mídia e, conseqüentemente, entre as disciplinas. Penso aqui não apenas no fato dos estudos literários terem se aberto para áreas como a do estudo de testemunho, que vai contra o ponto de vista da ideologia estética, que pensa partir do velho
artigo
CiênCiaS hUmanaS
A teoria literária não pode lidar com a web e a virada imagética, sem entrar em diálogo com outras disciplinas
padrão de bom e belo. Na longa história do paragone (comparação/competição) entre as artes, desde o século 18 surgiu o sonho de um Gesamtkunstwerk (obra de arte total). Já autores como Dubos, em 1719, tentavam pensar as diferenças entre as mídia. O Laocoonte de Lessing, de 1765, foi de certa forma o coroamento dessa tradição de reflexão sobre as diferenças e limites entre as mídia. Com o romantismo esses limites foram desafiados e cada vez mais postos em questão. Com a virada midiática do fi nal do século 20, não tem mais sentido se pensar as mídia como formas estanques. Literatura como performance Da mesma maneira podemos ver neste mesmo período um derretimento do modelo da imitatio, uma passagem da representação para a apresentação, que tende para a performance e para se ver a arte e a literatura como eventos. Esta apresentação passa a ser parte integrante da identidade do homem moderno: ele como que precisa da arte para expressar tudo aquilo que a vida social lhe cobra em sacrifícios pulsionais. A esfera das artes passa a ser, desde o romantismo, uma extensão de nossos corpos e não mais pode ser vista, idealisticamente, como fruto de nosso gênio. Esta arte e literatura cada vez mais corpóreos não por acaso vão inspirar muito do que foi escrito dentro do “gênero” psicanálise no século 20. Freud e Lacan são dois grandes leitores não só de nossas “almas”, mas também de literatura. A relação da literatura com a vida tem um sentido
complexo demais para ser apreciado pela teoria literária tradicional que descende tanto da poética como da estética e da hermenêutica. Sem contar o secular compromisso da teoria literária com a ideologia nacionalista. Esse compromisso deixou marcas profundas nos nossos hábitos de leitura e interpretação que dirigem até hoje boa parte do que se produz dentro das academias. As narrativas das formações nacionais mal começaram a ser desconstruídas: ainda existe muito a ser feito nesse campo. Não se trata mais apenas de se ampliar o escopo das “ciências auxiliares” da teoria literária, mas de conseguir se livrar dessa rubrica em direção a outras mais condizentes com nossa realidade cultural. Apenas essa nova perspectiva das ciências humanas poderá assumir na sua radicalidade a promessa contida em seu nome e pensar o político à luz do que se passa com nós nesta era biopolítica. Era na qual, como escreveu Foucault: “As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida.” Para este autor agora a vida é encarada nesta duplicidade: como biologia (fora do histórico) e como técnica de saber e de poder históricos. As ciências humanas fazem parte deste jogo biopolítico na medida em que elas promovem a construção de saberes que legitimam – ou contestam - poderes. Enquanto continuarmos a pensar as humanidades como um patrimônio ético autocomplascente estaremos agindo como cegos caminhando em um campo minado. n°132 fevereiro 2009
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literatUra
[DOSSIÊ]
rU r US U SSa SS Sa Do SéCUlo 19 Do
O
escritor argentino Ernesto Sábato, ao analisar a adequação dos referentes culturais europeus à realidade latino-americana, afirmou que, durante o século 19, os russos enfrentavam impasses semelhantes aos nossos, por motivos sociais semelhantes. O “europeísmo” deslocado, ou ainda, o movimento pendular entre primitivismo patriarcal e formas herdadas da cultura europeia, revelou-se decisivo para o surgimento tanto da literatura russa quanto latino-americana. Em parte, isso explica o fato de que a literatura russa do século 19, para além de sua relevância histórica como um dos momentos mais importantes da literatura mundial, consiga despertar entre nós, leitores brasileiros, um interesse cada vez maior, um interesse, por vezes, inconsciente. Com o advento das traduções vertidas diretamente do russo, tornou-se possível o contato mais próximo com a prosa desses grandes escritores, até então mascarada por traduções indiretas. O exemplo mais recente
Índice do
DoSSiê
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é a tradução de Os irmãos Karámazov, obra monumental e último romance de Dostoiévski. Outros trabalhos estão em curso. De Liev Tolstói, o escritor e tradutor Rubens Figueiredo concluiu recentemente a versão do romance Ressurreição (confira trecho inédito do livro neste dossiê) e trabalha agora em Guerra e paz. Para junho, está prevista a publicação integral dos textos de teatro de Nikolai Gógol, com tradução de Arlete Cavaliere, que participa deste dossiê. Tendo em vista esse fenômeno, CULT elaborou um dossiê sobre quatro dos expoentes da ficção russa do século 19: Gógol, Dostoiévski, Tolstói e Tchekhov. Todos eles, em sua medida, souberam transcender tendências literárias da época. Gógol, cujo bicentenário de nascimento é celebrado este ano, produziu uma obra que escapa às amarras da “Escola Natural”, sem deixar de evidenciála. O mesmo pode-se dizer de Dostoiévski, que transfere para os personagens o eixo central de suas narrativas, deslocando assim o
O SÉCULO 19 NA RÚSSIA E OS ÍCONES DA PROSA MUNDIAL o panorama de um dos períodos mais profícuos da literatura Aurora Bernardini
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A ARTE DE GÓGOL tradição e modernidade no enigmático expoente da literatura russa Arlete Cavaliere
“
ponto de vista que antes pertencia ao narrador. Tolstói, por sua vez, gerou polêmicas ao questionar a autonomia da arte. Segundo ele, uma vez afastada de seu papel formador, a arte poderia acentuar as desigualdades sociais. Por fim, o mestre das narrativas curtas, o autor-médico (para quem a medicina era a esposa e a literatura, sua amante), Anton Tchekhov, que abdicou da subjetividade desmedida em prol da concisão e objetividade. Sua obra concentra-se nas sutilezas interiores das personagens, o que faz do enredo um coadjuvante. Na abertura do dossiê, Aurora Bernardini traça um painel histórico-literário da Rússia no século 19. São levantados e discutidos os possíveis fatores que levaram ao surgimento de uma das mais ricas gerações da literatura mundial. Aurora traz à tona questões como o espírito eurasiano de irmanação e coletividade, em contraposição ao viés profundamente individualista do Ocidente. Outro importante componente destacado pela autora é a tendência do homem russo em incorporar a loucura e desordem na instituição da ordem, ou seja, considerá-las etapas fundamentais para o posterior alcance da harmonia. Na sequência, os textos dedicados aos quatro cânones da prosa russa. Primeiramente, Arlete Cavaliere esboça o perfil do enigmático Gógol. Dono de uma personalidade doentia, o autor valia-se do escárnio como meio de mascarar a frustração amorosa, em uma obra na qual o caos torna-se a máxima expressão da realidade. Fátima Bianchi analisa a concepção de arte em Dostoiévski, ao apresentar as inovações que o autor trouxe à literatura. Rubens Figueiredo discute a “antiarte” presente na prosa de Tolstói. Por fim, Elena Vássina disserta sobre a contemporaneidade da obra de Anton Tchekhov.
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A CONCEPÇÃO DE ARTE EM DOSTOIÉVSKI
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O homem russo tende a admitir a participação da loucura e da desordem na instituição da ordem
”
TOLSTÓI: A LITERATURA QUE NÃO É LITERATURA
era preciso representar os sintomas da estrutura dinâmica da vida social
Como o nexo entre literatura e vida social pode transformar-se em vantagem artística
Fátima Bianchi
Rubens Figueiredo
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ANTON PAVLOVITCH TCHEKHOV a vida e obra do clássico contemporâneo da literatura russa Elena Vássina n°132 fevereiro 2009
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dossiê
literatura ruSsa do século 19 Reprodução
Característica da cultura russa: a busca da verdade no espírito popular e na ortodoxia, em contraposição ao excessivo individualismo ocidental (A grande igreja de Kiev, pintura de Vasily Petrovich Vereshchagin, 1905)
em sua juventude. Desta forma, ele planejava o percurso de Aliócha, no inacabado Os irmãos Karamázov. Visão essa bem diferente da ocidental, que levou Freud (em Dostoiévski e o parricídio) a considerar que a moral consiste mais propriamente em não sucumbir ao pecado, diferentemente das personagens dostoievskianas, que pecam e depois se purificam. Em Recordações da casa dos mortos, Goriêntchikov, o narrador-porta-voz de Dostoiévski, declara:
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“Acho que o melhor dos homens pode cair, com o hábito, na crueldade e na estupidez das feras. O carrasco existe em germe em cada um de nós, mas suas faculdades de bestialidade se desenvolvem em nós de forma desigual”. De fato, o homem como ser bruto e como reflexo divino serão a antinomia constante na obra do escritor, da mesma forma que a antinomia anjo/demônio marcará as principais heroínas de seus romances. Mesmo os poetas simbolistas russos – como Blok, Biéli, e Ivanov, que atuaram antes e no começo da Revolução na busca pela unidade primeira em que “tudo está em harmonia e um respira no outro” – viram muitas vezes a ascensão e o êxtase beirarem a alucinação ao se transformarem em símbolo. Sintomático é o famoso poema Os doze, de Blok, composto ao mesmo tempo em que o poeta toma conhecimento que sua propriedade familiar de Chakhmatovo havia sido pilhada pelos camponeses. Ele junta um punhado de insurretos, maltrapilhos, marginais e prostitutas e os acompanha em uma marcha frenética e arrasadora, encabeçada por Jesus Cristo. O episódio da morte de Petia, em Guerra e paz, de Tolstói, é tratado como um modo musical, a fuga, em que cada instrumento, com seu motivo próprio, funde-se aos outros e aparta-se de novo, tal como uma transposição secular de um velho coral da Igreja russa, curiosamente, também chamado sobórnost. Entretanto, a fuga pessoal do velho conde Tolstói, que acaba com sua morte na estação de Astápovo e é considerada pela família como alienação, é, por outro lado, o símbolo de abandono de seu mundo; a fuga do mundo para refugiar-se no deserto é a característica do famoso peregrino-poeta-profeta de Púchkin (Strannik). Tal como nos ícones de perspectiva inversa, é preciso olhar para o mundo por um outro prisma, para ver o que não se enxerga com as lentes do cotidiano. Nomadismo x Sedentarismo, a visão global e ...a democracia Pela componente asiática, explica-se o nomadismo inveterado do homem russo,
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tão presente nas descrições do Oriente de Púchkin e de Lérmontov, com seu lema: fidelidade/lealdade/firmeza de caráter, bem como a insatisfação constante (tema obrigatório em Tchekhov) e os desvios dos quais esse mesmo homem torna-se presa quando obrigado ao sedentarismo. Um desses desvios seria a Revolução de 1917, na visão que certos membros da intelligentsia têm da mesma. O próprio Nikolai Trubetskói, partidário da visão eurásica e não europeizada da Rússia, achava que “a Rússia de Ivan IV é a Horda russificada e bizantinizada”, concluía que o novo regime bolchevista levava adiante a europeização da Rússia, dando as costas à natureza eurasiana do país. “Não é de se admirar, portanto”, diz ele, “que seus melhores adeptos sejam, assim como sob Pedro I, os indivíduos originários dos países bálticos e que tantos visitantes ocidentais voltem da Rússia soviética convencidos de que, se o comunismo ainda não funciona bem por lá, isso se deve àqueles ‘russos selvagens’”. (Nivat, p.63) Por outro lado, sempre segundo Trubetskói, contrariando a influência europeia, a visão dos russos é global, não fragmentada e diferenciada como a da Europa. Veja-se a dança, diz ele, por exemplo. Na dança russa, tudo se move, não apenas as pernas. Tudo é um convite à improvisação e à criatividade. Como exemplo, valha o trecho de Guerra e paz (cap.7) em que Natacha, educada por uma governanta francesa, de repente entregase instintivamente a uma dança improvisada, desenfreada, diante de seu tio, estarrecido. O espírito russo não resiste ao apelo do informe, diz Chestov, um de seus pensadores. Finalmente, o reverso da medalha, Tchekhov. Escreve em chiaro-scuro, termina em pianíssimo, como dizia dele Virginia Woolf, uma de suas leitoras mais entusiastas. No entanto, ao contrário de muitos de seus precursores, Tchekhov, o jovem médico tuberculoso em cujas veias corria sangue de servo, não se exalta, não se alucina, não pontifica. Ele nos mostra como a “alma”, a famosa “alma russa” pode enregelar-se, paralisar-se. Mostra ainda como o homem pode perder partes de si próprio e, sem dar-se conta, apagar sua presença no mundo.
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O cerco ao monastério de São Sergio, pintura de Vasily Petrovich Vereshchagin, 1891
Para apresentá-lo, e com ele concluir, nada melhor que um trecho de uma conversação apontada por Nivat e retirada de Vida e destino (1960), a obra-prima de Vassili Grossman, romance considerado por muitos o Guerra e paz do século 20, ainda não traduzido no Brasil: “De Avvakum a Lênin, nosso humanismo e nossa liberdade têm sido tendenciosos, fanáticos, têm sacrificado o homem a uma humanidade abstrata. Mesmo Tolstói, com suas homilias sobre a não resistência ao mal, é intolerante e, principalmente, não procede do homem, mas de Deus. O que importa a ele é que triunfe a ideia que afirma a bondade, mas sabemos bem como os teóforos tentam sempre instaurar Deus no homem pela força”. Na Rússia especialmente, segundo esse desígnio, não se hesitará em alquebrar, em matar, nada nos deterá. Já Tchekhov, o que diz? Ele diz: “deixemos Deus de lado, deixemos as grandes ideias progressistas de lado. Comecemos pelo homem. Sejamos bons, importemo-nos com o homem, não interessa qual deles, um bispo, um mujique, um industrial milionário ou um condenado de Sakhalina, um garçom de restaurante. Comecemos pelo respeito, pela piedade, pelo amor ao homem, senão a nada chegaremos. Isso é a democracia, a democracia russa que até hoje não existiu”. n°132 fevereiro 2009
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A arte de Gógol Tradição e modernidade no enigmático expoente da literatura russa Arlete Cavaliere
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biografia de Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) tem despertado na crítica um interesse considerável nos últimos anos. A UNESCO acaba de anunciar o ano de 2009 como “o ano de Gógol” e inúmeras exposições e eventos estão previstos para este ano na Rússia e no mundo todo em comemoração ao bicentenário do nascimento deste gigante da literatura russa. Personalidade bastante singular, altamente enigmática, Gógol deixa-se revelar em muitos de seus últimos escritos, textos esparsos e correspondências com amigos (em particular, em sua Confissão de um autor e Trechos escolhidos de correspondências com amigos) como um homem de educação profundamente religiosa e cristã, expressa indubitavelmente no seu medo patológico da morte e do castigo. Acrescente-se ainda o papel importante da mãe em sua formação e a grande dificuldade de suas relações afetivas e amorosas. Os aspectos “doentios” da personalidade de Gógol (e de seus personagens) costumam ser fundamentados no processo autodestrutivo que o escritor manifestou no final de sua vida, deixando-se morrer de inanição. Há quem veja nas deformações de acontecimentos e pessoas de seus relatos uma forma de libertação dos próprios recalques psicológicos do escritor, que faria do riso um meio
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eficaz de liberação. Até mesmo a ausência, em grande parte de sua obra, de personagens femininos plenamente desenvolvidos e de enredos de amor, ao lado do medo flagrante na maioria dos heróis gogolianos perante a mulher, o amor e o casamento, é um convite a uma interpretação analítica que focalize na própria obra a figura do artista. O escárnio como máscara para a incapacidade de amar Alguns de seus biógrafos apontam para o fato de que o grande mal de Gógol foi não ter amado nunca e ninguém e que, por isso, ele teria conhecido um só lado da vida, de onde provêm as caricaturas que inundam a sua obra. A comicidade, o escárnio ou o riso de zombaria seriam, portanto, o pressuposto de uma atitude de defesa e de hostilidade latentes, o que implicaria um sentimento de superioridade e desprezo a encobrir, afinal, a impotência e a frustração diante da incapacidade do sentimento amoroso. É sob esta ótica analítica que seriam compreendidos os bizarros heróis gogolianos que, não raro, não parecem de carne e osso, mas, isto sim, manequins tragicômicos que riem e choram, fazem rir e chorar, mas que não vivem porque não amam. Daí o aspecto incompleto e fragmentado dessas figurasmarionetes.
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A expressão da realidade sob o prisma do caos O traço distintivo da obra gogoliana se revela por meio de uma espécie de acumulação absurda de detalhes que fazem da realidade um aglomerado de elementos contraditórios,
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O humor e o “riso entre lágrimas” que brotam dos textos gogolianos revelariam então, para além de um procedimento artístico e literário, um doloroso problema de dupla personalidade e dualismo religioso: a luta do escritor entre dois mundos, o da arte e da moral, sua preocupação em rir do demônio, em vez de simplesmente amar a Deus, e o conflito entre ocidentalismo e eslavofilismo, acabariam por fazê-lo mergulhar num delírio místico e na demência que lhe roubaram completamente a razão. Já se disse também que faltou a Gógol o que Púchkin, por exemplo, possuía em alto grau: harmonia interior. Se essa multiplicidade de aspectos biográficos dá margem à utilização de diferentes tipos de abordagem interpretativa, é certamente na forma como Gógol trabalha a palavra para veicular todos os seus temas e transformá-los em matéria artística que um olhar arguto a seus contos, novelas e peças de teatro torna-se tarefa extremamente motivadora. Embora Gógol apresentasse uma simbiose com todo o contexto histórico-cultural que lhe serviu de pano de fundo (e daí sua ligação com a “Escola Natural”, que tão claramente refletia o pensamento russo da época), ao mesmo tempo ele transcendeu em seus textos literários todas as tendências que estavam então em curso e, sem deixar jamais de evidenciá-las, construiu uma obra artística solidamente plantada em seu tempo, mas que escapa dos seus limites, apontando, ainda hoje, para a sua modernidade. Neste sentido, se a obra de Gógol como um todo tem sido considerada por uma parcela da crítica (basta pensar em O capote, Almas mortas, O nariz e O inspetor geral) como expressão satírica da realidade russa na primeira metade do século 19, é necessário detectar, para uma abordagem mais acurada de seus textos, sua maneira peculiar de “ver” o mundo e as coisas, isto é, sua “óptica desautomatizante”.
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Gógol: obra que desvela os mistérios do real sob máscaras da racionalidade
mas que a revelam na sua mais profunda essência, tornando esse caos fantástico e desconexo a sua mais fiel expressão. Tal procedimento está largamente empregado nas suas “histórias petersburguesas”, onde o fantástico, buscado em seus primeiros textos nas lendas e no folclore de sua Ucrânia natal (como, por exemplo, nas Noites na granja perto de Dikanka), brota agora da própria realidade cotidiana e urbana de São Petersburgo. A notável novela O capote constitui, sem dúvida, um dos textos mais representativos da assim chamada fase petersburguesa. n°132 fevereiro 2009
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Como ganhar uma eleição I Emanoel Florentino Izidório da Cruz, mais conhecido na cidade como Mané Tinhoso. Viveu até a década de 70 metido na política da cidade de Seregipe. Foi prefeito três vezes e vereador outras tantas. O apelido “Tinhoso” veio dos partidários que admiravam sua teimosia e vontade de vencer. De fato nunca perdeu uma eleição. Matreiro e experiente, era daqueles que trabalhavam muito bem o assistencialismo aos pobres. Admirador de Getúlio Vargas tinha um quadro do grande líder em seu escritório. Na mesma sala onde ficava a biblioteca, cheia de livros que ele nunca leu. Mané Tinhoso era um sujeito que dava grande importância à sua própria aparência, e não só fisicamente. É claro que ele trajava-se bem, mas sentia que isso não era suficiente. Os livros na biblioteca impressionavam as pessoas que porventura entravam no escritório. Davam-no por intelectual, mesmo que não fosse. O único livro que eventualmente ele lia era o dicionário. Para aprender palavras difíceis e impressionar os pobres matutos da pequena Seregipe. Não subestimem Mané, a história abaixo narrada mostrará o quanto este homem dominava a arte da estratégia. No final dos anos 50 em uma eleição municipal a situação de Mané não era muito boa. Seus adversários tinham achado um candidato que poderia derrotálo, um tal de Zé Fagundes. Inexperiente na política, um novato, mas amigo de muita gente. As críticas a Mané vinham dirigidas a quem o apoiava: o prefeito Ramiro, sucessor dele na Prefeitura. Mané tentava seu segundo mandato, mas a administração de Ramiro havia sido um fracasso. A insatisfação popular com o prefeito era um entrave à campanha do Tinhoso. Mané tentava de tudo: dizia que seu governo seria diferente, que iria consertar os erros do colega, usava até discurso de bom cristão pedindo aos eleitores que seguissem o exemplo de Jesus e perdoassem Ramiro. Nada adiantava, então ele lembrou-se da coragem de Getúlio Vargas em 1954.
Não, ele não se suicidou. Mané entrou no escritório. Abriu a janela e tirou da gaveta a arma. Tirou o chapéu da cabeça e meteu-lhe um tiro. A esposa assustada entrou apressadamente no escritório e o flagrou ainda com a arma na mão e o chapéu no chão com o furo da bala. Ele colou o dedo nos lábios pedindo silêncio. II A notícia do atentado sofrido por Mané Tinhoso correu a cidade rapidamente. Uma multidão aglomerouse na casa do candidato, a maioria preocupada com o estado de saúde dele. Dizia a todos que estava bem e que a fé em Nossa Senhora o havia salvado. Mulheres choravam e homens faziam discursos. Eleitores fiéis a Mané e eleitores de Zé Fagundes, estes já dispostos a mudar o voto, revezavam-se nas visitas. A senhora Clara, esposa dele, olhava tudo, atônita. “Não é que havia funcionado mesmo”, pensou consigo. Três suspeitos foram presos. Mané apressou-se em livrá-los e deu um retrato falado do suposto atirador. Disse que viu o sujeito e que ele não era da cidade, provavelmente um forasteiro. A casa de Zé Fagundes foi apedrejada, assim como a de vários de seus assessores. Mané, em comício na principal praça da cidade, disse ao povo que não queria ódio e conclamou a que seus seguidores não agredissem mais os adversários. O Tinhoso ganhou a eleição com folga. A partir daí não perderia nenhuma e Zé Fagundes desistiu definitivamente da política. Só alguns anos após sua morte é que a senhora Clara contou a verdade a seus netos. A estátua de Mané continua no centro da cidade e seu nome ainda é considerado sinônimo de honradez e retidão de caráter. Aristóteles Lima Santana é professor e mora em Paulo Afonso (BA)
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