137 LiTErATUrA O centenário de Juan Carlos Onetti ANO 12
R$ 9,90
www.revistacult.com.br
O crítico Manuel Bandeira
ENTrEViSTA Para o filósofo Daniel Lins, “o Brasil ainda resiste”
DOSSiÊ
A DEMOCrACiA E SEUS iMPASSES iNéDiTOS DE
SLAVOJ ŽiŽEk MiCHELANGELO BOVErO O BrASiL é UMA SEMiDEMOCrACiA?
A ASCENSãO DE UM CAPiTALiSMO AUTOriTÁriO
ÍNDICE
N O 137 JULHO 2009
Divulgação
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DO LEITOR
ENTREVISTA Daniel Lins
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ENTREVISTA
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CRÍTICA
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LITERATURA Lançamentos de Manuel Bandeira
COLUNA Marcia Tiburi: o esquecido fator político da voz define-se no estranho jogo de linguagem em que o falante não é ele mesmo
Julián Fuks: o uruguaio Juan Carlos Onetti, cuja novela O poço chega ao Brasil, recusou os arroubos épicos de seus contemporâneos e tornou-se um marco da narrativa moderna
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MÚSICA CLáSSICA Norman Lebrecht: a ascensão de uma superpotência orquestral
Sem aderir aos jargões da história da filosofia, Daniel Lins fez da interdisciplinaridade o cerne de sua obra
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MÚSICA POPULAR Pedro Alexandre Sanches: ainda há sumo para espremer da surrada discussão sobre o que nos leva a eleger ou rejeitar um artista ou uma música
CULTURA EM MOVIMENTO 40º Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão • 4º Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo • Teatro: Bia Lessa • As pérolas de Christian Dior • Caio Fernando Abreu
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Acervo CPFL
40o Festival Internacional de Campos do Jordão
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ENSAIO Francisco Bosco: esboço de tipologia literária
colaboradores desta edição
de Sociologia da Universidade de Liubliana (Eslovênia) e professor da European Graduate School (Suíça) e das Universidades Columbia, Princeton , Michigan (EUA). É autor de Visão de Paralaxe (Boitempo, 2008), Bem-vindo ao deserto do real (Boitempo, 2003)
Reprodução
João Bittar
Slavoj Žižek, filósofo e crítico cultural. É pesquisador
Pedro Alexandre Sanches, crítico musical e jornalista. É autor dos livros
Divulgação
Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba (Boitempo, 2000) e Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004)
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Michelangelo Bovero, professor de ciências políticas na Universidade de Turim. É sucessor do filósofo Norberto Bobbio na cátedra de filosofia política na mesma instituição. Juntamente com Bobbio, escreveu Sociedade e Estado na filosofia política moderna (Brasiliense, 1996)
Jorge Zaverucha, professor emérito da Escola Superior de Magistratura de Pernambuco e afiliado internacional da Universidade de Calgary (Canadá). É autor do livro ““FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia 1999-2002” (Record, 2005)
dossiê
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autor de Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008), A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006) entre outros
dossiê
Norman Lebrecht, escritor e crítico musical britânico. Apresenta o programa lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista CULT e autor de Maestro, obrasprimas & loucura (Record, 2008)
A Democracia e seus impasses A democracia para além do Estado de direito? por Vladimir Safatle
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O Brasil é uma semidemocracia? por Jorge Zaverucha
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Democracia no Brasil: um breve histórico por Gunter Axt
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Democracia em debate Três pensadores discutem os rumos da democracia no Brasil e no mundo
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Observar a democracia com as lentes de Bobbio por Michelangelo Bovero
da Universidade de Paris VII-Diderot. É co-organizador de Brasil contemporâneo: crônicas de um país incógnito (Artes e Ofícios, 2006)
Marcia Tiburi, filósofa e escritora. É colunista da revista CULT e autora de Mulher de costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofia em comum (Record, 2008), entre outros
Tony Monti, escritor e doutorando em teoria literária pela USP. É autor de O mentiroso (7Letras,2003) e eXato acidente (Hedra, 2008)
Francisco Bosco, ensaísta e escritor. É colunista da revista CULT e autor de Banalogias (Objetiva, 2007), entre outros Rivadavia
Democracia corrompida por Slavoj Žižek
Gunter Axt, professor visitante de história da USP e
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oficina literária
Julián Fuks, escritor e mestre em literatura hispanoamericana pela USP. É autor de História de literatura e cegueira (Record, 2007)
Patrícia Batilani
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Arquivo pessoal
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Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP. É
Daniel Deák
A democracia e seus impasses
Cultura em Movimento
40º Festival internacional de Inverno de Campos do Jordão Em julho de 1970, eram realizados os primeiros Concertos de Inverno de Campos do Jordão. A iniciativa seria o embrião daquele que se tornaria o maior festival de música erudita da América Latina: o Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. A presente edição, a 40ª da história do evento, traz como tema O Ano da França no Brasil e ainda homenageia o compositor Heitor Villa-Lobos, falecido há 50 anos. Um dos destaques da programação é a presença de músicos solistas e professores do Conservatório de Paris, fato inédito no festival. O maestro Guillaume Bourgogne, o violinista Philippe Aïche e o clarinetista Jérôme-Julien Laferrière são algumas das atrações francesas confirmadas. “Será inicialmente o encontro de grandes artistas e instrumentistas cujo trabalho é particularmente reconhecido, seja nos naipes dos sopros, das cordas, da percussão, no campo da composição ou da análise. Além disso, permitirá ao público brasileiro conhecer uma nova geração importante de músicos, não tão conhecidos do outro lado do Atlântico”, comenta Gretchen Amussen, diretora do Conservatório de Paris. Para Paulo Zuben, diretor executivo do festival, esse intercâmbio musical franco-brasileiro permite trazer ao país “o que há de mais moderno e
sofisticado no ensino de técnicas instrumentais e interpretativas”. Além dos convidados franceses, o evento reúne estrelas de primeira grandeza da música mundial, como os pianistas Nelson Freire e Cristina Ortiz, e os violoncelistas Antonio Meneses e Dimos Goudaroulis. A homenagem a Villa-Lobos ocorre em todos os concertos, nos quais haverá ao menos uma de suas obras. Ao longo de 23 dias, serão 45 espetáculos, 18 deles gratuitos. Paulo Zuben acredita que, ao oferecer concertos gratuitos, o festival contribui não só para democratizar o acesso aos concertos, mas principalmente para formar um novo público apreciador de música erudita. O caráter pedagógico é um dos pilares do festival. Serão distribuídas 146 bolsas de estudos para músicos nacionais e estrangeiros. Os bolsistas brasileiros concorrem aos prêmios Eleazar de Carvalho – que concede ao vencedor uma bolsa de estudos no exterior – e Camargo Guarnieri, que oferece duas bolsas nas classes de composição e regência. “O aspecto pedagógico é a principal característica, já que foi essa a grande visão dada pelo maestro Eleazar de Carvalho durante a primeira década de existência do evento, o que proporcionou o crescimento e o prestígio que o festival tem nos dias de hoje”, completa Paulo Zuben.
Fotos: Divulgação
Atrações de 2009: os pianistas Nelson Freire e Cristina Ortiz e o violoncelista Dimos Goudaroulis
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ENTREVISTA
DANIEL LINS
O pensamento interdisciplinar Alheio aos jargões da história da filosofia, Daniel Lins fez da interdisciplinaridade o cerne de sua obra MARCIA TIBURI
D Acervo CPFL
aniel Lins é professor da Universidade Federal do Ceará e ativo em diversos setores da sociedade cearense. É também pesquisador da subjetividade e da vida contemporânea. Estudou profundamente a história da filosofia no Brasil e na França – onde fez a maior parte de sua formação acadêmica. Formou opiniões próprias, sem aderir ao jargão da história da filosofia. Investiu no rigor da experiência do pensar que não teme a escolha de objetos da vida comum.
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As manifestações contemporâneas das teorias que enveredam pela sociologia e pela psicanálise forjam em seus diversos livros um diálogo em que a interdisciplinaridade e a pluralidade são básicas. Pensador para além das fronteiras, manifesta uma coragem da teoria que lança um novo programa para o contexto do debate brasileiro. Um debate em que estão em cena a coragem, a ousadia e a defesa de um ideal de resistência em que o desejo dê asas à escrita, ao diálogo e à reflexão sobre a realidade social e política.
CULT – Muito já se falou sobre a moda da filosofia no Brasil e na França. Existe alguma diferença entre o que acontece lá e o que acontece aqui? Daniel Lins – Mais que um “efeito” ou uma moda, o boom da filosofia na França ou no Brasil é um fato indiscutível. Há um imenso sucesso editorial: a filosofia se vende bem. Fazer filosofia pode ser um bom negócio. Até aí, nada contra. Os problemas surgem quando os efeitos perversos de tamanho sucesso achatam os conceitos, banalizam as ideias, sacralizam o caráter leigo do pensamento reduzindo-o à mera autoajuda, à reflexão, à discussão ou, pior ainda, à comunicação, isto é, à palavra de ordem. A filosofia nem reflete nem discute: ela pensa e cria conceitos. Ora, criar conceitos não é da ordem da reflexão, menos ainda da comunicação, pois só se pensa por necessidade. Discussão, reflexão, comunicação, eis o tripé aniquilador de pensamento-tesão, pensamento amoroso, sempre à margem, que faz mal, dói, transforma um mundo, um país, uma pessoa, ideologias e credos. Pensamento, pois, como blocos de sensações, o oposto da representação, legitimadora maior do capitalismo primário, entre outros. Eis, pois, a imensa diferença entre o boom da filosofia no Brasil e na França. O sucesso da filosofia, ao emergir na França com a força de um dragão, encontrou um terreno preparado, toda uma experimentação desejante, rebelde; uma tradição filosófica nutrida por uma plêiade de pensadores, múltiplas correntes e escolas. E, finalmente, os séculos 19 e 20 com Nietzsche, Deleuze, Heidegger, Derrida, Foucault, Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu, Levinas, e a lista não para. Não esquecer também que a filosofia faz
ENTREVISTA parte do currĂculo de todo jovem francĂŞs. A grande diferença entre o boom da filosofia na França e no Brasil pode ser assim resumida: a França ĂŠ uma repĂşblica leiga, um paĂs praticamente agnĂłstico, amante inflamado das revoluçþes e das artes, da liberdade e do prazer de ler. Nesse contexto, dificilmente o boom filosĂłfico se tornaria uma teologia chique para os pobres. Esse efeito perverso, que começa a ser observado em algumas publicaçþes de certa “pop filosofiaâ€? no Brasil, denota a nĂŁo autonomia de um pensamento implicado em uma histĂłria – que ĂŠ a nossa – marcada pela discussĂŁo, pelos arranjos e pela “compreensĂŁoâ€?, sobremodo, vinculados ao mundo dos negĂłcios, da lĂłgica mercantil e do mito do enriquecimento rĂĄpido cujos sĂmbolos proeminentes sĂŁo a loteria e o futebol: dormir “pobreâ€? e acordar milionĂĄrio! Nascer na favela e tornar-se bilionĂĄrio! Na falta de uma tradição filosĂłfica rigorosa, uma nova filosofia babilĂ´nica emerge no Brasil: a filosofia lotĂŠrica. CULT – No Brasil, Deleuze tornou-se um discurso pronto que se usa em diversos campos das ciĂŞncias humanas, uma repetição em que se perdeu de vista o diĂĄlogo. AtĂŠ que ponto o fascĂnio com uma teoria pode inviabilizar a liberdade de pensar o que essa mesma teoria propunha? Lins – Eis uma excelente questĂŁo. A academia brasileira dificilmente estaria preparada para se deixar, de fato, contagiar ou ser afetada pela “cultura no pluralâ€?, pela interdisciplinaridade. Todavia, a academia cria tambĂŠm suas linhas de fuga para nĂŁo sufocar Ă repetição do mesmo, Ă redundância careta que tem afastado milhares de jovens de nossas faculdades pĂşblicas. Existem, em todo o Brasil, blocos de singularidades no âmbito da academia e, diria mesmo, apesar da academia. O que domina, contudo, ĂŠ ainda uma burocracia morna e lutas imaginĂĄrias – na sua maioria – ou reais de poder. A academia ĂŠ muitas vezes uma arena, com combates resultantes de ressentimentos acumulados ao longo dos anos, em que, evidentemente, reinam a atmosfera edipiana, as guerras fratricidas, o desafeto sem limite que se instaura e paralisa a prĂłpria instituição. A transformação ĂŠ, porĂŠm, possĂvel e
DANIEL LINS
acontece. Os atores dessa mudança sĂŁo em sua maioria anĂ´nimos, mas hĂĄ um trabalho de formiga, Ă s vezes contra todos e contra tudo. CULT – Como vocĂŞ vĂŞ a questĂŁo da interdisciplinaridade no Brasil de hoje? VocĂŞ acredita que nossa academia estĂĄ preparada para o livre pensar e para novas conexĂľes teĂłricas e prĂĄticas? Lins – A interdisciplinaridade obedece Ă s exigĂŞncias do Programa Nacional de Educação de terceiro grau, mas de modo ainda simbĂłlico. Ela ĂŠ inimiga do improviso, da ausĂŞncia de rigor etc. É algo muito sofisticado, exige uma formação inserida no mundo contemporâneo, no aprendizado das lĂnguas, na relação mĂnima com as ciĂŞncias e, sobremodo, na eliminação da ignorância: a transformação dos preconceitos que fundamentaram e ainda fundamentam a academia brasileira, em muitas de suas vertentes. Eis o maior problema da interdisciplinaridade. NĂŁo a arte dos medĂocres; ao contrĂĄrio, ĂŠ papo sĂŠrio, supĂľe muita pesquisa, 99% de trabalho e 1% de talento. TerĂamos, entĂŁo, de revisitar, desconstruir e repensar a universidade. CULT – Como vocĂŞ, que conviveu com Deleuze e ĂŠ estudioso de sua obra, sustenta sua relação com a psicanĂĄlise? Lins – Ao encontrar (que encontro!) Gilles Deleuze, em 1971, encontrei o desencontro, a singularidade, e nĂŁo a certeza que deixa as pessoas burras, sem poesia nem vontade de viver, e fabrica microfascismos cotidianos. Minha vida tomou outro rumo. Continuei, contudo, minha formação atĂŠ o final. O adeus Ă psicanĂĄlise aconteceu em 1979. Sem dramas, pois nĂŁo acreditava mais nas teorias lacanianas. Palavra de ordem? Juiz ou legislador? A longa formação em psicanĂĄlise, filosofia, sociologia e antropologia, com LĂŠviStrauss, funcionou, todavia, como excelente intercessora da minha chegada Ă esquizoanĂĄlise, pensada e experimentada por FĂŠlix Guattari. A leitura de O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, mudou nĂŁo apenas minha relação com o discurso psicanalĂtico, mas mudou de uma vez por todas a prĂłpria psicanĂĄlise. Entendo que alguns “leitoresâ€? de Deleuze tentem aproximar sua filosofia da psicanĂĄlise
DIFĂ?CIL ESCOLHER QUAL LER PRIMEIRO. AINDA BEM QUE A DĂšVIDA NUNCA FOI PROBLEMA PARA QUEM GOSTA DE FILOSOFIA.
SÉRIE INTRODUĂ‡ĂƒO Os maiores especialistas mundiais nos mestres da filosofia apresentam as ideias principais e as grandes contribuiçþes de Kant, Descartes e AristĂłteles. VocĂŞ pode escolher um sĂł, mas os pensadores concordariam: levar a sĂŠrie ĂŠ uma sĂĄbia decisĂŁo.
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LITERATURA
CRÍTICA
A história de uma alma O uruguaio Juan Carlos Onetti, cuja novela O poço chega ao Brasil, recusou os arroubos épicos de seus contemporâneos e tornou-se um marco da narrativa moderna JULIÁN FUKS
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as razões do mercado convém guardar distância: o espírito mais acerbo dirá que a generosidade na acolhida de uma obra é inversamente proporcional à generosidade da obra em si, sua riqueza, sua qualidade intrínseca; mas se alguém quiser contradizê-lo, por otimista ou ingênuo, terá à sua disposição inúmeros exemplos. Na história da literatura, após séculos e séculos de adequações e rompimentos, a abundância de boas exceções tem provocado o efeito colateral de obscurecer a regra. Azar dos críticos: terão de socavar esse morro de confusões e aparências, esse monte feito de clássicos eternos e últimos best-sellers, se quiserem reconstituir a planície das coisas certas. Hipóteses interessantes foram aventadas, mas ainda não se terminou de entender por que, entre os anos 1950 e 1970, ocorreu o curioso fenômeno editorial que ficou conhecido como boom da literatura latino-americana. De um dia para o outro, bons autores que antes facilmente seriam relegados ao silêncio ganharam, em vez do esquecimento habitual, o mundo: García Márquez, Cortázar, Vargas Llosa, Rulfo, Fuentes, lidos com a atenção que só recebiam europeus e estadunidenses. Algo a ser celebrado, sem dúvida, por brios continentalistas, mas que pouco revela sobre a realidade das forças que o governam. Algumas
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perguntas sem resposta: por que foi nesse específico momento da história que o mundo dito civilizado abriu os olhos para estes grotões das letras? Teriam as cidades antigas que esses velhos homens habitavam, e as páginas caudalosas com que tratavam de glosá-las, se tornado subitamente claustrofóbicas? Se o boom era exceção, talvez a exceção da exceção ajude a explicar a regra, ou o caso. Superfícies neutras
Hipóteses interessantes foram aventadas, mas ainda não se terminou de entender por que, entre os anos 1940 e 1980, o escritor uruguaio Juan Carlos Onetti foi deixado de fora do boom da literatura latino-americana. Guardava semelhanças em relação aos demais autores contemplados, tinha em suas tramas um toque do exotismo que fazia cintilar as pupilas dos leitores distantes, até inventara uma cidadezinha pitoresca onde se passavam quase todas as suas histórias – semelhante, digamos, a Macondo ou Comala. Sua Santa Maria poderia ser cenário perfeito para abrigar uns tantos caracteres peculiares e confirmar a exuberância que já se estabelecera nas imaginações alheias. Mas não, Onetti não participou do boom e seus livros se habituaram ao âmbito restrito dos sebos e das pequenas livrarias, circulando tãosomente entre as mãos de uns poucos aficionados. Seu editor até tentou
alavancar os lucros quando, no lançamento do romance mais ambicioso, A vida breve, alertava o leitor já na orelha do livro: “Não tema que se trate de um experimento literário, como se costuma classificar com desprezo todo abandono dos moldes notórios. É, pura e simplesmente, um romance como todos os de lei: um relato fluido, coerente e ameno, que o leitor há de seguir com a mesma intensa curiosidade, da primeira à última página”. Para a sorte de Onetti, o alerta não emplacou, e quem leu soube que aquele não era um romance como qualquer outro. Para compreender a diferença talvez baste ler O poço, a primeira novela publicada por Onetti, em 1939, e que agora chega traduzida ao português. Um texto curto, de 50 páginas, escritas por um autor jovem que mal dera início a seus empenhos criativos, mas que já trazia nos propósitos o germe de todo seu projeto estético. Um texto com tintas autobiográficas, as memórias de um tal Eladio Linacero que se põe a escrever sem muita razão numa noite qualquer, e que aporta algumas das formulações-chave para entender, se não ainda a distinção em relação aos demais autores da época, ao menos algo de seus livros vindouros: “Dizem que há diversas maneiras de mentir; mas a mais repugnante de todas é falar a verdade, a verdade inteira, ocultando a alma dos fatos. Porque os fatos são sempre vazios, são recipientes que vão tomar a forma do sentimento que
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LITERATURA
os preencha”. “Gostaria de escrever a história de uma alma, dela sozinha, sem os acontecimentos em que teve que se envolver.” É como se captasse o momento exato em que se debruça sobre a folha em branco e começa a produzir sua extensa obra, mas num ato que não é o da rendição, não é o do apelo a modelos consabidos, não é o da entrega ao estatuto superior da história. Narrar, para Onetti, é sempre se aproximar, tateando, de acontecimentos, de palavras ou de sonhos, para desvelar o que subjaz a suas superfícies neutras. Personagens, fatos e cenários são meros invólucros, e referilos é tarefa talhada de incertezas. Derrota literária
Vinte anos mais tarde, na novela que divide com O poço as páginas da edição brasileira, tudo isso já teria ganhado corpo e consistência. Santa Maria já fora fundada, plasmada na mente de um dos personagens de Onetti, “um universo saindo do fundo preto de uma cartola”. Em Para uma tumba sem nome, a cidade se mostra habitada por vozes, seres que repartem ou disputam as palavras tentando constituir, em suas múltiplas versões, a história de uma morte. Mas quem morre ou como morre é o que menos importa: é indiferente se o episódio é de Rita ou de um bode, pois Rita e o bode são apenas papéis representados
CRÍTICA
O CENTENÁriO DE JUAN CArLOS ONETTi
O escritor uruguaio nasceu em 1909 e morreu em 1994, tendo vivido em Montevidéu, Buenos Aires e Madri. Em 1939 publicou, em edição própria, O poço, uma novela que já anunciava os rígidos preceitos que marcariam sua produção posterior, em romances como A vida breve, Junta-cadáveres e O estaleiro. A maior parte de seus enredos se passa em Santa Maria, um povoado fictício ideado por um de seus personagens. Escritor de escritores, recebeu em 1980 o Prêmio Cervantes de literatura.
por corpos quaisquer, são destinos que se cumprem. O que interessa são as “coisas que haviam escolhido Rita para se mostrarem: o absurdo, a miséria, a obstinação voragine”. O que custou a Onetti a massa de leitores, talvez valha arriscar, foi o alcance de sua modernidade. Não lhe bastava denunciar o atraso de uma terra ignota, a pobreza em que se subsumiam nossas cidades, e tampouco o cativavam suas compensações fantásticas ou mágicas. Não lhe interessava fazer deste novo mundo a morada última da aventura, palco para os arroubos épicos de que os europeus pareciam sentir tanta falta. O mínimo a que podia almejar era a revelação da desgraça humana em sua totalidade, em cada uma de suas múltiplas derrotas. Entre elas, a derrota literária, a derrota do ato de contar histórias. E não se contentava em acusar o golpe, queria também apontar culpados: “culpados todos os habitantes do mundo, por terem nascido e serem contemporâneos daquela monstruosidade, daquela tristeza”. o poço/para uma tumba sem nome Juan Carlos Onetti Trad.: Luis Reyes Gil Editora Planeta 168 págs. – R$ 38
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COLUNA
MúSiCA POPULAR
Ainda há sumo para espremer da surrada discussão sobre o que nos leva a eleger ou rejeitar um artista ou uma música PeDro aLeXaNDre saNches
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ohnny Alf completou 80 anos em 19 de maio de 2009, poucos meses após o encerramento do festivo ano de comemoração dos 50 anos da bossa nova. Diferentemente do movimento que ele ajudou a pavimentar e que atravessou 2008 mimado em museus, pavilhões e ocas, Johnny passou seu aniversário num hotel-residência para idosos, em Santo André, no ABC paulista. Johnny Alf é um artista brasileiro, carioca, negro, de origem suburbana, largamente reconhecido como iniciador e inspirador de versos e notas musicais que se tornariam mundialmente consagrados como “bossa nova”. Ainda assim, parabéns a ele nesta data querida a comunidade cultural brasileira ofereceu com resistente parcimônia. Mesmo mestre inconteste (e em parte por temperamento próprio), tem se colocado historicamente à margem da bossa e de outras bossas. Unha e carne daquele movimento foram os cariocas Tom Jobim & Vinicius de Moraes, como todo mundo sabe. Galã além (ou aquém) de gênio, Tom deslizou pela música e pela moda montado em fina estampa de garotão de Ipanema. Vinicius era exestudante em Oxford, ex-crítico cinematográfico, poeta consagrado e ex-diplomata em Los Angeles e Paris quando, já maduro, vestiu melodias em versos como tristeza não tem fim / felicidade, sim. João Gilberto, 78 anos recémcompletos (como será a fatídica
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efeméride de seu 80o aniversário?), é baiano interiorano, de Juazeiro. Mas nasceu filho de pais prósperos e dono futuro de uma batida de violão que o diferenciaria de todos os demais mortais. A partir de 1958, gravitariam em torno de sua aura dezenas de jovens músicos oriundos da brisa zona sul do Rio de Janeiro (e do sexo masculino, em maioria absoluta, mais uma Nara Leão aqui, outra ali).
O castelo da MPB “ foi construído sobre a lógica violenta da luta de classes” Roberto Carlos, 50 anos de carreira musical nesta noite, tentou fazer bossa nova antes de virar Roberto Carlos. Vindo do interior do Espírito Santo, Cachoeiro de Itapemirim, principiou perseguindo as modas da hora, notadamente aquela orquestrada pela voz pequena de João Gilberto. Surgiu, é fato, titubeante e desorientado, mas, como todo mundo sabe, não é verdade que talento não possuísse. É pública e notória a historinha de que, ao tentar se intrometer nas rodas finas da bossa, foi congelado pelo desprezo de 11 em cada 10 daqueles jovens que orbitavam a lâmpada de João. Quem RC teria sido se a bossa não o tivesse desdenhado, jamais saberemos.
Assim como seus chapas Wilson Simonal, Erasmo Carlos, Jorge Ben e Tim Maia, Roberto morava no outro lado da cidade, zona norte, subúrbio. Para encontrar afluentes desobstruídos do rio chamado sucesso, precisaram, cada um à sua maneira, contornar a pontuda ilhota da bossa nova e inventar suas próprias engenhocas musicais, de preferência bem distantes da língua materna. Não se está tentando dizer aqui que a bossa nova era (e é) um castelo elitizado ao sopé do terreiro depois batizado de MPB, música POPULAR brasileira. Era e é, e também isso todo mundo sabe. O que aqui se quer afirmar é que esse castelo (o da MPB como um todo) foi construído sobre a lógica violenta da luta de classes. [O mesmo eu poderia falar de minha própria profissão, o jornalismo, mas isso é outra conversa.] Ou não seriam de origem social e tom da pele as mais gritantes diferenças entre Tom & João, de um lado, e Johnny Alf, do outro? Consta que Jobim chamava Johnny de “Genialf”, mas isso nunca foi divulgado pelo autor de “Eu e a brisa”, nem foi legitimado pela comunidade que, insinuava o próprio maestro soberano, tinha (tem?) vergonha de ser brasileira. E essa é uma história corriqueira, exemplos se amontoam. Antes de se tornar política e eticamente condenável, Simonal se tornou musicalmente grosseiro, pilantra, artífice da “pilantragem”, inverso
Renato dos Anjos
Questão de gosto?
COLUNA
MúSiCA POPULAR Divulgação/Augusto Cesar Costa
JOHNNY ALF: iniciador e inspirador de versos musicais que se tornariam mundialmente consagrados como bossa nova
simétrico (e negro) das sutilezas e dos maneirismos de outras bossas. Talvez tenha perdido a chance do perdão antes mesmo de – digamos em termos puritanos – pecar. Para se tornar semiunanimidade, a suburbana gaúcha algo abrutalhada Elis Regina teve de passar por um longo e dolorido processo de... “depuração”, “sofisticação”. O preço foi provavelmente alto demais para uma indomável que se tentava domesticar. Jorge Ben (Jor) faz a turma toda dançar até o sol raiar, mas alguém escuta a oficialidade bradar que Jorge é João, que Jorge é gênio, que Jorge é Jobim? Por que será que não? No seio da música mais popular brasileira, aquela à que foi negado o título de nobreza (fajuta?) “MPB”, a sutileza jamais foi reconhecida. Não faz diferença se é Waldick Soriano ou Odair José, o sujeito que venha de fora do eixo político-geográfico e não seja escolado está desde o berço condenado a não ter bossa, a não ser tropical(ista), a não saber fazer MPB. Sobre isso Paulo César de Araújo discorreu brilhantemente no libertário livro Eu não sou cachorro,
não – Música popular cafona e ditadura militar (Record, 2002). Chego finalmente à afirmação que mais gostaria de fazer. Somos (fomos?) uma coletividade que finge se importar (e se incomodar) com música baseada em critérios estritamente estéticos. É mentira. Do alto de nossos pedestais, costumamos discursar aos sete ventos contra a suposta “pobreza” musical de baladas românticas, boleros, modas sertanejas, raps e funks “americanizados”, pagodes “mauricinhos” (mas quem são mesmo os mauricinhos, cara-pálida?). É mentira. Apreciação estética está lá atrás em nossas listas de prioridades – não raro enchemos a boca para miar que não ouvimos e não gostamos deste ou daquele “cafona”. Não, os regentes de nossos “gostos” e “sensibilidades” musicais são mesmo os nossos preconceitos – sobre cor da pele, status social, sexo, orientação sexual, escolaridade ou o que for. A estética, coitada, é o bode expiatório que paga todo o pato. Não fosse assim, Johnny Alf talvez morasse dentro do castelo da MPB. Mas aí Johnny Alf não seria Johnny Alf. n°137
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LIvros
lançamentos
ALÉM DOS MUROS Nesta coletânea de 11 ensaios, os sociólogos Ruy Braga e Michael Burawoy apontam para uma nova função pública e crítica da sociologia. Com a intenção de trazer a produção acadêmica para o campo prático da sociedade civil, evitando assim o discurso excessivamente acadêmico e por vezes socialmente inoperante, esse novo conceito das ciências humanas propõe a intensificação do diálogo entre o pensamento sociológico e a ação social. Os autores sugerem a divisão, em quatro campos, do trabalho da sociologia: profissional, crítica, pública, e voltada a políticas públicas. A importância do livro pode ser medida pelas palavras de Francisco de Oliveira, no prefácio: “No Brasil, um país ‘francês’ pela relevância que o intelectual historicamente tem entre nós, uma sociologia pública está sendo requerida também com urgência”. Por uma sociologia pública – Ruy Braga e Michael Buroway – Editora Alameda – 288 págs. – R$ 44
ITINERÁRIO PRÉVIO O gaúcho Gerd Bornheim (1929-2002) tornou-se um dos nomes mais relevantes da filosofia brasileira, em razão de suas pesquisas de forte conotação existencialista, estabelecidas sobretudo a partir do contato com o pensamento de Heidegger e Sartre. Em Introdução ao filosofar, adaptação de sua tese de livre-docência que foi revista para esta nova edição, Bornheim dedica-se ao estudo do comportamento originador do filosofar, ou seja, da justaposição dos problemas que induzem a consciência a encontrar um ponto de partida seguro para o ato de filosofar (sem necessariamente remeter-se à história da filosofia). Embora não se trate de um livro convencional de especulação filosófica, Bornheim defende que o conhecimento desse itinerário prévio à definição de um início para o filosofar deveria ser uma das exigências fundamentais a toda experiência posterior do pensamento. Introdução ao filosofar – Gerd Bornheim – Editora Globo – 168 págs. – R$ 30
MASOQUISMO CORRIGIDO “Sendo o julgamento clínico cheio de preconceitos, devemos recomeçar tudo, e de um ponto situado fora da clínica, o ponto literário, a partir do qual foram denominadas as perversões em questão.” É assim que Deleuze define a intenção deste livro de 1967, que agora recebe a primeira tradução no Brasil, sobre a obra do escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch. Quando o psiquiatra alemão Krafft-Ebing criou o termo “masoquismo”, pretendia homenagear o autor que descreveu em detalhes um “tipo de sentimento da vida” posteriormente associado à perversão sexual e ao prazer obtido pela dor. Para Deleuze, entretanto, trata-se de um destino injusto para a obra de Masoch. No livro, procura-se rejeitar de início a unificação conceitual, operada principalmente pela clínica, das narrativas de Masoch com as descrições de Sade, que resultaram no termo “sadomasoquismo”. Para o filósofo, “basta ler Masoch para sentir que seu universo nada tem a ver com o de Sade”. Sacher-Masoch. O frio e o cruel – Gilles Deleuze – Jorge Zahar – 136 págs. – R$ 29,90
RECONSIDERAR A BARBÁRIE Resultado de três conferências realizadas no mês de maio de 2005, o livro do filósofo francês Edgar Morin enfatiza que a barbárie é produto direto da civilização ocidental, e não sua face complementar e antagônica. Após a análise dos momentos em que a dominação bárbara ditou os rumos da Europa e após a consideração das destruições sistemáticas que participaram do processo histórico do continente, o autor procura esclarecer os instrumentos teóricos que deveriam assegurar a regeneração do humanismo. Pois repensar o humanismo, para Morin, seria resistir às manifestações – discretas ou não – da barbárie nos dias atuais. Cultura e barbárie europeias – Edgar Morin. Trad.: Daniela Cerdeira – Bertrand Brasil – 108 págs. – R$ 29
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[DOSSIÊ]
sentidos para a
Democracia
Q
ue a democracia hoje esteja em crise, nos vários significados atribuídos a esta palavra, é uma afirmação banal, mas não por isso menos verdadeira.” A frase do pensador italiano Michelangelo Bovero resume o verdadeiro incipit que deu origem a este dossiê histórico da CULT. Poderíamos entender “histórico”, aqui, sob um duplo aspecto. Em primeiro lugar, percebemos que hoje uma reavaliação dos sentidos de democracia tornouse exigência fundamental de cidadania. Os escândalos corriqueiros que se convertem em norma no interior de nossas debilitadas instituições democráticas, os perigos de uma colonização cada vez mais devastadora do espaço político pelas leis de mercado e a falsa crença de que liberdade individual corresponde a liberdade econômica, as violações sistemáticas aos direitos humanos, são indícios, enfim, da precariedade normativa que o conceito de democracia enfrenta atualmente. “Crise” significa estado de incerteza ou de declínio. Portanto, um recuo teórico, capaz de nos fornecer subsídios para uma compreensão do verdadeiro alcance das ações efetivamente democráticas, deveria ser entendido como tarefa essencial e urgente, até para que direitos sociais historicamente conquistados não entrem em colapso diante dos excessos de barbárie política que presenciamos em governos ditos, inclusive, democráticos. Mas este dossiê também poderia ser considerado histórico porque conseguiu reunir pensadores renomados e de diferentes tradições para focalizar, no plano te-
Índice
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A democracia para além do Estado de direito?
O Brasil é uma semidemocracia?
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Democracia no Brasil: um breve histórico
O desafio de pensar a democracia em
A Constituição de 1988, tal como a anterior,
Séculos de um sistema educacional precário
tudo aquilo que se encontra à margem
tornou constitucional o golpe de Estado,
inviabilizam o conhecimento das regras do
do Estado de direito
desde que liderado pelas Forças Armadas
jogo democrático pelos cidadãos
Vladimir Safatle
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órico, essa crise da democracia no Brasil e no mundo. No primeiro artigo, o filósofo Vladimir Safatle analisa as relações entre justiça e direito no interior de “Estados ilegais” que, sob a falsa aparência do Estado de direito, bloqueiam o acesso efetivo de seus cidadãos ao exercício democrático de seus atos. Em seguida, o sociólogo Jorge Zaverucha explica seu conceito de “semidemocracia”, para mostrar que, no Brasil, ainda não há um quadro político estável que fortaleça suas próprias instituições democráticas. Já o historiador Gunter Axt descreve alguns momentos fundamentais da assimilação da ideia de democracia no Brasil. Por fim, dois artigos longos e inéditos de autores que se tornaram decisivos para o entendimento do atual estágio da democracia e de suas formas de superação. Michelangelo Bovero retoma e atualiza, nesse sentido, a concepção processual de democracia criada pelo filósofo político Norberto Bobbio. O filósofo esloveno Slavoj Žižek trata inicialmente do vínculo entre democracia liberal e capitalismo, usando o exemplo da China como sinal de fracasso dessa ligação, para em seguida chamar a atenção para o declínio da ética política de países centrais da Europa. Žižek pensa sobretudo no caso italiano, cujo primeiroministro encaminharia uma concepção renovada de “tirania democrática” e de barbárie, ao unir tecnocracia e populismo fundamentalista e ao adotar um procedimento cínico de suspensão da ética. (ES)
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Jorge Zaverucha
Gunter Axt
João Bittar
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DemOcrAcIA cOrrOmpIDA
DemOcrAcIA em DeBAte
cult convidou michael löwy, Fábio Wan-
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OBServAr A DemOcrAcIA cOm AS lenteS De BOBBIO
A teoria das regras constitutivas como
O potencial autêntico da democracia vem
derley reis e renato lessa para debater
instrumento de diagnóstico do grau
perdendo terreno hoje para a ascensão de
algumas das questões candentes da demo-
de democracia dos regimes políticos
um novo capitalismo autoritário
cracia no atual quadro político nacional e
contemporâneos
internacional Slavoj Žižek
Michelangelo Bovero n°137
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dossiê
A Democracia e seus impasses
Observar a democracia com as lentes de Bobbio A teoria das regras constitutivas serve como diagnóstico do grau de democracia nos regimes políticos contemporâneos Michelangelo Bovero
A
tradição de pensamento que alguns estudiosos quiseram chamar de “escola de Turim” tem, entre seus temas principais de reflexão, e não apenas de preocupação intelectual, mas também de compromisso civil, o problema da democracia. Trata-se na realidade de um problema complexo, ou de um nó de problemas particularmente intricado, que deve ser enfrentado, sobretudo, com os instrumentos teóricos da análise conceitual. A teoria analítica da democracia que foi elaborada dentro da escola de Turim, acima de tudo e eminentemente na obra de Norberto Bobbio, é em primeiro lugar uma teoria jurídica, distinta das teorias políticas, como, por exemplo, as de Giovanni Sartori ou Robert A. Dahl, e das teorias economicistas como as de Anthony Downs, e também de Joseph Schumpeter. A teoria de Bobbio é geralmente considerada a versão mais pontual e madura da chamada “concepção processual” da democracia, que, ao longo do século 20, para superar as ambiguidades e os equívocos das concepções “substanciais”, concentrou a atenção sobre as “regras do jogo”. Nos últimos tempos voltou-se a refletir sobre este núcleo interno da concepção bobbiana, a teoria das regras constitutivas da democracia, na tentativa de reconstruí-la, reformulá-la e empregá-la como instrumento de diagnóstico para medir o grau de democracia dos regimes políticos contemporâneos. A tabela bobbiana das regras democráticas 1 – Todos os cidadãos que alcançaram a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica e sexo, devem desfrutar dos direitos políticos, ou seja, todos têm o direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a exprima por eles; 2 – O voto de todos os cidadãos deve ter o mesmo peso;
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3 – Todas as pessoas que desfrutam de direitos políticos devem ser livres para poder votar de acordo com sua própria opinião, formada com a maior liberdade possível por meio de uma concorrência livre entre grupos políticos organizados competindo entre si; 4 – Devem ser livres também no sentido de ter condição de escolher entre soluções diferentes, ou seja, entre partidos que têm programas diferentes e alternativos; 5 – Seja por eleições, seja por decisão coletiva, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de considerar eleito o candidato ou considerar válida a decisão obtida pelo maior número de votos; 6 – Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições. Essas seis regras são chamadas de “procedimentos universais”, ou seja, as normas que estabelecem, de acordo com as fórmulas simples e iluminadoras de Bobbio, o “quem” e o “como” da decisão política – e que se encontram em todos os regimes geralmente chamados democráticos. Todas as regras enumeradas por Bobbio dizem respeito, direta ou indiretamente, à instituição que caracteriza a democracia representativa: as eleições. Hoje, e não sem bons argumentos, tende-se a não considerar indissolúvel o nexo entre eleições e democracia. Que as eleições são um indicador insuficiente da democracia de um sistema político é algo evidente, até mesmo banal. Mas isso não deve levar à atribuição de uma importância secundária à instituição das eleições, nem mesmo a negligenciá-la ou desacreditá-la, como às vezes tendem a fazer alguns promotores da (assim chamada) “teoria deliberativa da democracia” atualmente em voga. Um leitor de Bobbio poderia se limitar a confirmar outra obviedade banal: em
dOSSiê
A demOcrAciA e SeuS impASSeS
BrainPix
uma coletividade de grandes dimensões, a autodeterminação democrática não pode se realizar a não ser sob a forma da democracia representativa, e esta não pode sobreviver sem as eleições. Há quem pense que as eleições podem ser abolidas e substituídas pelas formas difusas de “deliberação” (seja lá o que isso signifique). É verdade que uma democracia “apenas” eleitoral pode ser uma democracia aparente, mas também é verdade que, abolidas as eleições, não se teria mais nenhuma democracia, nem aparente nem real.
nOrBertO BOBBIO: estabelecimento de seis “procedimentos universais” que valem como condições da democracia
critérios de democratização a tabela bobbiana das seis regras não é a tradução sintética em normas, ou em princípios inspiradores de normas, da concepção processual da democracia. assim, as seis regras são apenas a explicitação articulada de sua definição mínima “segundo a qual por regime democrático se entende principalmente um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, nas quais é prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”. também com o propósito de testar a validade e a fertilidade da teoria bobbiana, eu sugeri que esse “conjunto de regras” pode ser adotado e utilizado como um verdadeiro e apropriado critério de democratização, simplificado, mas eficaz, ou seja, como parâmetro essencial de um juízo que estabelece se este ou aquele regime político realmente merece o nome de democracia. na perspectiva de Bobbio, na realidade, as “regras do jogo” valem como condições da democracia. aplicando de um modo elementar e intuitivo a gramática do conceito de “condição”, pode-se dizer que, se essas regras encontrarem eco e aplicação real na vida política de uma coletividade, então essa coletividade pode se reconhecer e autodenominar democrática. no capítulo da Teoria geral da política que assumi como texto de referência, Bobbio nos convida a considerar as seis regras como condições separadamente necessárias e apenas conjuntamente suficientes: “não tenho dúvidas do fato de que basta a não observância de uma destas regras para que um governo não seja democrático”. em outro texto, Bobbio parece muito mais flexível: “nenhum regime histórico jamais observou completamente o conteúdo de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos democráticos”. começo observando que Bobbio considera “graus diferentes de aproximação do modelo ideal”. devemos esclarecer que o “modelo ideal” que ele menciona não é a soma das promessas e ilusões que a doutrina democrática moderna, de rousseau em diante, associou à prefiguração da comunidade política ideal. nesse sentido, Bobbio dizia que o distanciamento da prefiguração doutrinária e n°137
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oficina literária
Óculos de Drummond
Furtaram os óculos de Drummond. Sim, os óculos da estátua do poeta, situada no calçadão da velha Copacabana. O corpo e a cabeça permanecem lá, altivos, imponentes como o homem que, a despeito de franzino, era um gigante. A mídia já se encarregou de rotular a atitude como resultado do vandalismo de um grupo de homens. O que teria acontecido? Quatro rapazes passaram pelo calçadão após uma lauta rodada de chope, numa dessas noites quentes. Todos, sem exceção, no mesmo momento, foram tragados pelo olhar sereno do poeta. Ficaram inertes, petrificados como a estátua. Moviam apenas os músculos laríngeos para possibilitar que engolissem em seco. Precisavam refletir sobre o que
acontecera desde que, ainda moços, abandonaram as Minas Gerais e foram para o Rio. Pensaram naquela geração que, após tanta inovação, ainda queria continuar com aqueles projetos lá na capital. Lembraram-se da juventude, tempos da Folha de Minas, d’O Diário e de outros jornais. Pensaram na época em que sonhavam ser grandes escritores, usar a literatura como arma de combate. Recordaram-se de Getúlio e Capanema, da Biblioteca Nacional e do Instituto Nacional do Livro. Lembraramse de todo o projeto de construção nacional em voga naquele período. Quase todos foram tragados por ele! Cada qual olhou para os outros. Ainda estavam inertes: pensaram, pensaram, pensaram. Em uníssono resolveram surrupiar os óculos do poeta.
Ele não se incomodaria, por certo. Ao menos uma vez queriam ver o mundo pelas lentes daquele que foi o líder de sua geração. Eram as lentes de um outro moço que também fora para o Rio em busca de sonhos. E, depois, o que fariam com o objeto furtado? Uma noite com cada um. Revezariam, oras! O Rio, agora, parecia diferente. Os tempos eram outros. Lamentavelmente, a mídia jamais noticiará quem foram os quatro vândalos a subtrair os óculos do poeta: Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino, Fernando Sabino e Otto Lara Resende. Os quatro mineiros ainda regozijam-se à farta! Passam pelo calçadão, olham para Carlos e asseveram que não conseguem mais viver sem aquelas lentes.
Roberto Barbato Jr., doutor em ciências sociais pela Unicamp, é autor de Missionários de uma utopia nacional-popular: os intelectuais e o departamento de Cultura de São Paulo (Annablume, 2004) e Direito informal e criminalidade: os códigos do cárcere e do tráfico (Millennium, 2006).
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