138 DOSSiÊ
aNo 12
r$ 9,90
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O CONFLiTO DAS UNiVeRSiDADeS Pensadores analisam a degradação do ensino superior
eNTReViSTA
Zygmunt
Bauman
PARA O SOCiÓLOGO DA “MODeRNiDADe LÍQUiDA”, A POSSiBiLiDADe De UM NOVO MUNDO eSTÁ NO HOMeM
CAMiLLe PAGLiA A historiadora norte-americana fala de política, feminismo e homossexualidade
n o 138 agosto 2009
ÍNDICE
06 08
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do leitor
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coluna Márcia Tiburi: o documentário de Carla Gallo O aborto dos outros é o enunciado direto da dissimulação com que se trata a questão do aborto no Brasil atual
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ENTREVISTA Livro do pediatra francês Aldo Naouri auxilia as mães no estágio inicial da vida de seus filhos
LITERATURA Walnice Nogueira Galvão: há cem anos, o Brasil perdia Euclides da Cunha, um dos maiores nomes de sua literatura
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entrevista O sociólogo Zygmunt Bauman afirma que é preciso acreditar no potencial humano para que um outro mundo seja possível
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Reconhecida intelectual norte-americana, Camille Paglia fala à CULT de feminismo, homossexualidade, política e cultura pop
cultura em movimento San Paolo • Cinema: O milagre de Santa Luzia • Livro para pescaria com a linha do horizonte • Festival de Cinema de Gramado • Carybé em Miami • Músicas e causos dos mitos brasileiros
ENTREVISTA
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Pedro Alexandre Sanches: a história não costuma ser gentil com os artistas que optam por fazer da música uma ferramenta de engajamento
CRÍTICA Julián Fuks: Berlin Alexanderplatz, epopeico romance do alemão Alfred Döblin que ganha nova tradução, resiste à passagem das décadas graças à complexidade de seu protagonista
Festival de Cinema de Gramado
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MÚSICA CLÁSSICA Norman Lebrecht: o elo perdido entre passado e futuro
Reprodução/Creative Commons
Divulgação
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MÚSICA POPULAR
14 Entrevista Zygmunt Bauman
colaboradores desta edição
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Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.
ensaio
Escreveu Globalização e racismo no Brasil (Unegro, 2000) e organizou Mídia, cultura e violência (Celacc, 2009)
Francisco Bosco: a graça e a desgraça de Wilson Simonal
Pedro Alexandre Sanches, crítico musical e jornalista. É autor dos livros Tropicalismo - decadência bonita do samba (Boitempo, 2000) e Como dois e dois são cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004)
o conflito das universidades
Tony Monti, escritor e doutorando em literatura brasi-
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A universidade em debate Professores de instituições públicas e privadas discutem a crise no ensino superior
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Um conto de duas universidades por Alvaro Bianchi e Ruy Braga
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Universidade de resultados por Ricardo Musse
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A recente crise francesa por Yves Cohen
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leira pela USP. É autor de O mentiroso (7Letras, 2003) e eXato acidente (Hedra, 2008)
Walnice Nogueira Galvão, professora titular de teoria literária e literatura comparada na USP. É autora de Correspondência de Euclides da Cunha (Edusp, 1997), Euclides da Cunha: autos do processo sobre sua morte (Terceiro Nome, 2007), entre outros
Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP. É autor de Cinismo e falência da
O mal-estar nas ciências humanas por Vladimir Safatle
Arquivo pessoal
crítica (Boitempo, 2008), A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006) entre outros
Ricardo Musse, professor do departamento de sociologia da USP. É editor do Jornal de Resenhas (Discurso Editorial) e organizador do livro Fato social e divisão do trabalho (Ática, 2007), de Émile Durkheim
Norman Lebrecht, escritor e crítico musical britânico. Apresenta o programa lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista CULT e autor de Maestro, obrasprimas & loucura (Record, 2008)
oficina literária
Marcia Tiburi, filósofa e escritora. É colunista da revista CULT e autora de
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Mulher de costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofia em comum (Record, 2008), entre outros
tor do Cenedic – USP. Autor de A restauração do capital: um estudo sobre a crise contemporânea (Xamã, 1996), entre outros
dossiê O conflito das universidades
Francisco Bosco, ensaísta e escritor. É colunista da revista CULT e autor de Banalogias (Objetiva, 2007), entre outros
Julián Fuks, escritor e mestre em literatura hispano-americana pela USP. É autor de História de literatura e cegueira (Record, 2007)
Gunter Axt, professor visitante de história da USP e da Universidade de Paris VII-Diderot. É coorganizador de Brasil contemporâneo: crônicas de um país incógnito (Artes e Ofícios, 2006)
Yves Cohen, professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) de Paris e pesquisador associado do Cenedic – USP
Alvaro Bianchi, professor do departamento de ciências políticas da Unicamp. É autor de Transgressões: as ocupações estudantis e a crise das universidades (Sundermann, 2008) e de O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política (Alameda, 2008)
Arquivo pessoal
Ruy Braga, professor de sociologia da USP e dire-
Arquivo pessoal
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Acervo CULT
dossiê
Patrícia Batilani
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Do lEItor DOSSiÊ A DeMOCRACiA e SeUS iMPASSeS
COLUNA PeDRO ALeXANDRe SANCHeS
o dossiê é profundo e abrangente. acredito que este seja o caminho: temas abordados com profundidade e sem didatismos, como ocorreu com alguns dossiês que pareceram “drops culturais”. No meu entendimento, essa edição aponta um caminho: o tratamento criativo, inédito, profundo e provocador das problemáticas. repetições filosóficas e literárias abundam no mercado editorial contemporâneo. Esse não é o caso da Cult.
Foi uma surpresa encontrar na edição 137 a coluna de Pedro alexandre sanches. Como se não bastassem os textos polêmicos, e muito bem-vindos, de Norman lebrecht, que viram a música erudita de ponta-cabeça, teremos agora um espaço em que a música popular também será virada de ponta-cabeça. Devo acrescentar que ele começou muito bem com “Questão de gosto?”. Jorge Schroeder, por email
José Afonso Chaves, por email
Com respostas claras, diretas, sem se omitir nas questões, por vezes sinuosas, Daniel lins conseguiu ser bastante coerente com sua postura de multiplicidade, convidando-nos a refletir discutir e, o mais importante, pensar. Sandra Regina de Souzza Pesce, pelo site
acho muito oportuna a crítica à atual cultura acadêmica que separa rigor da criatividade. vida longa ao diálogo de multiplicidades. Fátima Vasconcelos, pelo site
Não conhecia o filósofo e gostei muito da entrevista. uma alegria por sua filosofia e pela busca por algo ligado ao dia a dia, sem pedantismo. Marcelo Alves da Silva, pelo site
Daniel lins confirma que o mundo deve deixar o cientificismo, sob o comando da filosofia. Benedito Cesar Saboia, pelo site
sempre achei o termo mPB um grande paradoxo, pois nos meios realmente “populares” esse tipo de música é visto de forma mitificada, distante, com o selo de música da elite. Enquanto aquilo que realmente toca nas ruas e nas festividades populares é tratado como submúsica, subarte, subcultura.
Nilo Carneiro, pelo site
Jucenberg Nascimento, pelo site
É com um sentido revolucionário e engajado que a revista Cult propõe o dossiê sobre democracia. um assunto, infelizmente, pouco discutido e proposto na maioria do mercado editorial brasileiro de revistas. a Cult não se reduz a discussões prontas para fisgar leitores, mas coloca problemáticas e convida a pensar.
Parece-me muito redutor prender essa discussão à luta de classes. a questão, a meu ver, está no paradoxo final: “Não fosse assim, Johnny alf talvez morasse dentro do castelo da mPB. mas aí Johnny alf não seria Johnny alf”. Por que não seria? É a música ou a classe social de alf que importa, afinal?
Emilio Salvetti Cordeiro, por email
Jefferson Candido, pelo site
TeSTe CULT – eDiÇÃO 137 a revista Cult premia com um exemplar do livro A democracia no mundo de hoje, de otfried Hoffe, cada um dos dez primeiros participantes do teste da edição anterior. os vencedores têm até trinta dias para retirar o prêmio na sede da revista (Praça santo agostinho, 70, 10º andar, Paraíso, são Paulo, sP), de segunda a sexta, das 9h às 18h. Confira os nomes:
lIsta Dos vENCEDorEs
eNTReViSTA DANieL LiNS
sem dúvida, michelangelo Bovero produziu em seu artigo a análise mais espetacular sobre a democracia. Ele, que ocupa a cátedra de Bobbio e é o maior conhecedor de sua obra, conseguiu com simplicidade emocionante escrever uma obra-prima.
• Eduardo do Espírito Santo Prado • José Paulo Pires Perestrelo • Jorge Luiz Schroeder • Gilson dos Santos • Antônio Jordão da Silva Junior • Rosângela Mara Sartori Borges • Pedro Henrique Carinhato e Silva • Lucas Barreto Dias • Angelita Matos Souza • Vladimir Oliveira Santos
as cartas devem ser encaminhadas para o e-mail cartas@revistacult.com.br ou para o endereço: Praça santo agostinho, 70 – 10º andar – Paraíso – são Paulo – sP – CEP 01533-070 Por motivos de espaço, reservamo-nos o direito de publicar parcialmente ou resumir o conteúdo dos comentários e das cartas enviadas à redação
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n°138
Os autores desta obra mostram as concepções e abordagens conceituais sobre a consolidação da comunicação pública no Brasil, bem como a estrutura, o financiamento, o conteúdo, a programação, entre outros elementos que caracterizam esse sistema.
ser jornalista ‐ A língua como barbárie e a notícia como mercadoria Ciro Marcondes Filho
Questionar, ponderar, mostrar a realidade sem manipulá‐la e não alterar os fatos pesquisados visando o sensacionalismo. Este livro mostra que a não adoção dessas posturas prejudica seriamente a credibilidade do jornalista, tendo em vista que o seu trabalho deve ser calcado na verdade e no debate dos fatos.
ser jornalista ‐ O desafio das tecnologias e o fim das ilusões Ciro Marcondes Filho
Este livro aborda o empenho, a ética e o respeito, valores que devem circundar o trabalho do jornalista, profissional comprometido com a verdade dos fatos, e não com a mera difusão de conjecturas.
Criação PAULUS - A PAULUS se reserva o direito de alterar ou retirar o produto do catálogo sem prévio aviso. Imagens meramente ilustrativas.
sistemas públicos de comunicação no mundo Diogo Rodrigues, Flávia Azevedo, Jonas Chagas e sivaldo Pereira.
Divulgação/Vincenzo Scarpellini
Cultura em Movimento
gigantes: “Ereto, o Edifício Itália se subtrai obstinadamente ao abraço sinuoso do Copan. São como dois lutadores que retêm suas forças à espera do choque”
San Paolo Imersos no cotidiano caótico e habituados ao moto-contínuo da megalópole, paulistanos por vezes deixam escapar a poesia da cidade. Porém, ao olhar de estrangeiros e migrantes, contrastes e paisagens tendem a revelar-se sob novas nuances. Em San Paolo: desenhos e prosa da cidade, livro do artista plástico italiano Vincenzo Scarpellini, a cidade é registrada em ilustrações e pequenos poemas em prosa. Monumentos, regiões e flagrantes do cotidiano paulistano são motes para a poesia, além de ganharem novos matizes na técnica giz pastel. “Por que o pôr do sol em lugares considerados desprezíveis é mais significativo do que um belo panorama? Porque reduz cores e formas ao essencial e torna inteligível o caos urbano”, assim Vincenzo capta o fim de tarde no Viaduto do Gasômetro, no Brás. Os desenhos e textos presentes no livro foram originalmente publicados na coluna assinada por Vincenzo todas as quartas-feiras no jornal Folha de S.Paulo, entre 2000 e 2006, ano em que faleceu
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precocemente, aos 41 anos. Para Gilberto Dimenstein, que assina a apresentação do livro, “aqueles desenhos revelavam um olhar original sobre São Paulo – um olhar ao mesmo tempo íntimo e estrangeiro. Dessa combinação (...) surgia, nas cores e nas formas, a percepção não só do que era a cidade, mas do que poderia ser”.
San Paolo: desenhos e prosa da cidade Vincenzo Scarpellini Publifolha 176 págs. R$ 39,90
Cultura Em movImENto Divulgação
POR QUe VALe O iNGReSSO?
NO FiLMe: Dominguinhos visita o músico Sivuca, morto em 2006
o milaGre de Santa lUZia QUANDO: a partir de 28 de agosto DiReÇÃO e ROTeiRO: sérgio roizenblit
as diversas vozes da sanfona. Essa é a marca de O milagre de Santa Luzia, longa que ganhou o prêmio de melhor trilha sonora no 41o Festival de Brasília, ano passado. No filme, Dominguinhos, o principal sanfoneiro vivo no país, viaja de carro pelo Nordeste, Pantanal, rio grande do sul e são Paulo em busca de sanfoneiros. a história começa em Pernambuco, e não poderia ser diferente. lá nasceu luiz gonzaga, o rei do baião. o nome do filme é um tributo a gonzaga, nascido em 13 de dezembro, dia de santa luzia. É também uma homenagem a dois importantíssimos sanfoneiros, sivuca e mario Zan, que faleceram em 2006, depois de gravarem depoimentos para o longa. O milagre de Santa Luzia traz ainda um dos últimos registros do poeta nordestino Patativa do assaré, que recita um longo poema dedicado ao rei do baião. Em depoimento à Cult, Dominguinhos falou um pouco mais sobre os sanfoneiros e comentou sua participação no filme: “o filme conta um pouco da história dos sanfoneiros de diferentes lugares do Brasil. Dá para ver, por exemplo, como é brutal a diferença entre os sanfoneiros do Nordeste, aquele povo sofrido, que toca com a sanfona bem fechada, e os músicos do sul, que abrem bem a sanfona e fazem uma música mais romântica. o gilberto monteiro, sanfonista do sul, nunca abre o olho quando toca. No filme, eu converso com muitos sanfoneiros, por isso foi uma experiência maravilhosa. a sanfona é um pedacinho de mim”.
LiVRO PARA PeSCARiA COM LiNHA DO HORiZONTe “a natureza está presente no que escrevo por um simples motivo: ela é minha casa.” Natural de Belém, o engenheiro florestal e poeta Paulo vieira fez da natureza seu lar e sua musa. os banhos nos igarapés, as frutas colhidas nos quintais, as tragédias da floresta, as antíteses da capital paraense. tais lembranças são o substrato da sua poesia presente em Livro para pescaria com linha do horizonte. “são poemas, muitas vezes em prosas curtas, quadras populares ou epigramas, feitos ao jeito da infância, rodeada de natureza, árvores, bichos e sonhos, rios e risos”, define. Escrito entre 2002 e 2006, o livro sagrou-se vencedor do Prêmio Casa de Cultura mário Quintana em 2006, na categoria poesia para jovens. Embora vencedora, a obra não foi publicada de imediato. somente ao fim de 2008, por iniciativa do pesquisador milton Kanashiro, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa agropecuária) decidiu financiar a publicação. Para a surpresa do autor, o projeto foi acrescido de código braile e das ilustrações da artista D’arcy albuquerque. Paulo vieira reconhece o alto custo para viabilizar projetos como esse, porém espera que o mercado editorial brasileiro invista mais nas obras em braile, ampliando, assim, o alcance da poesia. “acredito que é preciso haver um esforço das editoras em parceria com o poder público para que mais livros em braile sejam editados Brasil afora. afinal, os olhos nunca foram a única maneira de enxergar as coisas, principalmente a poesia.”
livro para pescaria com linha do horizonte Paulo vieira Ilustr.: D’arcy albuquerque Embrapa 80 págs. r$ 70 n°138
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ENtrEvIsta
ZYgmuNt BaumaN
a utopia possível na sociedade líquida o sociólogo afirma que é preciso acreditar no potencial humano para que um outro mundo seja possível DENNIS DE OLIVEIRA
Z
Reprodução/Creative Commons
ygmunt Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem um histórico de vida que passa pela ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista. Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de “modernidade líquida” para definir o presente, em vez do já batido termo “pós-modernidade”, que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico. Bauman define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo sociólogo à revista CULT.
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ENtrEvIsta CULT – Na obra tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após a queda dos regimes do Leste europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia? Zygmunt Bauman – Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. a primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. a segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que “nós, seres humanos, podemos fazê-lo”, crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir. CULT – Por que se fala tanto hoje de “fim das utopias”? Bauman – Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. a principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o “equilíbrio natural”. a ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus. Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. o jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas “daninhas”. É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador. CULT – O que isso significa para a humanidade de hoje? Bauman – ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. a única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. a maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado. se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que
ZYgmuNt BaumaN
um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma “associação de caçadores”, se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa. Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de “individualização”. E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com “consciência ecológica” servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de “desregulamentação”.
que a utopia renasça, “éPara preciso a confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo”
CULT – Diante disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social? Bauman – É óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para a esquerda utópica. muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas. mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos e força suficientes para poder fazê-lo. Essas forças poderiam ser exercidas pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou Jacques attali em La voie humaine, “as nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo”. E as forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de “jardineiros”, favorecem a caça e os caçadores da vez. o Thesaurus [dicionário da língua inglesa, de 1892] de roget, obra aclamada por seu fiel registro das sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito de utópico como “fantasia”, “fantástico”, “fictício”, “impraticável”, “irrealista”, “pouco razoável” ou “irracional”. testemunhando assim, talvez, o fim da utopia. se digitarmos a palavra utopia no portal de buscas google, encontraremos cerca de 4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria “morto”. vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. o primeiro da lista e, indiscutivelmente, o n°138
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lItEratura
EuClIDEs Da CuNHa
o legado de Euclides da Cunha Há cem anos, o Brasil perdia um dos maiores nomes de sua literatura WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
Q
uando nos abalançamos a avaliar o legado de Euclides da Cunha, logo nos defrontam alguns tropeços, derivados da amplitude de seus interesses e da impermanência de suas atividades. Espírito irrequieto e índole aventuresca, embora nem sempre lembrados quando se trata desse autor, são todavia traços marcantes na conformação não só de seu temperamento como de sua obra. Vivendo e morrendo durante a vigência da belle époque, um rápido relance de sua época pode ajudar a entendê-lo. Esse período, que recobre a virada de século até a guerra de 1914, foi assinalado entre nós por uma intensa galomania. Tudo aqui seguia então o modelo francês. A reforma Pereira Passos, que urbanizou e modernizou o Rio de Janeiro, capital do país, foi executada conforme o paradigma da reforma Haussmann, de Paris. Largas avenidas de traçado retilíneo, interrompidas regularmente por uma praça de que irradiavam, com palacetes formando o casario de frente, forçaram a semelhança. Publicavam-se matérias em francês nos principais jornais e revistas. Grã-finos, artistas e intelectuais buscavam Paris com frequência, como era o caso de Olavo Bilac, entre tantos outros. Vinham de Paris as modas do vestuário, os hábitos da elegância, os costumes da sociabilidade, mas também maneiras de pensar, os padrões estéticos e as novidades da ciência. O anseio de conhecer o Brasil
De toda essa francesice, Euclides iria divergir, juntamente com uns poucos contemporâneos. Fizera seus estudos na Escola Militar, uma das mais avançadas instituições de ensino que já houve no país. Muitos ministros e parlamentares continuavam a dar aulas ali enquanto atendiam a seus mandatos, o que evidencia o prestígio da escola. Ali também se originaram algumas mentes privilegiadas, como Benjamin Constant, que seria, imediatamente após a proclamação da República, o primeiro ministro da Guerra e, em seguida, da Educação, autor da reforma de ensino republicana, seu mestre desde o colegial. Entre os colegas,
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n°138
caberia lembrar Cândido Mariano Rondon, criador do indigenismo e do Serviço de Proteção aos Índios, que comandou a instalação das linhas de telégrafo que uniram o sul ao norte do país, através dos sertões. O que havia de comum neles todos era o projeto de conhecer e dar a conhecer o Brasil, o engajamento e o senso de missão. Assim, voltaram as costas para a Europa e buscaram decididamente a hinterlância. Em mais de uma ocasião Euclides, que já em sua poesia juvenil manifestava ansiar pelos sertões, embrenhou-se pelo país adentro. Deixaria a farda para ser engenheiro de obras públicas do estado de São Paulo, profissão que exerceu enquanto residia em cidadezinhas do interior. Seu mais importante livro resultaria de uma incursão ao sertão da Bahia, quando foi fazer a cobertura da guerra de Canudos. E mesmo mais tarde, já famoso e membro eleito da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ainda viajou para a Amazônia, enfrentando as agruras de uma expedição que durou ao todo um ano e meio, após pleitear e obter junto ao barão do Rio Branco o cargo de presidente da comissão de reconhecimento do Alto Purus. Euclides estava permanentemente descontente com sua situação atual e arrenegava dela, recomeçando o processo quando conseguia trocá-la por outra, para logo reiniciar as reclamações. É o que se pode observar nas tentativas malsucedidas de fazer carreira política ou de transferir-se para o magistério, algo que conseguiria apenas poucos meses antes de morrer. Nota-se que o fio condutor de toda a sua obra, mais voltada para dentro do país do que para fora, tratado com constância, é o tema da viagem, em suas várias metamorfoses. Pelo alcance, mas também pelo número de páginas que lhe deu mais espaço para desenvolver seus interesses, Os sertões é a obra em que seu talento culmina. Entretanto, não devem ficar na sombra os ensaios e artigos que escreveu ao longo da vida, intervindo constantemente no debate público: alguns são de fato notáveis. Recolheu-os
lItEratura Acervo Academia Brasileira de Letras
eUCLiDeS DA CUNHA: engajamento e senso de missão no projeto de conhecer o Brasil
em Contrastes e confrontos e À margem da história. Nos dois volumes destacam-se os ensaios amazônicos, resultantes de sua excursão ao Alto Purus, em que produziu algumas das mais válidas reflexões que já se fizeram sobre a região, sua natureza e seus habitantes. Diário de uma expedição
Foi integrado à última das quatro expedições da campanha de Canudos, na qualidade simultânea de enviado especial do jornal O Estado (então A Província) de S. Paulo e adido ao estado-maior do ministro da Guerra, que Euclides se tornaria testemunha ocular da campanha, enviando para o jornal a série de reportagens que levaria o título de “Diário de uma expedição”. O arraial calou-se, sem se render, a 5 de outubro de 1897, após ser incinerado mediante o lançamento de querosene e bombas de dinamite. Os últimos resistentes, tombados numa cova que servia de trincheira no largo das igrejas, não eram mais que quatro, dos quais dois homens, um velho e um menino. Sempre rememorado, esse final inglório tornou-se representativo daquela que foi uma guerra de extermínio contra uma população indefesa. Da experiência, resultaria seu livro mais reputado. Mas antes Euclides dedica-se a acumular uma notável gama de saberes para escrever Os sertões, consagrado ao resgate da memória daqueles que pereceram defendendo Canudos.
EuClIDEs Da CuNHa
Sua indagação fundamental é esta: por que existiria esse tipo de fenômeno num país que acabara de dar dois gigantescos passos na direção do progresso, emancipando os escravos e derrubando a monarquia? Na ânsia de encontrar respostas, Euclides procederia a estudos sobre “A terra”, que aparecem na primeira parte, interessado que ficou pela formação geológica da região, detendo-se na flora e na fauna, nos determinantes da seca endêmica naquelas paragens, na aridez de deserto que ali reina. Na segunda parte, “O homem”, o autor estuda as correntes de povoamento e as teorias da miscigenação para compreender a genealogia do sertanejo e analisar o conjunto de fatores que deu origem a um líder extraordinário como Antonio Conselheiro. O restante do livro é dedicado à luta, com base no que viu e anotou em suas cadernetas de campo, nas reportagens que fez como correspondente, mas também em materiais como o noticiário de outros jornais, as ordens do dia dos militares, os relatórios de governo. Torturado, emocional, quase sempre grandiloquente, não é de leitura amena e reboa como o discurso de um tribuno. A lição principal que Euclides nos lega no que concerne a uma guerra fratricida e desnecessária é a admiração pelo esforço desenvolvido por populações carentes de tudo para criar novas formas de vida em comum. De um modo ou de outro, engendraram uma estrutura alternativa de poder que as subtraía ao mando de fazendeiros, padres e delegados de polícia – que encarnavam as autoridades máximas no sertão, representando a propriedade, a Igreja e as forças da repressão. Com a guerra de Canudos, completa-se o processo de consolidação do regime republicano. Graças ao sacrifício dos conselheiristas, exorcizou-se o espectro de uma eventual restauração monárquica. O papel que esse livro teve na história e na cultura brasileira foi fundamental. A opinião do país estava abalada por ter incorrido num equívoco, escancarando sua sanha sanguinária contra um punhado de pobres, que não ameaçavam ninguém. A manipulação a que fora sujeita, por parte das autoridades e dos jornais, ficou evidente, bem como o triste papel do Exército. As manifestações de desagravo aos canudenses espalharamse pelo país e pelos setores sociais, mesmo aqueles inicialmente mais vociferantes. De todo esse movimento da consciência nacional fez-se a súmula em Os sertões, que funcionou como um vasto mea culpa. Seu êxito imediato e duradouro mostra como os leitores se identificaram com a busca angustiosa de respostas e com o resgate do heroísmo dos canudenses. O livro, além da mais alta literatura, erigiu-se em monumento consagrado à memória de Canudos. Ainda hoje, constitui a peça maior do legado do escritor, na beleza de sua escrita, nos meandros de seus raciocínios e na paixão que expressa. n°138
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Literatura
lançamentos Explosão cósmica Membro da tríade de expoentes do movimento concretista ao lado do irmão Augusto e de Décio Pignatari, Haroldo de Campos (1929-2003) habituou-se a desenvolver múltiplas atividades em seu cotidiano. Sua produção poética era concomitante a trabalhos de tradução, crítica e ensaística. Organizada por sua viúva, Carmen Arruda Campos, a coletânea de poemas Entremilênios traz as marcas do polímata Haroldo. A energia dispendida no processo criativo relegava a segundo plano a organização do material, fato que explica os cinco anos dedicados por Carmen à compilação dos textos. O livro traz a melopeia, a logopeia e a plasticidade características da obra do poeta, além de alusões a mitos clássicos. Ao final, na seção “transluminuras”, estão reunidas traduções de poemas de cânones como Goethe e Walcott. Para Carmen, “a intensidade de sua produção assemelhava-se à de uma explosão cósmica, o que explica o fato de o livro, concebido na virada do milênio, só agora vir a público”. Entremilênios – Haroldo de Campos – Org.: Carmen de P. Arruda Campos – Perspectiva – 256 págs. – R$ 55
Brevidade contundente Hotel Novo Mundo é o primeiro romance da Ivana Arruda Leite, reconhecida autora de contos. A obra traz como protagonista Renata, ex-prostituta que, após ser traída pelo marido, deixa o Rio de Janeiro e muda-se para uma pensão degradada no centro de São Paulo. Ali, Renata divide o cotidiano com personagens como Genésia, dona da pensão, a enfermeira Jurema, o pai de santo Lauro e sua companheira Zema. Embora imersos em um ambiente degradado, marcado pela prostituição, tráfico de drogas e acentuada pobreza, os personagens estão ligados a um tênue fio de solidariedade. Da contista Ivana permanecem a coloquialidade e a concisão. “Ivana é cruel e lírica neste romance curto, enxuto e contundente”, afirma Ignácio de Loyola Brandão, que assina a orelha do livro. Hotel Novo Mundo – Ivana Arruda Leite – Editora 34 – 128 págs. – R$ 29
Jornada de excessos Diferentemente dos (anti-)heróis que conhecemos, o personagem Zeca não quer redenção tampouco busca alguma transformação. Ele não tem muitas ambições e, na maioria das vezes, quer saber apenas de muito sexo e muitas drogas. Com um texto fluido e inquieto, o novo livro de Reinaldo Moraes, autor do cultuado Tanto faz (Brasiliense, 1981), narra o percurso desregrado desse homem, que vive de improviso. Zeca é um ex-cineasta marginal que tem apenas o longa-metragem Holisticofrenia no currículo e que, por uma questão de sobrevivência, precisa filmar vídeos promocionais. A incansável busca pelo prazer e um individualismo exagerado caracterizam o protagonista de Pornopopéia e tornam contemporânea a história. Pornopopéia – Reinaldo Moraes – Objetiva – 480 págs. – R$ 59,90
Pormenores de uma poética Publicada em 1923, Elegias de Duíno é tida por muitos como a obra mais bem-acabada de Rainer Maria Rilke (18751926), ícone da poesia alemã do início do século 20. Para escrever sua obra-prima, Rilke viveu dois anos de isolamento no castelo de Berg, na Suíça. Em O testamento estão registradas as agruras na composição das elegias e demais reflexões acerca do fazer literário. Nota-se o conflito vivido pelo poeta entre as questões práticas da vida mundana e as exigências estéticas inerentes à obra de arte. “O testamento desmente, de maneira drástica, todos os clichês que a inspiração do kitsch popular mantém sobre a produção poética, sejam eles do tipo ‘o beijo da musa’ ou ‘a torre de marfim’ assinala Helmut Galle, doutor em literatura alemã pela Universidade de Berlim. A presente edição traz ainda facsímiles dos textos e tradução direta do alemão, por Tercio Redondo. O testamento – Rainer Maria Rilke – Trad.: Tercio Redondo – Globo – 152 págs. – R$ 26
Ficção e realidade A jornalista e escritora Geraldine Brooks, conhecida por mesclar realidade e ficção em suas obras, consagra seu estilo em O senhor March, livro vencedor do Prêmio Pulitzer de ficção em 2006. Inspirada pela novela Mulherzinhas (Ediouro, 1995), de Louisa May Alcott, que conta como foi a vida das mulheres da família Alcoot sem o patriarca, que lutava na Guerra de Secessão (1861-1865), Geraldine Brooks romanceia a história desse homem enquanto esteve fora de casa. Senhor March, como é chamado o protagonista, está diante da crueldade da guerra e passa a se lembrar de sua própria vida até aquele momento. Brooks narra a história de um homem sensível e idealista. Assim, ao mesmo tempo em que faz ficção, a autora constrói o seu retrato da guerra que dividiu os Estados Unidos. O senhor March – Geraldine Brooks – Trad.: Marcos Malvezzi Leal – Ediouro – 304 págs. – R$ 41,90
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DIFĂ?CIL ESCOLHER QUAL LER PRIMEIRO. AINDA BEM QUE A DĂšVIDA NUNCA FOI PROBLEMA PARA QUEM GOSTA DE FILOSOFIA.
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O QUE ESTOU LENDO ClĂĄudio Galperim – roteirista de cinema e televisĂŁo; escreveu o roteiro do filme O ano em que meus pais saĂram de fĂŠrias (2006) “Estou lendo A coleção particular (Cosac & Naify, 2005), de Georges Perec. Dele, eu jĂĄ havia lido A vida: modo de usar (Companhia das Letras, 1991) e O homem que dorme (Nova Fronteira, 1988) – ambos excelentes. O lançamento, agora, de A coleção particular, com tradução de Ivo Barroso, me fisgou de pronto na livraria. É uma pequena novela que encerra um irresistĂvel convite para refletir sobre a crĂtica de arte e sobre o prĂłprio ato de escrever. O que chama a minha atenção ĂŠ a sofisticação nada exibicionista dos labirintos e jogos de espelho que Perec propĂľe ao leitor. O livro se impĂľe pelo prazer da leitura.â€?
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Rodrigo Lacerda – escritor; autor de O fazedor de velhos (Cosac & Naify, 2008), Outra vida (Alfaguara, 2009), entre outros “Estou lendo agora Os cus de Judas (Alfaguara, 2007), de AntĂłnio Lobo Antunes. Ganhei o livro de presente da minha editora, a Alfaguara. Como eu sabia que iria assistir Ă palestra dele na Flip, e hĂĄ muito tenho curiosidade em lĂŞ-lo, tudo veio a calhar. O estilo de Lobo Antunes ĂŠ intrincado, mas tĂŁo intenso que vocĂŞ fica preso, mesmo nos momentos em que o enredo ainda nĂŁo se esclareceu. Lobo Antunes ĂŠ um gĂŞnio literĂĄrio, pois ele vive a literatura nĂŁo como uma aquisição racional, como um alpinismo intelectual, redutĂvel Ă formulinhas acadĂŞmicas. Ele vive a literatura como um traço de carĂĄter, como ser alegre ou triste, como uma caracterĂstica natural, como ser gordo ou magro. Ele nĂŁo faz literatura, ele a vive, em resumo.â€?
SÉRIE INTRODUĂ‡ĂƒO Os maiores especialistas mundiais nos mestres da filosofia apresentam as ideias principais e as grandes contribuiçþes de Kant, Descartes e AristĂłteles. VocĂŞ pode escolher um sĂł, mas os pensadores concordariam: levar a sĂŠrie ĂŠ uma sĂĄbia decisĂŁo.
SĂŠrgio Romagnolo – artista plĂĄstico e professor da Unesp “Estou lendo Meu amor (Editora 34, 2009), de Beatriz Bracher. Ainda estou no começo, mas tenho a impressĂŁo de que o livro tem muita agilidade com relação aos fatos e ao tempo em que transcorre a narrativa. A fluidez dos diĂĄlogos e a construção dos personagens chamam a minha atenção, porque me parece muito difĂcil dar veracidade aos personagens e Ă histĂłria. Eu mesmo estou escrevendo uma histĂłria e fiquei muito interessado em resolver alguns problemas que surgem no momento da escrita, por exemplo, como encadear a ação da histĂłria ou o andamento dos fatos.â€?
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Coluna
ENSAIO
A graça e a desgraça de Wilson Simonal Francisco Bosco
U
ma tragédia de erros: assim poderia ser definido o gênero sui generis da vida de Wilson Simonal. Como relata o excelente filme Simonal – ninguém sabe o duro que dei, o cantor, no auge de seu sucesso, quando chegou a ser uma das pessoas mais famosas do Brasil (concorrendo com Roberto Carlos e abaixo apenas, talvez, de Pelé), desconfia de que está sofrendo desfalques de seu contador e manda que lhe deem uma surra. Acionada pela esposa do contador, a polícia descobre que Simonal foi o mandante do crime, que por sua vez foi perpetrado por dois agentes do Dops. Para safar-se da acusação, o cantor se sai com uma história inverossímil sobre ameaças terroristas que estaria recebendo e alega ter amigos na polícia política. Estamos em 1971. As ligações nebulosas do cantor com membros do Dops transformamno imediatamente em dedo-duro e desencadeiam uma implacável campanha pública de difamação. Pelo crime contra o contador, Simonal foi condenado, após julgamento, e pegou cinco anos, que cumpriu em regime aberto. Já por sua suposta atividade de informante da ditadura, embora disso nunca tenha havido provas, foi condenado, sem julgamento legal, a um ostracismo siberiano em seu próprio patropi. Daí em diante sua vida pessoal iniciaria uma longa e severa decadência, e sua vida pública transformar-se-ia num tabu, no grande recalque da história da música brasileira. Cabe então procurar compreender quais as questões em
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jogo nessa encruzilhada entre a fama e o ostracismo, o apogeu e a queda, o poder e a impotência. Há uma breve e despercebida cena, no filme, que concentra todo esse imbróglio e retrospectivamente não apenas o ilumina, como também o prefigura. Nela, Simonal está fardado (ele servira o Exército, onde começou sua carreira musical cantando calipsos nos bailes do 8o Grupo Móvel de Artilharia de Costa), prestando um serviço burocrático. O serviço é de datilografia, mas logo os dedos começam a bater ritmadamente nas teclas da máquina, o tlec-tlec mecânico dá lugar ao telecoteco sincopado, a máquina burocrática vira instrumento lúdico, a farda vira farra, e assim a lei, sem se dar conta, é inteiramente subvertida, por dentro. Essa história conhecemos bem. Ela é a do negro pobre, para o qual o serviço militar é obrigatório (pois, para os mais ricos ou bem relacionados, o serviço militar obrigatório não é obrigatório), para o qual, portanto, a lei é e não é a lei. Aqui reside o busílis: para os pretos e pobres a lei não afrouxa, e assim é verdadeiramente a lei; mas, se no mesmo momento, ela, para os ricos, cede e concede, deixa de ser a lei. Se a mesma lei não é a mesma, ela se autoanula como lei, e assim é impossível, para quem desse modo a percebe, identificar-se com sua impessoalidade, sua universalidade. O preto pobre, oprimido pela lei, quando ascende socialmente, é apesar da lei, e não por causa dela; daí que, ao contrário, uma vez tornado rico, tende a
passar ao outro lado da lei, e identificar-se com o opressor. A graça Esse corpo que subverte a lei sem confrontá-la diretamente (não poderia fazê-lo), que habita o espaço ambíguo entre a ordem e a desordem, é um corpo dotado de graça. Da opressão do trabalho repetitivo e alienado ele procura safar-se pelas bordas, na informalidade, multiplicando expedientes, como for possível. Estamos, como se sabe, no ethos da malandragem. Aqui, paradoxalmente, o ócio é resistência. O princípio do menor esforço é resistência corporal e subjetiva contra o maior esforço imposto desde fora, por uma lei de cartas marcadas. Esse princípio produz uma graça: como já definia Edmund Burke, no século 18, o maior requisito da graça é não haver nela aparência de dificuldade. Pois Simonal canta com a mesma graça, com a mesma ausência de esforço que transforma a máquina datilográfica em tamborim. Essa graça é a característica maior de sua arte, na radicalidade dessa ausência de esforço reside sua grandeza. A graça se encontra na voz poderosa e aveludada, que se sente que sempre poderia ir bem mais longe do que vai (para quê, afinal?); nas divisões rítmicas do canto, inventivas, mas nunca bruscas; no andamento tantas vezes mais lento, cadenciado, de suas canções; e mesmo em sua dimensão de showman, ao reger multidões enfeitiçadas, deixando-as cantar enquanto descansa a voz.
Bruno Veiga
Mó num pá tropi
Coluna a “teu futuro espelha essa grandeza”. Esse ufanismo incompleto, preguiçoso, é a graça em seu estado mais revelador: pois a falta de esforço é também a “desorganização geral”, “a falta de organização moral”, para usar termos de Mário de Andrade. A desgraça Assim, resultante de um movimento dialético com a lei, a graça corre o risco de voltar a dialetizar-se com ela, revirando-se dessa vez em desgraça. É, parece-me, o que se passa no episódio do contador. Uma vez tendo ascendido socialmente, Simonal teria tido a sensação de que estava por cima da lei (já que antes estava por baixo dela). Manda surrarem o contador e, em seguida, absolutamente alheio à
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Em nenhuma outra interpretação sua, contudo, tudo isso fica mais evidente que em “País tropical”, de Jorge Benjor. Nela, o clássico ufanista recebe um tratamento que, voluntariamente ou não, acaba revelando a base ambígua da jactância nacionalista. Para começar, opta-se por uma levada “salseada”, mais cadenciada, relaxada. Na segunda vez em que a letra é cantada, Simonal suprime a última sílaba das palavras, dizendo só o suficiente para que se lhes entenda o sentido: “Mó num pá tropi/ abençoá por Dê/ e boni por naturê”. O ufanismo, por excesso, atinge um tom quase paródico. É um exagero, mas não absurdo, dizer que essa sílaba que falta é a distância que sempre nos faltou para passar de “gigante pela própria natureza”
SIMONAL: No ethos da malandragem
ENSAIO
gravidade política da situação, aproxima-se dos membros da ditadura. É coerente. Pois, para posicionar-se contra a ditadura, teria que reconhecê-la como um poder que se apoderou ilegitimamente da lei, impondo o arbítrio – mas como, se a lei, para pretos pobres como ele, sempre se apresentou, (in) justamente, como arbítrio? Na impossibilidade de reconhecer a lei como tal, isto é, como o que impede a divisão entre opressores e oprimidos, só lhe resta identificar-se com um dos polos da oposição; no caso, o dos opressores, posição que julgaria ter conquistado legitimamente, o que, na lógica ambígua da sociedade brasileira, deve querer dizer apesar da lei. Todo esse campo de relações entre a lei e suas vicissitudes no Brasil, bem como entre a escravidão e suas consequências sociais, vem mudando nas últimas décadas. O que venho descrevendo aqui em parte já está – acredito e espero estar certo – defasado com relação ao nosso presente. Mas o episódio que envolve o Senado neste momento (bem como os infindáveis episódios de patrimonialismo, fisiologismo e outras arbitrariedades que compõem a cena deplorável de nosso Poder Legislativo) é por si só capaz de evidenciar também o quanto nós não avançamos. O sociólogo Demétrio Magnoli declarou que, se por um lado, no Brasil, a elite econômica já não coincide mais com a elite política, por outro lado a nova elite política continua querendo desfrutar os mesmos privilégios da antiga. Assim, um princípio saudável de plasticidade social é pervertido em perpetuação das injustiças. Aqui, como na leitura que proponho do episódio envolvendo Simonal, é mais uma vez a lei que sucumbe, e bem no centro de onde deveria emanar o seu poder (ou mesmo sua realidade): o pobre, ao ascender, identifica-se com o opressor, reproduzindo consequentemente o oprimido. franciscobosco@terra.com.br n°138
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Acervo CULT
DESCASO: Obras inacabadas no prédio do curso de Letras da FFLCH - USP
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dossiê
A UNIVERSIDADE EM DEBATE
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UM CONTO DE DUAS UNIVERSIDADES
Professores de instituições públicas
Quando a lógica mercantil se sobrepõe
e privadas discutem a crise no ensino
à construção do pensamento crítico e
superior
reflexivo Alvaro Bianchi e Ruy Braga
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[DOSSIÊ]
DEMOCRATIZAÇÃO OU MASSIFICAÇÃO?
I
nstituições de ensino superior proliferam a cada ano nos quatro cantos do país. Programas de inclusão e métodos de ensino a distância alavancam as estatísticas do acesso do brasileiro à universidade. A despeito do esforço salutar empreendido pelo poder público, a aquisição de um diploma de ensino superior há tempos não pode ser considerada garantia de sucesso profissional. Tal fato explica-se, em parte, pela saturação do mercado de trabalho cuja oferta está aquém da demanda de novos profissionais. Por outro lado, há outro fator essencial a ser examinado: a qualidade da formação. Em 2008, dos quase 20 mil inscritos no exame da Ordem promovido pela OAB, somente 12,8% foram aprovados. Vale acrescentar que esse exame busca exigir do bacharel em Direito os requisitos mínimos para exercer a profissão. Em universidades públicas como a USP, é comum encontrar turmas com mais de duzentos alunos, principalmente nos cursos de ciências humanas. Ante esses dados, cabem algumas indagações: o que de fato vem ocorrendo no país é a democratização ou a massificação do ensino superior? De que vale ampliar o número de vagas sem investir na contratação
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UNIVERSIDADE DE RESULTADOS
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de novos professores? Em face do visível descaso com as ciências humanas, é possível formar indivíduos capazes de exercer o pensamento crítico? Assistimos à inserção da lógica da quantidade, da busca desenfreada por resultados, aplicadas às diversas áreas do conhecimento. Neste dossiê, CULT reuniu renomados sociólogos e filósofos que discutem as deficiências no ensino superior brasileiro. Nas entrevistas que abrem o dossiê, os professores Laymert Garcia dos Santos, Chico de Oliveira, Edgard Carvalho, Lucrécia Ferrara e Eugênio Trivinho falam dos pontos centrais da crise nas instituições públicas e privadas. Em seguida, Ruy Braga e Álvaro Bianchi refletem sobre os danos que a lógica neoliberal acarreta à universidade pública. Ricardo Musse traça um panorama histórico da crise universitária até chegar ao contexto atual. O francês Yves Cohen estabelece um paralelo entre a recente crise no ensino francês e suas semelhanças e disparidades em relação ao cenário brasileiro. Por fim, Vladimir Safatle traz à tona o mal-estar vivido nas ciências humanas e discute a capacidade produtiva das humanidades, em contraposição àqueles que as julgam apartadas da sociedade.
A RECENTE CRISE FRANCESA
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O MAL-ESTAR NAS CIÊNCIAS HUMANAS
a atual crise no ensino superior é resul-
o movimento da primavera de 2009
discussões sobre o futuro da universi-
tado de sua adequação às exigências
na universidade e nos institutos de
dade exigem reflexão sobre o que es-
de acumulação de capital
pesquisa franceses
peramos das ciências humanas
Ricardo Musse
Yves Cohen
Vladimir Safatle n°138
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dossiê
o conflito das universidades
Acervo CULT
a universidade eM deBate
Chico de Oliveira
CULT – Como o senhor analisa a crise universitária no Brasil? Chico de Oliveira – estou recém-examinando um livro fruto de uma tese, que será publicado pela edufscar (editora da universidade federal de são carlos). o trabalho é uma análise de sete universidades federais do sudeste, entre as mais ricas do Brasil. o autor, o cientista político Pedro floriano ribeiro, examinou uma série de variáveis e indicadores para avaliar as universidades. o resultado foi o seguinte: a produtividade decuplicou, quer no número de artigos, de docentes, quer no número de pesquisadores e de artigos em revistas indexadas. ou seja, a produção científica em geral melhorou extraordinariamente. Quintuplicou o número de alunos da pós-graduação e duplicou o número de alunos da graduação. segundo os critérios liberais, as universidades provaram que são produtivas. Mas há o outro lado: a regressão salarial fortíssima dos docentes e também do funcionalismo, embora em menor grau. Houve diminuição da relação funcionário-docente, funcionário-aluno, ou seja, há maior exploração do trabalho. dos professores e alunos entrevistados, todos tomam algum medicamento do tipo neuroléptico para
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manter a concentração. todos. alguns não veem os filhos nem pela manhã nem à noite. esse é o resultado. É o produtivismo aplicado a uma lógica acadêmica. o grande fracasso da universidade.
O produtivismo aplicado a “ uma lógica acadêmica: o grande fracasso da universidade”
CULT – Em alguns cursos, a superlotação nas salas é gritante. Chico – em são Paulo, na mítica Maria antônia, a que todo mundo se refere, havia turmas com cinco alunos. a turma do ex-presidente fernando Henrique cardoso tinha seis alunos. era completamente diferente dar aulas para seis alunos em vez de 150. eu considero a universidade brasileira um milagre. o fato de sairmos do escravismo e
dossiê
do ensino monopolizado pela Igreja Católica e conseguirmos criar um sistema público da escala que o Brasil tem só pode ser um milagre. Hoje em todos os estados há ao menos uma universidade federal, e a influência delas sobre o ambiente é algo que não tem avaliação possível. Eu conheço praticamente todas, de norte a sul. A diferença que uma universidade produz no seu ambiente é notável. Eleva-se o nível de debate, a interlocução, o jornalismo melhora, é extraordinário. O Brasil praticou um milagre e agora querem destruí-lo.
CULT – Existe a possibilidade de que, mesmo com esse produtivismo, nossa produção científica siga na direção errada, pois a estrutura econômica brasileira não aproveita esse potencial? Chico – Em 2005, participei da banca de mestrado da socióloga Maria Caramez Carlotto, da USP. Era uma tese sobre o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, uma das entidades de pesquisa mais avançadas do hemisfério sul, mas que está fora da universidade. É uma organização social dessas que o Bresser (Luiz Carlos Bresser Pereira) inventou. No fundo, tudo isso é truque, porque são verbas públicas que mantêm as redes de pesquisa e o próprio laboratório. E como esse laboratório é voltado para o setor produtivo? Há três empresas que utilizam seus serviços: a Petrobras, a alemã Robert Bosch e a americana Hewlett-Packard. No caso das duas últimas, as matrizes substituíram as filiais brasileiras. Não sou contra a universidade brasileira prestar serviço ao setor produtivo. Não é essa a questão. O problema é que, quando prestam, é a preço vil, altamente subsidiado. É tão subsidiado que essas duas empresas estrangeiras disseram: “É diretamente conosco”. Até porque as filiais só pegam o restante da tecnologia já utilizada e transferida. A original vai diretamente para eles. Isso é um equívoco de chorar, porque as regras do setor privado não valem para o setor público. CULT – Uma das tendências no que se refere ao futuro da universidade é a aplicação do ensino a distância. Como o senhor analisa esse fenômeno? Chico – Pode-se conceber um sistema científico complexo com o ensino a distância? Não com esse modelo de massificação. É falso dizer que por meio disso há democratização. Pelo contrário, piora-se substancialmente. Apenas se desvaloriza ainda mais o professor, que historicamente é desvalorizado. Primeiro havia a educação formal, que era requisito para que qualquer trabalhador entrasse em uma fábrica. Mas, depois que ele entrava na fábrica, era necessário dominar os signos da linguagem. Isso, porém, o capitalismo já deixou para trás, porque o conhecimento está na máquina, e não na cabeça do operário. Está se passando o mesmo com o ensino superior. Houve um descolamento entre sistema produtivo e educação formal.
o conflito das universidades
Deve-se investir em ensino rico, se quisermos permanecer no mundo dos vivos. Se quisermos ir para o mundo dos fantasmas, tudo bem. Criam-se escolinhas, formação de professores mambembes e ensino a distância. Se quisermos continuar no mundo dos vivos, sobretudo em um país obscenamente desigual como o Brasil, isso não pode ocorrer. Engana-se a população.
Deve-se investir em ensino “ rico, se quisermos permanecer no mundo dos vivos”
CULT – Como o senhor analisa a postura do movimento estudantil atualmente? Não haveria um certo anacronismo fruto de uma mentalidade ainda arraigada nos anos 1960? Chico – Um movimento social qualquer deve enfrentar a aparência do seu inimigo real, porque Marx nos ensinou isso: a política é a aparência. Lida-se o tempo todo com a aparência. Qual é a essência da exploração do capitalismo? É a mais-valia, mas a mais-valia é um conceito, o real dela você só apanha na fábrica. Os alunos são anacrônicos porque o fantasma deles é anacrônico. Então eles se chocam com o fantasma. O fantasma do poder da USP é inteiramente anacrônico. CULT – A universidade pública no Brasil é para poucos. De que forma o senhor analisa programas de inclusão em instituições privadas, como o ProUni? Chico – Isso parece uma equação de economistas: oferta e demanda. Nós temos uma demanda forte do povo e uma oferta fraca das escolas públicas. Do outro lado há uma oferta das escolas privadas que pode ser interessante. Então, junta-se a fome com a vontade de comer. Isso é falso. A Folha de S.Paulo mostrou que, com o subsídio dado a essas escolas privadas, o governo federal poderia duplicar as vagas nas universidades públicas. Conheço tanto no macro quanto no micro a experiência de pessoas reais, concretas. Como vício de profissão, olho as coisas muito sociologicamente. Na padaria onde tomo café, trabalha uma balconista que resolveu concorrer a uma bolsa do ProUni. Ela ganhou e ficou muito satisfeita. Tempos depois, ela deixou a padaria para trabalhar em outra área. Um ano atrás, voltou a ser empregada da padaria. E eu disse: “Cadê o seu curso? Para que serviu?”. Ela, claro, não baixou a guarda: “Não, seu Chico, ainda estou terminando. Vai dar certo, vai dar certo”. Dois anos depois de frequentar aquela faculdade, os cursos dela não tinham servido para nada. n°138
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o conflito das universidades
O mal-estar nas ciências humanas Discussões sobre o futuro da universidade exigem reflexão sobre o que esperamos das ciências humanas Vladimir Safatle
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as discussões a respeito do futuro da universidade, seja no Brasil seja em países europeus que passam atualmente por grave crise financeira, é comum identificarmos um estranho mal-estar em relação às ciências humanas. Tudo se passa como se a área de ciências humanas fosse a mais problemática por vir dela questionamentos reiterados a respeito de processos de financiamento, avaliação e pesquisa. É comum vermos um certo anti-intelectualismo arraigado que acusa as humanidades de serem irrelevantes, fazerem pesquisas atrasadas ou ideologicamente comprometidas e não “dialogar” com a sociedade. No caso brasileiro, haveria uma longa história a contar referente à gênese desse anti-intelectualismo e seus vínculos orgânicos com momentos sombrios de nossa história. No entanto, esse mal-estar não vem apenas de atores externos à universidade. Seria fácil se assim fosse. Por um lado, é comum instâncias internas à própria universidade mostrarem desconhecimento profundo a respeito do tipo de pesquisa desenvolvido na área de ciências humanas e sua multiplicidade natural. Nos momentos em que tais desconhecimentos afloram, somos normalmente brindados com discussões bizantinas a respeito da inutilidade das ciências humanas, a não ser como curso de extensão. Nessas horas, o melhor a fazer é perguntar ao interlocutor o que pesquisadores brasileiros realmente relevantes nas ciências exatas, como os físicos Mario Schömberg e César Lattes, teriam a dizer sobre o assunto. “Ideologia científica” Mais sintomático do que isso, no entanto, é encontrar determinadas áreas, como a psicologia e a economia, lutando desesperadamente para não serem mais vistas como pertencentes ao quadro das humanidades. A psicologia seria, nessa nova configuração do campo científico que parece
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querer se impor, um setor das ciências biológicas que estudaria a mente e o comportamento humano. Afirmação que só teria algum sentido à condição de passarmos completamente ao largo de discussões sobre o estatuto do conceito de “comportamento”, isso sem falar em outros conceitos fundamentais da psicologia como “aprendizado”, “percepção”, “memória”, “desenvolvimento”, só para ficar com aqueles termos mais dependentes de discussões que nos remetem à história da filosofia. Já a economia seria (e isto não é uma piada feita para divertir financista em estado de choque depois da quebra do Lehman Brothers, da concordata da GM e da estatização branca do Citibank) uma ciência matemática. O que há por trás desse quadro? Certamente temos aqui uma convergência de fatores, sendo que um deles é, sem dúvida, a incapacidade de pesquisadores da área de ciências humanas saírem de uma posição, digamos, defensiva. Temos dificuldade em impor nossos sistemas de avaliação, em divulgar nossas pesquisas, em analisar a natureza daquilo cujo sintoma é o mal-estar em relação às ciências humanas. Haveria também fatores claramente econômicos (que nunca podem ser desprezados). Georges Canguilhem, historiador fundamental das ciências, cunhou, décadas atrás, o termo “ideologia científica” para descrever este processo em que uma área do saber, em constituição, se apóia em áreas mais reconhecidas e tradicionais, mimetizando seu vocabulário e seus métodos na esperança de, com isso, ganhar legitimidade social. O advento das ciências humanas foi claramente marcado por tal processo. Lembremos, por exemplo, de como o estudo dos comportamentos sociais foi, durante bom tempo, descrito como “física social”, isso antes de ser visto enfim como “sociologia”. Para estruturas institucionais que, para ter
dossiê
o conflito das universidades Creative Commons/Ricardo Saffi MArques
BIBLIOTÉCA CESAR LATTES, UNICAMP: A capacidade descritiva das ciências humanas é também capacidade produtiva
suas pesquisas financiadas, entraram em dependência profunda em relação a instituições do sistema financeiro (como caso de vários departamentos de economia no mundo) ou a grandes indústrias farmacêuticas (como caso do departamento de psicologia), passar a impressão de que elas podem assegurar a previsibilidade, a quantificação e a mensuração de áreas como a matemática e a biologia virou uma questão não negligenciável. A capacidade produtiva das humanidades No entanto, para além desses dois fatores, vale a pena insistir em um terceiro, talvez de fato o mais importante. A constituição das ciências humanas enquanto conjunto de campos institucionalizados de pesquisa foi em larga medida impulsionada por preocupações estatais de controle social de populações a partir do século 19. Por exemplo, não compreenderemos o advento da psicologia como ciência se negligenciarmos a importância de questões que eram dirigidas aos psicólogos sobre a extensão da imputabilidade jurídica, a natureza do comportamento criminoso, a
falta de disposição para o trabalho, a fraqueza moral. No entanto, também não compreenderemos seu desenvolvimento posterior se restringirmos suas questões apenas a esse escopo de preocupações. Pois o campo das ciências humanas foi sempre indissociável da reflexão sobre a maneira como elas constituem, e não apenas descrevem, o “homem” como seu objeto de análise. Esse é um ponto importante: a capacidade descritiva das ciências humanas é também capacidade produtiva. Sua descrição modifica o comportamento dos seus objetos, já que seus conceitos teêm forte capacidade normativa. Por exemplo, descrever processos sociais a partir de sistemas individuais de escolhas possíveis ou a partir de estruturas transindividuais não apenas influenciará radicalmente a visão do pesquisador a respeito dos fenômenos que ele tem diante de si. Isso influenciará também a maneira com que as intervenções nos processos sociais se darão, assim como a configuração das crenças sociais sobre o que nós realmente somos. Essa “reviravolta autocrítica” é elemento fundamental na história das ciências humanas. E, através dessa capan°138
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