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XENIA FRANÇA - UM MANIFESTO DE ANCESTRALIDADE

XENIA FRANÇA - UM MANIFESTO DE ANCESTRALIDADE

Voz, atitude e muito trabalho para fazer uma música respeitada por sua força e cada uma das suas palavras

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Por Ana Sniesko

Fotos: Filipa Aurelio / Divulgação

“De jeito nenhum!”. Quem ouve Pra que me chamas? não imagina que essa foi a resposta de Xênia França para o primeiro convite para integrar uma banda. A negação, assim como a que ela recebeu do mercado da moda quando de sua chegada a São Paulo, em 2004, deu o tom e abriu os caminhos da música para essa voz guiada pela raiz e pela ancestralidade.

Com o primeiro choro em Candeias e os primeiros passos em Camaçari, a baiana viu o sonho de virar modelo estampado na banca de jornal. Era ali, em uma capa de revista, que ela desejava estar. “Aquele pulo, que já não faz mais sentido, me trouxe para cá. Ainda bem que não deu certo”.

Era o caminho no espaço e no tempo para receber dos céus o motivo da sua estada na Terra. As melodias, que antes eram ouvidas apenas pelos mais chegados, passaram a ter um novo sentido. “Sequer cantava por hobby. Uns amigos estavam sempre na minha casa, alguém puxava um violão e eu cantava.” E assim, com toda essa simplicidade, ela demorou a entender que a música era o seu caminho.

Quando finalmente aceitou o convite para soltar a voz, na sua frente se abriu uma trilha que parecia óbvia. Estamos em 2008, quando ela colocou seu timbre em covers, mas a sementinha do projeto solo estava ali, sendo cultivada. Pouco depois, Emicida cruzou seu caminho e outro convite apareceu. Veio a primeira gravação em estúdio, uma participação na faixa Volúpia, do EP Sua Mina Ouve Meu Rep Também (2010). “Nos conhecemos no VMB e muita coisa começou a partir daí”, relembra.

Foi um passo para o encontro com o Aláfia começar a nascer. Única mulher em uma banda de 12 pessoas, Xenia aproveitou o palco e o microfone para entoar a sua força e se encontrar diante do público.

UM ROMPIMENTO

Corta para 2016. “Eu reuni tudo o que me tocou musicalmente na vida e que eu não consegui colocar para fora no Aláfia, por mais que eu estivesse dando tudo de mim ali”. Dessa maneira, se despediu de um coletivo para ser única. A produção do seu disco começou em outubro daquele ano, 2017 foi de mergulho em letras, melodias e acordes para, em novembro, ele vir ao mundo. “E estamos falando dele até hoje”, se diverte ao constatar.

O que mudou nessa trajetória? “Tudo! Eu tenho total autonomia, total direção do meu trabalho musical. Queria me sentir mais possível, no sentido de fazer um projeto musical que saísse totalmente de dentro de mim, desse momento de transição, desse portal por que passei”, conta.

Numa banda, muitas cabeças pensam sobre cada detalhe e o espaço nem sempre é justo com todos. “Em todo esse tempo que passei no Aláfia, eu era apenas intérprete, já que todo mundo ali era compositor. Eu estava me sentindo menos, com aquele monte de gigantes compondo, mostrando que é genial e eu parecia um coelho acuado na parede, sem coragem de me expressar”, relembra.

Com essa potência e expressão que são a sua marca hoje, é quase difícil acreditar nessa sensação. Ela faz questão de ressaltar que para o álbum Xenia nascer, foi preciso esforço, trabalho e dedicação. “Peguei as melodias que eu criei e me debrucei em cima delas para escrever. Foi como fazer uma prova para o vestibular. Eu não me considerava compositora e, de repente, eu estava compondo”.

UM MERGULHO

“Eu peguei tudo”. Desde a música que mais fazia sentido quando era criança, até as influências que foram sendo introjetadas na sua personalidade musical. “Pude fazer simbioses de todos os tipos. Liguei os tambores que escutei na Bahia, os toques de Candomblé, como os de uma visita que eu fiz a Cuba em 2014, onde aquele som fez todo sentido para mim. Eu preciso usar essa ligação que está dentro de mim, está dentro do meu corpo, que está dentro do meu DNA, dentro do meu trabalho. Isso está traduzido em Pra que me chamas?, que é a faixa principal do meu disco e foi o norte para todas as outras”, diz.

Tudo o que veio antes, o não ao primeiro convite, os amigos que naquela voz confiaram, foram ponte para que Xenia se firmasse como cantora e, mais do que isso, aceitasse o seu poder. “No meu trabalho, eu tô falando em primeira pessoa, eu tô dentro do meu lugar, eu tô sentada na minha cadeira, com o meu próprio microfone, dizendo tudo de que eu preciso, tudo o que eu quero. É muito diferente ter todas as escolhas, tudo passar pelo meu crivo”.

Pequenina, ela grudava o ouvido no rádio enquanto a mãe saía, onde podia ir além dos tambores que tocavam nas ruas da sua Bahia. “Tudo é muito musical. As pessoas falam cantando, andam meio dançando. A expressão artística na Bahia é muito forte”. E deixou marcas na menina que sonhava com arte, só não sabia de cara exatamente qual seria seu caminho de expressão.

“Quando eu decidi fazer um disco, tudo isso veio como uma grande tempestade”. Tudo estava ali, guardado para ser colocado para fora no momento certo. Ainda assim, levou tempo para entender onde sua voz se encaixava. “Quando comecei a ouvir cantoras com um tom mais médio agudo, começou a me dar um certo conforto. Não que eu esteja totalmente confortável... Hoje, passei a manhã inteira com a minha fonoaudióloga contando sobre a minha frustração com relação a minha voz, que está em processo de aceitação ainda”.

Chegaram até os ouvidos de Xenia Erykah Badu e Esperanza Spalding e esse timbre se tornou mais confortável. Nas suas referências, Michael Jackson aparece com força. “É uma fonte na qual eu bebo muito”, conta. Mas, mais do que técnica, ela busca emoção. “Tudo o que me interessa na música, tudo o que me emociona, tem a ver com a diáspora negra. O som do Milton, o som do Djavan, o som de Gil, que é Deus! Eu quis fazer um disco que reverenciasse, não apenas no sentido de cultuar e ir até o passado para saber quem eu sou no presente, mas um disco que falasse a minha língua, a língua do meu tempo, que mostrasse quem eu sou agora: Xenia, uma cantora jovem que quer se expressar. O meu disco é uma mistura de muitas referências, mas, principalmente, de uma visão de mundo musical”, afirma.

É do alto dessa emoção que ela fala com sentimento de cada uma das músicas que deram forma ao Xenia. “As músicas que compus são aquelas pelas quais eu tenho mais afeto”, diz. E fala quase como um presente do universo. “Não fui eu que escolhi, foram elas que me escolheram”, diz sobre as faixas do disco. “Toda vez que eu as ouço, fazem tanto sentido...”, filosofa.

Não foi obra do acaso que Para que me chamas? foi indicada ao Grammy Latino de 2018 na categoria Melhor Canção em Língua Portuguesa, além de o disco ter sido indicado como Melhor Álbum Pop Contemporâneo. No mesmo ano também foi indicado ao Women Music Award 2018. “Foi um presente estar junto aos grandes, como Chico [Buarque]”, lembra. Chico, aliás, levou o prêmio com a canção Caravanas. O mundo entendeu a que ela veio. Xenia França foi a primeira artista brasileira a participar do Colors, a plataforma musical que criou live sessions intimistas e despretensiosas que são transmitidas pela internet e reúne grandes nomes da música contemporânea. Para esse palco, a escolhida foi Miragem. “Foi uma das músicas que deu mais trabalho, porque tinha a ver com uma crença limitadora que tenho. Passei meses amadurecendo cada linha”, conta.

Já Perfeita para você chegou com suavidade. “A melodia veio no banho, com algumas palavras. Eu estava de saída, peguei um Uber e não desisti dela, fui escrevendo no caminho. Em três dias ela estava pronta. Foi quase um presente de Deus para mim para dizer: relaxa!”, ri.

UMA VOZ EM LUTA

É quase impossível sair de uma conversa com Xênia sem falar sobre política, ativismo e luta. “Na construção da minha identidade não haveria como me tornar uma artista negra, com a minha visão de mundo e ser uma pessoa que não reflete o próprio tempo”.

As palavras de Nina Simone são mantra para ela. “Escolhi refletir o tempo e as situações em que me encontro. Para mim, isso é o meu dever e, neste momento crucial de nossas vidas, quando tudo é tão desesperador, quando tentamos apenas sobreviver a cada dia, não tem como não se envolver. Jovens e negros sabem disso e é por isso que estão tão envolvidos com a política. (…) Não se tem escolha… Como ser artista e não refletir a época?”, declaração que está no documentário What happened, Miss Simone?.

“O mundo está cheio de mulheres negras que fizeram trabalhos incríveis, obras magníficas, mas que morreram sem o lugar de fala, sem lugar na sociedade, sem lugar econômico, é uma coisa que me fez pensar bastante”, ela diz. E é desse lugar, cantando as suas próprias questões, que ela resgata a sua ancestralidade e dá voz a tantas outras mulheres.

“Estou no meio do olho do furacão, não dá pra ser alheia a tudo isso. Como uma mulher negra, como uma figura preta no país em que vivo, tudo o que eu faço é política. Se eu tivesse feito um disco falando só de amor, ainda assim estaria fazendo política. O amor sempre foi negado ao meu povo, ao meu grupo”, reivindica.

A sua arte também é ferramenta de autoafirmação, que ela relembra todo santo dia. “Estou mostrando a mim mesma que sou capaz de criar, com o meu próprio corpo. Tenho informações nos meus [registros] akáshicos que dizem: você tem chão, você tem lastro, você tem plataforma, você tem retaguarda. Pegue isso e use isso a seu favor. Esse é o meu manifesto de ancestralidade”. Sobre o futuro, vem muito mais. Mas ela adianta que não temos tempo. “A última música do meu disco chama Nave é justamente isso. Se nada der certo, tchau. Se ninguém consegue ter ao menos um senso de empatia, de se respeitar, a gente pega uma nave a vai embora”, diz sobre a vida.

A Xenia capa de revista, antes de tudo, é uma musicista que coloca a mão na massa e rala (e muito!) para fazer a magia acontecer. “O meu processo de criação é imersivo. Preciso sair do mundo, das pessoas, das redes sociais, senão eu não consigo criar”, conta. Mas deixa claro qual é a sua certeza. “Se tudo acabar, eu vou continuar sendo uma artista da música. Isso é inegociável. Se eu misturar as estações, eu não sei quem é a Xenia que decide tudo, de uma coisa que é externa, que está sujeita à aprovação dos outros.” E, não, ela não precisa.

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