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A IMPORTÂNCIA DE SER ABU O FOGO DE UM ARTISTA MÚLTIPLO E INEXPLICÁVEL, MAS QUE PRECISA SER ENTENDIDO

Por Fernando de Freitas

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André Abujamra não gosta de dar entrevistas. Faz parte de uma espécie raríssima de artistas cuja única necessidade de fama se traduz unicamente em sua obra. Abu, como é conhecido pelos amigos, ama fazer o espetáculo, porém, fora dele, sua figura imensa contrasta com as atitudes de um cara tímido. Passou-se mais de um ano desde as primeiras tentativas e a primeira conversa, uma live transmitida no Instagram, e mais seis meses de negociação até que conseguíssemos transformar nossas conversas em uma matéria da Revista 440Hz.

Por mais de uma vez ele me contou que teve dificuldades para aprender a falar. Antes das palavras, frases e orações, André aprendeu música. Essa é parte da mitologia de um dos artistas mais prolíficos, multifacetados e queridos do Brasil. E é esse ambiente mitológico que o artista, que ironicamente debutou no mercado com os álbuns Música e Ciência e Música Serve Para Isso, vem explorando nas últimas três décadas seus trabalhos mais pessoais.

Seu mais recente trabalho autoral é o álbum Emidoinã, que dá prosseguimento ao projeto iniciado pelo Omindá e que deve ter mais três partes. Mas os títulos de seus trabalhos-solo anteriores também dão a dimensão de um olhar que invariavelmente ultrapassa o universo tangível, são eles: Infinito de Pé, Marafo e o Homem Bruxa. Também não podemos deixar de lado toda discografia do Karnak, que sempre buscou traduzir em palavras simples angústias grandiosas. É a obra de alguém que procura a alegria sublime para além do grotesco da realidade. Pode-se ter a impressão de que André não tem lugar em uma sociedade violenta e hostil, mas ele se encontra em algum lugar, entre a figura do profeta e do alucinado, como uma voz de resistência, de esperança infantil, numa tentativa de encaminhar o mundo a um lugar mais belo. Por outro lado, sua missão nada tem de ingênua, pois sua música enfrenta a complexidade dos elementos (ou paixões, furores) humanos. Por isso que Omindá é dedicado ao fogo.

ABU PAI E MAURÍCIO

Duas figuras estão sempre presentes na mitologia de André: seu pai, Antônio Abujamra, e seu parceiro original, Maurício Pereira. Do seu pai são muitas as histórias, ele mesmo uma figura mitológica, por sua presença no teatro e na televisão, tanto quanto ator - para toda uma geração, Antônio será eternamente o bruxo Ravengard - quanto como entrevistador.

Em uma das histórias preferidas de André, seu pai teria dito a ele, um menino de 3 anos de idade, que, como sabemos, não era muito afeito a falar: “a vida é sua, estrague-a como quiser”. Por obediência, ou desobediência, não fica claro, André perseguiu isso. Aos 22 anos decidiu abandonar a faculdade de música que parecia incompatível com seu trabalho de músico profissional. Seu pai insistiu para que ele se formasse, usando o argumento de que o diploma garantiria uma cela especial quando fosse preso. Perceba, seu pai não disse “se ele fosse preso”, mas “quando”. Mas também é o homem que repetia, “não será por falta de amor que meus filhos farão terapia”.

Assim, embora em muitos aspectos André pareça a antítese de Antônio, sua dedicação ao amor, no aspecto mais puro da palavra, é idêntica. Abu declara o amor aos filhos, entre eles o músico Joe Abujamra, à ex-mulher e melhor amiga Ana Muylaert e aos selecionados amigos. Ele não quer saber de inimizades e rusgas, escolhendo ignorar (e bloquear) quem escolhe esse caminho nas redes sociais.

Embora não falte amor, com Maurício Pereira existe uma competitividade saudável. Irmãos musicais, a parceria de dois álbuns e muitos (muitos mesmo) shows com Os Mulheres Negras tem o status de cult no cenário musical brasileiro. Dali para frente a carreira de ambos seguiu caminhos muito diferentes, cada um em busca de respostas diferentes ao produzir música. O afastamento nunca foi completo, tendo os amigos colaborado um com o outro diversas vezes, e feito eventuais shows com o repertório do Mulheres que são um verdadeiro tributo a algo maravilhoso que um dia existiu. Ambos parecem concordar que na remota possibilidade de voltarem a gravar juntos, não será mais o Mulheres, mas Maurício Pereira e André Abujamra.

De perfil mais comedido, Maurício fala sobre o antigo parceiro: “O Abu não esgota. Ele nasceu para ser músico. Essa conexão com a música eu só vi em duas pessoas, nele e no meu filho Martim (Tim Bernardes)”. Mas a conexão de Abu com Maurício é algo que parece ser tão forte quanto a dele com a música. Desde que se conheceram, em uma aula de percussão africana no começo da década de 1980, passando pelo Mulheres e uma série de colaborações posteriores (que incluem uma parceria para composições para o Castelo Rá-Tim-Bum). Chico Bernardes conta que uma vez pediu para André trazer um pedal de Reverb dos Estados Unidos. Acontece que Abu pediu permissão para o amigo. “Eu não estava indo muito bem na escola e meu pai pediu para ele guardar para me dar no Natal. Ele acabou deixando com meu irmão (Tim), que guardou no estúdio que dividimos. Um dia eu vi o pedal e ele disse que era de um amigo”, conta o jovem músico. O pedal acabou sendo entregue a ele e seu uso faz parte dos elementos que definem o timbre de Chico.

UMA FORÇA DA NATUREZA

Poucas carreiras musicais são tão extensas como a de André Abujamra, tampouco tão diversas. Em paralelo ao Mulheres, Abu iniciou uma carreira de composição de trilhas sonoras, incentivado pela, então, namorada, Anna Muylaerte (com quem foi casado e a quem hoje se refere como sua melhor amiga). No site IMDB, ele é listado como compositor de 65 trilhas sonoras, mas o número real chega uma centena. Dentre essas obras estão as trilhas de Carlota Joaquina, Bicho de Sete Cabeças, Durval Discos e Carandiru. Abu também têm mais de uma dezena de prêmios na área.

Entre as premiações que já recebeu, uma delas no teatro, o presenteou com uma passagem para Paris. “Eu era muito novo, não tinha dinheiro e só tinha ganho a passagem. Meu pai não estava nem aí e eu não quis pedir pra ele. É um dos meus maiores arrependimentos ter perdido essa passagem. Anos depois, soube que o Grande Otelo ganhou o mesmo prêmio, pegou o avião, tomou um café no (aeroporto) Charles de Gaulle e voltou. Hoje eu teria ido”, conta Abujamra.

No teatro, Abu escreveu trilhas para inúmeras peças do pai. “Ele era o meu maior crítico. Eu entregava o CD para ele e no dia seguinte me devolvia falando que estava uma merda e que era para eu fazer de novo”. O músico conta que tem muitas composições gravadas e guardadas dessas parcerias com o pai.

Após o encerramento do Mulheres, Abu partiu com o amigo Theo Werneck para uma viagem para o oriente médio. Foi nessa viagem que surgiu a banda Karnak, que tomou de surpresa a crítica brasileira. A banda, que tinha mais de uma dúzia de músicos (e um cachorro, diga-se de passagem), rompia com a dinâmica introspectiva do Mulheres (cuja equipe de bastidores era muito maior que a banda, comandada pelo o inseparável empresário/ produtor/amigo-quase-irmão Agui Rocca). Se não foi sucesso imediato, Karnak se tornou uma banda cultuada pelos fãs e, mesmo não estando em plena atividade nos últimos

anos, manteve a agenda de shows anuais no Sesc Pompeia, invariavelmente com casa cheia.

Com o Karnak, André encontrou um novo caminho para suas experimentações. A música que vinha do Laboratório Santa Sicília passou a conversar com influências diferentes. Sem nunca abandonar sua Gibson Les Paul preta 1978 (comprada nos Estados Unidos, durante a juventude, com o dinheiro de muitas horas cortando grama por lá), o som foi rotulado de World Music para satisfazer a necessidade dos críticos. Era um rock muito diferente do que se fazia no Brasil da década de 1990 e o rótulo não ajudou a banda. O que era taxado de intelectual, na realidade era a busca de uma simplicidade fundamental. Era um som tão despido de pretensões que, muitas vezes, foi confundido com seu inverso, o conceitualismo. O trabalho rendeu, à época, três álbuns de estúdio: Karnak, Universo Umbigo e Estamos Adorando Tóquio (esse último não está nas plataformas digitais – até quando André?). Ano passado a banda lançou a ópera-rock Nikodemus.

Também do Karnak é a canção de André que mais foi regravada (na realidade, com uma obra tão grande, isso é mera especulação): Alma Não Tem Cor. Nas vozes de Chico César ou Zeca Baleiro, a canção ganhou novas nuances e alcançou novos públicos. Em 2020, comemorando 25 anos da música, Abu lançou novas versões, com clipes no Youtube.

Como produtor, Abu assumiu a função em Tem Mas Acabou, do Pato Fu. Na ocasião, Fernanda Takai dizia que “queremos vencer pela estranheza”, o álbum contava com Pinga que entrou nas paradas de sucesso da época. A parceria com John Ulhoa continuou ao longo dos anos, rendendo o álbum ABCÇWÖK (lançado durante o ano de 2020) com sonoridade esquisitíssima, mas fruto de uma experimentação entre dois amigos em plena diversão.

Após a virada do milênio, Abu passou a seguir carreira solo. Ou, pelo menos, a lançar álbuns com seu nome estampado na capa. Desde a estreia com Infinito à Pé até O Homem Bruxo, Abu não conheceu o mesmo sucesso comercial que havia atingido com Karnak (que não era assim estrondoso, mas era um sucesso), mas nunca deixar de trafegar como sucesso entre os críticos.

Em paralelo (sempre em paralelo), André lançou duas outras bandas, Gork e Turk. Turk é uma “banda punk” que, no seu humor característico, é a pior banda do mundo. Abu anuncia os shows dizendo que “é para ninguém ir”. Entre a autossabotagem e a autodepreciação, mais uma vez ele atinge o status cult, sendo seu público composto das pessoas mais descoladas da noite paulistana. Se alguns se referem àqueles shows minúsculos do início da bossa nova como “todo mundo que era alguém na noite do Rio de Janeiro estava lá aquela noite”, ir a um show do Turk pode ser considerado algo tão exclusivo quanto isso. As pessoas que foram a esses shows contam, com certo orgulho, que uma vez que dentro da cena alternativa, isso é o alternativo, do alternativo do alternativo.

AS OUTRAS FACES DE ABU

Se já havia feito sucesso com a Trilha sonora de Castelo Rá-Tim-Bum, Abu está profundamente envolvido com o Show da Luna, desenho infantil criado e dirigido por Célia Catunda e Kiko Mistrorigo. A versão em inglês estreou no canal norte-americano Sprout, da NBC, em 16 agosto de 2014 e, no Brasil, em 13 de outubro de 2014, no canal Discovery Kids. Sua voz é claramente ouvida na abertura quando canta: “Esse é show da Luna, tudo que é pergunta a Luna Faz”.

Dentro desse universo infantil, está o álbum Nikodemus, do Karnak. Ao conversar com Abu, existe um elemento infantil nele, no melhor sentido. Seu olhar está sempre pronto a se maravilhar com as novidades e uma a entrega generosa.

Nessa relação de maravilhamento, Abu também se tornou ator. Tudo começou fazendo pontas nos filmes em que fazia a trilha sonora. O talento teatral sempre esteve presente no palco musical, mas foi logo reconhecido nas telas do cinema. Das telas, também transitou pelo teatro, encenando antes da pandemia, como As Nove Faces do Senhor Abu.

Embora ele insista na ideia das facetas, Abu é um artista completo (quer dizer, acredito que ele não tenha talento em ginástica artística), cuja abrangência dos talentos ajuda a espalhar sua presença, mas atrapalha no reconhecimento de um talento específico. Abu, se só guitarrista fosse, seria um guitar hero brasileiro; se só compositor, referência fundamental; se só ator, tão grande quanto seu pai. Porém, como ele é tudo isso, acaba confundindo as pessoas. Mas talvez ele siga a cartilha de Tom Zé, confundindo para explicar.

A QUINTOLOGIA

Em 2018 tomou o cenário de surpresa mais uma vez. Apresentou ao mundo Omindá, o primeiro álbum de uma série de cinco. Era o disco da água. Com melodias fluídas e participações de artistas do mundo inteiro, o álbum tocou em cheio a sensibilidade das pessoas.

A apresentação no Auditório do Ibirapuera já faz parte daquelas noites lendárias da música brasileira. Diante da casa lotada, Abujamra apresentou seu álbum mais ambicioso. Era o resultado de uma jor-

nada que consumiu anos e muito, mas muito, dinheiro “eu gastei tudo que ganhei na minha vida para gravar esse álbum” conta o compositor. Dentre os artistas de 14 países, Abu gravou com a Orquestra Filarmônica de Praga e convidou a atriz portuguesa Maria de Medeiros para participar de uma faixa.

É provável que Omindá seja um daqueles álbuns que resistam o tempo e seja por muito tempo citado como uma referência da música brasileira. De fato, foi um marco para a carreira de Abu.

Neste projeto, estão planejados 5 álbuns. Omindá (água), Emidoinã (fogo), Lejôodara (ar) e os álbuns da terra e do “quinto elemento”. “O Lejôodara será um álbum alegre”, conta Abu. “Quero que as pessoas saiam felizes do show”. Já o álbum da terra deve ser mais pesado e “o quinto, não sei, preciso inventar”.

EMIDOINÃ

Seu lançamento mais recente, o álbum dedicado ao fogo – Emidoinã – é uma surpresa. Não pela expectativa, ele já havia sido muito anunciado. Mas a continuação de Omindá representa um caminho muito diferente de seu predecessor. É uma obra mais pesada e pungente, focada nos sons da guitarra distorcida.

“Eu tenho sorte, o estúdio que frequento vou tem absolutamente tudo de que preciso e posso imaginar”, conta Abu sobre a possibilidade de gravar com os equipamentos que ele quiser. “Neste álbum, eu usei o som das guitarras plugadas no amplificador, sem muitos pedais”. As canções têm grande energia e reconectou Abu com um público mais jovem. Mesmo tendo laçando o álbum em meio à pandemia, o músico pôde ver suas redes sociais infladas e as reproduções nas plataformas de streaming se multiplicarem. “Em vez de quarenta e nove centavos, vou ganhar sete reais no próximo mês”.

A conexão com um público mais jovem é fruto da sua constante renovação sonora. Neste caminho, Abu convidou artistas com apelo mais jovem como Crioulo, Russo Passapusso e Marisa Brito, mas mantendo antigas parcerias, como com Chico César, BNegão e Pedro Luís.

Como o próprio tema induz, Emidoinã é um álbum que trabalha com intensidades. O poder construtivo e destrutivo do fogo é como seu controle e descontrole. Abujamra caminha sobre as labaredas, se colocando em risco. É um passo ousado que dá para longe da segurança que seria repetir-se a partir do antecessor.

O caráter teatral do álbum se complementa com a animação que o acompanha. A obra ganha riqueza em sentidos e, de alguma forma, faz as vezes de um show de lançamento que se torna impossível neste momento. André é taxativo “só faço show de novo quando for seguro para todo mundo”.

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