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PETER LAKE
by comlimone
NY
Por Fernando de Freitas UM ROSTO NA MULTIDÃO
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MILHÕES DE STREAMINGS E NÃO CONHECEMOS SUA VERDADEIRA IDENTIDADE
Já fomos enganados mais de uma vez por farsas, embustes e brincadeiras dos artistas. É impossível não se lembrar do fenômeno Milli Vanilli, que arrematou um Grammy, da superbanda Travelling Wilburys gravando álbuns sem o nome real de seus integrantes (Dylan, Harrison, Petty, Lynne e Orbinson), do álbum que Garth Brooks gravou sob o pseudônimo de Chris Gaines ou mesmo da banda virtual Gorillaz. Peter Lake é uma espécie de farsa. Conversamos por mais de uma hora por videoconferência com uma pessoa que se identificou sendo Peter Lake. Jamais vimos seu rosto, uma vez que sua câmera permaneceu desligada durante toda a conversa. Em um papo divertidíssimo, o artista foi espirituoso e falou longamente sobre seu desejo de manter sua identidade anônima, sobre o mercado da música e questões filosóficas. Após a conversa, não se tratava mais sobre acreditar ou não no que foi falado, mas em contar uma boa história.
TEMPO A SEU FAVOR
“Nada é mais valioso que nosso tempo”, repetiu Peter mais de uma vez, “eu não entendo como grandes artistas conseguem passar meses longe de casa e da família e ainda compor uma música”. Ele também mostrou uma repulsa especial a cafezinhos sociais, compromissos publicitários e, claro, a interesseiros orbitais. Para Peter o que importa é compor a melhor música pop de todos os tempos. “Eu não quero que as pessoas me reconheçam na rua. Meu tempo é valioso, quando somos jovens não damos valor ao tempo”, diz em um primeiro momento. “E, imagina, as pessoas te julgam a partir de preconcepções, se você não sabe como eu me pareço, você pode imaginar o que você quiser”. Me pergunto, porém, se a persona e o mistério não podem se sobrepujar à música, essa que Peter valoriza tanto, quando brinca: “imagina alguém que gosta de música indie me encontre na rua e me veja usando meu chapéu de cowboy. Ele se questionará por que se identifica com minha música. Mentira, eu não uso um chapéu de cowboy. Eu tenho um guardado em algum lugar, mas não uso” e complementa: “se eu vou me dar o direito de ser anônimo,
eu tenho a obrigação de falar apenas a verdade”. Peter também é categórico a respeito da realização de shows. Eles não acontecerão. O artista revela seu pavor de encarar a rotina de viagens com longos períodos longe de casa, noites mal dormidas em hotéis, jetleg (aquela ressaquinha de avião, sabe?) e tudo que o afaste do aspecto fundamental da criação musical. E, pasmem!, ele afirma que jamais foi a um espetáculo musical, admitindo que isso é muito estranho, pois ele sempre gostou muito de música.
A DESCOBERTA MUSICAL
Cerca de três anos atrás, Peter estava em uma festa e começou a conversar com um produtor musical, que o anfitrião era amigo em comum. Ele passou a criticar a indústria, sentia que tudo era muito igual e que a qualidade havia caído muito. O produtor, cansado do discurso de Peter desafiou: “então porque não tenta você compor uma música?”. Peter achou engraçado, afinal, o que havia de tão difícil nisso? Mas Peter jamais havia tocado um instrumento e não sabia nada sobre teoria musical. Mais tarde, já em sua casa, o desafio ficou em sua mente. Pegou o celular e cantou uma melodia com uma letra. Enviou para o produtor e foi dormir. No dia seguinte, recebeu o convite para visitá-lo no estúdio e Peter foi. No caminho, sem entender muito o convite, chegou à conclusão de que receberia uma aula de música. Iria recusar a gentileza. Ao chegar no estúdio havia um guitarrista a postos. Peter explicou que não queria aulas e que tudo não passava de uma brincadeira. “Você acha que vou perder meu tempo para te dar uma aula? Se foi você mesmo que fez esse áudio, eu preciso te gravar neste estúdio. O que você me mandou é bom e quero registrar”. Após algum tempo de trabalho, Peter ouviu pela primeira vez sua música gravada no alto-falante. Era muito estranho, ao ouvir sua voz e sua música, ele não sabia o que pensar. Ele sabia que era ele, mas como poderia? Se existe alguém em quem Peter confia, esta é sua irmã. Ela lhe diria se tudo aquilo era uma ilusão. Enviou o arquivo para ela, que retornou quase imediatamente “eu sei que é você, mas isso é muito estranho”, disse a irmã. “Isso é muito bom, você precisa mandar para o papai e para a mamãe”. E assim foi. O telefone tocou quase que imediatamente. O pai, ao fundo, gritava “eu gostei”, enquanto a mãe disse, séria: “filho, eu gostaria que você fosse a um neurologista”. Sim, era muito estranho que ele tivesse tal habilidade. Isso precisava ser investigado. No médico indicado pela mãe a consulta correu normalmente. Tudo parecia bem até que Peter explicou o motivo da consulta. Ele havia descoberto essa habilidade incrível, compor e cantar músicas sem qualquer treinamento e estudo. O médico riu ironicamente. Peter mostrou a gravação. “Você compôs isso? Sem nunca ter nunca estudado música? Vou pedir mais alguns exames”. (Cabe aqui lembrar do filme O Fênomeno, estrelado por John Travolta e com a canção “Change the World”, de Eric Clapton, em sua trilha. Nele, o personagem de Travolta, um homem absolutamente ordinário, passa a aprender uma série de habilidades – principalmente da mente – até que descobre ter um câncer em seu cérebro. A história veio à mente de todos os envolvidos.) Enquanto fazia exames e esperava os resultados. Peter começou a compor novas canções. Assim, passou a acumular material e a gravá-lo com a ajuda do produtor. Peter tinha a noção exata do que queria, cantava as partes instrumentais para os músicos reproduzirem. Logo se seguiram duas boas notícias, Peter não tinha nenhuma condição clínica/neurológica e as pessoas gostavam de suas músicas.
O QUE ESPERAR
Com cerca de 300 músicas já compostas, Peter diz que ninguém sabe muito bem o que fazer com elas. Já existe um plano de lançamentos para os próximos anos que “o pessoal do dinheiro” está implementando. Sem ter um estilo definido, Peter sente-se livre para explorar estilos e formas musicais. Sempre com uma pegada pop, não importa o que ele faça, ele faz para que as pessoas gostem. Peter afirma que seu objetivo é que “se os extraterrestres chegarem na Terra, as autoridades discutam qual será a música de Peter Lake que eles mostrarão no primeiro contato”. Realmente, é um fenômeno um artista “sem rosto” ultrapassar os milhões de ouvintes como em “Vaccinate with Love” e “Bonfire Eyes”, mantendo bons resultados em seus incansáveis lançamentos. Diante de uma indústria com valores superficiais e excludentes, que penaliza as pessoas fora dos padrões estéticos eurocêntricos e irreais, não deixa de ser interessante que, neste caso, a música esteja em primeiro plano. É possível que tudo isso não passe de uma jogada de marketing muito bem orquestrada. E daí? A ilusão faz parte da arte, Orson Wells já nos ensinou isso com o cinema. Mas gosto de uma referência quase apócrifa do fotógrafo Robert Capa (cuja identidade se formou a partir de um embuste): não importa se história contada é totalmente real, mas se história é interessante.