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RESENHAS
by comlimone
CAETANO VELOSO – MEU COCO
Um artista como Caetano está fadado a ser comparado com sua própria obra. É injusto olhar para qualquer lançamento sob a penumbra de uma obra grandiosa, a expectativa, por si, faz rechaçar ou amar qualquer possibilidade musical diante de paixões por vezes perversas.
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Assim como desde o início de sua carreira, Caetano esteve próximo da (ou na) vanguarda, é difícil não encontrar uma solução melódica, harmônica ou estética com a qual ele não tenha trabalhado antes. Por outro lado, Caetanear é um verbo (inventado por Djavan) que explica o processo artístico sublime do tropicalista. Ninguém caetaneia melhor que Caetano, por Caetano ser.
O que tento dizer é que, ainda que Meu Coco não seja uma obra que traga surpresas, ainda é uma obra de Caetano Veloso, o que significa que é um álbum muito acima da média. São canções certeiras sobre tudo aquilo que se passa na cabeça de um dos mais importantes artistas de nossa história. Meu Coco parece um espelho capaz de refletir a nós mesmo dentro de Caetano e o Caetano que existe em nós.
LINIKER – INDIGO BORBOLETA ANIL
Depois de encerrar sua fase com os Caramelows, Liniker acaba de lançar o aguardado Indigo Borboleta Anil. Os arranjos de metais fazem referência direta à black music de Tim Maia, Cassiano, Di Melo e outros sons dançantes que embalaram os bailões da suburbanos e as festinhas aburguesadas. Por outro lado, não deixa de flertar com a estética do funk contemporâneo, que dá frescor ao som.
A voz da Liniker apresenta suavidade melódica e suingada em todo espectro vocal explorado. Existe um encontro profundo com Marvin Gaye na elegância impassível com que enfrenta os riscos musicais e encontra a beleza do outro lado.
É um álbum que pode acompanhar os dias bons ou os dias mais difíceis. É o conforto macio em forma de música. É necessário ressaltar que a participação de Milton Nascimento em “Lalange” chancela a busca da artista em seu lugar no panteão da música brasileira, por meio de uma canção confessional que nos envolve e isola do mundo exterior.
TOM MORELLO - THE ATLAS UNDERGROUND FIRE
Com uma história mais do que sedimentada no rock alternativo, Tom Morello acumula em seu currículo as bandas Rage Against the Machine, Audioslave e Prophets of Rage tendo se firmado como um dos guitarristas mais originais e inventivos dos últimos 30 anos.
Seu novo álbum, The Atlas Underground Fire, é uma continuação do elogiado álbum de 2018, The Atlas Underground. A gravação contou com participações estreladas como Bruce Springsteen, Eddie Vedder, Chris Stapleton, Mike Posner e Damian Marley entre outros.
Trata-se de um álbum de guitarrista, em que o foco é a exploração das mais diversas sonoridades que o instrumento pode proporcionar. Embora o caráter experimental não seja uma novidade em sua obra, a ideia é não ficar dentro das linhas já estabelecidas. Sobre o álbum, Morello disse: “Fazer esse álbum foi um bote salva-vidas durante uma época conturbada. Criar uma conspiração global de amigos do rock’n’roll com talentos incríveis e diversos me manteve ativo e me ajudou como artista e guitarrista. Gravei todas as minhas partes de guitarra em isolamento e é ótimo agora liberar essas músicas no mundo e infligir o último capítulo da minha guitarra tocando a um público desavisado.” O álbum, como testemunhado por Morello, é um subproduto de dias de pandemia, sombrios e desafiadores. Gravando guitarras em seu telefone, o álbum foi feito criativa e tecnicamente em seu estúdio em Los Angeles, enquanto compartilhava arquivos com colaboradores em todo o mundo. “Durante o lockdown, não tive acesso a um engenheiro de som, então tive que gravar todas as partes da guitarra no memo de voz do meu telefone”, disse Morello. “Parecia uma ideia ultrajante, mas me levou a uma liberdade de criatividade,
já que eu não conseguia pensar demais em nenhuma das partes da guitarra e só precisava confiar em meus instintos”. A prática remonta, inclusive, às gravações caseiras de Keith Richards nos anos 70, que resultaram, inclusive na distorção única de “Street Fighting Man” a partir de um gravador de fita.
Com alguma variedade de temas, a ansiedade causada pelo isolamento social também marca esse álbum e canções mais pessoais, que, porém, não o afastam da temática política que sempre o acompanhou.
MULAMBA - AO VIVO EM ESTÚDIO
Com versões intimistas, o lançamento transforma o trabalho de estreia da banda em versões afiadas e moldadas pelo amadurecimento dos palcos. Agora, arranjos minimalistas e referências eletrônicas se somam à estética orgânica, trazendo roupagens diferentes para músicas já conhecidas. O projeto recorda a trajetória percorrida nos últimos anos, celebrando conquistas, desafios e aprendizados.
Duas faixas extras também chegam ao público: “Carne de Rã” e a inédita “Dandara”, canção que personifica a nova fase do sexteto. “A gente está se desprendendo de alguns rótulos e de uma imagem idealizada em relação à Mulamba. É uma busca por outras maneiras de existência. Agora, conseguimos olhar para dentro; e não só para o mundo, esse lado externo que sempre enxergamos”, diz Érica Silva, integrante da banda junto com Amanda Pacífico, Cacau de Sá, Caro Pisco, Fer Koppe e Naíra Debértolis.
Após a interrupção de shows na pandemia, o álbum marca o reencontro na apresentação online realizada em abril. A apresentação teve a presença especial de Gabriela Bruel (percussão), Klüber (piano e teclado) e Joe Caetano (castanholas). O álbum também conta com uma versão em piano e voz de “Interestelar”, mantendo o clima aconchegante e a letra sensível sobre afetos maternos. Outro destaque é “Lama”, que lembra os cinco anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG).
CABURÉ CANELA – CABEÇA DE COBRE
A banda londrinense (PR), composta por Carolina Sanches (voz), Lucas Oliveira (voz, violões, violino e teclados), Maria Thomé (percussão e live electronics), Mariana Franco (contrabaixo), Paulo Moraes (bateria) e Pedro José (voz, guitarra, clarinete e pífano), lança uma série de materiais exclusivos junto
ao segundo trabalho de estúdio de sua carreira, Cabeça de Cobre.
Gravado em processo totalmente analógico no ForestLab (Petrópolis/ RJ), o disco tem a produção fonográfica do mineiro Lisciel Franco, conhecido por construir equipamentos e por realizar gravações em uma máquina de 24 canais da década de 80, processando e mixando exclusivamente na fita. Isso, inclusive, foi o que tornou possível percorrer a encruzilhada entre o sintético e o orgânico, proposta definida pela banda desde o início do projeto.
Em uma vertente experimental, a banda aposta em sonoridades da música brasileira que vêm sendo exploradas desde Villa-Lobos, reproduzindo os sons da vida e da natureza por meio da instrumentação, porém, alinhados às técnicas de gravação atuais. O álbum conversa com o samba-rock e o soul, ultrapassando os estilos e fundindo-os com o eletrônico e com o rock. É música de quem se diverte fazendo música para retratar a realidade das ruas.
JOÃO DONATO E JARDS MACALÉ – SÍNTESE DO LANCE
“Nunca se falou tanto de um álbum meu”, exclamou João Donato em conversa ao telefone. Realmente, Síntese do Lance surpreendeu a todos com a deliciosa parceria entre Donato e Jards Macalé. O que poderia parecer improvável se tornou um acerto gigantesco.
A abertura do álbum, com Donato exclamando “só alegria” é contagiante. Com estilos completamente diferentes, mas com admiração mútua, os dois ícones da música brasileira provam aquilo que já ressaltaram anteriormente: são somente sons. Eles encontram os sons em comum com uma habilidade tamanha que só um projeto descompromissado pode resultar.
O descompromisso também está no registro. Sem abrir mão da maestria técnica que dois dos instrumentistas mais aclamados do país merecem, a produção destaca a organicidade do encontro, em que, segundo Jards, “do erro se faz um acerto”.
Se você ainda não dançou no balanço de Coco Taxi, o molejo cubano (abrasileirado pelos dois) que remete ao transporte característico de Havana, faça-o imediatamente. Divertido e levemente perigoso, o transporte é uma moto com uma cobertura em formado de coco (ou, talvez, um antigo orelhão) para seu piloto e dois passageiros, que cortam em velocidade o Malecón Habanero com turistas que visitam a ilha. O passeio é irresistível como a música da dupla.
O Passeio continua por temas instrumentais e canções que ultrapassam os limites da Bossa. A exploração das melodias e ritmos em todo tempo apenassegue uma linha, o encontro entre os estilos de Jards e Donato em busca da harmonia de sons que fazem a músic.
Juntos, a dupla mostram a possibilidade de reler sua própria obra e apresentar novidades. Com isso, provam que são atualíssimos e podem ser populares com as novas gerações que admiram sua música, o resultado é que este lançamento da Roncinante é um presente às novas gerações, que podem presenciar este encontro único de dois gênios criativos, que após uma longa carreira podem transformar o improvável em um álbum fundamental.
FLÁVIO MACHADO DE OLIVEIRA - CANCIONAUTA
Cancionauta, álbum de Flávio Machado de Oliveira, chegou às plataformas digitais em 2020, sete anos após seu lançamento. Com timbres graves e encontro com musicalidades de diversas origens - samba, bossa-nova, MPB, música nordestina, erudita e indígena - é, como sugere o título, a expedição de um viajante pela canção brasileira.
Prezando pela clareza, a gravação aposta em sonoridade orgânica, onde se pode perceber distintamente a sonoridade dos instrumentos e diferentes vozes e timbres eletrônicos (como teclados, guitarra e programações de percussão) aparecem com menor destaque. Em sua capa, o disco apresenta colagem de diversos elementos que dialogam com os temas do álbum e remetem à identidade e às origens do Brasil: a natureza, a lua, uma borboleta, montanhas e um arco-íris.
Dentro das canções, a viagem pelo Brasil é mais profunda. Cancionauta abre com “Nosso Canto” e a faixa-título em diálogo em que se completam. A primeira música ressalta as belezas do país com o poder das percussões e sua sucessora aposta na beleza dos arranjos de cordas, em uma apresentação da persona do artista - “Canto feito um poro do planeta/ feito erupção de primavera/ com a alma em pose de serpente/ e na mente imanente imensidão”.
As baladas românticas de influência soul, presentes na MPB das noites dos anos 1990 e 2000, dão a tônica de “Ilha”. A religiosidade é representada em “Encontro das Águas” e o samba aparece em “Quitéria” e “Auê”. O grande destaque do disco fica para “Brasa”, penúltima música do disco em que Flávio enaltece as muitas faces da cultura brasileira. Em publicação de sua página no Facebook, o autor revela: “Antes de tudo é a minha declaração do mais profundo amor. Mas é também um voto, em forma de canção, para que os humanoides se tornem Humanos e abarquem em seus corações todas as crianças da Terra, independentemente de cor, crença ou origem”. (LV)
FÁBIO JORGE - O TEMPO
A noite e suas nuances em esfumaçadas sensações de torpor e angústia transbordam neste álbum de Fábio Jorge.
São 10 canções interpretadas com a suavidade de quem tem a tarimba de fazer música para as almas atormentadas que precisam preencher o impreenchível. A trilha sonora da nossa vida é feita de todo tipo de canção, mas algumas são reflexivas e representam pontos de virada da nossa existência. É com essa seleção que Fábio apresenta o que parece ser sua própria jornada.
A delicadeza e suavidade significa um pouco mais que as canções íntimas. As escolhas encontram reflexos políticos com A Paz, composição de João Donato e Gilberto Gil, ou mesmo Pra Fazer o Sol Adormecer, de Gonzaguina, Porta Estandarte de Geraldo Vandré e Canção do Medo de Gianfrancesco Guarnieri e Toquinho. Ainda assim, essa voz política se faz por meio de canções com carga foremente metafóricas.
Trata-se, portanto, de um álbum que revela diversos estudos. Em um trabalho dialético Fábio Jorge se propõe olhar para sua própria voz a partir da poesia e arte de grandes compositores, numa jornada de entender o próximo e o coletivo.