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O ANIVERSÁRIO DE GRACELAND

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DUAS VEZES BRECHT

DUAS VEZES BRECHT

Por Lucas Vieira

A BATIDA INDESTRUTÍVEL DE SOWETO O ÁLBUM GRACELAND, DE PAUL SIMON, COMPLETA 35 ANOS, OU COMO O POP SUL-AFRICANO GANHOU O MUNDO NA DÉCADA DE 1980

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A BATIDA INDESTRUTÍVEL DE SOWETO O ÁLBUM GRACELAND, DE PAUL SIMON, COMPLETA 35 ANOS, OU COMO O POP SUL-AFRICANO GANHOU O MUNDO NA DÉCADA DE 1980

Em 1948, foi implantado na África do Sul um regime de governo segregacionista denominado apartheid. Com ele, a minoria branca passou a ter o domínio econômico e político do país e a maioria negra passou a viver marginalizada, perseguida e alijada de direitos fundamentais. Nelson Mandela, que passou 27 anos preso por sua luta política e, posteriormente, recebeu o prêmio Nobel da Paz (em 1993) e, no ano seguinte, foi eleito presidente do país, ainda é a figura mais emblemática de resistência ao regime de segregação racial.

O regime, duramente criticado ao redor do mundo, gerou um boicote cultural promovido pela ONU. Músicos de outros países não realizavam shows na África do Sul e a nação também era proibida de participar de eventos esportivos, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol.

Ignorando a medida, o cantor Paul Simon, que completou 80 anos em outubro, decidiu gravar um álbum com artistas sul-africanos. Simon havia se encantado com a musicalidade do país, que conheceu por meio de uma fita K7 dada a ele pela musicista Heidi Berg. Com a decisão, o astro do folk estadunidense produziu Graceland, que encontrou grande sucesso comercial, mas também foi alvo de duras críticas, vindas de outros artistas, ativistas e da imprensa.

Porém, para Paul a atitude tinha intenções artísticas, longe de um apoio ao regime segregacionista ou de desrespeito ao boicote. Em depoimento ao New York Times revelou: “Eu não estava indo gravar para o governo, ou tocar para audiências segregadas. Eu estava seguindo meus instintos musicais, que iam ao encontro do desejo de trabalhar com pessoas que faziam uma música que eu realmente admiro”.

O impacto do LP de Paul Simon na indústria musical foi enorme e fez com que crescesse o interesse dos ouvidos ocidentais para a musicalidade africana. Em depoimento para o documentário “Under African Skies” (2012), Peter Gabriel - que, em 1980, gravou a canção “Biko”, em homenagem ao ativista sul-africano Steve Biko, preso, torturado e morto pelo apartheid - afirmou: “Graceland apresentou para milhões de pessoas em todo o mundo o que era maravilhoso na música sul-africana. O disco ajudou o planeta a entender que a África era muito mais do que sofrimento”.

“WORLD MUSIC”?

A partir de 1979, com a fundação do selo Celluloid, o mundo começou a olhar com mais atenção para a música pop da África. Nessa época, o grupo senegalês Touré Kunda foi um dos primeiros a assinar com a gravadora e, durante a década de 1980, vendeu milhares de cópias de seus álbuns ao redor do mundo.

A exemplo do Touré Kunda, manifestações pop vindas de diversos países e continentes naquele momento inauguraram um novo rótulo, comprimindo toda a diversidade musical de países que não são europeus ou estadunidenses em um único termo: world music.

Trazendo uma série de questões, o rótulo é discutido até hoje. Seu caráter reducionista de tentar classificar o som do Buena Vista Social Club e do Mory Kanté em uma mesma seção de lojas de discos mostra o quão centralizado o mundo ainda está no eixo Europa-Estados Unidos. Em 2020, a Recording Academy, responsável pelo Grammy Awards, substituiu sua categoria de mesmo título pelo novo nome “global music”. Porém, a segregação continua a mesma.

“UMLUNGU OMNYAMA”

Um dos poucos artistas brancos do país a confrontar o apartheid foi Johnny Clegg, cantor e guitarrista inglês radicado na África do Sul desde a infância. Ao lado da banda Savuka, foi um dos principais nomes a alcançar sucesso mundial com a explosão da “world music”, com discos lançados na Europa, Oceania, Japão e t no Brasil.

Em 1969, quando era ilegal a convivência entre negros e brancos na África do Sul, Johnny se reuniu ao guitarrista Sipho Mchunu para formar o grupo Juluka, banda que, no auge da segregação, uniu seis músicos das duas etnias com um som que misturava rock, música zulu e celta.

Com canções de protesto político que traziam mensagens implícitas, a Juluka foi duramente censurada pelo apartheid. A execução de suas músicas era proibida nas rádios e os músicos não podiam se apresentar em locais públicos, sendo limitados a tocar em festas particulares, universidades e hotéis. Com a censura, encontraram como solução realizar turnês pelo mundo, onde conquistaram relativo sucesso na Europa, Canadá e Estados Unidos.

Após a separação da Juluka, em 1985, Clegg criou a banda Savuka. A base do som do grupo foi a música maskandi, que tinha como características o uso da guitarra (ou violão) com afinações não-tradicionais e a presença da concertina, acordeão de proporções pequenas, com caixa em formato poligonal.

Ao ritmo popular zulu a banda adicionou roupagem pop e ganhou o ocidente, tendo como maiores hits as canções “Scatterlings of Africa” (regravação de música da Juluka) e “Asimbonanga” (título traduzido para o português como “Não o vimos”), uma homenagem a Nelson Mandela que, apesar de ter sido um ponto alto da carreira de Johnny Clegg & Savuka, teve execução proibida na África do Sul. O governo racista do apartheid, incomodado pelo sucesso de um grupo multirracial liderado por um branco, perseguiu duramente os artistas, que foram detidos diversas vezes e tiveram shows e canções censuradas.

THE GREAT ROCK N’ ROLL SWINDLE

Ao visitar o acervo do Centre Pompidou, na França, em 1980, Malcolm McLaren, ex-empresário dos Sex Pistols, descobriu a mbaqanga, estilo musical originado em Soweto, no subúrbio de Joanesburgo, que une características pop com música tradicional da África do Sul. A descoberta veio através de um compacto que continha a canção “Umculo Kawupheli”, gravada pela banda Mahotella Queens, um dos principais nomes do gênero sul-africano. Sem autorização dos compositores, o artista fez, ao lado da banda Bow Wow, uma versão em inglês batizada de “Jungle Boy”, que registrou ao lado dos integrantes do grupo inglês como autor.

Em 1983, Malcolm decidiu fazer um disco solo em que exploraria a musicalidade de diversos países ou “as origens do rock’n’roll”, como preferia dizer. Seu primeiro álbum, Duck Rock, foi formatado como um programa de rádio pirata, apresentado pelo World Famous Supreme Team, uma equipe de som estadunidense especializada em rap e hip hop. Na obra, Malcolm gravou ritmos da República Dominicana, Cuba, Estados Unidos e África do Sul. No encarte, fez questão de descrever as características das músicas, das culturas e dos países que visitou. Porém, mais uma vez, deixou de fora informações muito importantes: os créditos dos músicos que participaram do disco e dos autores das composições.

Músicas tradicionais e de autores dos países que visitou foram creditadas a Malcolm e ao produtor do LP, Trevor Horn - que chegou a ser vocalista do Yes e trabalhou com artistas como Art Of Noise e Seal. No lugar em que deveria estar o nome das citadas Mahotella Queens, por exemplo, o texto se referiu apenas a “Zulu singers”. Como empresário ou artista, McLaren nunca foi conhecido pelos seus princípios éticos ou por seu compromisso com a verdade.

AS RAINHAS E O LEÃO DE SOWETO

Com a ideia de criar um grupo de vocalistas para o selo Mavuthela Music Company, pertencente à gravadora Gallo Africa, o produtor Rupert Bobape criou a banda Mahotella Queens, que teve formações variadas, que incluíram Hilda Tloubatla, Juliet Mazamisa, Ethel Mngomezulu, Nobesuthu Mbadu - falecida em agosto de 2021 - e Mildred Mangxola. Além de grandes cantoras, as artistas levaram para o palco danças e coreografias tradicionais da música de rua de Soweto. Um dos ingredientes do sucesso das rainhas foi o apoio da Makgona Tsohle Band, criada originalmente também para participar das gravações do estúdio pelo qual era contratada. Em sua formação, o grupo trazia o saxofonista West Nkosi (produtor de grande parte da discografia do grupo Ladysmith Black Mambazo), o baixista Joseph Makwela (primeiro sul-africano negro a tocar baixo elétrico), o guitarrista Marks Mankwane e o baterista Lucky Monama.

Formada por trabalhadores domésticos de uma das três capitais do país, Pretória (com exceção do guitarrista, originário da região hoje conhecida como Bela-Bela), a Makgona foi responsável pela formatação da mbaqanga, com guitarras limpas, linhas de baixo melodiosas e solos de saxofone, eletrificando o som rural da música Zulu.

Completando a receita, uniu-se às Mahotella Queens o “Leão de Soweto”, apelido pelo qual ficou conhecido o cantor Mahlathini, nome artístico de Simon Nkabinde. Dono de um estilo particular de canto, o vocalista tinha uma voz profunda, descrita em inglês como “groaning” - em tradução livre “ronco”, “resmungo”, “gemido”. Essa assinatura lhe dava o aspecto de um verdadeiro rei das selvas ao microfone, e o contraste entre sua voz e as das outras vocalistas criou uma das principais características sonoras do grupo.

Com sucessos na década de 1960, separações e declínio da popularidade da mbaqanga nos anos 1970, o reconhecimento mundial da banda veio na década de 1980. Com o crescimento do interesse pela música da África do Sul após o lançamento da coletânea The Indestructible Beat of Soweto (da qual participaram com o nome de Mahlathini Nezintombi Zomgqashiyo) e de Graceland, respectivamente em 1985 e 1986, novos caminhos se abriram para os artistas, que também gravaram a faixa “Yebo”, com o grupo Art Of Noise, em 1989.

A partir de 1987, agora assinando Mahlathini & Mahotella Que-

ens (contando com as vocalistas Hilda loubatla, Nobesuthu Mbadu e Mildred Mangxola), o grupo fez turnês por vários países e lançou discos na Europa e nos Estados Unidos, com destaque para “Paris-Soweto” (1987) e “Melodi Yalla” (1988). Como forma de apresentar signos de sua cultura para o mundo, os vocalistas passaram a usar vestimentas Zulu, com colares, bordados e chapéus que remetem a tradição do povo sul-africano.

UNDER AFRICAN SKIES

Assim como Mahlatini & Mahotella Queens, os Boyoyo Boys tiveram sua obra utilizada indevidamente por Malcolm McLaren. Formada por Lukas Pelo (saxofone), Thomas Phale (bateria), Vusi Xhosa (baixo) e Vusi Nkosi (guitarra), a banda não teve sequer uma citação no encarte, além de ter sua música “Puleng” plagiada, transformada em “Double Dutch”, um dos sucessos do álbum. O grupo moveu uma ação contra o inglês e seu produtor e, através de acordo extrajudicial, o autor Petrus Maneli e a editora Gallo Music receberam pagamento pelos direitos autorais da composição, porém, McLaren e Trevor Horn mantiveram créditos de compositores e, segundo reportagem do Sunday Times publicada em março de 2021, a correção dos autores ocorreu recentemente, 38 anos depois do lançamento do LP.

Com Graceland, Paul Simon teve uma conduta completamente diferente de McLaren. O cantor não só aproveitou o talento dos instrumentistas (com banda base que contou com o baixo de Bakithi Kumalo, a bateria de Isaac Mtshali e a guitarra de Ray Phiri) como também realizou com eles parcerias em composições. Dos Boyobo Boys, comprou os direitos de gravar “Gumboots” e criou uma letra em inglês para a canção. Ao coral Ladysmith Black Mambazo coube parcerias nas faixas “Homeless” e “Diamonds on the Soles of her Shoes”, divididas entre os idiomas, inglês e zulu. Com General M.D. Shirinda e as cantoras do The Gaza Sisters fez “I Know What I Know”. No LP, também transformou uma composição do acordeonista Forere Motloheloa na faixa de abertura, “The Boy In The Bubble”.

Mahotella Queens

AS VOZES DA ÁFRICA DO SUL

Com carreira iniciada na década de 1960, o Ladysmith Black Mambazo foi um dos fenômenos pop sul-africanos de maior reconhecimento ao redor do mundo. O coral foi uma das grandes referências da isicathamiya, canto a capella do povo zulu que se concentra em uma mistura harmoniosa de vozes e, também, do mbube - em que grupos de vozes cantam em uníssono para criar harmonias e texturas interligadas.

Liderados por Joseph Shabalala, o grupo que fez plateias dançarem ao som emocionante de suas vozes e aos passos de suas coreografias contagiantes foram peças fundamentais na sonoridade de Graceland. Inicialmente, um coral que cantava em casamentos e eventos locais na região de Ladysmith, a banda se tornou grande sucesso na África e, após a gravação no disco de Paul Simon, ganhou o mundo e foi vencedora de 13 prêmios importantes da música, incluindo cinco Grammys.

Durante uma entrevista sobre a participação em Graceland, a banda revelou sobre sua sonoridade: “O som do Ladysmith Black Mambazo é o som de tudo que nos rodeia, porque nós crescemos no campo. Pássaros cantando, vento soprando, sapos cantando e alguns insetos pequenos. A música está lá o tempo todo”.

CANÇÕES DO EXÍLIO

Com mais de 16 milhões de cópias vendidas, o álbum de Paul Simon recebeu premiações no Grammy por dois anos consecutivos, nas categorias “Álbum do Ano” e “Gravação do Ano”. Em 1987, o cantor excursionou pelo mundo com músicos que participaram do LP. Registrado em vídeo, “Graceland - The African Concert”, mostra Paul e banda em um show para mais de 20 mil pessoas no Zimbabwe, com plateia composta por negros e brancos.

Além do Ladysmith Black Mambazo, a excursão de Graceland deu destaque para dois importantes artistas sul-africanos, que não participaram da gravação de estúdio. Trompetista e cantor, o jazzista Hugh Masekela teve como grandes sucessos no ocidente as músicas “Bring Him Back Home” e “Soweto Blues”. Sua passagem pela turnê foi uma grande presença artística e, também, política. A primeira de suas canções citadas se tornou um hino da libertação de Nelson Mandela. Em meio ao apartheid, o músico bradou: “Devolvam Nelson Mandela para sua casa em Soweto! Eu quero vê-lo caminhar sobre as ruas da África do Sul amanhã!”.

Outra artista que participou da turnê de Graceland foi Miriam Makeba, cantora que teve sua vida marcada por muito talento e brilho, mas também pela opressão. Assim como Masekela, a vocalista passou mais de 30 anos exilada, voltando à África do Sul apenas com o fim do regime racista. Sua fama teve início com a participação no filme antiapartheid “Come Back, Africa” (1959), que a direcionou para a carreira internacional, gravando um álbum nos Estados Unidos, em 1960, após sua primeira excursão europeia. Naquele ano, a “Mama Africa” já começou a ser duramente censurada pelo governo segregacionista, sendo proibida de retornar ao país para o funeral de sua mãe.

Com um legado musical que começou nos anos 1960 com a clássica “Pata” e passou pelo afro-pop, jazz e até por um disco cantando canções que remetem à história de seu povo (Sangoma, 1988), Miriam Makeba é parte indissociável da história da África, sendo considerada a primeira estrela pop do continente e, nas palavras de Nelson Mandela, dona de uma musicalidade que “inspirava um senso poderoso de esperança em todos”.

No show realizado no Zimbabwe, em 1987, Miriam disse à plateia: “Espero que um dia possamos convidar Paul Simon para Joanesburgo, na África do Sul livre”. O convite chegou apenas

Ladysmith Black Mambazo

em 1992, feito por Nelson Mandela, quando o cantor estadunidense já estava em turnê com o álbum The Rhythm of the Saints (1990), que gravou com a participação dos músicos brasileiros do Olodum.

Apresentada quase dois anos após o início do desmantelamento do apartheid, em um momento em que as consequências do regime racista ainda eram muito presentes, a série de shows foi considerada um marco do fim do boicote cultural, e criticada por parte dos grupos de militantes sul-africanos negros que consideravam que ainda não era o momento para a realização de atividades culturais no país.

Embora fotos apresentem uma plateia multirracial, a dificuldade de acesso para o público negro foi criticada na época: “A maioria dos sul-africanos negros não tinha dinheiro para pagar até US$30 por um ingresso ou para viajar dos distritos periféricos até Joanesburgo”, revelou matéria do New York Times de 13 de janeiro de 1992.

Em 2011, vinte e cinco anos após o lançamento de Graceland, Paul Simon voltou à África do Sul. Durante a viagem, produziu o documentário “Under African Skies” e se reuniu novamente com os músicos que gravaram o álbum, para contar a história do disco e, também, para uma apresentação intimista realizada em Joanesburgo.

No ano seguinte, os artistas subiram ao palco juntos pela última vez em um show, no Hard Rock Calling Festival, realizado no Hyde Park, em Londres, com quase três horas de apresentação e a participação da Ladysmith

Black Mambazo e de Hugh Masekela. Para o The Daily Telegraph, ver Paul Simon no palco apresentando esse repertório foi uma confirmação “da capacidade da música de nos transportar para uma terra de graça”.

REFERÊNCIAS DISCOGRÁFICAS

Uma lista com 16 álbuns para conhecer o pop sul-africano da década de 1980.

Stimela - Mama Wami (1982) Juluka - Scatterlings (1982) Makgona Tshole Banda – Mathaka, Vol.1 (1983) Boyoyo Boys - Back in Town (1983) Malcolm McLarern - Duck Rock (1983) Coletânea - The Indestructible Beat of Soweto (1985) General M. D. Shirinda and Gaza Sister - Music is the Food of Love (1985) Paul Simon - Graceland (1986) Tau Ea Matsekha - Khomo Likae Lekhoolokoe (1987) Coletânea - Sounds of Soweto (1987) Hugh Masakela - Tomorrow (1987) Johnny Clegg & Savuka - Third World Child (1987) Ladysmith Black Mambazo - Shaka Zulu (1987) Mahlatini - The Lion of Soweto (1987) Mahlatini & Mahotella Queens - Paris - Soweto (1987) Miriam Makeba - Sangoma (1988)

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