Por:
Julio Ribeiro e Marco Antonio Schuster Fotos:
Lucas Uebel
Ricardo Boechat
A história desta entrevista é tão curiosa como a do entrevistado. Começou dentro de um carro, a caminho do aeroporto, numa de suas visitas a Porto Alegre, seguiu no saguão do Salgado Filho e foi concluída meses depois, via telefone. Ricardo Boechat nasceu na Argentina, em 13 de julho de 1952, mas é brasileiro. É que o pai era funcionário do Itamaraty em Buenos Aires. Quatro meses depois, foi transferido para Montevidéu. As confusões eram seguidas. Uma vez, não conseguiu viajar de Montevidéu a Buenos Aires porque tinha passaporte brasileiro, mas com local de nascimento em Buenos Aires. Não tinha documento argentino, não pôde entrar na Argentina. Isso foi em 1966, quando o pai, militante do então clandestino Partido Comunista Brasileiro (conhecido informalmente como “Partidão”), ainda não tinha perdido o emprego no Itamaraty e se transferido, com toda a família, para Niterói, onde Boechat continuou morando mesmo depois de trabalhar por 14 anos com Ibrahim Sued, o colunista social do jornal O Globo, o mais famoso do Brasil. Mas antes Boechat seguiu os passos do pai. Entrou para a militância do Partidão aos 14 anos (“meu pai sempre foi um homem muito antenado nas discussões, era um palestrante de mão cheia, muito engajado naquelas lutas”), também fez política estudantil e seus temas preferidos na escola eram história, geografia, ciências humanas e política. Porém, mal concluiu o segundo ciclo e abandonou a escola (gostava mais do ambiente do que das aulas) e foi procurar trabalho. Um dos empregos que tentou foi numa funerária, mas não ficou. Passou a vender livros, o pai era um campeão de vendas da enciclopédia Barsa. E foi vendendo livros para o pai de uma ex-colega que conseguiu o primeiro emprego em jornal, como office-boy. Apesar de filho de comunista cassado e preso duas vezes, e de ter sido filiado ao PCB, nunca teve problemas com a polícia. Chegou a trabalhar na Embratel quando era uma estatal (indicado por Ibrahim, que também o indicou como assessor de imprensa do Copacabana Palace, ele sempre teve dois empregos). Até tirou passaporte duas vezes. “Lembro de ter pensado: esses caras vão esquadrinhar minha vida e vão descobrir que eu tenho gases, que eu sou do partidão, vão saber tudo. Mas de novo soltei um suspiro de alívio quando me aprovaram. Uns incompetentes.” (risos) Há nove anos, Boechat saiu de O Globo, onde tinha uma das colunas mais lidas e prestigiadas do País, e mudou radicalmente sua vida profissional: foi fazer rádio e TV, na Band. Está feliz e riu muito nesta entrevista. Nós também.
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Tu nasceste em Buenos Aires por uma circunstância ou foi planejado? A circunstância principal é que o útero de minha santa mãe estava lá né!? (risos) Mas é uma história curiosa, eu tirei de uma coincidência de fatores uma análise importante da nossa profissão, o quanto as impressões e, às vezes, até os fatos podem te conduzir a uma conclusão errada, jornalisticamente falando. Por exemplo, se eu disser a você que meu celular é rosa, que eu tenho óculos de oncinha, que o meu carro tem adesivo de poodle e que eu nasci em Buenos Aires, o que você vai dizer que eu sou? Que és uma bicha velha (risos). Uma bicha argentina velha (risos), mas para cada uma dessas verdades há uma explicação que aponta para uma outra conclusão. Vamos por partes. Eu não enxergo de perto, e perco dezenas de óculos por ano, se eu ficar comprando óculos em óticas eu quebro, por isso compro em camelôs. Ocorre que o meu grau é 1,75 e dificilmente se encontra nos camelôs, porque eles vendem em graus redondos, tipo 1 grau, 1,5 ou 2 graus. Então, quando eu chego a encontrar um camelô que tem óculos com 1,75, eu compro todo o estoque dele, e aí vem um com desenho de oncinha lá no meio. E é evidente que eu não vou deixar de usar, quando eu já perdi todos os outros. Bem, o caso dos óculos está explicado. A explicação pro celular cor-de-rosa também é simples. Minha mulher, minha adorável Veruska, tem um plano de celular desses que você acumula pontos e depois de um determinado número de pontos você ganha um novo aparelho. Eu perdi meu último celular, aliás eu perco tanto celular quanto óculos, e ela me disse: olha, só tem celular rosa no estoque da loja, e eu disse, não tem problema nenhum usar celular rosa, você ficaria ofendida se o seu marido usasse um celular rosa? Ela disse que não, então me dá esse celular rosa pra cá, eu disse, e está explicado o celular. O adesivo de poodle no meu carro é que eu já comprei aquela merda daquele carro com aquele adesivo de
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poodle (risos) e não tenho unha para arrancar, pode ver aqui, eu roo unhas desde pequenininho, tentei arrancar aquele poodle dali e não consegui. Finalmente o fato de eu ter nascido em Buenos Aires deve-se ao meu pai, que trabalhava para o Itamaraty, não como diplomata, mas como funcionário agregado, na condição de professor de literatura brasileira e de português. Tá aí a explicação dessas quatro tentativas de me denegrir (risos). Quando tu eras adolescente, tinhas uma ideia do que querias ser, tinhas um projeto pra tua vida? Nunca, nunca, e muita gente pergunta como é que você fez, se preparou? Eu não me preparei pra nada, eu nunca pensei especificamente em fazer jornalismo, em seguir essa carreira. Aliás, não fiz faculdade, nem terminei o 2º grau. E não trabalhavas? Eu larguei a escola porque queria trabalhar, ganhar meu dinheiro, sair de casa, aquelas aspirações que a minha geração ainda tinha, hoje os filhos ficam até os 30 anos, uma maravilha. Eu não tinha mais saco para estudar, não aguentava mais aquilo, não correspondia mais à minha expectativa, ou mesmo ao meu baixo nível como aluno, então eu fui vender livros. Na verdade, fui vender aquelas coleções “A ciência em 12 volumes”, “Felicidade no amor em 8 volumes”. A Barsa? A Barsa era o meu pai quem vendia, depois que ele foi preso e tal, cassado, não tinha emprego, sobreviveu muitos anos vendendo livros, principalmente, a Enciclopédia Barsa, chegou a ser o vendedor de maior performance no Brasil em um determinado mês, eu me lembro que foi motivo de muito orgulho para nós. Enfim, eu fui tentar me virar, eu queria fazer coisas, tentei dois empregos de classificados, em equipes de venda, uma de material de escritório e outro na primeira equipe de vendas criada para jazigos no Cemitério Parque Jardim da Saudade (risos). Mas também não me aceitaram, eu era louco demais.
Ficou sem trabalho, então? Eu tinha 17 anos e aí, doutor, eu naquela coisa de vender livros, fui na casa de uma ex-colega de escola, cujo pai gostava muito de mim, e ele diz: “O que você está fazendo, parou de estudar, isso é um absurdo, você não deveria parar de estudar”, eu digo não, eu quero trabalhar, eu vou trabalhar, tal e tal, então ele me disse: “Faz o seguinte, vai amanhã no Diário de Notícias – ele era diretor comercial, da área de publicidade –, vai lá que eu vou ver se te arrumo um trabalho melhor do que vender livros”. Eu fui, eu ia em qualquer porra, e o chefe de reportagem da época, o Camacho, disse: “Garoto, organize estes papéis”. Eu fiquei uns quatro meses na redação do Diário de Notícias, atuando meio que como office-boy, um boy com nível de instrução acima da média e aquilo foi me introduzido naquele ambiente. Daqui a pouco faltava alguém para fazer um trocinho, lá ia eu e fazia e tal, e foi dando certo e eu fui ficando. Minha vida engrenou a partir daí. O Nilo Dante, então editor-chefe, me via lá de manhã até de noite, eu adorava ficar lá dentro, aí ele me chamou e me disse assim: “Garoto, quer fazer um bico?”. Eu disse: “Quero sim, seu Nilo”. Então, vai nesse endereço aqui. Aí me deu um endereço na rua Siqueira Campos, 143, em Copacabana. “Vai no sábado, onze horas da manhã, vai lá e vê se pega um bico para você”. Eu cheguei lá e era o Ibrahim Sued (risos), um mito né, e ali ele me botou também para fazer uma coisa e outra, para ficar um mês cobrindo férias. Fiquei 14 anos. O militante do partidão foi trabalhar com um símbolo do “vanity fair”, da alta sociedade brasileira. Com um jornalista que não só acreditava, mas militava – no seu noticiário, nas suas falas, nas suas declarações – na defesa de valores, princípios políticos e projetos de país, que eram diametralmente opostos àqueles que me inspiravam ou que inspiravam as pessoas que eu respeitava, que eu admirava, e que eu seguia. Mas é aquela história, eu não sei se a ambição de poder colocar o pé dentro de um
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Tu querias matar ele. Queria matar (risos) politicamente e fisicamente, por isso eu não frequentava, propriamente, os ambientes que ele frequentava, alguma coisinha ou outra em um consulado, em que eu mesmo tinha um contato, uma fonte que me chamava eu ia. E tinha o fato, também, de que eu não era um personagem daquele meio social e daquela realidade geográfica.
espaço jornalístico, que de alguma maneira me catapultasse, me conduzisse a outros, mas durante muitos dos primeiros anos que estive com o Ibrahim, eu exercitei o mantra de que estava ali de passagem. Tu ainda militavas no Partidão? Sim, eu militei no Partidão até o início dos anos 80. Quando o Partido Comunista saiu da clandestinidade, tu saíste do partido? Na verdade, eu não era um quadro profissional, era um quadro militante, recrutado formalmente e tal, mas tocava a minha vida fora do partido, trabalhando. Eu me lembro muito que na época em que trabalhei na Rádio Nacional, ali pelo início dos anos 70, quando a ditadura estava bem violenta, bem truculenta, eu levava para o pessoal do partidão, e eles tinham muito interesse em tomar conhecimento o quanto antes, as informações que eram coladas no flanelógrafo da redação sobre os assuntos que a Rádio Nacional não podia falar. A censura? No caso da Rádio Nacional nem censura era, porque era uma rádio oficial, do governo, então, na verdade, aquilo ali era um boletim diário atualizado, às vezes mais de uma vez por dia, do que estava banido no noticiário geral. Com o Ibrahim tu frequentavas o high society? Não, nessa época não, porque o Ibrahim era uma figura, estava lá no topo da cadeia alimentar e eu estava aqui em baixo, eu era um alevino, era um girinozinho no jornalismo, estava engatinhando. O Ibrahim era muito rigoroso, muito truculento, mas foi uma importante escola de jornalismo para mim, eu aprendi muito com ele, principalmente, a criar, cultivar e manter fontes. O caderno de telefones, que tenho até hoje, eu considero o melhor instrumento que o jornalista pode ter. O meu está aqui ó, para você não achar que eu estou fazendo sacanagem (mostra um caderno todo escrito à mão, com páginas gastas, sujas do manuseio).
Ele te dava dicas assim? Dicas, no sentido didático, não. Ele pegava um texto na mão e gritava: “Chita, tu é uma besta, caralho”. Qual era teu apelido? Chita. Ele me chamava Chita e dizia: “Você é louco, esse texto tá uma merda!”.
o instrumento didático que mais o Ibrahim usou foi o porrete E você consegue se achar nessa babilônia aí? Acho, hoje menos porque eu não tenho o manuseio diário da época que tinha quando fazia coluna diária, mas imagina que aí está minha vida e de muita gente. O Ibrahim me trouxe todo esse ensino, a sintetizar o texto, a ser objetivo na conversa com uma fonte, a não cair em lorota ou tentar não cair, aprendi muita coisa com ele. Mas eu digo o seguinte: o instrumento didático que mais o Ibrahim usou foi o porrete. O que ele dava de esporro!! Eu nunca vi o Ibrahim elogiar uma nota que eu tenha feito, nos 13, quase 14 anos que eu trabalhei com ele. E quer saber? Não acho que tenha me feito falta, hoje eu sou muito grato ao turco, muito grato, tive a oportunidade de expressar essa minha gratidão várias vezes depois que sai de lá. Agora, até sair de lá...
Ele era o Tarzan, então. Esse apelido se deve ao Fuad Nadruz, antes o Ibrahim me chamava só de “cochá”. Bem, uma vez ele me levou para Nova York, num inverno lá qualquer, e ele ia com a caravana, né, mulher, filho, filha, cachorrinho e o Boechat, que ele gostava de dizer que era o secretario dele, nas viagens ele se referia a mim como “secrétaire”. Bem, ele usava um casacão de pele e era alto pra caralho, e com aquele casaco ficava mais grandalhão ainda e a segunda mulher dele, a Simone, era uma loira assim com o cabelo muito clareado artificialmente, então um dia nós estávamos os três parados em uma calçada em Nova York, esperando um táxi e o Fuad olhou para os três, apontou para ele e disse Tarzan, olhou para ela e disse Jane, olhou para mim e disse Chita (risos). Riram durante horas e então pegou esse apelido. Então, a aula que ele me dava era: “Chita, que merda, essa notícia é uma merda, que cascata filha da puta, caralho, você não aprende...”, e dá-lhe porrada na mesa, era uma pagada geral. Vamos fazer um lapso de tempo aqui, dar uma corrida na fita, depois tu foste ser colunista com tua própria coluna, já no Globo. Em 1983, eu já não aguentava mais brigar com o Ibrahim, já tinha consciência de que era um bom repórter de colu-
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na, um bom apurador, e ganhava muito mal, trabalhava pra caralho e aquela relação era desgastante, embora ele já me tratasse de forma diferente como me tratava no início. Aí, um dia, teve lá uma discussão qualquer e eu peguei meus caderninhos de telefone e disse: “Olha eu não volto mais, tchau”. E fui embora, e ele não acreditou, achou que era um desgaste de família, me ligou uns dois dias depois: “Pô, tu não vai trabalhar?”. Eu falei: “Não, eu não vou voltar não”. Ele entubou, porque também é o seguinte o turco não passava recibo, ele sabia segurar qualquer rebordosa, era uma figura ímpar. Bem, aí entrou o Zózimo (jornalista Zózimo Barroso do Amaral) na minha vida profissional. Mesmo sendo de outro jornal, o Barrozinho (como Boechat chamava o Zózimo) me ligava muito, era muito meu amigo, a gente não convivia por eu morar em Niterói, mas se falava muito por telefone. Ele era, digamos, a nova linguagem do colunismo emergente, com uma certa sofisticação de texto, ironia, sarcasmo, carioquismo mais zona sul. O turco era popular, levava os salões para o povão, né, botava naquela linguagem dele, aquele jeitão dele, o Barrozinho não, era um esteta, um estilista de outro tipo e tal. O Ibrahim mandava um monte de notas minhas pro lixo, ou porque não acreditava na minha fonte, ou porque tinha lá seus compromissos, não queria ficar mal com este ou aquele e tal ou, simplesmente, porque embestava de que não iria publicar, por suas idiossincrasias. O Barrozinho percebeu que eu tinha muita coisa que não ia aproveitar, ou que eu nem escrevia ou o que o turco jogava no lixo, e aí passou a me ligar com muita frequência. Ele era muito carinhoso e dizia: “E aí, Boechat, tem um lixinho aí pra mim? Me dá um lixinho?”(risos). Os amigos do Zózimo e fontes dele, como o Armando Nogueira e outros, diziam que o Zózimo era fantástico porque tinha a capacidade de tirar de você uma informação com uma suavidade, como se fosse uma conversa, um bate papo. Um dia, o Zózimo me ligou atrás de um lixinho e não me encontrou lá, “cadê
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ele, pô?”. Foi embora. Aí, ele ligou para a minha casa, em Niterói, “Boechazinho, o que você está fazendo?” Eu saí. “E não vai mais voltar, não?” Não, não vou. “Você não vai voltar, tem certeza?” Não há hipótese de eu voltar, eu não aguento mais, me faz mal, tô de saco cheio. Aí o Zózimo deve ter pensado: “Porra, tô com um repórter que tem 13 anos de coluna no Ibrahim, com um caderno daqueles, que no lixinho me dá o que me dá, vem trabalhar aqui!”. Aí me chamou, depois de se certificar de que não estaria tirando alguém da equipe do Ibrahim, porque essa briga ele não queria comprar, e eu fui trabalhar com o Zózimo e já no primeiro mês foi uma abundância de furos, passei a trazer furos, que eram meu foco. Mas tu voltaste pro O Globo? O Evandro Carlos de Andrade, diretor de redação de O Globo, em uma discussão lá com a coluna do Swan, que era feita pelo Fernando Zerlotini e o Carlos Leonam, cobrou a série de furos que estavam levando da coluna do Zózimo. Aí, o Zerlotini disse: “Pô, Evandro, como é que a gente vai concorrer com o Zózimo, o Fred e o Boechat?”. O Evandro não sabia que eu tinha saído do Ibrahim e, então, ele ligou para o Zózimo me liberar pra eu voltar pro O Globo. Me ligaram e eu disse não, que eu estava com o Zózimo e não iria sair. Mas aí o Evandro deu uma atropelada no Zózimo e ele me disse: Boechat, fica à vontade, vai e tal. Então eu voltei e assumi a Coluna do Swan, e ali comecei a minha carreira, e depois virou coluna Boechat. Roda a fita do tempo, novamente. Hoje, superstar da Band e tal. Teus comentários, especialmente os comentários políticos, são bastante ácidos. Ninguém te enche o saco, ninguém te pede para dar uma maneirada? Jamais. Internamente, não? Não. E externamente, te ameaçam com processo? Nesta eleição não. O que me leva à
dedução de que não estão me ouvindo ou não estão dando a menor importância. (risos) O PGN (Partido da Genitália Nacional) é uma brincadeira, é claro, tua e do Simão, mas se tivesse cédula em papel, tu achas que teria tido um grande número de votos no PGN nestas eleições? Não sei se grande. Mas, pela reação das pessoas na rua, na correspondência com a rádio, na interação com o ouvinte, e tal, eu suponho que ele caiu no gosto de muita gente. Quando falam de aspectos humorísticos do programa, de coisas brincalhonas, informais e tal, o PGN lidera o ranking de assuntos, sem sombra de dúvidas, disparado. E tu achas que isso tem a ver um pouco com a qualidade da política, a qualidade dos políticos brasileiros? Eu não chamo nem de protestar, porque, numa boa, eu acho que a percepção geral é de que protestar contra essa gente não adianta mais, não. Eu acho que é de ridicularizá-los mesmo, ou melhor, de expor o ridículo que é a prática política no Brasil, da forma como ela é feita.
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Tu acha que é por isso, por exemplo, que o Tiririca fez mais de 1,3 milhão de votos? Eu não olho negativamente para a campanha do Tiririca, ao contrário de muita gente, na verdade o que muita gente está querendo dizer é que o Tiririca é a excrescência, mas não, a excrescência é a política em si, a política formal, os que levam a sério essa política. A política brasileira tem jeito? Com essa legislação, definitivamente não. No mundo inteiro, já há muito tempo, a democracia praticada via eleições se modernizou para permitir que as pessoas ampliem o peso do voto, interferindo em assuntos objetivos de seu interesse mais imediato, com listas de temas. Na eleição americana, eleição na Europa, qualquer país, hoje você quando vota, regionalmente, ou nacionalmente, assuntos são agregados ao processo eleitoral. O voto é um instrumento criado pelas sociedades para expressar a sua vontade de interferir nos destinos do país, da comunidade. Ele não se esgota, nem pode se esgotar, naquilo em que apenas está se esgotando aqui no Brasil. É ridículo eu votar em um cidadão ou em uma cidadã e não ter condições de fazer mais nada, além de confiar cem por cento na capacidade dele em honrar os seus compromissos assumidos em campanha. E nem poder tirá-lo de lá. Então, você vê o seguinte, uma emenda popular. Quem tem um milhão e meio de assinaturas no Brasil? São pouquíssimos parlamentares que conseguem essa votação. Aí você pega um milhão e meio de eleitores e faz uma emenda popular, ela deveria chegar ao Congresso com algum tipo de deferência, algum tipo de prioridade: “Senhores, espera aí, vamos dar uma parada na pauta, porque acabou de chegar aqui uma emenda com um milhão e meio de assinaturas de cidadãos brasileiros, eleitores, que querem que nós decidamos isso aqui”. Qual é o tratamento que essa gente dá a emenda popular? É o mesmo trato do cocô do cavalo do bandido. Botam na ga-
veta, deformam, não votam, quando votam não sei o que... Está aí, a Lei da Ficha Limpa, entendeu? Mas vão dizer “ah, não, nós estamos progredindo”, eu não estou discutindo se estamos progredindo, isso é claro que nós temos que progredir. Imagina se um país, com 200 milhões de habitantes, do tamanho do nosso, com o potencial do nosso, com a grana do nosso, com a arrecadação tributária do nosso, com a complexidade cultural e social do nosso, não iria progredir, tem que progredir. O Afeganistão deve estar progredindo em algum sentido, claro que nós temos que progredir. O que eu estou discutindo é se o ritmo desse nosso progresso é o que nós merecemos, o que nós precisamos, do ponto de vista institucional. Mas a tão falada reforma política, que poderia mudar isso, não vai acontecer, porque quem deveria votá-la não tem interesse em sua aprovação. Faz de conta que nós dois somos sócios de um clube, com uma sauna cheia das maiores fantasias que possamos imaginar, com toda a liberdade para poder comer, beber, fazer o que quiser, não cumprimos regras nenhuma, não temos que dar satisfação a ninguém, a vizinhança não interfere, porque não tem poder para interferir, a Polícia não entra, porque somos nós que nomeamos o chefe de Polícia, o fiscal não vem, porque nós é que nomeamos o chefe da fiscalização e, porra, ninguém se mete com a gente, fazemos o que queremos. Então, o estatuto do clube nos permite fazer isso. Aí a vizinhança inteira começa: “Isso é um antro de perversão, de drogas, de prostituição, de corrupção, de jogatina”, mas o estatuto somos nós que mudamos, eu e você, e mais os nossos companheiros do clube. Nós vamos mudar? Por que nós vamos mudar? Não estamos sentindo falta de uma oposição de verdade? Pode ser. O negócio é o seguinte, uma sociedade castrada, desprovida de poder, ou com seu poder redu-
zido a uma manifestação chamada voto, que perdeu o poder de condução do destino nacional, essa sociedade não vale nada. Me dê dez nomes de oposição e dá para acreditar que essa gente é oposição para defender meu interesse? Não. É para defender os interesses deles lá, do grupo deles, da patota deles, que circunstancialmente a patota que está no poder desalojou. Então, a patota que está no poder não atende à minha expectativa de conduzir, de governar o país, como eu acho que deveria estar governando, e plantando as sementes que deveria estar plantando, construindo o que deveria estar construindo, não concordo que esteja, a despeito dos altos índices de satisfação, acho que essa satisfação é baseada em consumo, e os fundamentos continuam mal tocados, como o saneamento, a saúde pública, a educação, isso tudo continua sendo de quinta importância nas prioridades dos governantes. Eu não endossaria essa satisfação com a situação, mas também não vou endossar o discurso da oposição, porque definitivamente a oposição no Brasil é feita apenas em função de tomar o prato que está alimentando o governo, e eles querem comer nele. Não é que querem dar o prato pra gente, distribuí-lo entre nós. Não. É um jogo entre eles, é um jogo palaciano, entendeu? É a corte, é briga na corte. A pretensa luta entre a situação e a oposição no Brasil é uma briga na corte. É uma briga entre o Barão de “Te-fodo” e o Barão de “Quero-te-comer”. (risos) Então, vamos deixar a política pra lá. Já faz nove anos que tu saíste de O Globo. No final das contas, foi bem melhor para a tua carreira, parece, foste para o rádio, pra TV, outros meios de repercussão nacional. Eu vou dizer o seguinte, a forma como a Veja e O Globo agiram naquele episódio. A Veja por razões que eu acho mais no jogo de interesse dela com o pessoal da redação e da cúpula dela com o Daniel Dantas, não vou entrar no mérito, cabe a eles se explicarem com o espelho. E O Globo por picuinhas in-
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ternas, que cresceu muito depois que o Evandro saiu de cena. Então, sei lá... Tu entraste de gaiato no navio naquela história? Outro dia, após o debate dos presidenciáveis, o Chico Caruso publicou na primeira página de O Globo, no dia seguinte, ironizando o debate em que eu era o cara conduzido pela massa em ovação, e os candidatos olhando perplexos. Evidentemente, O Globo não faria, suponho eu, não colocaria na primeira página uma situação tão envaidecedora se tivesse até hoje alguma coisa contra mim. E suponho que não há, enfim, eu continuo mantendo grandes amigos lá dentro, e acho que está tudo bem, a vida segue. Eu dei sorte que ela tenha seguido me levando para novos desafios, uma nova cidade, um novo tipo de atividade como âncora, que eu nunca tinha sido, e como radialista, que eu nunca tinha sido. E, curiosamente, também, eu nunca tinha sido colunista semanal, coisa que eu tenho sido na IstoÉ. Tem sido muito gratificante, do ponto de vista profissional, do reconhecimento do público, e do salário, que é muito importante. Agora, a despeito disso tudo, eu digo do ponto de vista profissional, na época foi algo que me deixou tão surpreso, tão perplexo e tão ferido, que se me perguntasse, “passaria por aquilo novamente para chegar a isto?”, eu diria: não. Só para lembrar alguém que, eventualmente, não saiba, na época tu foste demitido de O Globo sob a acusação de uma matéria da Veja de que tu estarias comunicando o que sairia na tua coluna para um intermediário do banqueiro Daniel Dantas. Na verdade, foi uma nota que eu colhi e passei para O Globo, por uma ligação que eles estavam grampeando a pessoa que falava comigo, não a mim, e essa pessoa era de um grupo concorrente ao do Daniel Dantas, por acaso é o grupo do Jornal do Brasil, do Nelson Tanure, já naquela época. O Paulo Marinho, que é meu compadre, o pai da Maria, que é minha afilhada, e padrinho da minha filha Patrícia, e sempre foi fonte de todas as colunas e colunis-
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tas que você possa imaginar, porque é um dos caras mais bem informados do Rio de Janeiro, é muito articulado, e tal. O Paulo me ligou um dia e me pediu para dar uma notícia, porque ele precisava muito que essa notícia fosse divulgada. Que notícia era essa? Uma decisão judicial que tinha acabado de sair, e que tinha a ver com a briga desses dois grupões aí, em torno de uma disputa de um bilhão de dólares, uma coisa gigantesca, numa telefônica qualquer, eu não me lembro qual era. Eu estava fora de O Globo naquele dia, de férias, e eu disse: Paulo, puta que pariu, liga pra lá. E ele: Não, não, se eu ligar eles vão me jogar pedras, esses jornalistas. E ele disse: Pô, me ajuda, liga pra lá. E eu falei: Paulo, então me manda a notícia, me manda essa merda pra eu ver o que é. Ele mandou por e-mail, e era um texto relatando a decisão judicial, um texto que ele fez à mão. Eu fiz a notícia baseada no fato, sucintamente no fato, e passei para O Globo, ou seja, eu peguei a notícia, transformei mesmo em um texto jornalístico botando o conteúdo objetivo que tinha, e liguei pra ele, ou ele me ligou depois, e eu disse “olha, Paulo, eu mexi na nota. A nota estava uma merda, o teu texto estava impublicável e tal ficou desse jeito aqui, ficou assim e assado, e é isso, a decisão foi essa”, e ele “assim está ótimo, maravilha”. O Paulo tinha e tem tanta intimi-
dade comigo até hoje que poderia ter falado ali uma frase, uma barbaridade qualquer, poderia dizer “está tão bom que eu vou na sua casa depois que tu voltar e vou comer o teu rabo”, podia falar isso, ele tem intimidade para falar, e eu provavelmente ficaria com a fama de que era enrabado, porque os caras levaram a conversa como se tivesse sido uma coisa tramada. Ias ficar com fama de corrupto e veado. Detalhe, a notícia era tão consistente, pertinente como fato, né, que repercutiu nos outros jornais no dia seguinte, era um fato que tinha interesse jornalístico, mesmo, como a briga dos dois era notícia permanente. O fato é que como a Veja estava muito enfiada com alguma operação com o Daniel, e eu também estou cagando, e não quero saber..., o que eles fizeram? Eles fizeram uma matéria que não foi sobre a minha conversa, é claro que não, foi uma matéria da briga empresarial que envolvia os dois, com seus respectivos golpes médios, baixos e altos, e para ilustrar um movimento dessa briga, botaram a gravação da minha conversa com o Paulo. E, da forma como a Veja sabe fazer, né, quando quer passar a impressão de que tem alguma sacanagem, se você ler a matéria você vê que não tem nada ali. Mas, aí eles fazem coisas
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assim: O perito não sei quem confirmou que a voz é de Boechat. Alguém disse que não era? Mas era pra dar a ideia de que há um clima, sabe: está vendo? É ele mesmo. Mas é ele mesmo fazendo o quê? E a outra coisa que eles botaram assim, que na época eu disse, porra, que maluquice, era assim: não há indícios de que o Boechat tenha recebido qualquer favorecimento. Porra, mas se não há indícios, que maluquice é essa de fazer a observação? É pra jogar no terreno da suspeição. Se eu tivesse que fazer um texto ardilosamente, habilmente, para dizer que tu é um mau caráter venal. Sabe aquele texto que profissionais sabem fazer, que não deixa o gancho para você dizer: não, você me chamou de venal, mas... “Não aceito a opinião de quem diz que o Julio Ribeiro é um safado. Ele não é um safado.” Exatamente. “Não há absolutamente nenhuma confirmação de que Julio participou de assalto a tal lugar”, porra, por que tu estás entrando nisso, se tu não eras acusado? Bom, enfim, o fato é que deu no que deu. E do outro lado, reza a lenda que tinha aquele negócio do Tanure querer reerguer o Jornal do Brasil e que tu começaste a dar umas dicas e tal. Não. O que aconteceu? O Globo sabia do convite que eu tinha recebido do Tanure dois, três meses antes, e que eu tinha recusado de ser editor-chefe do Jornal do Brasil. Ele tinha acabado de comprar o Jornal do Brasil, então havia a expectativa de um grande projeto, em dar certo, recuperar o velho e bom JB e tal. É claro que aquele foi um convide envaidecedor, naquela época configurou-se assim, era um puta de um convite, também, do ponto de vista salarial. Mas eu mesmo assim não aceitei, declinei, claro que me senti honrado com o convite, e dei ciência de todos esses movimentos ao Globo, eu disse: “Olha, o Tanure me chamou, me convidou...”. O Globo acompanhou, detalhadamente, todas as etapas dessas conversas com o Tanure. Na medida em que eu conversei várias vezes com ele, a possibilidade de vai ou não vai,
ele me ligava às vezes e dizia “porra, eu estou pensando em chamar uma pessoa de São Paulo”, e eu dizia “olha, não conheço esse, pergunta pro fulano”, eu fui naturalmente me dispondo a colaborar com coisas nas quais eu pudesse colaborar. Eu não vi problema algum em dar um palpite ou outro, ajudar em uma coisa ou outra a alguém que está querendo reerguer o Jornal do Brasil. Mas compreendo perfeitamente, embora não creia que tenha sido essa a motivação, compreendo que O Globo não entendesse da mesma maneira. É razoável, eu sou o principal colunista e o concorrente liga e diz “o que você acha de eu fazer um caderno de esporte”, e eu digo “olha, acho uma merda”, entendeu? Agora, detalhe, nunca recebi nenhuma remuneração por isso e nem era o caso. E ele não me ligava nessa conta, ele me ligava muito mais numa conta assim de uma relação que nunca tinha existido antes, não existe hoje, mas que naquele momento se configurou uma boa relação, um bom contato e tal, o cara montando um puta jornal no Rio de Janeiro, um jornal que todos nós admirávamos. O que deu assim um caráter pecaminoso foi a forma como a coisa foi trabalhada pelo nosso amigo lá da Veja, agora, por qual razão, eu não sei, a razão eu não tenho a menor ideia. Hoje, tu tens muito menos tempo do que tu tinhas quando tu trabalhavas em O Globo, né? Eu vou te dizer o seguinte, talvez sejam as mesmas cargas horárias, porque no O Globo, especialmente nos últimos cinco ou seis anos, eu acumulava jornal com a TV Globo, então, minha jornada começava com o despertar às cinco da manhã e terminava mais tarde do que termina hoje. Mas ela era mais linear e eu ficava ao telefone apurando notícias, ligando pra fonte, me dá um furo, vem cá, e tal. Hoje, eu tenho, talvez, uma soma de horas menor, pouca coisa, mas menor. Mas ela é muito mais movimentada, ela é muito mais agitada, porque eu tenho que lidar com o público, e gosto de fazer isso, me imponho a essa obrigação, eu passo o dia inteiro respondendo a
mensagens, respondendo aos ouvintes, respondendo ao espectador e tal. Eu tento manter essa correspondência em dia, que eu obviamente não consigo, mas talvez eu seja o jornalista que mais responde pessoalmente, individualmente, a mensagens de ouvintes, no mundo. Se eu mostrar aqui ninguém acredita. E não é que eu mande obrigado, não. Outro dia eu escrevi quatro laudas para um cara que me encheu o saco, então o cara vem me encher o saco, eu vou e discuto. E em casa com os amigos tu também adoras discutir? Eu sempre fui falador, fui ouvidor e falador, intensamente. Então, debato muito, discutimos muito aqui a toda hora e calorosamente, nos xingamos amistosamente, sabe essa coisa? “... Deixa de ser babaca, porra. Isso é babaquice, tu és um idiota..”, essas coisas a gente faz. E discutem futebol, também? Não, olha, não... eu até discuto muito mais porque discuto qualquer merda, do que propriamente porque me envolva a minha paixão por futebol. Não sou um apaixonado pela discussão do futebol, sou apaixonado porque gosto de futebol, gosto de jogar bola, adoro jogar bola. Jogas bola? Em São Paulo menos, porque a patroa e filhos pequenos coisa e tal, eu passo pouco tempo dentro de casa, então quando tenho tempo pra ficar em casa, com minha doce Veruska, o tempo que eu tenho pra ficar em casa, vou encontrar os marmanjos pra jogar uma pelada? Aproveito pra ficar com as meninas um pouco. E também tenho que confessar que com 58 anos, eu olho para uma pelada com menos apetite. Mas eu fico seco, às vezes, pra jogar, louco de vontade. Eu gosto muito, mas não tenho saco pra discutir futebol com paixão de torcedor, eu gosto de discutir futebol apaixonadamente, como gosto de discutir qualquer coisa apaixonadamente. Eu sou Flamengo, mas não vão me pegar jamais brigando para defender o meu time, de jeito nenhum, isso aí não existe.
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