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www.violetaskaterock.com.br
Quando nos reunimos pela primeira vez para planejar esta edição, alguns nomes soavam como prioridade. Ana Cañas era um deles, pois sempre nos pareceu uma cantora de voz e ideias, que daria uma excelente entrevista. E deu. Também percebemos que estava passando a hora do fotógrafo Milton Montenegro ilustrar nossas páginas com seu talento e seu pioneirismo. Ele mostra aqui seu trabalho, sempre um passo à frente de seu tempo.
RODA #4
Direto da Espanha, resolvemos apresentar a psique humana embrenhada nas telas da artista plástica carioca Juliana Dias. O cantor e compositor Cesar Lacerda é outra presença marcante e se veste a caráter para explicar o atual mergulho na carreira. Rafael Ramos recebeu a equipe da Roda nos novos estúdios da sua Deckdisc, para falar um pouco de sua verve de produtor. Além disso, tem Filipe Catto, que abriu mão da máscara e da marchinha em uma web entrevista de cara limpa em pleno carnaval. Qual é a da música hoje? Fausto Fawcett liga o seu GPS cultural e indica os caminhos para seguir em frente na atual Babel musical sem se perder. Já Luiz Stein revira o baú atrás daquela imagem que vale por mil palavras. Esta edição e todas as anteriores, na íntegra e com direito a extras, estão disponíveis agora no nosso novíssimo site (www.revistaroda.com.br). Você é convidado de honra para uma visita. Mas só se for agora.
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EDITORIAL
BOB COTRIM . EDITOR DE CONTEÚDO
FAUSTO FAWCETT
Nosso cronista da vez é indefinível por natureza. Chamá-lo de escritor, compositor ou jornalista é atribuir muito pouco à sua capacidade. Fausto é como um químico social a la “Walter White”, um “Heisenberg de Copacabana” que explora as misturas mais ácidas e improváveis da nossa sociedade contemporânea. Cantou Katia Flávia, expôs o básico instinto, editou Santa Clara e favelizou as patricinhas. Ninguém melhor do que ele para nos dizer de fato o que está por trás, pela frente e por dentro da música atual.
MÁRCIO BULK
Em plena folia momesca, Marcio encontrou tempo para bater aquele papo reto pelo facebook com Filipe Catto e a conversa rendeu: repertório e música brega, sem máscaras ou fantasias, foram os temas principais. Os pitacos (agora valvulados) do colunista em torno do monopólio involuntário de opiniões que o mestre Caetano Veloso ainda exerce sobre o universo musical também deveriam render, no mínimo, uma reflexão dos artistas mais novos sobre o papel não ocupado e não exercido por eles atualmente.
ANA ROVATI
Acostumada à vida dentro dos estúdios, a fotógrafa gaúcha formada em publicidade pela PUC-RS, nossa parceira desde o início, mostra um pouco do ambiente onde o premiado designer Flavio Albino cria as suas fantásticas imagens. Atenta e criteriosa, ela só sossegou quando a luz natural de uma claraboia do lugar deu mais vida a alguns de seus cliques.
IVAN COSTA
Começou na publicidade e enveredou pelo jornalismo musical nos quatro cantos do mundo. Sua doutrina segue os caminhos de Brian (Wilson & Ferry), Peter (Gabriel & Tosh), Joe (Ramone & Strummer). Adora ouvir rádio organicamente (invariavelmente música e futebol) mas, na falta de pilhas, não dispensa um podcast. Adorava ir na geral do Maracanã para ver de perto as peripécias de Cafuringa. Ivan escalou o produtor Rafael Ramos e o cantor/compositor Cesar Lacerda como pontas nesta edição. GUILHERME SCARPA
Testemunha ocular do fenômeno de crítica e bilheteria que têm sido as montagens teatrais em torno de grandes nomes da música, Guilherme aponta motivos e responsáveis por essa tendência cada vez mais vitoriosa no Brasil. De Tim Maia a Elis Regina, de Cazuza a Jim Morrison, o jornalista que voltou recentemente de uma temporada em Los Angeles pode ter trazido na bagagem algumas ideias para novas produções do gênero. Afinal, o cenário americano é rico desses personagens. Diz aí, Scarpa.
MILTON MONTENEGRO
Milton tem no pioneirismo uma de suas maiores características. Na década de 80, quando a computação gráfica ainda engatinhava, Milton já dava suas corridinhas nos campos da fotografia digital. O que ele ajudou a desenvolver, agora ele ajuda a aprimorar. No ensaio “Grão”, ele nos mostra um pouco do que o aplicativo The Cool Cam para IPhone/IPad é capaz de produzir. Trata-se de um cara consagrado na publicidade, na música e principalmente na quadra da PUCRio, onde soltava seus petardos indefensáveis nas tradicionais peladas de sábado. LUIZ STEIN
Música, artes plásticas, televisão, cinema, teatro, literatura, cerimônia de abertura de Jogos Pan Americanos. Para onde você olhar nos últimos 30 anos, o traço e a criatividade de Luiz Stein estão lá, inconfundíveis. O “enfant terrible” da arte visual brasileira resolveu dividir com os leitores da Roda imagens que de alguma forma chamam sua atenção. Imagens que falam por si só, com frente e verso.
VAL BECKER
Gaúcha com 22 anos de Rio de Janeiro na bagagem, Val Becker sempre teve a música como sua aliada de todas as horas. Jornalista, compositora, cantora e poeta, criou e coordena na web a Rádio Graviola, um projeto que reúne todas as suas facetas e pelo qual é apaixonada. Aqui, ela nos conta um pouco sobre sua ligação com a música e destaca um disco que marcou sua vida.
COLABORADORES
Revista Roda #4 abril 2014
Editor de Conteúdo . Bob Cotrim bobcotrim@revistaroda.com.br Editor de Imagem . Daryan Dornelles daryandornelles@revistaroda.com.br Editor de Arte . Tello Gemmal tellogemmal@revistaroda.com.br
RODA #4
Colaboraram nessa edição Ana Rovati, Camila Passos, Fausto Fawcett, Guilherme Scarpa, Ivan Costa, Luiz Stein, Márcio Bulk, Milton Montenegro e Val Becker.
RODA . CONTATO Para enviar comentários, sugestões e críticas contato@revistaroda.com.br RODA . PUBLICIDADE comercial@revistaroda.com.br RODA . REDAÇÃO Para enviar sugestões e material para review redacao@revistaroda.com.br RODA . WEB www.revistaroda.com.br RODA . SOCIAL Coordenador de Redes Sociais . Alexandre Florez redesocial@revistaroda.com.br FACEBOOK.com/revistaroda Projeto Gráfico Ofício21
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EXPEDIENTE
Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.
...é música
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EDITORIAL ENTREVISTA . ANA CAÑAS 3x4 . JULIANA DIAS NO ESTÚDIO . RAFAEL RAMOS BATE-PAPO . FILIPE CATTO FOTOGRAFIA . MILTON MONTENEGRO PERFIL . CÉSAR LACERDA SET . FLAVIO ALBINO CRÔNICA . FAUSTO FAWCETT IN CENA . GUILHERME SCARPA FRENTE VERSO . LUIZ STEIN PITACOS VALVULADOS . MÁRCIO BULCK DISPLAY . RODA + VAL BECKER
04 10 22 36 42 50 68 72 76 80 82 84 88
arte . Juliana Dias
RODA #4
Ana Ca単as
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POR BOB COTRIM FOTOS . DARYAN DORNELLES
Intensidade. Bastam alguns minutos de conversa para se perceber o quanto essa palavra acompanha a história de vida da família Cañas. Uma saga que começou num pequeno povoado espanhol, passou pela França e desembarcou no Brasil na década de 50, fugindo do horror de duas guerras, mas sempre recheada de muito amor, contraponto para tanto sofrimento. Desse clã faz parte Ana, que ao ouvir Ella Fitzgerald pela primeira vez não teve dúvidas de que a música seria o fio condutor da sua vida. Ela começou a carreira cantando na noite paulistana, arrebatando ouvidos anônimos e famosos, que a levaram para uma grande gravadora. Aos 33 anos, com três discos de estúdio lançados, essa paulista apareceu, sucumbiu e renasceu. Está lançando o CD/DVD ao vivo “Coração Inevitável” e nos conta um pouco da sua infância, das duras perdas do pai e do irmão e da busca incessante pela verdade na vida e na arte. Inevitável não ler.
Me conta um pouco da sua infância. Como era a Ana menina? A Ana menina era um menino, eu sou a mais velha de cinco filhos e a única mulher, mas posso dizer que a convivência com muitos homens me preparou bastante para a minha profissão, e eu gosto muito da companhia dos homens. Naquela época eu era malcriada e respondona, brincava na rua, vendia brigadeiro e lembro de roubar chocolate no Mappin. Foi uma infância maravilhosa, apesar da separação dos meus pais quando eu tinha três anos. Como eu gostava mais do meu pai que da minha mãe, eu sofri pra ‘cacete’. Seus irmãos te acompanhavam nessas traquinagens? Eles iam na onda, eu era a pessoa que dava a ideia e eles executavam, existia uma hierarquia, tipo uma gangue, mas era muito divertido. Não tínhamos internet, celular ou tablet. O namorado marcava hora para ligar e você ficava esperando ao lado do telefone. Na adolescência você continuou a comandar os meninos? Eu não fui uma adolescente bonita, todos os meninos por quem eu me apaixonava nem olhavam para mim. Minha primeira grande paixão foi aos
15 anos, me apaixonei perdidamente pelo Che Guevara depois de ler o diário dele, vivia com aquele livro pra cima e pra baixo. Além de lindo, ele tinha todas aquelas convicções e ideais, eu achava o máximo seu espírito aventureiro. Sempre me apaixono por caras não convencionais. Essas características pessoais foram herdadas de alguém da família ou você adquiriu sozinha? Eu acho que a gente vem de um espírito eterno, trazemos isso de outras vidas. Já sonhei que fui jogada de um barco em alto-mar com uma bola de ferro amarrada aos pés, tenho certeza que isso foi uma regressão. Eu tinha uma ligação muito forte com o meu pai, um cara extremamente sensível e inteligente que todos admiravam, mas que tinha um vício, a fraqueza pelo álcool. Como foi crescer no meio dessa situação? Eu fui processando e entendendo isso aos poucos, o alcoolismo é uma doença que vai se agravando conforme a pessoa vai envelhecendo. Com o tempo ele foi ficando cada vez mais agressivo e aquelas cenas clássicas da pessoa bêbada dando escândalos ficaram fortes na minha memória.
“eu cresci ouvindo a minha avó cantar ‘La Vie en Rose’, que era a música que ela cantava para esquecer as guerras”
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“eu estava tão mal que entrei no banheiro com uma tesoura e tosei meu cabelo que nem a Frida Kahlo” Isso não fez você se afastar dele? Não! Eu era completamente apaixonada por ele, era louco isso, pois a minha mãe é uma pessoa totalmente diferente, fala quatro línguas, bem resolvida profissionalmente, não bebe e não faz nada em excesso. Já o meu pai era o oposto, apesar de ser um engenheiro brilhante, vivia de bermuda e chinelo e não se enquadrava nas convenções, era meio gauche e nutria um profundo gosto pelo estranho. Muito sensível, só fazia o que o coração mandava. Pelo jeito você seguiu esse modelo, não? Na escola, o modelo era colar macarrãozinho. Eu montei um grupo de teatro sem a orientação de ninguém. Comecei a escrever uns textos para serem encenados nas feiras de ciências e o sucesso foi tão grande que o evento acabou se transformando num verdadeiro festival de teatro com mais de 20 grupos. Acho que esse é um bom exemplo de não seguir os padrões estabelecidos. Até hoje quando eu falo com colegas dessa época a lembrança disso é muito marcante. Voltando à família, qual a origem do nome Cañas? O meu nome tem dois Cañas, é Canãs Cañas, fruto de um casamento entre familiares há umas seis gerações. A
origem vem de um pequeno povoado da província de Zaragoza, na Espanha. Meu bisavô, pai da minha avó paterna, era comunista e prefeito do lugar. Foi assassinado durante a guerra espanhola pelas tropas do General Franco na frente dela, que só tinha 7 anos. Minha família fugiu para a França, cruzando os Pirineus na neve, e acabou ficando por lá. Eles nunca voltaram para a Espanha? Não, minha avó era fichada como comunista e, por conta da Segunda Guerra, vieram parar no Brasil em 1950. Mas e a família da sua mãe? Isso é uma loucura, a família da minha mãe era franquista, minha avó materna era católica extrema, estado e igreja lado a lado, aquela coisa que não dá para saber direito onde começa um e termina o outro. Eu cresci no meio dessas duas correntes opostas dentro de casa. No meio desse turbilhão políticofamiliar tinha alguém com a veia artística identificável? Eu descobri recentemente que meu tataravô foi músico e luthier, mas isso é uma coisa bem distante, dentro de casa eu identifiquei essa veia no meu pai. Para ele ser considerado um artista só faltou mesmo a criação. Estava tudo ali nele, cabeça, espírito e o comportamento totalmente transgressor.
Estava? Ele morreu? Ele morreu em 2006, uma história cheia de altos e baixos, eu internei meu pai para tratamento umas nove vezes. Eu tive que lidar com essa escolha dele de morrer, foi o seu livre arbítrio. A sua veia artística começou a se manifestar efetivamente em que momento? Um momento que me marcou foi quando eu li “Esperando Godot”, do (Samuel) Beckett, com 15 anos. Eu não fui uma adolescente que teve a sorte de crescer ouvindo Jobim, eu cresci ouvindo a minha avó cantar “La Vie en Rose”, que era a música que ela cantava para esquecer as guerras. Eu lembro de assistir à MTV e gostar do Nirvana, mas ainda não tinha consciência do valor do Kurt Cobain como compositor, faltava para mim nessa época uma percepção mais profunda da vida. Hoje, eu acho que ele é um dos compositores mais ‘foda’ de todos os tempos. Essa manifestação veio através do teatro? Eu era uma péssima atriz, tanto que nos grupos de teatro da escola minha função era escrever e dirigir. Mas se pintasse um convite hoje em dia, você recusaria? Eu tenho um projeto futuro com o Heitor Dhalia de filmar algo sobre a poetisa Ana Cristina Cesar, que é uma paixão minha antiga. Além disso, várias pessoas que conheceram a Ana sempre me falam sobre a nossa semelhança física. Mas eu não sou atriz, só faria se eu achasse dentro de mim um espaço que pudesse ser transformado num personagem. Quando a música pintou pra valer na sua vida? A consciência de que eu queria cantar só pintou aos 22 anos, quando eu ouvi a Ella Fitzgerald cantando “Night and Day”, do Cole Porter. Aquilo bateu profundamente em mim, eu ouvi umas 15 vezes seguidas e chorava sem parar.
Essa audição marcante aconteceu de que forma? Nessa época eu estava muito dura e fazia todo tipo de trabalho que pintasse, de festa de criança a garçonete. Um amigo me avisou que haveria um teste para um musical e a musica escolhida era “Night and Day”. Daí em diante eu pirei e comecei a ir atrás das grandes cantoras como Billie Holiday e Sarah Vaughan, e também dos grandes standarts do jazz tipo, Lester Young, Thelonious Monk e Charlie Parker. Você passou nesse teste? Passei, mas o musical acabou não sendo montado, não tinha Lei Rouanet e a produção não conseguiu a grana. Mas aí eu já tinha descoberto a Ella. Não tinha mais volta. Essa descoberta mudou o rumo das coisas para você? A música entrou de vez na minha vida, eu fui cantar nos bares, na noite, tinha semana que eu cantava de segunda a domingo. Como ninguém cantava esse repertório, pintava muito trabalho, eu decorei uns cem standarts. Apesar de não ler partitura, eu decorei todas as harmonias e foi dando certo. Isso durou quanto tempo? Começou em 2002 e foi até 2007, eu fiquei cinco anos como contratada no Bar Baretto, do Hotel Fasano, em São Paulo. Lá foi a minha faculdade, eu trabalhei com um trio de músicos da pesada, eram quase dinossauros da noite, eles tinham tocado no Jogral e no Beco das Garrafas, acompanhando cantoras como Elis Regina e Leny Andrade. Foi ‘foda’, aprendi Jobim, Bolero, música francesa, foi uma oportunidade única de conviver e aprender com cobras como o Mário Edison, um pianista genial. Você tem alguma lembrança marcante desse período no Baretto? Teve um dia que o Chico Buarque foi ao bar para nos ver e imagina só o que é cantar “Retrato em Branco e Preto” para o Chico sentado a um metro de você. Minha perna tremia que nem vara verde.
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Ana Cañas em ação. foto . Camila Passos
“Eu adoro o primeiro disco da Céu e gosto bastante do Criolo. Admiro, mas musicalmente não faço parte disso” Foi um período maravilhoso, deu muita repercussão na imprensa e acabou chamando a atenção de gravadoras como a Som Livre e a Sony. O interesse delas era ter você cantando o repertório da noite? Não, nessa época eu já estava começando a compor. Na verdade, depois de um tempo eu comecei a ficar sufocada como intérprete, eu tinha muito medo de ficar fazendo aquilo a vida inteira, para mim aquela viagem estava chegando ao fim e era hora de tentar algo novo. Eu gosto muito da sonoridade e dos timbres do meu primeiro disco, as letras é que são ainda muito imaturas. O seu começo foi pela porta da frente em uma grande gravadora. O que aconteceu? Cara, esse momento coincidiu com a entrada das gravadoras empresariando os artistas, eu acabei entrando nesse balaio. O Paulinho da Viola tinha acabado de assinar, então eu fui lá e assinei também, um mês depois o Paulinho rescindiu. Era um início de carreira fonográfica para mim e um início na parte empresarial para eles. Foi um momento infeliz da indústria. Mas eu tenho uma grande gratidão pela parceria com a Sony. Foram dois discos lá, certo? O segundo foi com o Liminha de produtor, foi o meu momento rock‘n’roll, passei dos standarts do jazz e da música brasileira para chegar no Hendrix. Saí da frequência dos quinhentos acordes
para os três acordes que mudaram o mundo. Nessa época, meu pai tinha acabado de morrer e eu comecei a beber pra ‘caralho’. Até ali a coisa mais forte que eu tinha experimentado na vida era um cigarro Malboro. Precisava tentar descobrir qual era o lance do meu pai com a bebida. Esse disco foi gravado sob o efeito do álcool? Eu estava um pouco perdida em relação à minha identidade musical. O primeiro disco tinha um caminho estético bem honesto e no segundo eu não estava nem aí pra ‘porra’ nenhuma, eu queria era tomar todas. Eu não tinha noção da responsa que era gravar com o Liminha produzindo. Ficou faltando alguma coisa nesse disco. Você não gosta desse disco? Não, não gosto. Eu estava expurgando a morte do meu pai, me separei, eu estava tão mal que entrei no banheiro com uma tesoura e tosei meu cabelo que nem a Frida Kahlo. Foi um período crítico, ninguém queria mais me contratar porque eu bebia demais, cheguei a cair no palco em São Paulo. No fundo eu estava ‘cagando’ para tudo. Isso durou quanto tempo? Uns dois anos, aí a ficha caiu. A gravadora me deu um pé na bunda, com razão, perdi empresário, perdi dinheiro, perdi tudo. Eu que tinha vindo da noite e tinha conseguido o mais difícil, joguei tudo no lixo.
Nesses momentos, é comum as pessoas se afastarem. Quem te estendeu a mão? Meu marido (agora ex), que tinha reatado comigo, e dois amigos músicos. Na hora que a casa cai é que você conhece as pessoas. Nessa época o Ney Matogrosso me convidou para entrevistá-lo num projeto e eu fiquei superlisongeada. Um dia ele me perguntou se era aquilo que eu queria para a minha vida, se eu iria trocar todo o talento que eu tinha por um porre. Quando eu cheguei em casa, chorei para ‘cacete’ e remoí o que ele me disse. Logo depois o Nando Reis me disse uma frase que me bateu: “a beleza nos salva”. Você não precisa se enfeiar para que os outros enxerguem o seu talento. Essas pessoas foram muito importantes para mim, o Ney veio a dirigir o meu show que resultou nesse DVD e o Nando virou parceiro e deve produzir um próximo disco meu. Quando esse período negro começou a ficar para trás? Primeiro eu parei de beber, aos poucos eu comecei a me lembrar de quem eu era lá no início, de onde eu tinha vindo e por que eu cantava. Depois eu me isolei num sítio de um amigo em Vargem Grande, no Rio de Janeiro, com meus dois amigos músicos, para gravar um disco totalmente independente com o pouco que tinha sobrado de dinheiro. Esse é o terceiro disco da minha carreira e se chama “Volta”.
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Estar de novo no “comando de tudo” refletiu no resultado final? Com certeza, na verdade foi como um renascimento. É o meu disco mais maduro, todo o processo de gravação correu de forma bem tranquila e estão ali todas as minhas influências. Dos três discos esse é o que chegou mais próximo da minha verdade. Mudando um pouco de assunto, o seu nome nunca esteve relacionado a nenhum movimento ou a nenhuma turma. Você é uma pessoa gregária? Eu nunca andei em grupo, sempre fui expulsa deles. O meu lance é fazer a minha parada, a nova geração paulista, por exemplo, até poderia ser a minha turma, mas eles têm uma timbragem diferente da minha. Nunca rolou de trabalhar com produtores que trabalham com eles, que diga-se de passagem, têm discos muito bons. Eu adoro o primeiro disco da Céu e gosto bastante do Criolo. Admiro, mas musicalmente eu não faço parte disso. Não me considero individualista, tenho os meus parceiros na vida como o Arnaldo (Antunes) e o Nando (Reis). Depois de três discos de estúdio, você lança um CD/DVD ao vivo, podemos considerar isso o fim de um ciclo? Como eu já te disse, acho que é mais um renascimento, eu estou muito feliz com o resultado desse trabalho, eu me vejo nele de uma forma inteira como eu não consigo me enxergar nos trabalhos de estúdio. O “Volta” é com que mais me identifico e no primeiro me agrada basicamente o timbre inglês.
O que não te agrada no panorama da música atual? Olha, tem coisas que eu não escuto mesmo, mas no fundo eu acho que todo mundo que comunica tem uma verdade, seja o Caju & Castanha ou o Caetano Veloso. Temos que ter permissão do cosmos para comunicar. Eu não sei se uma artista como a Anitta veio para ficar, mas você tem que respeitar, porque você não conhece a historia dela, o quanto ralou para chegar até aqui e, principalmente, por que ela acredita naquilo que ela faz. Não é uma música que eu escuto, não me emociona, mas eu respeito. Eu aprendi a respeitar toda pessoa que comunica. Para compor você é mais inspiração ou transpiração? Eu acho que os dois, mas eu acredito muito na inspiração.
costumava musicar os meus poemas e que isso não era canção. Ela disse assim: “Canção é melodia, tem que pensar na melodia e colocar a letra. Privilegiar a melodia, saca? Jobim e Cazuza faziam assim, quem você pensa que é?”. Depois disso, comecei a pegar mais no violão e buscar a melodia primeiro. Compus duas novas músicas que quem já ouviu me disse que são as minhas melhores composições. Você citou algumas pessoas bacanas que passaram pela sua vida. E as escrotas, não passaram? Sou uma pessoa de muita sorte, eu acho que só atraio gente legal na minha direção, mas nesse meio em que você lida com grana, poder e ego, você sabe...
A criatividade às vezes caminha lado a lado com o caos pessoal. O período da bebedeira foi fértil? Para mim não foi, eu sofri muito, fiquei muito agressiva me desequilibrei mesmo. Hoje acho que funciono melhor, me alimento legal, corro e me cuido. O único problema é o cigarro, que eu não consigo largar.
Com toda a tradição e história política dentro da sua família, a Ana também se interessa, faz ou se revolta com a política atual? Eu não tenho nenhuma filiação partidária, se é isso que você quer saber. Política é a dignidade nossa de cada dia. Cada show que eu faço, eu pago uma ‘porrada’ de impostos e eu provavelmente não usufruo de quase nada desse dinheiro. Eu sou revoltada com a estrutura das coisas, fico angustiada porque sei que só se constrói um país com educação e cultura. A arte reflete o ser humano.
Você tem um método para compor? Eu mudei muito ao longo do tempo. A Marina Lima esteve lá em casa um dia e me puxou a orelha, dizendo que eu estava fazendo a coisa errada, que eu
O que você acha das manifestações populares que vêm acontecendo no nosso país? Olha, me diz o que aconteceu de efetivo depois disso? A gente tem que tomar
Você busca por ela? Não tem como buscar, ela acontece.
“adoraria entrar numa aula de canto e a professora falar ‘buceta’ em vez de diafragma”
cuidado porque o pensamento que fomentou o fascismo na Europa estava refletido aqui nas ruas. Os jovens gritavam “abaixo os partidos políticos” e isso é muito perigoso. A juventude tem mesmo que ir para as ruas, mas com uma filosofia e não somente com um pensamento anárquico. Você tem alguma religião? Eu sigo a linha espírita kardecista, penso que todo artista de verdade é um pouco médium, ele capta as coisas. Depois de perder o seu pai, como foi lidar com a morte do seu irmão no ano passado? Eu me ‘fodi’ toda por dentro, desabei... Meu irmão foi entrar no mar para lavar o calção e não voltou mais. Foi muito mais difícil que a morte do meu pai. Não é natural uma pessoa no auge da juventude, um atleta, ir embora
Coração Inevitável, quarto disco da carreira
dessa maneira. Ele era muito querido, no enterro dele tinha umas duas mil pessoas. Penso que pessoas como ele não ficam com a gente por muito tempo. A umbanda fala que o cemitério mais privilegiado que existe é o mar. No fundo foi tudo um pouco mágico, não houve a quem culpar, não foi um acidente de carro, não tem um culpado. Foi a natureza. Foi Deus. Foi a hora. Sua família tem um histórico de mulheres fortes que passaram por cima dos obstáculos e seguiram em frente. Você pretende dar continuidade a isso com a maternidade? Eu acho que vou ser uma ‘puta’ mãe, adoro criança, mas vou esperar um pouco mais. Eu quero arrumar um companheiro legal, não precisa ser um cara para ficar casada a vida inteira, mas um cara que seja um pai bacana. Minha experiência espírita me diz que eu
vou ser mãe de uma menina e ela vai se chamar Vênus. É muito forte essa coisa de você gerar um ser e ver ele saindo de dentro da sua ‘buceta’. Aliás, eu acho que a gente tem que cantar com a ‘buceta’. Como assim?? É óbvio que isso é uma metáfora, mas adoraria entrar numa aula de canto e a professora falar ‘buceta’ em vez de diafragma. Isso diferencia muito o cantar feminino de um cantar masculino? Eu acho que diferencia o canto entre as mulheres. Existem as que cantam com o ventre amplificado e as que não. Outro dia estava conversando com o Guilherme Arantes depois de um show e ele me falou que eu era da família de cantoras que cantam olhando para o abismo. E me pediu pra tomar bastante cuidado, porque uma hora o abismo também vai olhar para mim.
RODA #4
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3x4 JULIANA DIAS
Nome: Juliana Dias Data de nascimento: 26/03/1981 Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro Cidade onde cresceu: Rio de Janeiro e Viseu (Portugal) Cidade onde vive: Barcelona Uma cor: Vermelho Um trabalho de alguém da sua área que te marcou: “Inhale and Exhale”, do artista Guilherme Parpinelli Principais ferramentas de trabalho: Grafite; caneta pilot; tinta à óleo, acrílica, aquarela, guache e o “Photoshop nosso de cada dia” Qual o lugar em que gostaria de ver o seu trabalho exposto: Nova Iorque Quem voce convidaria para ser seu modelo vivo: Lucien Freud Quem voce gostaria que fizesse um retrato seu: Lucien Freud! Se voce pudesse levar somente uma imagem para Marte: The Garden of Earthly Delights, de Hieronymus Bosch
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Qual o momento em que a arte virou um caminho profissional na sua vida? Creio que a partir da minha primeira exposição em Barcelona. É essencial dar a cara a tapa para que se tenha um retorno crítico mais fiel, por assim dizer, do seu trabalho. Com a primeira exposição tive essa oportunidade, recebi diversas boas críticas e pude estabelecer contato com inúmeros artistas. Através dela veio o convite para a minha segunda exposição, também em Barcelona. Esse convite surgiu logo depois. O boca a boca gera algo muito positivo quando alguém se expõe: a discussão e difusão do seu trabalho. E agora, com a terceira, essa mais cuidadosa em termos de detalhes, como material, impressão e montagem, já foram vendidas cinco obras, duas estão reservadas, duas estão em negociação e mais três foram encomendadas. A venda de trabalhos me motivou muito. Desse marco inicial até os dias de hoje mudou alguma coisa na essência do seu trabalho? A essência não mudou. Continuo atraída pelo ser humano, por suas distorções, por sua psiquê. Desde pequena que me lembro de ser uma pessoa muito mais observadora que falante. E é com esse meu olhar um tanto distante, no entanto tão atento, de quem observa, de quem analisa, que me pego atraída pelas posturas, jeitos e trejeitos do ser humano. Principalmente pelo olhar, esse que pode dizer tanto...
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Dos primeiros trabalhos até agora quais as maiores diferenças? Eu diria que trata-se essencialmente da aposta e da exigência. Comecei a acreditar que sou capaz de ser notada pelo meu diferencial, a exigir mais de mim tanto no processo criativo quanto no resultado final do trabalho. E isso eu notei pela maneira como o meu trabalho começou a fluir, mais isento de travas, e muito mais perfeccionista em detalhes, em acabamentos.
de cada dia. Eu reajo e interajo com as técnicas que me forem pedidas no decorrer do processo criativo.
A minha postura fora do ateliê também se alterou, me pego abordando donos de locais onde vejo que há possibilidade para expor. E lançando discussões e trocas de ideias com outros artistas, de uma maneira que antes não fazia: com mais segurança.
Qual a sua relação com a tecnologia, ela é importante? Através da internet tenho uma gama enorme de referências que podem inspirar o meu trabalho. Com a ajuda de programas como o Photoshop me permito testar e lapidar ideias criativas. Sem contar, claro!, com a possibilidade de divulgar sobremaneira o meu trabalho.
Quais são as suas maiores influências? Os grandiosos: Picasso, Velázquez, Caravaggio, Kandinsky, Pollock, Lucian Freud, Francis Bacon, Dalí e Egon Schiele. Os ilustradores: Paulo Cavalcante, Paula Bonet, Conrad Roset e HR Giger. Os amigos: Carmen Giraldez, Guilherme Parpinelli e Guilherme Kramer. Os arquitetos: Gaudí (claro!) e Frank Gehry. Os fotógrafos: Walter Carvalho e Evgen Bavcar. Assim como os cineastas: David Lynch, Wim Wenders e Ingmar Bergman. São tantos... Em tantas artes... Mas deixarei a minha lista como está. Você é fiel a alguma técnica específica de trabalho? Não. Faço uso das mais variadas técnicas em prol do sentimento que queira transmitir com o meu trabalho. Desde o grafite, passando pela pintura, até o bom e velho Photoshop nosso
A fidelidade, caso ela exista, pode de alguma forma limitar a parte criativa de um trabalho? Eu acredito que não. Se você é fiel a alguma técnica específica, suponho que seja a técnica com a qual você mais se identifica, com a qual você tem mais desenvoltura para trabalhar.
Existe um tema recorrente nas suas criações? A psiquê do ser humano. Você enxerga alguma característica feminina no seu trabalho que o diferencie? Creio que o dualismo: vulnerabilidade & obscuridade. É recorrente a percepção dessa dualidade no meu trabalho, que se faz notar com a soma: olhar + postura/ ângulo + brushes + cor. Nesse mercado existe preconceito com mulher? Você, por acaso, já passou por essa situação? Não vejo preconceito nesse mercado. Eu, pelo menos, nunca passei por qualquer situação do tipo.
Em ARTE não há SEXO. Há ARTE!
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Quais são os artistas contemporâneos que você acompanha com maior interesse? Conrad Roset, Paula Bonet, Carmen Giraldez, Guilherme Parpinelli e Guilherme Kramer. Dá para quantificar no seu trabalho o quanto é inspiração e o quanto é transpiração? Eu diria que 75% transpiração e 25% inspiração. Cito Picasso: “A inspiração existe, mas tem que te encontrar trabalhando.” Essa quantificação interfere no valor final do trabalho? Na grande maioria das vezes sim. Quanto você pagaria por um trabalho seu? Produzo por necessidade. E isso vem desde muito pequena, quando minha mãe se via louca comigo por eu rabiscar as paredes do meu quarto. Não produzo pensando no valor do trabalho. Mas se é para abordar essa temática de forma mais objetiva, eu diria que o valor da obra é composto por fatores como o tamanho, a técnica utilizada, o tempo de desenvolvimento (incubação - o pensar do artista - e realização), o reconhecimento do artista... Este é o meu ponto de vista. Será sempre necessário calcular também os materiais utilizados, como a tela, no caso de pintura, e a impressão, no caso de trabalhos gráficos com o intuito da obra física, ou seja, impressa. É um conjunto em que tudo é valorizado.
Rafa RODA #4
POR IVAN COSTA FOTOS . DARYAN DORNELLES
No estúdio com...
ael Ramos
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Quem vê Rafael Ramos andando de um lado para outro, falando com todo mundo e entrando por todos os departamentos da gravadora Deck com total desenvoltura, vai ficar com a certeza de que ali está um cara que efetivamente veste a camisa do time que está jogando. É com esse espírito e com seus 35 anos de vida (apesar da cara de garoto) que ele já fez de tudo nessa indústria, trabalhando de officeboy, divulgador, músico e produtor. Um cara que pode se orgulhar de ter uma história considerável dentro do mercado fonográfico. Filho do produtor de discos João Augusto, Rafa, como é mais conhecido, tinha dentro de casa um ambiente musical bem eclético - ouvia-se muito Beatles e Roberto Carlos – justamente por conta da profissão do pai. “Lembro dele chegando em casa e trazendo um dos primeiros aparelhos de disc laser do mercado, além de umas amostras de CD. Entre elas tinha um disco do DeeeLite. Eu acabei pirando no ‘Grooves in the Heart’”, conta. A vontade de ser um músico começou a se desenhar com uma guitarra de brinquedo que ele empunhava pelos quatro cantos da casa como qualquer criança faria, mas a brincadeira só ficou séria para os ouvidos do resto da família e, principalmente para os vizinhos, quando chegou a vez da temida bateria. A partir daí, o caminho estava traçado. Montou sua própria banda, o Baba Cósmica, aos 13 anos e começou a respirar música 24 horas por dia. Paralelamente, Rafa se viciou em conhecer e ouvir bandas independentes brasileiras, frequentava assiduamente a Spider (antiga loja de discos em Ipanema, no Rio de Janeiro), point de muitos aficionados em tudo que era novidade nessa área.
A troca de informações entre ele o pai – que sempre mostrava as demos recebidas para avaliar – pode ter sido o Big Bang para que a gravadora Deck fosse criada um pouco mais na frente. Muitas bandas passaram pelos atentos ouvidos de Rafael, entre elas os Raimundos, que despertou o interesse dele, mas acabou contratada por uma gravadora concorrente da que o pai trabalhava. Nessa mesma época, João chamou o filho para produzir um famoso pau-de-sebo (disco com várias bandas, apresentando duas ou três canções de cada) na EMI, com Kamundjangos, Plinio Profeta, Poindexter e Sex Noise, entre outros nomes. Com a carreira à todo vapor e acompanhando o pai em algumas gravações de discos, Rafael decidiu fundar o selo Tamborete Entertainment com o parceiro Panço. O primeiro trabalho produzido na nova empreitada foi feito com R$ 2.800, entre prensagem, capa e estúdio. “Os preceitos básicos, como fazer dentro orçamento e prazo eu já tinha por conta da vivência com o meu pai. Quando ele estava produzindo discos como do Erasmo Carlos, eu me enfiava no estúdio, dormia no sofá, mas ficava lá prestando atenção a tudo que estava acontecendo”, diz ele. Alguns dos artistas que fizeram parte do pau-desebo da EMI acabaram sendo lançados pela Tamborete. Rafael produzia, colocava o disco na fábrica, levava o CD nas rádios e só saia de lá quando a música tocava no dial. “Produtor é isso. É o cara que bota o carro na rua e faz a coisa acontecer”, garante. O jeito para o negócio começou a ganhar notoriedade a partir do episódio com o grupo Mamonas Assassinas. Rafa descobriu a banda fuçando as fitas que o pai recebia na gravadora e não teve dúvidas em afirmar e convencer o pai de que aquilo era muito bom. O grupo foi
contratado e se tornou um dos maiores fenômenos da música brasileira em todos os tempos. Entre 1994 e 1998, Rafael Ramos sempre esteve envolvido de alguma forma no underground do cenário musical, seja ajudando como amigo, produzindo ou se jogando do palco em moshs como um simples fã no Circo Voador. O início e o estouro dos Los Hermanos também tem o envolvimento dele. Amigo de colégio de Marcelo Camelo e do baterista Barba, os três resolveram marcar um show juntos no Bar Empório, em Ipanema no Rio de Janeiro, dessa vez com Rafa pilotando a bateria da sua segunda banda, o Jason. Nessa mesma época, a Deck tinha fechado uma parceria com a Abril, que estava entrando no mercado, e começou ali mais uma sequência de trabalhos bem sucedidos com Los Hermanos, Ultrage a Rigor, Ira, Inocentes, Maskavo Roots, Fala Mansa e Ritchie, que Rafael considera um marco na sua carreira. “O disco ‘Alta Fidelidade’, do Ritchie, me deixou muito feliz. Chamei o Marcelo Sussekind para tocar guitarra, o som ficou muito redondo e foi elogiado por todos. Isso me fez enxergar a importância de se ter um puta artista dentro do estúdio. Esses caras fazem diferença no resultado final”, afirma ele, que sempre admirou os trabalhos de Liminha e do já citado Marcelo Sussekind. Inquieto como sempre, Rafael também marca presença no início dos anos 00, quando apresenta para o mercado nacional a cantora Pitty, que ele já conhecia dos tempos da Tamborete – produziu o disco da primeira banda da cantora baiana, o “Inkoma”. “Cara, cheguei à conclusão de que faltava mulher no rock, liguei para ela e pedi que me mandasse um material novo. Chegaram 22 músicas e, finalmente, consegui realizar um trabalho de rock com sonoridade ‘foooda’, para bombar nas rádios e tocar em tudo que é lugar”.
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Depois de todo esse trabalho como produtor musical, muitos discos de ouro e platina, ele, atualmente, anda bastante empolgado com os novos estúdios de gravação da Deck, onde está finalizando o novo disco de Pitty. Também está muito animado com o sucesso da fábrica de discos de vinil, Polysom, que reativou, junto com o pai, em 2009, para felicidade de todos aqueles que amam o som da mais alta pureza. Mas essa é uma história para outra matéria.
Batepapo
RODA #4
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com Filipe Catto
21/1/2014 13:26 Márcio Bulk Filipe, menino, vamos lá: a RODA está com uma sessão nova onde eu entrevisto músicos pelo bate-papo do Facebook. Você topa participar? Pensei em conversarmos sobre músicas bregas, bossas, fossas e afins...
21/2/2014 14:13 Éfe Cat Claro! Bora, quando quiser! Agora, nada de música brega. Isso já datou. Hahahahaha!
21/2/2014 14:13 Márcio Bulk Como assim?! Você quer dizer que a música brega está acabada ou que o termo é ruim?
21/2/2014 14:20 Éfe Cat Eu acho que essa classificação já não cabe mais pra nada. Já ficou pra lá, não tem mais serventia, uma vez que a gente caminha pra uma diversificação imensa na música. Tudo pode, todas as misturas são possíveis. Brega é falar que qualquer coisa é brega. Eu acho genial, sim, o despudor de algumas canções populares, a maneira crua com que as coisas são faladas, a ausência de firula. Esse despudor me interessa, mas vejo isso no Roberto Carlos e também no Chico Buarque, no Caetano, na Maysa... Somos todos frutos desse cancioneiro.
21/2/2014 14:23 Márcio Bulk Tem algo de interessante nessa história: por mais que a sua geração flerte bastante com o brega, sinto que você é o que mais se arrisca, andando bem no fio da navalha. Qualquer deslize e você poderia ser rotulado de brega ou de afetado. Não sei se já falaram isso pra você...
25/2/2014 13:44 Éfe Cat Nessas eu prefiro a música da [Adriana] Calcanhotto: “Eu não gosto do bom gosto, eu não gosto do bom senso”. Depende muito do que se tem como referência. Você acha a PJ Harvey afetada quando ela resolve cantar de lingerie vermelha, com cílios postiços, sombra azul e de maracas? Sinceramente eu acho esse papo meio nível 1, vamos falar do nível 3, 4, adiante! Haha!
25/2/2014 13:56 Márcio Bulk Tá insinuando que eu sou baixo nível?! Era o que me faltava! Rsrsrs. Mas, pô, a PJ Harvey é descendente direta de Patti Smith, além de ter aquela aura indie... Mas, no seu caso, até agora, boa parte dos jornalistas o associa, por exemplo, a Ney Matogrosso e Elis Regina. Você mesmo já afirmou que Elis é uma de suas maiores influências e ela, mesmo tendo um repertório e uma técnica irretocáveis, não se importava em ter um canto que, muitas vezes, se destacava pela passionalidade. Algo denso, mas arriscado, você não acha? Essa intensidade pode, a qualquer momento, ser maldosada e se transformar em algo piegas, não?
25/2/2014 13:58 Éfe Cat Eu acredito em dois tipos de música: a que me emociona e a que não me emociona. E eu canto o que me emociona, senão o meu ofício não terá sentido nenhum. Eu jamais faria diferente. O meu ponto de vista sobre a canção é este. Não estou preocupado em olhar superficialmente para uma música, fazer gracinhas... Se for assim, não tem por que cantar. Meu negócio é chegar ao âmago das coisas, trazer as canções para a minha verdade, independentemente de quem vá aprovar ou deixar de aprovar. Eu acredito na verdade. Se o artista está ali por inteiro, fazendo o que acredita, ele consegue se comunicar com o seu público. Mas se cria muitas máscaras, acaba se afastando.
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25/2/2014 14:01 Márcio Bulk Bem, e como se dá a escolha de repertório? Sei que você é bastante intuitivo, mas com certeza há alguns compositores que lhe atraem mais. Com quais você se identifica?
25/2/2014 14:16 Éfe Cat É muito intuitivo mesmo, têm aquelas músicas que aparecem e que se impõem, que nem “Sem Medida”, do Pélico, e “Mergulho”, da Alzira e da Alice Ruiz. Essa escolha se dá muito através da letra. Eu canto aquilo que eu poderia ter escrito, que diz algo de mim. Na primeira pessoa mesmo. Dos compositores, eu adoro o Pélico, o [Alexandre] Kumpinski, a Alzira... São tantos! Poderia ficar horas falando.
25/2/2014 14:19 Márcio Bulk Alguns intérpretes fazem uma pesquisa bastante formal de repertório, cavoucando mesmo. E você?
25/2/2014 14:20 Éfe Cat Nem um pouco, as melhores músicas surgem espontaneamente.
25/2/2014 14:21 Márcio Bulk Mas você tem que estar ligado, não? Circulando, ouvindo...
25/2/2014 14:27 Éfe Cat Sim, mas não de uma forma desesperada. O repertório sempre parte das minhas próprias músicas. São elas que ditam o conceito, o eixo, todo o desenrolar das ideias... a partir delas eu vou sentindo a paisagem e as coisas pintam. Ideias do que cabe aqui e ali, músicas que conversam entre si e que exploram esse lugar que eu estou habitando. Agora, ouvindo eu sempre estou...
25/2/2014 14:35 Márcio Bulk Falando em repertório: E Lupicínio? Mais passional impossível. Qual a sua relação com a obra dele?
25/2/2014 14:41 Éfe Cat Lupicinio é maravilhoso. É impossível não passar por ele. Quando morava em POA, as minhas rondas noturnas vibravam na onda do Lupicinio... aquela coisa noturna dos bares, tudo tinha esse espírito. Já cantei “Vingança” em um show, foi uma catarse! Lupicínio está muito presente na música feita no sul, pelo menos eu sempre senti isso. Isso e o rock, sempre.
25/2/2014 14:42 Márcio Bulk Rock? O que você ouvia? Rock gaúcho?
25/2/2014 14:44 Éfe Cat Gaúcho. Não, gaúcho e gringo. Eu cresci assistindo MTV. Minha vida mudou quando eu vi o clipe de “Legs”, da PJ Harvey. Ouvia muito Nirvana, Hole, Pixies, REM, essas bandas gringas que tocavam muito. E depois, através da Cássia
Eller, foi que eu entrei na música brasileira. 25/2/2014 14:47 Márcio Bulk Escolha de repertório é uma das questões mais complicadas para um intérprete. Conseguir reunir 12 canções de diferentes autores e, ainda assim, conseguir uma unidade, é um trabalho hercúleo. Como foi esse processo no seu primeiro disco e no DVD?
25/2/2014 14:51 Éfe Cat Foi megatranquilo, porque tudo veio do palco. Eu já cantava essas músicas, elas já estavam em mim. Parece loucura, mas essa liga não foi calculada ou planejada, veio do coração mesmo. Mas havia a ideia de fazer contrapontos, intercalando composições minhas com as do Apanhador Só, Pélico, Nelson Cavaquinho... Elas se contradizem e se complementam, entende?
25/2/2014 14:52 Márcio Bulk E como foi a experiência do DVD? Que eu me lembre, você foi o primeiro desta geração a gravar um.
25/2/2014 15:00 Éfe Cat Foi lindo, porque eu sou de palco mesmo. Não teria sentido deixar de fazer um DVD e um CD ao vivo depois de fazer esse show. Desde as primeiras apresentações, eu sentia que um negócio muito especial estava acontecendo e foi através do palco que me vi ganhando público, me descobrindo, testando coisas, trazendo novas possibilidades. A gente estreou no Auditório do Ibirapuera e acabou gravando lá mesmo um ano depois.
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25/2/2014 15:02 Márcio Bulk Há! Meu celular vai descarregar por conta dessa entrevista! Rsrs.
25/2/2014 15:02 Éfe Cat O meu também! Rsrsrs!
25/2/2014 15:22 Márcio Bulk Os artistas costumam reclamar do lançamento de DVDs ao vivo por terem que estender a mesma turnê por mais alguns meses, repetindo o mesmo repertório. E você? Não acha isso cansativo?
25/2/2014 15:29 Éfe Cat Eu acho que todas as músicas soam melhor ao vivo. Tem uma mágica diferente. Além disso, o meu show foi pensado como um desdobramento do CD e não como uma mera repetição. Músicas novas sempre vão entrando e assim o show se reinventa. Não gosto de deixar nada engessado. E, sinceramente, fazer shows é a parte mais divertida do meu trabalho.
25/2/2014 15:32 Márcio Bulk Pra fechar esta parte de brega & repertório: há algum compositor ou gênero musical que nem por decreto você gravaria? 25/2/2014 15:36 Márcio Bulk Droga! Rsrs! E o disco novo?
25/2/2014 15:34 Éfe Cat Que difícil! Não fiz a minha lista negra ainda! Hahaha!
25/2/2014 15:38 Márcio Bulk Se vira, neguim. Alguém me contou que vc está compondo horrores!
25/2/2014 15:38 Éfe Cat Quem te contou?
25/2/2014 15:39 Márcio Bulk Pior que não me lembro! Mesmo! Vida de bêbado, você sabe!
25/2/2014 15:45 Éfe Cat Rsrsrsrs. Ah tem uma música nova no Youtube, uma parceria minha com o Moska [“Depois de Amanhã”]. Fizemos à distância. Eu amo o Moska, é um cara fenomenal, a música sai dele com uma facilidade! A gente se conheceu na gravação do “Elis por Eles” [DVD e CD em homenagem à Elis Regina] em Curitiba, e depois eu fiz o programa dele, o “Zoombido”. Foi tão legal que não deu pra segurar a parceria. Tinha escrito uma letra e mandei pra ele, aí ele me mandou a música pronta. Quase chorei!
26/2/2014 08:02 Márcio Bulk Oba! Novas parceiras! Tem mais? Tem mais? (Ok, eu sei que você não vai querer adiantar mais
28/2/2014 12:42 Éfe Cat Tem uma parceria com o Leo Cavalcanti também, uma música linda, chamada “Unidade
25/2/2014 15:37 Éfe Cat Disco novo? Hahahaha! Adorei. Ainda estou na caneta e no papel, não tem nada pra adiantar, não! Nem sei o que será, mistério!
nada mesmo, mas vai que...)
dos Versos”! Mas posso falar mais do disco novo, sim, tô fazendo fita! Rsrsrs. Mas só sei coisas abstratas...
28/2/2014 14:14 Márcio Bulk Então simbora falar sobre essas abstrações! Rsrsrs
28/2/2014 14:36 Éfe Cat Então, as músicas estão nascendo, mas de uma forma bem diferente. Estou achando legal, mas preciso tocá-las ao vivo, colocá-las no palco, para sentir qual é a loucura da coisa. As músicas nascem muito cruas, eu só dou ponto final depois de ouvir a banda tocando na frente do público. O disco será totalmente diferente do primeiro. É outra viagem.
28/2/2014 14:39 Márcio Bulk Filipe Rocker?
28/2/2014 14:45 Éfe Cat Não sei se vai soar rocker, porque isso é embalagem, né? Mas as músicas estão vindo assim. Sinto que já fiz bastante coisa como intérprete, já realizei todos os meus fetiches neste lugar. Agora estou a fim de voltar ao meu lugar de origem. Isso até já vem acontecendo, quando toco guitarra nos shows. É um retorno a este lugar, do tocar, do compor... fazer um som com a banda e desenvolver as ideias a partir daí. 28/2/2014 14:49
28/2/2014 14:48 Márcio Bulk Eu já falei que admiro suas composições e que achei o máximo quando você tocou com O Terno [na gravação do especial de fim de ano do programa Cultura Livre, dezembro de 2012]...
Éfe Cat Eu também adorei tocar com O Terno. Aquele dia foi meio emblemático, porque me senti muito próximo da minha gênese.
28/2/2014 14:50 Márcio Bulk Tem essa vontade de sujar um pouco o som, né?
28/2/2014 14:53 Éfe Cat Sim. Eu já venho fazendo isso pesadamente na turnê. Acho natural que o trabalho siga nessa linha. E tudo isso é carregado de visceralidade. Enfim. Ainda não sei como será o disco, mas, a cada dia, está mais claro que ele será bem simples.
28/2/2014 14:54 Márcio Bulk Visceralidade? PJ curtiu isso! Rsrsrs! Ah, se a minha opinião contar, superacho que deveria ser mais econômico e sujo...
28/2/2014 15:00 Éfe Cat Como no Jards [Filipe participou do projeto “E Volto Pra Curtir”, em homenagem a Jards Macalé], né? Essa é a onda. Vai ficar bacana. Mas não sei se vai ser econômico, porque eu
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gosto do bafão. Hahaha. Algumas músicas estão megaminimalistas e outras bem furiosas. 28/2/2014 15:02 Márcio Bulk Ah, quis dizer econômico em relação à instrumentação. Rsrsrs.
28/2/2014 15:04 Éfe Cat Ah, sim! As bandas que eu mais gosto têm uma formação minúscula! É inacreditável como elas tiram aquele som todo de tão pouco recurso. Tipo Black Keys, The Kills... Eu nunca gostei das bandas fofas. Eu quero é ver sangue!
28/2/2014 15:06 Márcio Bulk Hahaha! Parece o Kiko Dinucci falando! Putz, falando em fofura, pensei em colocar a Clarice Falcão na roda. Mas acho sacanagem...
28/2/2014 15:07 Éfe Cat Eu a respeito! Acho digna, ela faz o som dela. É tão chato as pessoas falarem mal da garota só porque ela é sucesso. Quanta amargura dessa gente! Você não acha?
28/2/2014 15:08 Márcio Bulk Super! E eu adoro a Clarice! Ouça os primeiros versos de “Capitão Gancho”: “Se não fossem as minhas malas cheias de memórias/ Ou aquela história que faz mais de um ano/ Não fossem os danos/ Não seria eu”. É do caralho!
28/2/2014 15:14 Éfe Cat Ela é honesta. Neste país, fazer sucesso é estranho. Se você conseguir, pode ter certeza, neguinho irá fazer cara feia. Sempre foi assim. Ontem eu estava vendo uma entrevista da Elis no YouTube onde ela falava isso. Naquela época já era assim! E hoje ainda continua do mesmo jeito!
28/2/2014 15:14 Márcio Bulk Isso já aconteceu contigo? Não me lembro de ter lido críticas negativas a seu respeito...
28/2/2014 15:18 Éfe Cat Não pessoalmente, mas é uma máxima. Eu acho que cada artista tem seu lugar. Cada um tem suas loucuras e seus limites. E é preciso respeitar isso. 28/2/2014 15:20
28/2/2014 15:20 Márcio Bulk Felipe, menino, acho que a entrevista já está joinha. Já foram 10 laudas! Bem, preciso me mandar! Vou comprar um vestido de vovó pra fazer uma fantasia de Aracy [de Almeida]! Bjs, bjs! E brigadão!!!!!
Éfe Cat Rsrsrsrs! Ok, qualquer coisa grita!
28/2/2014 15:21 Márcio Bulk ALALAÔ ÔÔÔ ÔÔÔ ÔÔÔ!
por . Márcio Bulk Filipe Catto é cantor, compositor e multi-instrumentista. Nasceu no Rio Grande do Sul. Voz e talento peculiares na nova safra da música brasileira. Tem dois discos e um DVD lançados, “Fôlego” e “Entre cabelos olhos & furacões”(CD/DVD). fotos . Daryan Dornelles
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FOTOS .
MILTON MONTENEGRO
GRテグ
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O lado pop da Esquina Durante o ano de 2013 muitos discos foram colocados no mercado, mas um em especial chamou a atenção de todos aqueles que curtiam ouvir Milton Nascimento, Lô Borges e João Bosco: “Porquê da Voz”, de César Lacerda. O fato de serem todos mineiros não é mero acaso. César nasceu em Diamantina, norte do estado. Seu trabalho de estreia traz uma semelhança muito mais musical do que regional com a dos nomes citados acima, até porque esses artistas transcendem qualquer tipo de regionalismo. Filho de uma pianista clássica, ele cresceu num ambiente e numa cidade que respira música e que já foi considerada a região com o maior número de pianos do país. Como todo garoto dos anos 90, teve influencias que vão de Mamonas a Spice Girls, coisa que, diga-se de passagem, não tem nenhuma vergonha de afirmar. “Minha geração conviveu com muito lixo dito musical.
Ouvíamos Caetano e Chopin, tudo isso misturado ao universo popular”, relembra o cantor e compositor. Uma parte da vida social das crianças em Diamantina era nas escolas de música e o filho mais novo de uma trupe de três passou boa parte da infância dentro de uma delas, a que a própria mãe dirigia. Em casa, recorda que pegava os discos de Jimi Hendrix do irmão para ouvir: “Eu acompanhava o som da bateria tocando com cabides. Me sentia o próprio Mitch Mitchel das baquetas”. O estudo formal nessa área era uma consequência natural, então Belo Horizonte acabou sendo a estação seguinte de desembarque do cantor. Mas uma paixão amorosa foi responsável por César cair na estrada outra vez e trocar a tranquilidade da capital mineira pela frenética vida no Rio de Janeiro. A paixão, como é comum,
César Lacerda
POR IVAN COSTA FOTOS . DARYAN DORNELLES
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acabou, mas o solo carioca e o estudo na Uni-Rio já faziam parte de seu cotidiano. Quando faltava apenas uma matéria para concluir seu bacharelado em flauta transversa, César tomou uma decisão inusitada: “Abandonei tudo faltando um mês para me formar. Percebi que a conclusão daquele curso não traria efetivamente nada de concreto naquilo que eu queria para a minha vida, sem contar que, apesar dos excelentes professores, a estrutura educacional da instituição era de dar vergonha em qualquer um”. A partir daí começou a jornada bem conhecida de todos aqueles que tentam um lugar ao sol no mercado da música - muitos shows como contratado no circuito de samba da Lapa. Ele chegou a pensar num disco com composições de Monarco, mas embalado numa sonoridade mais contemporânea, algo como o que a Adriana Calcanhoto fez em seu “Micróbio do Samba”. Nessa época, o embrião do primeiro trabalho já estava pronto e ele começou a juntar grana para concluí-lo. Usar o dinheiro do cachê dos shows não daria para tanto, então era primordial o ‘paitrocínio’, situação que, segundo ele, é muito comum nos dias de hoje. “Essa é uma realidade no mundo, a ‘juventude de 40 anos’ que ainda vive na casa dos pais e do dinheiro deles”, analisa. “Porquê da Voz” é um projeto independente, bancado também por algumas parcerias que ele firmou ao longo do tempo.
César queria fazer um trabalho com a sua assinatura, por isso o processo de escolha dos músicos envolvidos demorou bastante. “Tinha que trabalhar com quem entendesse a minha sonoridade”. Adepto do processo de criação de Caetano Veloso e Maria Bethania, em que todo disco tem uma dramaturgia própria, acha que “Porquê da Voz” tem segredos que só podem ser revelados através do canto. Para ele, o disco tenta exaltar o Brasil de maneira parecida como algo que já foi pensado por antropólogos e historiadores como Darcy Ribeiro e Sergio Buarque. Nutrindo um profundo prazer pelo trabalho solitário, o cantor e compositor diz que ouve pouca música por ter o ouvido viciado: “Enquanto muitas pessoas ouvem uma música e pensam na beleza da mata ou do mar, eu já penso mais no sol maior que está sendo tocado”. Com mais de 120 músicas prontas, ele já pensa no segundo disco, mas diz que o ano de 2014 é de consolidação desse trabalho. “Porquê da Voz” foi pré-selecionado para o Prêmio da Música Brasileira, o que dá a nítida sensação de que esse mineiro, já bastante acariocado, pode estourar em 2015, quando seu caminho musical provavelmente estará bem mais pavimentado. É esperar para ver.
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POR IVAN COSTA FOTOS . ANA ROVATI
...com Flavio Albino
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Vasco e Metal
Ele gosta de desenhar desde pequeno. Na adolescência era apaixonado pelas capas de vinil com seu formato 31x31cm - foi aí que descobriu sua verdadeira vocação. Amante de futebol e do bom e velho heavy metal, sempre acha uma forma de acrescentar essas paixões em algumas de suas criações, como a imagem da campanha de lançamento mundial do Adobe Photoshop CS5, que trazia uma caravela estilizada com um toque vascaíno do artista.
“TV Overdose”
COMEÇOU AQUI: “Existe até hoje em São Cristovão, bairro onde nasci e cresci, uma loja de esportes chamada Cabral. Ainda estudava quando um amigo me pediu para fazer a logo da loja, já que o que existia era apenas um letreiro com a palavra Cabral, sem qualquer design. Fiquei honrado em fazer a primeiro logo dessa loja que significava tanto pra mim. Ali encomendei meu primeiro time de futebol de botão galalite do Vasco, meus apetrechos de futebol, prancha de natação, e tudo que eu precisava.” FLAVIO ALBINO TRAMPO: Design Gráfico Manipulação Digital DNA: Desenho Industrial (Programação Visual - PUC Rio) INSPIRAÇÃO: Pintores românticos, como Delacroix, Girodet, William Turner. Contemporâneos, como o suíço H.R. Giger, o pós-industrial rococó americano Kris Kuksy, Derek Riggs (ilustrador das capas do Iron Maiden), e o surrealista italiano Alessandro Bavari.
Photoshop CS5
GPS: Platinum Estúdio Rio de Janeiro Brasil
Futebol no “expediente”
DIA A DIA: Resolver pendências como orçamentos, pegar brieffings com diretores de arte e, só depois disso, começar efetivamente a meter a mão na massa. TRILHA SONORA: Sempre um bom rock, de preferência o mais inspirador de todos: AC/DC. CUCA FRESCA: Curto bastante jogar Candy Crush. Com a galera do estúdio, os jogos da Uefa Champions League que passam à tarde são sempre uma boa oportunidade de relaxar o ambiente quando o bicho está pegando. EU TINHA: Um PC 386, com um inacreditável HD de 1GB. Hoje, os arquivos de trabalho chegam a ter mais de 4GB quando abertos no Photoshop. É impensável achar que dava para fazer algo naquilo. EU TENHO: Imac 27” quad core I7, mesa digitalizadora Wacon Intuos 3 com Photoshop CS6. EU QUERO: Novo Mac Pro com 12 processadores Intel Xeon E5 3,5 ghz Duas GPUs AMD FirePro com 6GB de VRAM GDDR5 cada 64GB de memória ECC DDR3 a 1866MHz 1TB de armazenamento em flash com PCIe1
“Enforcados”
“Splash de Carne” - Sancho BBDO WOrldwide Inc.
Candy Crush
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THE. WEIRD WORLD MUSIC
POR FAUSTO FAWCETT
Pois é, volta e meia um motorista de táxi, um passante na rua, algum jornalista, enfim, alguém chega e me pergunta a quantas anda o cenário musical carioca ou nacional. Qual é a da música hoje? Antes que eu fale qualquer coisa, alguns tascam logo aquele clichê de que antigamente (no caso dos cinquentões, os tais anos oitenta) é que era legal e nos dias que correm é essa “merda” de funk e sertanejo e axé e música paraense. Outros, nem rock oitenta, sessenta, setenta, noventa, nem nada. São fundamentalistas do brega de raiz ou do samba ou do forró. São os enraizados brabos que nunca caíram nessa de música jovem anglosaxã e são contra e dane-se. Alguns são mais generosos e ecléticos dizendo que gostam mesmo é de um forró ou de um Roberto Carlos, mas que ouvem de tudo, até música erudita de vez em quando. Mas mesmo esses não suportam baticum eletrônico de rave ou de funk a não ser quando o dito cujo tem letra engraçada ou é melody, como se dizia vinte anos atrás, quando a segunda onda do funk habitava o ainda muito popular programa da Xuxa, ganhando legitimidade classe média geral depois da primeira leva, a do funk apologia ao crime popular proibidão que coincidiu com os arrastões praianos de 92 e deram uma estigmatizada na música eletrônica das favelas cariocas. Mas como já disse acima, veio depois o melody, iniciando a aceitação classe média e depois, em 2000/2001, “um tapinha não dói” e a onda de funk sensual e brincalhão que predomina até hoje. Muita letra ruim e sem graça, mas isso também tem na bossa nova, na MPB, no samba, no rock, no forró, na música brega de desacerto amoroso, em todo gênero do cancioneiro popular. O problema, no caso do funk, é que quando acertam o sucesso é viral fatalizante, voo raso na fruição festiva das ruas. Como pode acontecer com outros gêneros, é claro. Música eletrônica das favelas cariocas. Não adianta espernear nem chiar ou fazer beicinho porque é isso mesmo. A vertente nacional do gigantesco movimento de música eletrônica, da world music technotronic, é o funk carioca. Mantras dançantes com alguma falação ou gritaria ou refrão jogado em cima. O funk é filial de algo que começou a se desenhar na Alemanha dos anos setenta, ou seja, experimentação eletrônica, som industrial, máquinas criando músicas pra mente, paisagens neurológicas, mas também som marcial sendo transmutado em som dançante hipnótico, mexendo com os quadris mas inoculando, ou melhor, extraindo algo que nós sempre relegamos a um segundo plano, as emoções robóticas que nos fazem sonhar com nosso organismo, nossas vísceras, nossa
carne virando máquina. Desejos de ter nossa mente escaneada e colocada na caixa preta de um caça último tipo. Simbiose mental com o não-humano. Mantras dançantes feitos de groove sampleado. Por cima, gritos primais herdados de James Brown ou ladainhas de reza urbana pornográfica ou reportagem obscena sobre os fora da lei fora do prumo, fora de tudo, vadios e vadias que botam pra quebrar. Mas também a inauguração, principalmente em São Paulo, da música de ONG, púlpito para uma, digamos, conscientização que leva o habitante da periferia a ter alguma sensação de cidadania via empreendedorismo calcado no trinômio esporte-músicavoluntariado educativo. “Vem vamos embora que esperar não é saber” reencarnado no hip hop e em parte do funk carioca depois de chacinas ocorridas em São Paulo e no Rio. Falando nisso, reza a lenda que o deputado Romário elaborou um projeto de regulamentação do hip hop: grafiteiros, b-box, breakers agora teriam carteira assinada e aprenderiam os ofícios da cultura hip-hop num esquema de firmas e repartições. Vejam só, o que nasceu da criatividade dos que driblam as adversidades e mostram serviço de talento mesmo sem grana ou colocação social baixa, aquilo que era rebeldia contundente e festiva (afluente do rock em se tratando da tal cultura jovem) virou funcionalismo público. Voltando para as misturas e confluências que levaram ao surgimento do funk, podemos dizer, em linhas bem gerais, a grosso modo, que gente como Brian Eno, Robert Fripp, David Bowie, Giorgio Moroder, Donna Summer, Kraftwerk, Can, na Alemanha 70, Linton Kwesi Jonhson, Bob Marley e a rapaziada
jamaicana exímia na manipulação, recorte de tracks , inventores de dub, também nos 70, Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash, Beastie Boys, entre outros, na América dos anos 80, e depois a explosão inglesa dos anos noventa que teve, entre muitos outros, Prodigy e brothers como destaque, cimentaram de vez, pelo menos num certo mainstream, a estrada, a autobahn por onde circulam em velocidade e desempenho máximo todos os DJs e grupos pesquisadores de frequências inauditas, sonoridades dançantes inusitadas e cruzamentos ferozes de colagens, timbres e programações que também inspiram os funkeiros. As festas sendo sempre de aparelhagens. No Brasil, o funk carioca (e o hip hop racionalmc na periferia de São Paulo, as músicas festivas do Pará e, last but not least, o mangue beat de Chico Science ) é o braço mais festivo e popular-jovem dessa movimentação tecnotrônica mundial sem volta. E, de repente, encontro um músico desses bem virtuoses que já tocaram com a nata da bossa nova ou da música popular e ele diz que vai fazer um som com alguém nalguma quebrada e que não é essa pobreza de três acordes que se instalou por aí há quarenta anos e qualquer um se cria e fica rico e não sei mais o que. Elegância, erudição, virtuosismo envolvidos, ou diminuídos, por uma arrogância idiota, marra chata pra caralho. Mas faz parte. Em Copacabana, também esbarro frequentemente com mesas de octogenários cantando repertório da Rádio Nacional. Num bar ou numa cafeteria-padaria. Ângela Maria, Orlando Silva, Francisco Alves etc... Passando pela Tijuca, vem de um prédio o som DJ de Katy Perry, Anitta,
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Tim Maia, Legião Urbana, revezados com o deliciosamente inevitável Daft Punk abrindo a porteira para mashups absurdos de Furacão 2000, Raça Negra, Gaby Amarantos e música disco devidamente ressuscitada pela daft dupla francesa em parceria com Giorgio Moroder e Nile Rodgers. Aniversários em playgrounds da Zona Norte são sempre mostruários - termômetros de popularidade musical. Ao longe pode-se ouvir a pressão dos desafios numa roda de samba. Do trabalhador? Um táxi passa tocando ópera no último volume. Quantas vezes Villa-Lobos Tchaikovsky emoldurando taxímetro?
e o
Qual é a da música hoje? É comum a presença de garotos de Zona Sul classe média cujos corações disponíveis foram embalados na primeira década do século vinte e um por rockloshermanos trocarem informações com os pais amigos meus sobre bandas cabeças de chave da tal tradição anglo-saxã. Fedelhos sinceramente fascinados por black sabaths , stones, beatles, creams, zeppelins, purples, hendrix, wailers, devidamente amalgamados com os metallicas, pils, nirvanas, nine inch nails, radioheads, oasis, sistems of a down, sonic youths, kraftwerks, enfim, numetal, thrash, hard, o indie heavy - industrial, tecnotrônico dub que for dos últimos trinta anos. Reverência mais que necessária incluindo muitas vezes toda a turma tropicalista mais Egberto Gismonti, Novos Baianos, Hermeto Paschoal, Itamar Assumpção, Mutantes e também Luiz Gonzaga, afinal de contas Raimundos injetaram hard
core no forró. Garotos interessados nas primeiras turmas... Mas sem a rebeldia, sem o fardo comportamental que caracterizou as três primeiras décadas do assim chamado rock. Cinquenta, sessenta, setenta. Grito, mito, som, fúria, revolução de comunicação. Principalmente e quase que exclusivamente na Inglaterra e nos USA. A Juventude enquanto conceito de vendas, alvo de consumo, já tem sessenta anos e já não representa nada a não ser o obvio: reposição social e segmento de consumo. A fúria, o mito e o grito já dançaram, mas o som e a revolução contínua na comunicação, na midiatização da música, bem, isso só vem se aperfeiçoando e se expandindo cada vez mais. E é aí que a porca torce o rabo na tomada da cultura musical contemporânea internacional, brasileira e carioca em particular. O título esdrúxulo desse texto fazse então justificável a partir de uma similaridade com a expressão world wide web que remete a compartilhamentos, hipertexto, enfim, o oceano mais ou menos aberto a navegações que é a internet. Cenário musical aberto a navegações de todo tipo . Mundializado e cheio de estranhamentos deliciosos. Weird World Music. WWM. Qual é a da música hoje em dia? A verdade é que toda a herança de cancioneiro que começou medieval na Provença e foi se espalhando pela península ibérica tendo violas como suporte e um eu lírico, um eu cantando as dores e alegrias do amor, bem, essa conjunção de melodia e lirismo circulando pelas ruelas e depois se misturando com ritmos e harmonias e sendo mexida por todos os lados europeus, africanos
ou orientais acabou gerando um uma variedade de gêneros que vai do blues ao maxixe, ao lundu, modinhas, sambas, cocos, etc. A canção, principalmente a de amor desgraçado ou reverenciador, tornou-se o esteio da mentalidade musical até hoje e permanecerá por muito, muito tempo ainda. Noventa por cento das músicas populares falam de amor nas suas letras. Outros cinco por cento tratam de outros assuntos: política, terror, dadaísmos, outros sentimentos. A canção é a trilha sonora, funciona como uma moldura para fases de nossas vidas. São peças de identificação emocional que arrebatam, habitam a mente afetiva de todos. Mas aqueles cinco por cento são vastos, pois existe música pra dançar, pra refletir, pra andar por aí. Música como muzak, como moldura pra paisagem cerebral, enfim, tem música pra quase tudo. Ou podese usá-la pra quase tudo. Bombril melódico ou rítmico para o dia a dia. Como disse acima, a canção explodiu em gêneros que se misturaram promiscuamente depois da sua industrialização. Mistura tão violenta ocorrida nos últimos quarenta anos com ênfase especial na última década, onde todos os grupos musicais criaram um monstro de Frankenstein e cada peça hoje em dia contém praticamente toda a historia da música nas suas superposições e citações e puxadinhos de influências. É só ler qualquer critica ou resenha sobre disco qualquer. O cara vai dizer que “o trabalho apresenta características do mais puro jazz fusion, mas com pitadas de numetal devidamente partidas por timbragens que lembram bandas industriais, mas tudo domado rumo a um desconcertante hardfrevo”.
cantarolada e com letras. Mesmo que contenha algum estranhamento pela mistura de gêneros. Da vasta primeira fase da canção apresentada em vários estilos, passamos à segunda, onde um híbrido de influências ganha corpo na confecção da música devido à memória, aos arquivos eletrônicos, à digitalização do cancioneiro e das experiências nas últimas décadas em estúdios e em equipamentos.
No começo do artigo, citei situações que dizem respeito à mentalidade musical normal de música pra ser
Mas ainda teremos mais no futuro próximo. Endo-música, música para ouvir dentro da cabeça ou circulando
Agora estamos na terceira, meus amigos, onde bandas, engenheiros de som bolando ambientes pra shopping ou cabeleireiro, sonoplastas artistas plásticos, hackers, inventores de móveis e equipamentos, engenheiros eletrônicos agem simultaneamente pelo mundo num cenário de experimentações, em que as canções passam longe. O que interessa pra essa turma noise/ drone é construir manchas sonoras cheias de nuances ou paisagens sonoras cheias de nuances. Ruídos e funções de equipamentos sendo provocados, domados, conduzidos e adestrados como se fossem animais valvulados ou fragmentados em chips. Essa rapaziada não toca instrumentos apenas, eles tocam principalmente programações, arquivos e processamentos enfiados, encrustados em gambiarras ou móveis musicais inventados. Tentam criar novos sentimentos, descobrir novas sensações. Herdeiros de Cage, Zappa, Satie, Beckett, Antonin Artaud. Outros estados da consciência ou da mente ou... E no Rio de Janeiro essa cena está bombando com grupos como Chelpa Ferro e Chinese Cookie Poets, pra só ficar com dois expoentes botando pra quebrar os padrões de referência na curtição e produção do fator música.
sob a pele, nuvens de gafanhotos sonoros, monções musicais, instalações camufladas pelas cidades, domos de imersão sonora em lugares ermos. O consumo de música mudou radicalmente. Mais do que nunca é ouvir um som em meio a tantos outros estímulos. Qual é a da música hoje? Muito além da canção que sempre estará presente, mas devidamente perturbada, turbinada pela cena experimental. Beyoncé, Kanye West, os maiorais da música pop americana, advindos do rhythm and blues e do hip hop, que o digam. Sonzeira nos shows, sonzeira amalgamada na canção. Ruído ritmado e fúria dos circuitos digitalizados envolvendo rebolados e karaokês. Qual é a da música hoje? Pro l i fe ra çã o , p ro mis cuid a d e , simbiose, híbrido total, muzak e xamanismo technotronico. Entretenimento pesado. Estranho mundial e desconcertante. WWM!
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Em constante ascendência, o teatro musical brasileiro, que deve, sim, muito a Charles Möeller e Claudio Botelho – especialistas no gênero que produziram uma lista enorme de espetáculos nas últimas duas décadas – firmou em 2013 uma tendência que “Tim Maia - Vale Tudo, o Musical” já anunciava um ano antes: as biografias de grandes artistas da MPB como certeiras bilheterias. O apelo emocional das canções, transformadas em passagens da própria trajetória do biografado, garantiu à Tiago Abravanel uma performance memorável na pele do síndico, por exemplo. Também dirigido por João Fonseca, “Cazuza - Pro Dia Nascer Feliz, o Musical”, que estreou no Rio, continua botando gente pelo ladrão e pretende lotar plateias de teatros por todo o Brasil. Mesmo caminho que “Elis, a Musical” deseja seguir nos próximos meses. Ambos os espetáculos carregam uma fórmula que é como a fome e a vontade de comer. Para saciar o desejo do público de rever e reviver grandes sucessos desses ícones da MPB, Emilio Dantas e Laila Garin, intérpretes de Cazuza e Elis Regina, contam com vozes que se assemelham demais às originais.
Emilio, que já tinha a banda Patuvê, possui um timbre assustadoramente parecido com o de Cazuza. Não é uma voz que soa naturalmente igual. Ele explica: “É uma região que preciso alcançar. E que também dói. Mas é, por um outro lado, um prazer”. Quem assiste ao espetáculo facilmente se impressiona pela voz do ator, que tem 29 anos. Em cena, ele interpreta mais de 25 canções, entre elas, sucessos como “Bete Balanço”, “Ideologia” e “O Tempo Não Para”. Até a língua presa, uma das grandes características do poeta, que morreu de Aids em 1990, Emilio reproduz com precisão. A baiana Laila Garin utiliza toda a sua potência vocal para evocar hinos imortalizados pela Pimentinha. Ela interpreta “Como Nossos Pais”, “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, “Maria, Maria” e tantas outras. O gestual ela imita com precisão, sem falar na transformação a que se submete antes de subir ao palco. Ruiva e de olhos azuis, a baiana fica morena, usa lentes de contato e passa por horas de make-up pra encarnar a cantora gaúcha.
Em algumas sessões, a atriz e cantora é substituída, e o público torce o nariz. O mesmo acontece quando Emilio não faz o espetáculo. Mas, em termos de possessão cênica, é interessante também o trabalho que Eriberto Leão vem desenvolvendo na peça “Jim”. Ele se desdobra entre um fã do líder do The Doors, Jim Morrisson, e o próprio, já que canta “Light My Fire”, “The End” e “Riders On The Storm”. O projeto é um sonho antigo do ator que, metido numa calça de couro apertada e com os cabelos desgrenhados, lembra muito Jim. Principalmente quando o palco fica esfumaçado. Os três espetáculos ainda vão dar o que falar este ano. Ainda que não seja como assistir aos velhos ídolos em cena, esses musicais, com suas bandas afiadíssimas, dão uma oportunidade incrível a quem quer chegar perto do que seria o show de um desses grandes que não estão mais entre nós. E, para quem teve a sorte de vê-los, é naftalina e nostalgia das boas. Nos próximos meses, mais um artista inigualável vai ganhar uma homenagem especial: uma montagem sobre Cássia Eller está prestes a sair do forno. Prepare-se.
In Cen
POR GUILHERME SCARPA
na
FRENTE
OSREV POR LUIZ STEIN
LSD sobre Gwendoline
PItaCOS valVUlaDOS RODA #4
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“Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos - uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. Quanto a nós - nós teremos que vencer também a sua sombra!” F. Nietzsche, A Gaia Ciência. Certo, não sou filósofo e sei que ovos, tomates, pedras e afins irão chover em minha horta, afinal esse trecho do “Sr. Nietzsche” é somente o abre-alas de um artigo em que faço referência a um dos mais importantes nomes da música popular brasileira: Caetano Veloso. Mas não espere que eu vá aqui questionar o talento do músico baiano. O cara é foda! Fato. Eu mesmo fico besta e tenho orgasmos múltiplos quando ouço “Baby”, “Onde Andarás”, “Peter Gast”, “Não me Arrependo” e mais algumas dezenas (centenas?) de canções. E ainda tem a Tropicália, que acabou por se tornar a pedra
filosofal de gerações e mais gerações de artistas (tanto daqui quanto da gringa, diga-se de passagem). Então, fazendo este adendo, vamos ao ponto principal desta minha filosofia de botequim: Chico Buarque, Caetano Veloso, Jards Macalé, Tom Zé, Nei Lopes, Luiz Tatit, Arrigo Barnabé, Lulu Santos, Chico Science, entre outros tantos nomes, foram responsáveis por vislumbrar novos rumos na amada idolatrada música popular brasileira. Todos com opiniões fortes e, seguindo uma tradição do país, capazes de desenvolver uma poderosa e necessária retórica a respeito de seu ofício. Entretanto, por motivos diversos, fatais ou circunstanciais, coube a Caetano o monopólio do verbo. É bom lembrar que Caetano, assim como a maioria dos artistas que iniciaram as suas carreiras no século passado, surgiu e se desenvolveu dentro d’“A Máquina” (expressão
bastante recorrente naquela época), ou seja, dentro de um mercado fonográfico pra lá de competitivo e pop. Business, baby, business. Entretanto, diferentemente de outros, Caetano pouco sofreu com a crise fonográfica dos anos 00, permanecendo com seu status quo e, sempre que possível (ou não), emitindo suas opiniões a respeito dos mais diversos assuntos. É claro que o músico baiano chegou nesta posição por méritos próprios, tanto pela sua desenvoltura na mídia quanto por ter um dos pensamentos mais articulados de Pindorama, mas... só ele?! Ah, vá! Poupe-me! Está na hora de acabar com este cartel, não? Afinal, gente é pra brilhar e não pra morrer de fome. E, se você anda meio por fora do que vem acontecendo no cenário musical, saiba que, além dos nomes que já citei, há sangue novo (ou quase novo) nestas paragens! Por exemplo,
POR MÁRCIO BULK FOTO . DARYAN DORNELLES
Romulo Fróes, Negro Leo e Bruno Cosentino já vêm demonstrando, há um bom tempo, que além de excelentes músicos são escribas das galáxias! Mesmo! Os meninos lacram! Entretanto, ainda são incapazes de difundir suas opiniões ou elevarem as suas vozes a ponto de se equiparar a de Caetano. Não, não é uma competição. Nem muito menos uma rixa. É democracia, entende? Não é bacana um país ou estado ou cidade ter APENAS uma voz, um jornal, um canal de TV, etc. Enfim, acho que deu para entender aonde quero chegar: ainda que seja por mérito, NENHUM tipo de monopólio é legal. A partir do momento em que a grande mídia só abre espaço (quantitativo e qualitativo) para um único artista, o bicho pega. E pega muito, muito mal. Ninguém em sã consciência pode achar honesto que uma só voz detenha o poder de referendar ou defenestrar o que quer que seja. Até porque esse deus a que refiro é sujeito a falhas: vide os imbróglios
relacionados ao grupo Procure Saber. Então, está mais do que na hora de botar mais divindades neste panteão! Viva o politeísmo! Viva Xangô, Dionísio, Thor, Shiva & cia! Porque, mesmo que Romulo, o sagaz, diga convictamente que a sua geração se desenvolveu sem pedir aval de qualquer artista que a tenha precedido, a imagem do deus tropicalista ainda se faz presente. Mesmo que ele, Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Thiago França e Rodrigo Campos tenham em seus últimos trabalhos apontado para novas (e originalíssimas) direções dentro da música brasileira, ainda é massacrante o peso da “sombra de Deus”. Mesmo que Caetano venha se mostrando um artista extremamente afinado com os novos tempos (vide a sua trilogia com a Banda Cê, mais a direção de “Recanto”, de Gal Costa, e a sua aproximação da tal nova MPB), é alarmante perceber que os seus trabalhos são celebrados com tamanho e desmedido alvoroço. Alvoroço este que acaba por eclipsar não só os novos nomes, mas também as novas narrativas. Caetano é isso, Caetano é aquilo, o que Caetano pensa disso... Desculpem-me, mas esse negócio de excepcionalidade não desce legal! Sempre acreditei no coletivo, que acima da genialidade estão as colaborações, as parcerias, as trocas. Tipo Tom & João & Vinícius, tipo Gil & Caetano & Mutantes & Duprat &... acho bonito, acho digno, acho superbacana!
Enfim, simbora socializar este cafofo! Simbora devorar este deus e tantos outros! Só a teofagia nos une! Ops! Foi mal... Bem, mas ainda tem outra parada. E agora é pra você, prezado artista: pense bem, você tem as suas referências, certo? Elas te moldaram? Bacana, legal, joinha. Mas você não vai querer ser um “novo Caetano”, vai? Seguir fórmula? Seguir um artista passo a passo?! Que preguiça, chapinha! Vamos combinar, nada mais bacanudo do que aquela gana juvenil de acreditar que pode tudo, que está prestes a criar algo seu, com uma linguagem única e que será a cara de seu tempo. Esta é a função da juventude, criatura! Então, por favor, que tal relembrarmos aquele velho mito grego de Zeus & Cronos? Aquele em que o filho mais novo, após conseguir escapar da goela de seu próprio pai, o depõe e se torna o deus dos deuses! Entendeu ou preciso desenhar? Flores para Freud! Então, trate de deixar a barra da saia da divindade, do pai, da mãe e do espírito santo! Vá caminhar com suas próprias pernas. E, finalizando, prezados jornalistas, músicos, fãs, mídias old school & alternativas: Endeusar Caetano, em última instância, é tornar vulnerável e fraca as gerações futuras, é retirar as qualidades e o poder transformador dos novos artistas. É não permitir que eles evoluam, cresçam e sejam capazes de construir a sua própria identidade. É calá-los. E isso, definitivamente, é desagradabilíssimo, desnecessário e deselegante. visite www.bandadesenhada.com.br
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Display Livros CHEGUEI BEM A TEMPO DE VER O PALCO DESABAR 50 causos e memórias do rock brasileiro 1993-2008 Autor: Ricardo Alexandre Editora: Veneta Ricardo Alexandre, um dos maiores conhecedores de música no nosso país, nos traz um retrato fiel do que foi a cena Brock nos anos 90/00: estão ali histórias de bandas como Skank, Chico Science, Mamonas e Los Hermanos, entre outros. Imperdível para quem quer conhecer a trajetória dessa geração e delicioso para quem quer relembrar esse período extremamente fértil de ideias e músicas.
THE BEATLES – HISTÓRIA, DISCOGRAFIA E FOTOS Autor: Terry Burrows Editora: Publifolha
Com projeto gráfico primoroso, esta bela caixa contém um livro em edição de luxo que conta a história completa dos quatro rapazes de Liverpool, mais 26 itens entre ingressos, set list dos shows, pôsteres etc. O início da banda e o seu final, a carreira solo dos integrantes do grupo e todo tipo de informação referente ao maior fenômeno pop do século 20 foram reunidos e compõem essa espécie de bíblia definitiva dos Fab Four. Amém.
DANGEROUS GLITTER Autor: Dave Thompson Editora: Veneta
O livro de Dave Thompson conta em detalhes as encruzilhadas vividas por três dos maiores personagens do movimento Glam nos anos 70: Bowie, Reed e Iggy. Recheado com entrevistas de quem viveu aquele período, a obra nos faz entender não só o momento glitter como a sua importância para o que estava por vir, o movimento punk. Imperdível.
Discos SILVA Vista pro Mar Slap – Som Livre
Vista pro Mar: Depois de “Claridão”, o artista capixaba está de volta com um segundo disco mais democrático nos timbres e sonoridades. Isso graças à participação de outros músicos no estúdio. Concebido em Portugal, o álbum reúne 11 canções que traduzem e mantém o artista na trilha do bem-sucedido primeiro álbum.
BECK Morning Phase Capitol – Universal
Artistas multifacetados como Beck invariavelmente irão beber em fontes de outrora. “Morning Phase” soa como um aprimoramento do belo e sensível “Sea Change”, de 2002, e exala um ar de Gilmor/Waters (Pink Floyd) em alguns momentos. Produzido pelo próprio Beck, este álbum é um deleite para ouvidos ávidos de delicadeza. Experimente colocar para namorar.
EMILIO SANTIAGO – Série Tons Comigo é assim (1977) O canto crescente de Emílio Santiago (1979) Guerreiro coração (1980) Phillips – Universal Resgatados para o formato de CD, estes três álbuns do cantor, que nos deixou em 2013, é uma chance rara para se constatar de forma definitiva o talento daquele que pode ser considerado o maior intérprete masculino da música brasileira. Seja cantando sambas ou baladas românticas nos dois primeiros discos de estúdio do pacote ou no fantástico “Guerreiro Coração”, gravado ao vivo, Emílio transpira talento por todos os poros.
LÉO CAVALCANTI Despertador Independente
O segundo disco do cantor e compositor paulista mostra evolução no trabalho de composição. O álbum traz boas parcerias com o poeta Carlos Rennó e o artista plástico carioca Omar Salomão. Depois da estreia em 2010 e dos elogios que recebeu de gente como Caetano Veloso e Arnaldo Antunes, “Despertador” é a prova de fogo para o artista.
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Palco foto . divulgação
ARCADE FIRE 04/04/2014 CITIBANK HALL RIO DE JANEIRO Quem passasse desavisadamente na sexta-feira, dia 6 de abril, pela Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste carioca, poderia achar que algum bloco carnavalesco ainda estivesse desfilando pelas ruas da cidade, já que algumas pessoas rumavam animadamente fantasiadas para a mesma direção. Atendendo a um pedido da banda, boa parte da plateia de quase três mil pessoas presentes no show do Arcade Fire estava devidamente caracterizada para o baile: tinha bailarina, mascarado, caubói e até um esqueleto estilizado andando pelo salão. Com o premiado álbum “Reflektor” puxando o set list, Win Butler, Régine Chassagnee & trupe tiveram o público na mão do início ao fim. Da primeira passagem no país em 2005 aos dias de hoje, é impressionante o crescimento da performance no palco. Com até doze componentes, dependendo da música, o Arcade Fire desfilou pérolas como “We used to wait”, do terceiro disco, “The Suburbs”, e “No Cars Go”, do segundo, “Neon Bible”. Em vários momentos, a base sinth lembrava os melhores dias do Duran Duran. O clima momesco foi ao ápice quando os famosos cabeções de um dos vídeos mais conhecidos do grupo retornaram ao palco entoando “Nine out of ten”, de Caetano Veloso. “Normal person” e “Here comes the night time”, de “Reflektor”, deram o ar da graça para alívio de quem estava apenas esperando ouvi-las para ir embora de alma lavada. A banda, tal qual uma trupe marcial, se despediu definitivamente da plateia carioca ao som do bumbão com a linda “Wake up”, do primeiro álbum da carreira. Se alguém estava com dificuldade de achar um bom tema para montar um bloco de carnaval, agora ficou fácil.
por Ivan Costa
Play Realmente, é difícil falar sobre “O” disco que marcou minha vida. Afinal, são tantos e maravilhosos... Mas é isso, escolher é ter que abrir mão. Nesse caso, de vários discos que fazem meu coração bater mais forte e têm ligação com partes importantes da história da minha vida. Ok. Vamos começar pelo princípio: gosto de música desde que nasci. Nas madrugadas, pra minha mãe poder descansar, meu pai me levava pra sala de casa e colocava música clássica pra eu ouvir e não chorar. Segundo ele, eu não dormia enquanto ouvia, pelo contrário, ficava bem atenta aos sons que tomavam a sala. Os olhinhos pra cá e pra lá. Ele mesmo, apesar de ser um médico completamente dedicado, sempre teve uma ligação forte com a música. Foi do coro da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e tinha um hábito que sempre me deixou encantada: qualquer música que ele ouvisse e gostasse, corria para o teclado e tirava a danada na hora, de ouvido. Passou a vida movido a música e é assim até hoje. O bom ouvido, sim, herdei via DNA, mas as influências e o comportamento musical da minha casa nortearam o meu gosto por diversos gêneros. Quantos finais de semana eu acordei ouvindo discos de rock, óperas, concertos maravilhosos, música brasileira, argentina, programas de rádio do mundo todo e muitas sonoridades que formavam uma miscelânea musical em que a unidade sempre foi a música de alta qualidade. Volta e meia, meu pai chegava com um
POR VAL BECKER*
disco novo e botava pra ouvir. A cada disco, uma aula e novas descobertas. Um dia, eis que ele surge com mais um lançamento: “Secos & Molhados” (1973). O disco de estreia do grupo formado por João Ricardo, Ney Matogrosso e Gerson Conrad, cheio de poesia, arranjos vocais, com uma roupagem de rock progressivo, fazia críticas severas à Ditadura Militar, além da performance do grupo ser carregada de teatralidade. E mesmo assim, os integrantes foram poupados de perseguições, devido ao enorme sucesso que sucedeu o lançamento e os colocou nos principais programas de TV da época. Pra mim, um dos melhores discos de rock brasileiro de todos os tempos – divide minha opinião com “Fruto Proibido”, de Rita Lee, e “Tutti Frutti” (1975). Mas “Secos & Molhados” foi um marco na minha vida. Foi amor à primeira audição. Imediatamente, virei pro meu pai e disse: esse é meu! E carregava o LP debaixo do braço, além de ter feito encenações para as músicas, que eram apresentadas para os amigos dos meus pais em jantares e reuniões em casa, fazendo o maior sucesso. Aquela pirralha de três anos imitando o Ney Matogrosso... Guardo o LP carinhosamente até hoje e, volta e meia, lá está ele na vitrola, trazendo mil recordações e reiterando a sua força. Mais de 40 anos depois, o disco continua atual, pelo posicionamento político, pela sonoridade e pela capacidade de mexer com as emoções.
cantor, guitarrista, compositor e produtor - soundcloud.com/rabujah
SECOS & MOLHADOS 1973
*jornalista, compositora, cantora e poeta.