ENTREVISTA: GUILHERME FARIA – O casamento é uma instituição de direito entre um homem e uma mulher
Abraçando e reabraçando
a santidade do corpo e da mente
ARIOVALDO RAMOS QUESTÃO DE ORDEM
CARLOS “CATITO” GRZYBOWSKI COMO RESGUARDAR A CRIANÇA DO SEXO PRECOCE, DA PORNOGRAFIA E DA HOMOSSEXUALIDADE
ALDERI MATOS PERSEGUIÇÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO Julho-Agosto, 2010
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Eva Serna
A bertura
Amã, atual capital da Jordânia
O gadareno teria sido o primeiro missionário na Jordânia?
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adara é uma cidade da Transjordânia, a dez quilômetros ao sudeste do mar da Galileia, na Palestina. Nos tempos de Jesus, havia ali um homem fora de si. Ele era muito estranho: não parava em casa, passava dias e noites nas cavernas e nos cemitérios, feria-se de propósito, gritava pelas estradas, tinha uma força capaz de arrebentar correntes de ferro, andava nu e assustava todo mundo. Poderia ser um louco varrido, mas, no caso desse gadareno, o diagnóstico era outro. O rapaz estava de fato endemoninhado. Os demônios são espíritos maus a serviço de Satanás, capazes de entrar numa pessoa e dominá-la por completo, causando tormentos e transtornos mentais. Eles são inimigos de Deus, mas não são ignorantes. Referem-se a Deus como o “Deus Altíssimo” (Mc 5.7; At 16.17) e a Jesus como o “santo de Deus” (Mc 1.24) ou o “Filho do Deus Altíssimo” (Mc 5.7). Quando Jesus pisou em terra, o endemoninhado de Gadara foi ao seu encontro e o Senhor o curou. Pouco depois o rapaz “estava assentado aos pés de Jesus, vestido e em perfeito juízo” (Lc 8.35). O milagre provocou grande reboliço em toda a região e reações diferentes. Os envolvidos com aquele acontecimento fizeram pedidos diferentes e curiosos a Jesus. Os demônios pediram com insistência a Jesus que os transferisse do corpo daquele homem para os porcos que pastavam nas imediações. Os gadarenos pediram com insistência que Jesus saísse da terra deles. E
o ex-endemoninhado pediu com insistência que Jesus o deixasse permanecer na companhia dele. O pedido dos demônios foi atendido de pronto. A manada de porcos, “que era de cerca de dois mil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se afogaram” (Mc 5.13). O pedido dos gadarenos também foi atendido: “Jesus subiu no barco e foi embora” (Lc 8.37). Todavia, o pedido coletivo e unânime do povo daquela cidade é um dos mais estranhos de que se tem notícia! Por trás dele estava o dinheiro. Com a morte dos porcos, o prejuízo dos porqueiros foi enorme (quase meio milhão de reais, caso os porcos estivessem no ponto de abate). Mas o pedido do ex-endemoninhado não foi atendido. Jesus tinha outros planos para ele: “Volte para casa e conte aos seus parentes o que o Senhor lhe fez e como ele foi bom para você” (Mc 5.19). Naquele dia, Jesus e o homem curado se separaram e seguiram direções opostas: o Senhor atravessou o lago e foi para o oeste e o ex-endemoninhado seguiu não só para sua própria casa, mas também para a vasta região de Decápolis, no lado leste (Mc 5.20). Entre as dez cidades que formavam a antiga Decápolis, cuja população em sua maioria era grega, estavam Gadara, Gerasa, Damasco e Filadélfia. Essa Filadélfia é hoje Amã, capital da Jordânia. Quem sabe o ex-endemoninhado de Gadara teria sido o primeiro missionário da atual Jordânia!
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ISSN 1415-3165 Revista Ultimato – Ano XLIII – Nº 325 Julho-Agosto 2010 www.ultimato.com.br Publicação evangélica destinada à evangelização e edificação, não denominacional, Ultimato relaciona Escritura com Escritura e acontecimentos com Escrituras. Visa contribuir para criar uma mentalidade bíblica e estimular a arte de encarar os acontecimentos sob uma perspectiva cristã. Pretende associar a teoria com a prática, a fé com as obras, a evangelização com a ação social, a oração com a ação, a conversão com santidade de vida, o suor de hoje com a glória por vir. Circula em meses ímpares Diretor de redação e jornalista responsável: Elben M. Lenz César – MTb 13.162 MG Arte: Liz Valente Impressão: Plural Tiragem: 35.000 exemplares Colunistas: Alderi Matos • Bráulia Ribeiro Carlinhos Veiga • Marcos Bontempo Paul Freston • René Padilla Ricardo Barbosa de Sousa • Ricardo Gondim Robinson Cavalcanti • Rubem Amorese Valdir Steuernagel Participam desta edição: Alcir Souza • Ariovaldo Ramos • Carlos Caldas • Carlos “Catito” Grzybowski Lissânder Dias • Tais Machado Publicidade: anuncio@ultimato.com.br Assinaturas e edições anteriores: atendimento@ultimato.com.br Reprodução permitida: Favor mencionar a fonte. Os artigos não assinados são de autoria da redação. Publicado pela Editora Ultimato Ltda., membro da Associação de Editores Cristãos (AsEC) Editora Ultimato Telefone: (31) 3611-8500 Caixa Postal 43 36570-000 — Viçosa, MG Administração: Klênia Fassoni • Daniela Cabral Ivny Monteiro • Lucas Rolim Menezes Luci Maria da Silva Editorial e Produção: Marcos Bontempo Bernadete Ribeiro • Djanira Momesso César Fernanda Brandão Lobato • Gláucia Siqueira Paula Mendes • Paulo Alexandre Lobato Finanças/Circulação: Emmanuel Bastos Aline Melo • Ana Paula Fernandes • Cristina Pereira Daniel César • Edson Ramos • Luís Carlos Gonçalves Rodrigo Duarte • Solange dos Santos Vendas: Lúcia Viana • Lívia Moraes Lucinéa Campos • Romilda Oliveira Sabrina Machado • Tatiana Alves • Vanilda Costa Estagiários: Ariane Santos • Euniciléa Ferreira • Jamille Filgueiras • Juliani Lenz • Thales Moura Lima 4
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ao leitor
Paul Barker
fundada em 1968
A descoberta do pecado e a descoberta do perdão
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em diagnóstico, não há tratamento. Sem tratamento, não há cura. Sem cura, o prolongamento da vida é incerto. O mesmo acontece com as doenças da alma. Pouco antes de sua morte, Jesus explicou que o ministério do Espírito Santo seria convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8). A doença da alma é o pecado. Esse é o diagnóstico correto, difícil de ser admitido. A convicção de pecado é a porta de entrada para o arrependimento e o perdão. O processo da salvação começa sempre aí. Porém, além de convencer o pecador do pecado, o Espírito Santo convence-o da justiça de Deus, isto é, da justiça propiciada pela morte sacrifical de Cristo. Apropriando-se pela fé da justiça de Deus, o pecador arrependido é então feito justo e não está mais em débito diante de Deus (Rm 1.17; 5.1; 8.1). Pouco antes de sua ascensão, Jesus ordenou que seus discípulos percorressem o mundo inteiro anunciando sempre duas mensagens “coladas” uma na outra: a mensagem do arrependimento e a mensagem do perdão (Lc 24.17). O que leva ao arrependimento é a convicção do pecado; o que leva ao perdão é a aceitação pela fé de Jesus como Salvador e Senhor. Sem falar em pecado não há necessidade de falar em perdão. A propósito, é oportuno citar uma observação feita há 65 anos, no Rio de Janeiro, pelo formidável missionário batista William Carey Taylor: “Suponho haver, neste instante, ao menos um milhão de pecadores no Brasil que estão intelectualmente convencidos da verdade do evangelho, faltando-lhes, no entanto, a convicção de pecado para poderem crer e ser salvos” (Evangelho de João, 1975, v. 3, p. 104). É o caso de se perguntar: quantos milhões haveria hoje depois do espantoso crescimento de igrejas evangélicas no país? Pouco antes de sua última ida a Jerusalém, Jesus ensinou aos seus discípulos: “Se o seu irmão pecar, repreenda-o e, se ele se arrepender, perdoe-lhe” (Lc 17.3). Aqui estão, outra vez juntas, as duas obrigações gêmeas: repreender o culpado e perdoar o arrependido. Um dos deslizes da igreja de Corinto foi a ausência de ambas as providências: eles deixaram de repreender o imoral que chegou a deitarse com a mulher do próprio pai (1Co 5.1-5) e também deixaram de perdoá-lo depois que ele se arrependeu (2Co 2.5-11). Com temor e tremor, Ultimato apresenta uma porção de textos bíblicos para provocar, em nosso meio e na sociedade na qual estamos inseridos, duas descobertas ou redescobertas: a descoberta do pecado e a descoberta do perdão. Elben César
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O impossível torna-se possível
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xistem o fácil e o difícil, o mais fácil e o mais difícil, o possível e o impossível. Todavia o difícil pode se tornar fácil, o impossível pode se tornar possível. Quando Jesus disse: “É mais difícil um rico entrar no Reino de Deus do que um camelo passar pelo fundo de uma agulha” (Lc 18.25, NTLH), o Senhor não estava dizendo que a salvação daquele jovem rico era literalmente impossível, pois “o que é impossível para os homens é possível para Deus” (Lc 18.27). Jesus mesmo ensinou que a fé no poder e na misericórdia de Deus, mesmo que pequena como o grão de mostarda, pode remover montanhas tão altas como o monte Hermon (Mt 17.20). A palavra impossível pertence ao vocabulário humano e nunca é pronunciada no céu. Para Deus não é impossível que o imoral deixe de ser imoral, que o idólatra deixe de ser idólatra, que o adúltero deixe de ser adúltero, que o homossexual deixe de ser homossexual, que o ladrão deixe de ser ladrão, que o avarento deixe de ser avarento, que o alcoolista deixe de ser alcoolista, que o caluniador deixe e ser caluniador, que o trapaceiro deixe de ser trapaceiro (1Co 6.9-11). Pedro deixou de ser medroso ao extremo para ser corajoso ao extremo. João deixou de ser “filho do trovão” para ser o profeta do amor. Aquele homem nascido em Tarso da Cilícia deixou de ser Saulo para ser Paulo, deixando de ser o perseguidormor para ser o perseguido-mor. Tomé deixou de ser incrédulo para ser crente. Depois do encontro com Jesus Cristo, o publicano Zaqueu distribuiu a metade de seus bens com os pobres e se dispôs a devolver quatro vezes mais o que porventura havia roubado dos outros. Uma vez perdoadas, as três mulheres envolvidas com pecados sexuais (a mulher samaritana,
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a mulher adúltera e a mulher pecadora) viveram vidas diferentes. Desde o primeiro compêndio da história do cristianismo até hoje, milhares de indivíduos conhecidos por seus vícios e mazelas tornaram-se conhecidos por sua vida cristã. Ao 17 anos, o profano Agostinho já tinha uma amante; quinze anos depois passou pela experiência da conversão, satisfez sua sede e fome de Deus, e tornou-se o santo Agostinho. É preciso diferenciar a santificação da conversão. Esta é a porta de entrada da vida cristã. Marca o início do comprometimento pessoal com Jesus Cristo, quando ocorre uma profunda transformação de fé e de caráter, operada pela graça de Deus e pelo poder do Espírito Santo. Já a santificação é o processo contínuo e progressivo da vitória do convertido sobre suas tendências pecaminosas, sobre suas dificuldades pessoais, sobre a ditadura do eu, que precisa ser crucificado o tempo todo. Diz respeito também ao nível cada vez maior de conhecimento e comunhão com Deus e ao crescimento da fé, da submissão, do sentimento de dependência e da humildade. Não é um processo legalista e terrorista. Qualquer derrota pode ser admitida, confessada e perdoada, desde que tenha causado tristeza e arrependimento. A santificação bem-sucedida requer vigilância, devoção e obediência. O Deus dos impossíveis que se manifestou na conversão é o mesmo que se manifesta na santificação. É também o mesmo que vai se manifestar na glorificação de todos os crentes por ocasião da parusia de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Naquele dia seremos semelhantes a ele (1Jo 3.2; Rm 8.29; 2Co 3.18)!
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Especial Pai nosso, que estás nos céus! Seja feita a tua vontade quanto à nossa sexualidade Heterossexualidade sem homofobia e homossexualidade sem heterofobia A solução do problema gay na perspectiva cristã
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Da linha de frente Metáforas de uma vida passiva Bráulia Ribeiro
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Missão integral O mandamento de fazer discípulos René Padilla
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Ética Questão de ordem, Ariovaldo Ramos
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O caminho do coração Assentados em lugares celestiais Ricardo Barbosa de Sousa
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Reflexão 50 anos de crente: 1960-2010 (parte final), Robinson Cavalcanti Teologia e esperança, Ricardo Gondim Redescobrindo a Palavra de Deus Chamados para expulsar demônios: libertação e graça, Valdir Steuernagel História Sofrendo pelo nome de Cristo: perseguição no mundo contemporâneo Alderi Souza de Matos Entrevista Guilherme Nacif de Faria: O casamento é uma instituição de direito entre um homem e uma mulher Ponto final Atendimento, entendimento e presença Rubem Amorese
Leia mais
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CAPA 24
Abraçando e reabraçando a santidade do corpo e da mente
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Uma paráfrase da Bíblia sobre a criação da mulher
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Como resguardar a criança do sexo precoce, da pornografia e da homossexualidade Carlos “Catito” Grzybowski
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A porno-Corinto Como pode terminar uma noite de orgia sexual
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Sobre a sexualidade cristã Wolfhart Pannenberg
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A absurda decisão de não amar o cônjuge, Lissânder Dias do Amaral
SEÇÕES 3 4 6 8 12 14 18 22 38 39 42 43 44 45 59
Abertura Carta ao leitor Pastorais Cartas Frases Mais do que notícias Notícias Números De hoje em diante... Reportagem Meio ambiente e fé cristã Caminhos da missão Altos papos Novos acordes Deixem que elas mesmas falem
ABREVIAÇÕES:
AS21 - Almeida Século 21; BH - Bíblia Hebraica; BJ - A Bíblia de Jerusalém; BP - A Bíblia do Peregrino; BV - A Bíblia Viva; CNBB Tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; CT - Novo Testamento (Comunidade de Taizé); EP - Edição Pastoral; EPC - Edição Pastoral - Catequética; HR – Tradução de Huberto Rohden; KJ - King James (Nova Tradução Atualizada dos Quatro Evangelhos); NTLH - Nova Tradução na Linguagem de Hoje; TEB - Tradução Ecumênica da Bíblia. As referências bíblicas não seguidas de indicação foram retiradas da Edição Revista e Atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil, ou da Nova Versão Internacional, da Sociedade Bíblica Internacional.
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A turma de Jesus A começar pelo título, Ultimato não foi feliz na escolha do termo turma. Não se trata de vocábulo essencialmente depreciativo, mas pela relação de sinonímia com bando, acaba infetado pela proximidade. O mais grave, porém, vem em seguida. Sei que é uma constante da literatura protestante, ao falar da virgem Maria, insistir em banalizar seu papel no plano divino da salvação, em proporção inversa à hiperexaltação católica. O que não sabia é que a livre interpretação das Sagradas Escrituras já havia incorporado o conceito moderno de “barriga de aluguel”. Dizer que Maria “cedeu o ventre para gerar” é comparar com o que acontece com quem aluga seu ventre para nele ser introduzido
um bebê de proveta, isto é, o embrião ali se instala exclusivamente para se desenvolver. Nessa concepção, Maria não teria tido nenhuma participação ativa de mãe que concebe, impondo-nos assim a releitura de Isaías 7.14, Lucas 1.31 e Hebreus 4.15. De tanto banalizar, acaba-se banalizando o próprio mistério da encarnação, “envolvido em silêncio desde os séculos eternos” (Rm 16.25), latente nos “escritos proféticos”, abertamente revelado, pela primeira vez, a uma humilde jovem de Israel e nela própria consumado. Edilson Cunha, Brasília, DF Sempre leio Ultimato, que tem sido uma bênção em minha vida. A turma de Jesus (“Capa”, maio/ junho de 2010) foi uma dos melhores matérias. Nilza Nira Se Maria recebeu uma visita especial do anjo Gabriel, se ela recebeu a grandiosa mensagem de que seria mãe do Filho de Deus, se teve de fugir com o filho para o Egito por ordem do anjo, se estava o tempo todo ciente de que o menino que ela amamentava era o Filho de Deus, como é possível pensar que ela teve a pretensão de se deitar com José para ter mais filhos? Será que esse filho, que é o Filho de Deus, gerado
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por uma concepção especial que não somos capazes de entender, não bastava para ela? Será que interpretar que Maria teve mais filhos não é banalizar o significado da vinda do Filho de Deus entre os homens? Quando Jesus se referia aos “irmãos” (em hebraico), dizer que eles seriam de fato irmãos carnais de Jesus não é forçar demais a interpretação? Perguntem às mulheres se elas teriam mais filhos se fossem a mãe do Filho de Deus. Wigbert Weber, Criciúma, SC Parabéns pela matéria de capa A turma de Jesus (maio/junho de 2010), pois serviu para somar mais conhecimentos e contrabalançar tantos artigos adulterados e sem fundamentos bíblicos. Adecio da Silva, Nova Iguaçu, RJ
Os evangélicos e a teologia liberal O artigo de Alderi Souza de Matos (“História”, maio/junho de 2010) foi certeiro em todos os pontos e relevante para nossos dias, em que muitos estão tomando os velhos rumos em direção ao liberalismo teológico. É tão gostoso ler algo objetivo, historicamente correto e profético. Que o Senhor nos ajude, e que Ultimato seja como uma daquelas instituições que Alderi
mencionou, que ficaram firmes no século passado, como pequenas barreiras contra o maré da secularização do evangelho. Barbara Burns, João Pessoa, PB
No meio do jardim O artigo No meio do jardim e da cidade, o meio ambiente (“Meio ambiente e fé cristã”, maio/ junho de 2010) mexeu comigo ao falar em jardim, pois meu esposo, Amálio Jonkoski, foi para lá e eu fiquei na cidade! Agradeço pela existência de Ultimato. Neusa Sasso, Curitiba, PR
Brasília tem mais do que dez justos Surpreendeu-me a frase de Rene G. Santana: “A única saída para Brasília seria chover muito fogo e muito enxofre por lá” (“Frases”, maio/junho de 2010). Brasília não tem somente políticos corruptos. É uma cidade linda, que acolhe carinhosamente pessoas de qualquer estado brasileiro. Lembro a resposta do Senhor a Abraão: “Não destruirei [Sodoma] por amor dos dez [justos]”. Ora, Brasília tem bem mais do que dez justos e tementes a Deus! Ana Barreto, Brasília, DF
Seminário de Mariana Sou padre católico em Barbacena. Gosto de ler Ultimato porque percebo a intenção de anunciar Jesus e promover um diálogo construtivo entre os que hoje são seus discípulos (evangélicos ou católicos). Entretanto, algumas frases infelizes me causam estranheza, como a que li na Carta aberta (março/abril de 2010). Há uma referência ao Seminário de Mariana como “o mais tridentino dos seminários católicos do Brasil”. Na década de 60, o Seminário de Mariana era tridentino, e estava em comunhão com a Igreja Católica, que também o era, já que, até então, Trento era o último concílio realizado e suas normas vigoravam para toda a igreja (houve o Concílio do Vaticano I, mas que não modificou substancialmente a visão eclesial e doutrinal de Trento). Por outro lado, o Concílio de Trento produziu uma grande reforma espiritual e moral dentro da Igreja Católica. Sem dúvida, através de Trento, o Espírito Santo renovou a igreja, em especial o ardor missionário e a exigência de se constituírem seminários para uma formação mais profunda do clero. Enxergar o Concílio de Trento apenas como uma estratégia organizada para perseguir os protestantes é ter uma visão reducionista da história. Quando foi promulgado
o Concílio Vaticano II, o Seminário de Mariana o abraçou de imediato e suas orientações têm sido uma das referências para a formação sacerdotal em Mariana. Fiz o seminário entre as décadas de 80 e 90 e posso avaliar o quanto a afirmação é preconceituosa e inverídica. O ecumenismo e o diálogo inter-religioso sempre estiveram presentes em minha formação. Nos estudos teológicos e exegéticos, nunca deixamos de conhecer e nos aprofundar nas obras mais importantes de autores protestantes sérios. Convido os editores de Ultimato a manter uma relação isenta e aberta com o Seminário de Mariana. Daniel Lima, Barbacena, MG
O bom maná Conheci Ultimato há duas décadas. Foi paixão à primeira leitura, por causa da seriedade, da postura ética, da lisura etc. A revista propõe uma leitura reflexiva sobre o reino e sobre o que acontece ao nosso redor, respeitando as diferenças e sendo um diferencial em relação a tudo o que está no “mercado”. Ultimato nos serve uma refeição diferente daquela que temos visto no meio evangélico. Sua linha editorial está centrada em Cristo e nas Escrituras. Enquanto
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C artas Ultimato apresentar o bom maná e contribuir para o meu crescimento espiritual, reflexivo e crítico, para diferenciar o joio do trigo, o ético do imoral, continuarei assinante e divulgadora de seu conteúdo e de sua postura ética irrepreensível. Anamélia Fernandes, Brasília, DF Li a edição de maio/junho de capa a capa. Foi como um bálsamo em dias de correrias, ansiedades e provações. Foi edificante e abençoador ler os artigos Eu era fariseu (“Pastorais”) e Graça (“Reflexão”). Que Deus continue a usar a Ultimato para levar a graça restauradora do evangelho para os carentes. Rev. Djaik Neves, Jataí, GO Comecei a receber Ultimato por meio do Paralelo 10. Não concordo com algumas coisas, como a propaganda de outras religiões que não estão inseridas no padrão bíblicoprotestante-evangélico. Não sou obrigado a concordar, mas posso dizer que a revista tem me ajudado a compreender e aplicar o conceito de missão integral. Glorifico a Deus pela vida de Alderi Souza de Matos, pois seus artigos têm me abençoado. Jean Oliveira, Nova Cruz, RN
Ao receber a edição de maio/junho agradeci a Deus pela notícia de que há muito mais online (p. 5) e também por encontrar os dois selos — da FSC e da AGR-WEB — na página do sumário (p. 7). A revista é coerente e atual. Ultimato precisa de oração e fui levada a orar por vocês. Rosane Pessanha, Curitiba, PR Sou missionário em Guiné Bissau, enviado e sustentado por igrejas brasileiras por meio da Missão Amide. Por cortesia do conselho de missões da Igreja Presbiteriana Nacional em Brasília, há vários anos tenho sido abençoado com a chegada de Ultimato em plena aldeia africana, onde moramos há sete anos. Timothy Bachmann, Guiné Bissau Ultimato presta um enorme serviço à comunidade cristã do país. Seus artigos têm levado aos mais recônditos lugares do Brasil (e quiçá do mundo) uma palavra de esperança e paz. Um dos fatores que corroboram para isso é a ausência de proselitismo, que é nocivo à vivência harmônica das crenças e religiões. Olegário Venceslau, Chã Preta, AL
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O evangelho intolerante tem de ser banido de nosso meio. Esse não é o perfil de Ultimato. No dia em que a revista mudar seu perfil, perderá o valor. Só a eternidade poderá revelar o bem que ela me proporcionou e proporcionou a muitos. Luiz Souza, Riachão do Jacuípe, BA Minha tia me emprestou Ultimato. Fiquei impressionado com o que li. Foi amor à primeira vista. Cícero Quirino, João Pessoa, PB Glorifico a Deus pela Ultimato. Estou no Japão, onde vim conhecer Jesus Cristo. Hoje estou a serviço dele. Trabalho na elaboração de um projeto de mobilização de recursos para missões na Ásia. Peço permissão para reproduzir textos de Ultimato numa publicação que estamos preparando. Fabio Higa Nobuo, Japão
Pedofilia e perdão O artigo Pedofilia e perdão (“Especial”, maio/junho de 2010) não fugiu muito do que diz a maioria dos meios de comunicação.
Ficou na generalização, ignorando as estatísticas e deturpando a realidade. Faltou objetividade, fidelidade à verdade e apuração real e verdadeira dos fatos. Conforme a afirmação do espanhol Jon Juaristi, escritor judeu, “não é necessário ser católico para perceber a campanha da mídia contra o papa Bento XVI e a Igreja. [A mídia] só procura vender e tirar os católicos da esfera pública”. Como exemplo, cito o sociólogo italiano Massimo Introvigne: “Num período de várias décadas, apenas cem sacerdotes foram denunciados e condenados na Itália, enquanto 6 mil professores de educação física sofriam pelo mesmo delito. Na Alemanha, 210 mil denúncias, e apenas trezentas ligadas ao clero”. Por que os jornais se ocuparam apenas das trezentas denúncias? Luiz Magalhães, Campinas, SP Segundo alguns psiquiatras que se apresentaram recentemente na televisão, o pedófilo será eternamente pedófilo. Maltratará, estuprará e assassinará crianças. Sempre. Perdoar essa covardia seria o mesmo que tentar doutrinar uma cascavel prestes a dar o bote. A Deus pertence a vida. Mas bicho peçonhento não se doutrina nem se perdoa: mata-se. E tal
ato chama-se autodefesa, defesa da inocência, defesa da vida! Patrícia Neme, Palmas, TO
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Homossexualismo
Cartas à Redação
Gostaria que vocês abordassem a questão homossexual. Assisti a um programa de televisão que mostrava um casal de pastores homossexuais. Seria esclarecedor, principalmente para os que querem permanecer fiéis. A igreja tem sofrido infiltrações dessa natureza. Não deixem de abordar também a questão da lei da homofobia. José Gadelha, Brejo Santo, CE Uma moral que se apoia somente nos aspectos da individualidade enfraquece a dinâmica do grupo social, descaracterizando o viver em sociedade, podendo apontar para a extinção do próprio ser humano, pela ausência de valores de grupo, de coletividade e, portanto, de sustentabilidade. Marco Antonio de Oliveira, Rio de Janeiro, RJ — Este é um trecho do artigo Casamento homossexual, do pastor Marco Antonio, da Catedral Metodista do Rio de Janeiro, terapeuta familiar. Confira-o na íntegra em www.ultimato.com.br. Aproveite e confira também O equívoco da revista Veja, de Francisco Helder Sousa Cardoso.
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F RASES em evangelizadores santos, não se convertem almas e não se fundam igrejas; o porvir das igrejas e das missões depende da formação dos apóstolos e dos pastores. Paolo Manna, padre católico
”
“Q
uando alguém se apaixona por Cristo, torna-se absolutamente impossível desapaixonar-se. José Francisco Barbalho, em carta à Folha de São Paulo
“S
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em saúde emocional, não existe santidade. Talvez não seja por acaso que a única diferença na grafia das palavras sanidade e santidade seja a letra “t”, que representa a cruz do Messias. Esly R. Carvalho, psicóloga clínica
“D
”
Arquivo pessoal
evemos orar para que Deus freie nossos impulsos pecaminosos. Muito mais importante do que orar pela saúde física é rogar para que Deus cure a enfermidade espiritual. Ewerton Barcelos Tokashiki, professor do Seminário Presbiteriano Brasil Central
Na
sala do conselho
”
N. T. Wright — Quando a igreja vive de acordo com o padrão do reino de Deus, a Palavra de Deus se espalha poderosamente e o Senhor realiza a sua obra. J. I. Packer — Estar convencido do pecado não significa meramente sentir-se um completo fracasso, mas dar-se conta de que ofendeu a Deus, a sua autoridade, de que o provocou, o desafiou e colocou-se de forma totalmente errada contra ele. ULTIMATO
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opressão do “fazer a igreja crescer” levou os pastores, líderes e crentes, de uma maneira geral, a abrir mão dos conceitos e princípios expostos nas Sagradas Escrituras, e principalmente a abrir mão do evangelho verdadeiro. Leonardo Henrique, professor da Escola Bíblica Terra dos Milagres, da Igreja Nova Vida
”
“P
or mais que as ferramentas nos ajudem a analisar sistemas e causas, jamais teremos a compreensão de todas as variáveis envolvidas quando se trata de ser humano. Nessa hora, importa haver humildade para reconhecer nossas limitações e submeter nossos planos à validação de Deus, que tudo conhece. Oséas Elias Heckert, engenheiro da esperança
”
Sem princípios, os crentes perdem a vitalidade; “o que salva é ter muitos conselheiros” (Pv 11.14).
Fernando Eduardo Prison — Uma das piores consequências do pecado é o fato de que podemos vê-lo claramente nos outros; contudo, achamos muito difícil enxergar essas mesmas coisas em nós.
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Domínio público
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Santo Ambrósio — Pecar é comum a todos os homens, mas arrepender-se é próprio dos santos. Antonio Borges Teixeira — A santidade é o supremo escopo da atividade moral e religiosa do cristão. Raul Pilla — O poder pessoal é um tremendo tóxico psicotrópico que embriaga, vicia e pode chegar à demência. José Reis Pereira — O orgulhoso é aquele que se julga o centro do mundo. Tem susceptibilidade à flor da pele. Por qualquer coisa sente sua dignidade ferida. Mas não há nada tão eficiente para derrotar dignidades orgulhosas como a Palavra de Deus.
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+ DO QUE NOTí C IAS
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á quase 350 anos, o dramaturgo francês Jean Racine (16391699), que escreveu várias tragédias baseadas em relatos do Antigo Testamento, disse que “não existem segredos que o tempo não revele”. Se vivesse hoje, ele teria que atualizar sua observação: “Não existem segredos que a parafernália de apetrechos de microcâmeras, microfones imperceptíveis e aparelhos de captação de som não revelem”. De fato, esses aparelhos sofisticadíssimos estão em toda parte, vigiando nossas andanças, nossos movimentos, nossas vidas. Eles nos veem, mas nós não os vemos, porque eles podem estar disfarçados de botões, canetas, parafusos etc. Eles estão instalados nas ruas, nos meios de transporte, nos condomínios, nos elevadores, nos estádios de futebol, nos shoppings, nos escritórios, num gabinete oficial de Brasília e até em cemitérios (para evitar o furto de restos mortais e de objetos dos túmulos). Nas plataformas do metrô paulistano já há 930 câmeras registrando tudo. Em cada novo vagão da linha verde foram instaladas quatro. Só na cidade de São Paulo já há quase 600 mil câmeras, uma para cada dezesseis habitantes. Na Inglaterra, onde a população é a mais vigiada do 14
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planeta, há uma câmera para cada quatorze pessoas. O promotor de justiça do Distrito Federal, Fausto Rodrigues de Lima, acredita que vai chegar “o dia em que cada centímetro da terra será devassado por todos os meios tecnológicos que, interligados por satélites, gravarão imagens 24 horas por dia”. Boa parte dessa espionagem é criminosa, como aconteceu numa casa na grande Florianópolis. Um jovem casal, com filhos de 6, 7 e 9 anos, descobriu, por acaso, uma microcâmera instalada no banheiro. Fotografias indiscretas podem ser colocadas na internet para alimentar os pedófilos. Carlos Heitor Cony lembra que “hoje é cada vez mais possível essa vigilância full time em cima de todos nós”. Agora é bem mais fácil entender aquilo que as crianças aprendem e cantam na escola dominical das igrejas evangélicas: O que você faz O que você diz Deus tudo escuta e tudo vê.
A onisciência de Deus, termo teológico que se refere a um dos atributos divinos, aquele que menciona a perfeita e completa capacidade de Deus de conhecer todas as coisas em qualquer lugar e
Ali Haider
Completamente nu
em qualquer tempo, é uma das mais proveitosas doutrinas cristãs. É ela que gera o temor do Senhor, pelo qual o ser humano evita o mal (Pv 16.6). Sabendo de antemão que o pecado oculto é impossível, a pessoa pensa duas vezes antes de cometer qualquer deslize. Os crentes sabem que “os olhos do Senhor estão em toda parte, observando atentamente os maus e os bons” (Pv 15.3). A mais formidável passagem da Bíblia sobre a onisciência de Deus é o Salmo 139. O autor não hesita em declarar: Senhor, tu examinaste a fundo a minha alma e conheces todas as coisas a meu respeito. Tu sabes o que acontece comigo quando estou descansando ou quando estou caminhando. Tu conheces de longe cada um dos meus pensamentos. Tu examinas
cuidadosamente todos os meus passos e observas com atenção o meu sono; sim, tu conheces muito bem tudo o que eu faço. Tu sabes tudo o que eu vou dizer antes de a palavra ser formada em minha boca. Salmo 139.1-4, BV
O mesmo salmo mostra que esse conhecimento pleno de Deus começa quando a criatura ainda está no ventre materno: “Meus ossos não estavam escondidos de ti quando em secreto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu embrião” (Sl 139.15-16). O devassamento da alma, da mente, dos sentimentos, das intenções do ser humano, em seu passado, em seu presente e em seu futuro, do certo e do errado — é incontavelmente maior aos olhos de Deus do que aos olhos das microcâmeras!
+ DO QUE NOTí CIAS
Recall de pecadores
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inda não arranjamos uma palavra em português para transmitir o completo sentido do vocábulo inglês recall (chamar de volta). Enquanto isso, o anglicismo continua: “Toyota inicia hoje o recall dos modelos de Corolla no Brasil”; “Estados Unidos fazem recall de remédios de uso infantil”; “recall de políticos”. A montadora de carros está recolhendo mais de 100 mil Corollas para reparar um defeito que pode provocar graves acidentes. A Johnson & Johnson está recolhendo medicamentos infantis, como Tylenol, Benadryl, Motrin e Zyrtec, em doze países, por não atenderem aos padrões de qualidade exigidos pelo governo americano e por poderem conter impurezas e princípios ativos em concentração mais alta que a especificada pelo laboratório. O jornalista Ruy Castro foi muito feliz ao usar a palavra em sentido figurado: “Esse conceito poderia se alargar e também se aplicar aos políticos”. Daí o título de seu artigo Recall de políticos, publicado na Folha de São Paulo (3 de maio de 2010). Por que não usar a mesma metáfora no sentido religioso? Se o ser humano danificou seriamente a imagem e semelhança de Deus à qual foi criado, por que não fazer um recall de toda a humanidade para consertar o que está errado? Se a sociedade está de cabeça para baixo, por que não chamar de volta todos os pecadores para serem colocados outra vez de cabeça para cima? Sem exagero, a evangelização do mundo é um perfeito recall: Deus chama de volta a criatura machucada, confusa, perdida, alienada, decepcionada e enferma para ser consertada, curada, e para começar tudo de novo. É Jesus quem possibilita e providencia esse recall — o mais amplo e o mais nobre de todos: “O Filho do Homem veio buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19.10).
O mundo vai mal Historiador diz que o século 20 é um “museu de horrores” Embora a população do mundo tenha subido três vezes em cem anos (de 2 bilhões em 1900 para mais de 6 bilhões em 2000) e a expectativa de vida tenha passado de 40 para 68 anos no mesmo período, o século 20 é muito contraditório. Quem afirma isso é o historiador inglês Tony Judt, autor de Reflexões sobre um Século Esquecido — 1900–2000. O escritor de 62 anos gravemente enfermo lembra que duas formas de despotismo ensanguentaram a era: “Em nome de ambos, apenas três psicopatas (Hitler, Stalin e Mao) conseguiram levar à morte no mínimo 120 milhões de pessoas”. Arcebispo católico diz que a crise mundial é geral e radical Para o arcebispo emérito de Estrasburgo, onde se escreveu A Marselhesa, o hino nacional francês, não é exagero dizer que a crise pela qual o mundo está passando é maior que as anteriores. Dom Joseph Doré explica que a atual crise é geral e radical. É geral “porque atinge todos os aspectos de nossa vida e todos os setores da sociedade: a escola encontra-se em crise, a família está em crise, o sistema de assistência à saúde encontra-se em crise, a política está em crise, a economia está em crise etc”. É radical porque “nada mais funciona por si só”, “nada é dado por certo automaticamente” (Omnis Terra, março de 2010, p. 122).
Pastor batista diz que a crise da igreja é crise da Palavra Humberto Xavier Rodrigues, um dos pastores da Primeira Igreja Batista em Londrina, no Paraná, tem certeza de que “toda esterilidade, pobreza e corrupção que encontramos nas igrejas se devem ao elemento humano, mais precisamente às lideranças”. Para ele, “os líderes são inadequados porque são pessoas que não foram quebradas pela cruz”, que “se levantam e falam de acordo com sua própria mente”. A solução, completa o pastor, “está no retorno à Palavra de Deus” (Palavra da Cruz, maio de 2010, p. 2). Cientista diz que o cidadão do século 21 sofre de estresse, ansiedade e depressão “De uma maneira ou de outra”, declara Marcelo Leite, autor de Ciência – Use com cuidado (Editora Unicamp), “é raro o cidadão do século 21 que não experimenta na vida diária uma das três condições que o definem — estresse, ansiedade e depressão”. Corrobora com ele a informação de que, entre 2003 e 2007, 102 milhões de antidepressivos foram vendidos no Brasil. Em cinco anos o aumento foi de 42% (de 17 milhões para 24,1 milhões). O que Salomão escreveu há anos é mais do que atual: “É melhor ter pouco numa das mãos, com paz de espírito, do que estar sempre com as duas mãos cheias de trabalho, tentando pegar o vento” (Ec 4.6, NTLH). Julho-Agosto, 2010
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O que impede a unidade da Igreja é o pecado, e não a ortodoxia
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Lissânder Dias
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conteceu no dia 18 de junho no templo da Igreja Metodista Central de Belo Horizonte. Dois pastores (Valdir Steuernagel e Welinton Pereira) estavam prestando algumas informações sobre a pré-organização da Aliança Cristã Evangélica do Brasil (veja pág. 18) a um pequeno grupo de líderes da capital mineira. Steuernagel leu a famosa oração de Jesus sobre a unidade cristã: “Rogo também por aqueles que crerão em mim, por meio da mensagem deles, para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.20-21). Em seguida, lembrou que Deus não desiste daquilo que ele quer e pretende fazer. Uma dessas coisas é aproximar os verdadeiros crentes entre si. Para tanto, é preciso mudar a cultura predominante de cada um por si. Ele foi muito convincente ao lembrar que a igreja brasileira já experimentou uma mudança de mentalidade no que diz respeito a missões. Até pouco tempo atrás, quando se falava em missionários, só se pensava na figura do missionário estrangeiro que vinha para o Brasil. A geração atual entende de outra maneira: o missionário é o brasileiro que sai do país para fazer missões em outro lugar. A igreja deixou de ser recebedora para ser enviadora de missionários. É uma porta aberta ou um incentivo para outras mudanças.
Nancy Dusilek ora ao final da reunião de escuta sobre a Aliança, realizada na Catedral Presbiteriana do Rio, em 3 de junho. Entre outras coisas, pede: “Ó Deus, controla o nosso temperamento!”
No final, Welinton Pereira convidou um dos pastores presentes para orar. Ele agradeceu pelo esforço em favor da unidade da igreja evangélica em torno de Cristo e confessou mais ou menos assim: O apego demasiado de cada denominação à sua história, teologia, tradições, liturgia, princípios, alvos, tem dificultado a aproximação maior de seus membros. Porém, os maiores obstáculos são menos importantes e mais carnais. Estamos separados por causa do pecado. A inveja, o ciúme, a vaidade, a concorrência, a competição, a briga pelo poder denominacional nos separam. A falta de amor, a ausência de perdão, as picuinhas, o não esquecimento de problemas anteriores nos separam. O crescimento numérico nos separa. Ficamos no mínimo intranquilos quando outra igreja da mesma denominação é diferente da nossa e “ameaça” crescer mais e mais rápido. Perdoa-nos! Faze-nos chorar! Vence-nos! Amém.
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Futebol ajuda a amenizar lembrança da guerra em crianças angolanas O futebol é mais do que um esporte para as crianças de Angola. Ele pode se tornar um fio de cura para as feridas do passado. Esta é a esperança do casal Nilson e Débora Piedade e da professora Cecília Gouvea. Eles lideram o Projeto Angola e lutam para incluir socialmente centenas de crianças que vivem em Lubango. Uma vez por ano, uma equipe sai do Brasil em direção à cidade angolana. Cada visita dura um mês. Lá, eles são hospedados por igrejas locais. As crianças visitadas recebem atendimento psicológico e aprendem técnicas de futebol, além de informática, princípios bíblicos e de cidadania. Um dos sonhos é fazer intercâmbios com clubes de futebol do Brasil. Com a ajuda de voluntários da Mocidade para Cristo, a equipe tenta mostrar para as crianças que o amor de Deus é maior do que as lembranças da guerra. O Projeto Angola começou em 2001 com a iniciativa do cantor e compositor Jorge Camargo. Apesar de contar com poucos recursos financeiros, a equipe brasileira conseguiu fazer cinco visitas ao país e ajudou mais de 1.600 crianças. Angola é marcada por uma guerra que durou cerca de 30 anos. Segundo o Relatório de Segurança Humana (2005), de 1975 a 2002, 1,5 milhão de pessoas morreram por causa da guerra. 18
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Liz Valente
Nilson Piedade
Por Lissânder Dias
Definida data de fundação de nova aliança evangélica 30 de novembro. Esta é a data marcada para o início de uma nova aliança evangélica brasileira. A aliança quer reunir igrejas e ministérios evangélicos para que expressem suas vozes e façam frente às necessidades da sociedade brasileira. A proposta inicial é que a aliança tenha uma estrutura de rede, que é menos hierárquica e mais agregadora. Desde 2009, um grupo de trabalho tem realizado reuniões de “escuta” com líderes evangélicos. Até agora já foram cinco reuniões. Uma delas aconteceu no dia 5 de junho, no Rio de Janeiro, e atraiu cerca de 150 pessoas. Na ocasião, o grupo de trabalho ouviu sugestões e críticas sobre como e quando deve funcionar a aliança. Um dos presentes foi o pastor Davi Malta Nascimento, 91 anos, reitor emérito do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, no Rio de Janeiro. “Não se deve esperar muito para iniciar a aliança, porque sua importância é urgente”, disse ele. Outros líderes presentes levantaram a necessidade de a aliança levar a sério o desafio da unidade e agir com maturidade quando as possíveis divergências surgirem. Valdir Steuernagel, um dos líderes da estruturação da nova aliança, pontua o desafio da unidade, com base nas palavras de Jesus registradas por João: “A oração de Jesus (Jo 17) é um belo modelo de vida em comunidade, de vida em amor e de como Deus envia seu povo”.
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Paula Mendes
Paralelo 10 completa 2 anos
Leonízia Gama compartilha seu testemunho de vida
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Fortalecer as lideranças das regiões Norte e Nordeste para a prática da missão integral e, por meio de um intercâmbio entre as regiões brasileiras, tornar as igrejas nortistas e nordestinas mais conhecidas e reconhecidas. Este é o objetivo do Paralelo 10, um projeto da Editora Ultimato em parceria com o Centro Evangélico de Missões (CEM) e apoio da Tearfund, que completou 2 anos de existência. A celebração ocorreu no dia 19 de abril, na sede da Editora Ultimato, em Viçosa, MG. Leonízia Gama, indígena Tukano, aluna de mestrado do CEM e bolsista do Paralelo 10, compartilhou sua história com os presentes. O envio gratuito das revistas Ultimato, Mãos Dadas e Passo a Passo a 2 mil líderes e a concessão de bolsas de estudos e livros são algumas das atividades do projeto. “O Paralelo 10 trouxe um renovo em minha vida pra que eu continue trabalhando na minha comunidade e igreja em busca de fortalecer outras vidas no compromisso social com a sociedade”, diz Suelly Marilene da Silva, de Recife, PE. O nome Paralelo 10 é uma referência ao paralelo que corta alguns estados do Norte e Nordeste. Para mais informações, acesse www.ultimato.com.br/blogs/ paralelo10.
Comunidade evangélica transforma garrafas pet em vassouras Na Comunidade Evangélica Vida Plena, em Natal, RN, missão cristã combina com meio ambiente. Em 2009, a igreja fundou uma pequena fábrica no bairro de Filipe Camarão, que transforma garrafas pet em vassouras. São produzidas mil vassouras por mês. O pastor da comunidade, José Silvestre Moura, não tem dúvida sobre a importância do trabalho. “Eu tenho convicção de que posso ser pentecostal, falar em línguas, profetizar e que eu posso ser ambientalista. Isso é missão integral. A gente divide: isso aqui prá cá, isso aqui prá lá. Isso aqui pode, isso aqui não pode. Fica difícil. Confunde as coisas. Faz tudo pela metade.” A ideia de criação da fábrica surgiu a partir de oficinas com a ONG cristã A Rocha Brasil no início de 2009. A fábrica é autossustentável e se tornou o braço socioambiental da igreja. Todos os componentes da garrafa pet são reutilizados. O bico e o fundo vão para uma usina de reciclagem de plástico em Recife, PE. As tampas são aproveitadas para artesanato e os rótulos, para depilação. Cada vassoura tem a durabilidade de 8 a 9 meses, três vezes mais que a vassoura piaçaba.
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casais oficializaram a união em cerimônia coletiva realizada no templo da Assembleia de Deus de Belém, no Pará. Cada um recebeu de presente uma Bíblia com capa branca.
800.000
robôs industriais estão trabalhando ao redor do mundo, quase a metade no Japão.
7.022
pessoas por quilômetro quadrado é a densidade demográfica de Cingapura.
2.300.000.000 de habitantes do planeta se apresentam como cristãos (1/3 da população mundial).
2.479
idiomas têm alguma tradução das Escrituras Sagradas.
160
vezes os cristãos são chamados de “irmãos” no Novo Testamento.
31.300.000
reais foi quanto custou o supercomputador Cray, que vai possibilitar ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais fazer previsões meteorológicas em áreas mais precisas (de 5 km por 5 km). 22
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Presbiterianos do Rio querem mulheres e crianças no diaconato O Presbitério do Rio de Janeiro — o mais antigo do país — quer duas mudanças na prática do serviço diaconal da Igreja Presbiteriana do Brasil: que a denominação aceite diaconisas e diáconos-mirins. Segundo o documento que embasa a primeira proposta, há argumentos teológicos, históricos e constitucionais para que a igreja aceite mulheres no diaconato. O texto afirma que “desde os tempos apostólicos a Igreja teve diaconisas”. A proposta sugere que mulheres acima de 18 anos tenham plenos direitos de serem votadas, assim como os homens o têm. A outra proposta é que crianças de 7 a 12 anos sejam escolhidas para o serviço diaconal, sem que haja eleição ou ordenação, com prazo de mandato fixado pelo conselho da igreja. O objetivo seria “treiná-las e descobrir vocações”. As duas propostas serão apresentadas para votação na 37ª Reunião Ordinária do Supremo Concílio, que acontecerá de 12 a 17 de julho, em Curitiba, PR.
Lançado Novo Testamento chinêsportuguês Foi lançado no dia 23 de maio em São Paulo o Novo Testamento chinês-português. Trata-se de uma obra inédita que inclui também Salmos e Provérbios. Editada pelas Sociedades Bíblicas do Brasil e de Hong Kong, a publicação utiliza as duas traduções mais apreciadas pelas populações da China e do Brasil: a Revised Chinese Union Version — em mandarim com escrita simplificada — e a Almeida Revista e Atualizada, respectivamente. Cada uma das traduções, apresentadas lado a lado, foi feita a partir dos textos originais. Para o secretário de Tradução e Publicações da Sociedade Bíblica do Brasil, Paulo Teixeira, esta edição da Bíblia, desenvolvida a pedido das igrejas cristãs chinesas do Brasil, representa, sobretudo, um importante avanço na consolidação da fé de uma comunidade em constante crescimento. O Novo Testamento chinês-português visa alcançar os chineses que moram no Brasil e os brasileiros que moram na China ou que estudam mandarim. Segundo informações da missionária Shalom Fan, em fevereiro deste ano havia 38 igrejas chinesas no Brasil.
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Abraçando e reabraçando a santidade do corpo e da mente
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propaganda da pornografia, do amor livre, do sexo precoce, do adultério, do homossexualismo e do divórcio é tão bem feita, tão ampla, tão esmagadora e tão bem-sucedida, que as muitas vozes ainda em harmonia com a sexualidade cristã são tentadas a se calarem. No que diz respeito à homossexualidade, por exemplo, os defensores da condição oposta são quase constrangidos a pedir licença para falar sobre a homossexualidade ou a se desculpar por tocarem no assunto. Faz parte da propaganda do sexo ilícito a mensagem de que seus praticantes são a maioria e nós, a minoria. Faz parte da propaganda anticristã a mensagem de que a disciplina sexual é impossível, além de intervir na liberdade
Fred Fokkelman
individual. Faz parte da propaganda da licenciosidade desacreditar o casamento (veja Cartunista coloca veneno na imaginação dos teenagers e se manda, Ultimato, maio/junho, p. 14). Por isso, são poucos os que hoje se casam pensando numa união que deve ser preservada e mantida para sempre. Os celebrantes estão sendo pressionados a retirar os compromissos de fidelidade mútua e de durabilidade só interrompidos pela morte. É nesse mar tempestuoso que os cristãos são chamados a navegar (sem naufrágios fatais). A palavra do bispo N. T. Wright é mais do que oportuna: “Uma coisa é ser atraído pelo pecado; outra bem diferente é inverter os conceitos de moralidade e transformar o mal em bem e o bem em mal”. Para trazer à lembrança a sexualidade não profanada pelo pecado e para oferecer resistência à propaganda em contrário, leia os textos das páginas que se seguem e os da seção “Especial”. A entrevista com Guilherme Nacif de Faria, doutor em direito privado e professor na Universidade Federal de Viçosa, mostra que os líderes religiosos têm plena liberdade de falar e escrever sobre suas convicções religiosas na área da sexualidade, “da mesma forma que a filosofia, a ética, a psicanálise e outras áreas do conhecimento humano podem se manifestar livremente sobre a questão”. Porém, ele alerta que essa manifestação seja argumentativa, e não discriminatória. Todo esse esforço não se destina apenas aos “outros”, mas especialmente a nós, aos nossos filhos e às nossas igrejas. Precisamos abraçar e reabraçar a santidade do corpo e da mente e evitar mau testemunho, escândalos, incoerências, hipocrisia, frouxidão moral, comportamento de risco, separações e casamentos infelizes!
Uma paráfrase da Bíblia sobre a criação da mulher
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avia intervalos entre um ato criador e outro. Antes de continuar, de se ocupar do ato seguinte, Deus dava uma olhada no ato anterior para ver se tudo estava saindo a contento. E ele ficava satisfeito com tudo o que fazia. Ao final, quando estava tudo pronto, bonito e funcionando, “Deus viu que tudo o que havia feito era muito bom” (Gn 1.31, NTLH). Então, ele descansou. Acontece que, quando viu o homem andando para lá e para cá no Jardim do Éden, Deus constatou: “Não é bom que o homem viva sozinho. Vou fazer para ele alguém que o ajude como se fosse a sua outra metade” (Gn 2.18, NTLH). Então, Deus saiu à procura desse alguém. Caminhou pelo campo, subiu as montanhas, entrou na floresta, aproximou-se da praia, olhou para o céu, olhou para o chão, e nada. Nenhum dos animais que ele havia criado antes do homem, nem os domésticos nem os selvagens, muito menos os que se arrastavam pelo chão, poderia ser elevado à honrosa posição de completar o homem. Então Deus teve uma ideia genial: “Fez com que o homem caísse num sono profundo e, enquanto ele dormia, tirou uma das suas costelas e fechou a carne naquele lugar” (Gn 2.21). E começou a trabalhar com essa única peça para fazer dela o que pretendia. Deus não queria fazer outro homem para viver na companhia do primeiro.
Ele achou melhor fazer alguém parecido com o homem, mas não igual a ele. Talvez alguém mais gracioso, com algumas curvas a mais, com dois seios, sem bigode e sem barba, com movimentos menos bruscos e mais delicados, de tal maneira que esse alguém tivesse interesse e desejo pelo homem e que despertasse nele os mesmos sentimentos. Seria formidável, pois manteria os dois juntos, um na dependência do outro. E Deus foi além. Já que o homem tinha próstata, Deus pôs nesse alguém que ele estava formando um ovário. Já que o primeiro produzia espermatozoides, por que o segundo não poderia produzir óvulos? Para tornar possível o encontro do espermatozoide com o óvulo, Deus fez uma genitália para o homem e outra para aquela pessoa em formação. Assim, além do prazer proporcionado pela união sexual, eles poderiam se reproduzir por conta própria e ficar menos sozinhos. Poderiam até encher a terra, se fosse o caso. Espaço, beleza, água e comida era o que não faltava. Quando a outra metade do homem estava pronta e bela, Deus a levou ao homem. Ele achou por bem chamá-la mulher (por ter saído dele) e exclamou: “Esta é a carne da minha carne e osso dos meus ossos” (Gn 2.23). (Homem em hebraico é ish, mulher é ishah — duas letras a mais.) Então houve uma grande festa, pois o momento celebrava o primeiro casamento da história. Julho-Agosto, 2010
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Como resguardar a crian do sexo precoce, da pornografia e da homossexualidade Carlos “Catito” Grzybowski
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ntender por que uma pessoa se comporta como se comporta sempre foi um dos mistérios da humanidade. Para responder a esse mistério, vários campos do saber, como a filosofia, a psicologia, a biologia, a antropologia, a sociologia e a teologia, têm criado teorias que abarcam desde aspectos exclusivamente biológicos até aspectos de cunho unicamente transcendental. A verdade é que, até o presente momento, temos muitas teorias e poucas certezas sobre o que realmente define a conduta humana. As vertentes mais comuns que encontramos hoje na ciência e na cultura quando se trata de explicar o comportamento humano podem ser agrupadas em cinco grandes blocos: teorias biologicistas ou organicistas, teorias da aprendizagem, teorias do inconsciente, teorias de base espiritual e teoria dos sistemas. As teorias biologicistas ou organicistas postulam que o comportamento é resultado de transmissões neuronais, e estas, determinadas no código genético — falando de modo bem geral. O grande impasse nessa perspectiva é a impossibilidade de saber se é a biologia que determina a conduta ou se é a conduta que altera a biologia. A velha questão do ovo ou a galinha. Pode-se até averiguar a perda de transmissão neuronal em alguns comportamentos (como a depressão), mas não se pode definir exatamente se ela é causa ou consequência da 26
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disposição mental. Muitos cientistas hoje afirmam categoricamente que a biologia determina a conduta, mesmo porque isso impulsiona a indústria farmacêutica. Entretanto, os estudos feitos até hoje sobre o genoma humano não sustentam esse determinismo. Da mesma forma que a ansiedade pode causar um “curto-circuito” em nosso sistema neurovegetativo e jogar suco gástrico em um estômago vazio, causando gastrite e até úlcera, não se pode afirmar que não ocorram tais “curtos-circuitos” na produção de neurotransmissores sob certas condições extracorpóreas. As pessoas querem soluções rápidas para aliviar todo tipo de sofrimento (inclusive o mental); as indústrias farmacêuticas investem fortunas no desenvolvimento de pesquisas que apontem soluções químicas para a conduta e a mídia se encarrega de tornar dogmáticas as teorias biologicistas. Gregory Bateson¹ é categórico em contraporse a essa teoria afirmando que “não há nenhum comportamento [...] e nenhuma aprendizagem nos próprios cromossomas”. Infelizmente a paz não vem em cápsulas! As teorias da aprendizagem, por sua vez, apontam para outra direção. Grosso modo, trazem em seu bojo a ideia de que nascemos como uma tábula rasa, na qual vão sendo desenhados os traços de nossa conduta — seja por condicionamento, por imitação ou por aprendizagem social.
Para os postulantes dessa teoria, somos fruto do meio em que vivemos. Entretanto, os estudos recentes sobre resiliência (a capacidade de uma pessoa suportar adversidades e sair-se bem) colocam em xeque as teorias que exaltam a função do meio como modelador da conduta. As clássicas teorias do inconsciente, que dominaram o campo da psicologia no final do século 19 e durante boa parte do século 20, especialmente a partir dos estudos de Freud, nos informavam que “as pessoas tinham impulsos inconscientes que as levavam a fazer o que faziam. Como estes impulsos eram inconscientes, a mente consciente podia apenas ficar perplexa a respeito do que a pessoa fazia e pensava”.² Assim, muito da conduta humana é explicado por meio do inconsciente. A encantadora erudição de Freud e alguns de seus seguidores e a popularização da sua teoria levam, até os dias de hoje, as pessoas a aceitarem este “determinismo psíquico”. Para Freud, muito do comportamento humano era estabelecido a partir das experiências infantis nos primeiros anos de vida, em especial na relação da criança com a mãe, e, a partir de então, registrado no inconsciente, que atua como maestro da conduta para o restante da vida. Quanto às teorias de base espiritual, em praticamente todas as culturas acredita-se que há elementos extranaturais que interferem na
Bill Davenport
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conduta humana. Deuses, anjos e demônios são narrados desde as mitologias mais remotas como tendo o poder de interferir em nossa forma de agir. A Bíblia e toda a teologia hebraico-cristã nos informam que há uma dimensão espiritual invisível, cujos seres pertencem a outra ordem de realidade e por isso têm o poder de se apossar de nosso corpo e mente (embora haja cristãos que não acreditam na existência dessa dimensão, tentando pulverizar as narrativas bíblicas sobre o tema em interpretações que remetem às outras teorias mencionadas). Por mais que alguns afirmem que tal ideia é retrógrada e anticientífica, no que tange às explicações da conduta humana, nenhuma teoria até aqui postulada pode ser afirmada como mais verossímil — são apenas teorias. A teoria dos sistemas entende que a conduta é resultado de vários sistemas que interagem em um determinado tempo e espaço e que,
simultaneamente, essa conduta, ao se manifestar, gera mudanças nos vários sistemas, tornando a realidade cada vez mais complexa em um processo contínuo circular. Voltemos ao questionamento inicial sobre como resguardar a criança dos desvios sexuais. Segundo algumas teorias, qualquer prevenção é impossível. Para outras, isso é perfeitamente viável em qualquer tipo de conduta — inclusive a sexual. A partir da experiência clínica, o que constatamos é que uma criança que cresce em uma família na qual os pais se amam e expressam isso abertamente aos filhos, o diálogo é aberto — não somente sobre trivialidades, mas sobre valores — e os valores de integridade, lealdade, companheirismo e amizade prevalecem entre os membros da família, tem menos riscos de desenvolver uma conduta disfuncional, seja de ordem sexual ou de outras ordens. Nos estudos sobre
resiliência, o que se tem constatado é que, mesmo uma criança crescendo sob as mais adversas circunstâncias (em meio à promiscuidade dos pais ou à criminalidade, por exemplo), quando ela encontra alguém (um professor, um amigo, um religioso) que lhe dê referências de valores — em especial valores espirituais —, ela ganha certa “imunidade” a desvios de conduta. Assim, a ciência hoje passa a estudar a saúde (e não somente a doença) e descobre que a espiritualidade é um elemento fundamental na prevenção de condutas disfuncionais, seja de que instâncias forem. Notas 1. Gregory Bateson, Metadiálogos. Lisboa: Gradiva Publicações, 1986. p. 71. 2. Jay Haley, Aprendendo e ensinando terapia. Porto Alegre: ARTMED, 1998. p. 85. Carlos “Catito” Grzybowski, 50 anos, casado, é psicólogo (CRP 08/1117) e terapeuta familiar. Mora em Curitiba, PR. Julho-Agosto, 2010
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A porno-Corinto
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ituada no istmo de mesmo nome, no sul da Grécia, Corinto era, no início do primeiro século, a cidade mais antiga, mais importante, mais rica, mais comercialmente próspera, mais populosa (250 mil habitantes) e mais obcecada por sexo da Europa Oriental. Ali se realizavam os Jogos Ístmicos, quase tão importantes quanto os Jogos Olímpicos, que eram mais antigos e surgiram em Olímpia, mais a oeste. Por ser uma cidade portuária (um porto no mar Egeu e outro no mar Mediterrâneo) e o elo entre Roma e o Oriente, Corinto abrigava uma grande mistura de raças, línguas e culturas (gregos, latinos, sírios, asiáticos, egípcios e judeus), de classes sociais (escravos e libertos, burgueses e pobres) e de 28
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profissões (investidores, mercadores, ambulantes, marinheiros, filósofos, ex-soldados, atletas e “promotores de todas as formas de vícios”). Considerada a capital da licenciosidade, Corinto era notável por sua independência moral. À semelhança dos hebreus na época dos juízes, cada um fazia o que bem desejava (Jz 21.25). Não havia a quem prestar contas nem leis para obedecer, senão a lei dos desejos. Os impulsos sexuais eram um fenômeno biológico como a fome e, portanto, deveriam ser satisfeitos. Em Corinto havia muitos templos. No templo dedicado a Afrodite, a deusa do amor (a mesma Vênus dos romanos), havia mil prostitutos e prostitutas, que ofereciam seus serviços ao pôr-do-sol. No templo
dedicado a Apolo, o deus que representava o ideal de beleza masculina, havia “estátuas de Apolo nu, em diversas posturas, que exibiam sua virilidade, inflamavam seus adoradores masculinos a prestarem devoção por meio de demonstrações físicas com os belos rapazes a serviço da divindade” (David Prior, A Mensagem de 1 Coríntios). O problema das tais “imoralidades sexuais” (1Co 7.2) entre os coríntios era tal que um dos verbos gregos que significava “fornicar” era “corintizar”, ou seja, viver uma vida coríntia. Esse descaso com a moral sexual vinha de longe. Demóstenes, o famoso orador grego (384-322 a.C.), escreveu: “Temos amantes para nos regozijarmos com elas, depois escravas compradas para cuidar de
nossos corpos e, finalmente, esposas, que devem conceder-nos filhos legítimos e estão encarregadas de supervisionar todos os nossos misteres domiciliares”. Trezentos anos antes, na mesma época dos profetas Daniel e Habacuque (600 a.C.), Safo, a não menos famosa poetisa grega, teria levado várias jovens sob sua influência à prática do lesbianismo. Por essa razão, e por viver em Metilene, capital da ilha grega de Lesbos, próxima ao litoral da Turquia, chama-se lésbica (lésbia ou lesbiana) a mulher homossexual. “Tanto no mundo grego como no mundo romano, a parceria homossexual entre um homem mais velho e um jovem era considerada parte da educação do rapaz”, lembra Amy Orr-Ewing no livro Por Que Confiar na Bíblia?.
Foi em sua segunda grande viagem missionária que Paulo começou a evangelizar a cidade de Corinto (51 d.C.). Muitos convertidos renunciaram sua vida pregressa e tornaram-se novas criaturas em Cristo (2Co 5.17). Entre eles havia imorais, adúlteros e homossexuais passivos e ativos, como vemos na Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios (6.9-11), escrita no ano 55. Para se referir aos homossexuais ativos, o apóstolo usa a palavra grega arsenokoitai, aquele que toma a iniciativa, traduzida também por sodomita (por causa do que aconteceu em Sodoma, Gn 19). Para se referir aos homossexuais passivos, usa a palavra grega malakoi, aquele que se permite usar, traduzida também por efeminado. Para Calvino
(1509-1564), os malakoi são “aqueles que, enquanto não podem tornar-se prostitutos publicamente, revelam quão impudicos são no emprego da linguagem ignóbil, no maneirismo e vestuário femininos, bem como em outros meios de atrair a atenção”. Esse trecho da Carta de Paulo aos Coríntios é a melhor passagem das Escrituras para mostrar a possibilidade de mudança de comportamento mediante uma experiência autêntica de conversão, não importando o estilo de vida anterior. Corinto foi três vezes destruída: em 146 antes de Cristo pelos exércitos romanos, em 501 por um terremoto, e em 1858 por outro terremoto, bem mais devastador que o primeiro. Hoje, Corinto não passa de uma aldeia.
Grécia — o país mais cristão da Europa
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Grécia foi o primeiro país europeu a ser evangelizado. Apesar de ser nominalmente cristão (apenas 2% da população participa de alguma cerimônia aos domingos), é o país mais cristão da Europa. A porcentagem de cristãos gregos é enorme (95,15%), maior que a dos países historicamente católicos, como Portugal (94,39%), Polônia (90,29%), Áustria (89,77%), Itália (77,35%), Espanha (67,77%) e França (67,72%), e dos países historicamente protestantes, como Noruega (93,71%), Suíça (86,56%), Finlândia (87,09%), Dinamarca (85,85%), Alemanha (69,43%) e Reino Unido (67,63%). Percentualmente falando, a Grécia é mais cristã que todos os países da América do Norte e da América do Sul, exceto Paraguai (97,95%) e Colômbia (95,45%). Quase todos os cristãos da Grécia
pertencem à Igreja Ortodoxa — fruto da cisão ocorrida em 1054. Há muito mais pais gregos do que pais latinos nos primeiros 450 anos da história da igreja (chamam-se pais da igreja os pensadores e escritores cristãos dos primeiros séculos que contribuíram para a formulação teológica dos pontos centrais da fé cristã). Entre os primeiros cristãos gregos havia ex-imorais, ex-idólatras, ex-adúlteros, ex-homossexuais ativos e passivos, ex-ladrões, ex-avarentos, ex-alcoólatras, ex-caluniadores e ex-trapaceiros. Eles “foram lavados do pecado, separados para pertencer a Deus e aceitos por ele por meio do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus” (1Co 6.9-11, NTLH). Fonte: Intercessão Mundial, Edição Século 21.
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orgia sexual
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conteceu em Gibeá, no território da tribo de Benjamim, perto de Jerusalém, no final do período dos juízes, há mais ou menos 3.100 anos (no ano 1.050 a.C.), pouco antes da instalação da monarquia de Israel, numa época em que prevalecia a moral particular e “cada um fazia o que achava mais reto” (Jz 21.25). Foi uma reprise do que havia acontecido em Sodoma cerca de mil anos antes (Gn 19.1-11). A história é muito triste, porque envolve estupro, assassinato e guerra civil. O que aconteceu numa única noite acabou por dizimar uma tribo inteira (homens, mulheres e crianças) e provocou a morte de 65 mil soldados. Certo casal, que morava na região montanhosa da tribo de Efraim, se desentendeu e ela resolveu voltar para a casa paterna, em Belém de Judá. Quatro meses depois, o marido foi procurá-la na casa dos sogros para salvar o casamento. Deu tudo certo e ambos voltaram para reiniciar a vida conjugal em Efraim — ela num jumento e ele em outro. O empregado seguia a pé. Como começou a escurecer no trevo que levava a Gibeá, o casal resolveu passar a noite ao ar livre, na praça. Porém, passava por ali um homem idoso que vinha da roça para casa. Ele sabia que não era seguro o casal permanecer na praça e, gentilmente, os levou para casa. As duas famílias — a dos hospedeiros e a dos novamente casados — deram-se muito 30
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bem. Comeram, beberam e se alegraram até tarde da noite. Quando estavam para pegar no sono, os homens de Gibeá cercaram a casa do velho, bateram à porta e exigiram que ele lhes entregasse não a mulher em trânsito, mas o marido dela para que eles abusassem sexualmente do pobre homem. O hospedeiro conseguiu proteger o hóspede, mas não a mulher dele. Os bissexuais levaramna e abusaram dela até de manhã. Ao nascer do sol, lá estava a mulher morta estendida à porta da casa. Indignado, o ex-separado e agora viúvo ajeitou o corpo da mulher num dos jumentos e seguiu viagem. Em casa, nas montanhas de Efraim, pegou um facão, cortou o corpo em doze pedaços e mandou um para cada tribo de Israel, inclusive para as que ficavam mais distantes, como as tribos do norte e do outro lado do rio Jordão. Isso provocou uma convulsão nacional: de Dã a Berseba, do Gerizim ao Nebo, tribos exclamavam: “Nunca se viu nem se fez uma coisa dessas desde o dia em que os israelitas saíram do Egito!” (Jz 19.30). O que o homem queria, funcionou. Poucos dias depois, todos os líderes de todas as tribos fizeram uma assembleia perante o Senhor em Mispá, a dez quilômetros de Gibeá, o local do crime. Depois de ouvirem toda a história da vítima, tomaram a decisão unânime de exigir que a tribo de Benjamim
entregasse os culpados, “os canalhas de Gibeá” (Jz 20.13, NVI).¹ Como a intimação não foi atendida e a justiça precisava ser feita, as tribos partiram para medidas mais drásticas: declararam guerra à tribo de Benjamim. No final da história, foram travadas três furiosas batalhas, com muitas perdas em ambos os lados. A tribo culpada foi eliminada do mapa de Israel (homens, mulheres e crianças) e suas cidades, incendiadas. Apenas seiscentos benjamitas, todos do sexo masculino, conseguiram escapar e fugiram para o deserto. Quando a poeira finalmente assentou e toda a nação teve tempo para avaliar os estragos decorrentes de uma noite de orgia, a nação inteira chorou amargamente. Em voz alta, o povo se perguntava: “Ó Senhor, Deus de Israel, por que aconteceu isso? Por que está faltando uma das nossas tribos?” (Jz 21.3, NTLH). Nota 1. “Canalha” é uma palavra muito forte. Ela está na Bíblia, na Nova Versão Internacional, para se referir a um grupo de homens que estuprou uma mulher a noite inteira, causando-lhe a morte. Não é fácil traduzir o original hebraico que caracteriza esse tipo de gente. Versões católicas e protestantes variam muito. As traduções mais brandas usam as expressões “homens sem valor” (TEB), “homens imorais” (NTLH), “bandidos” (BJ e EP) e “homens malvados” (Bíblia Hebraica). Já outras versões falam de “pervertidos” (BP), “perversos” (BV), “depravados” (CNBB e AS21) e “celerados” (EPC). A Bíblia mais usada pelos protestantes (a tradução de Almeida Revista e Atualizada) prefere não traduzir a expressão original “filhos de Belial”.
Blas Lamagni
Como pode terminar uma noite de
Stefan Vasilev
Sobre a sexualidade cristã Wolfhart Pannenberg
Sobre o amor — Pode o amor ser pecaminoso? Toda tradição doutrinária cristã ensina que há uma coisa chamada amor invertido, pervertido. Os seres humanos são criados para o amor como criaturas de Deus, que é amor. Ainda assim, essa ordenação divina é corrompida sempre que as pessoas se afastam de Deus ou amam outras coisas mais do que a Deus. Sobre o casamento — A união indissolúvel do casamento é o alvo da nossa criação como seres sexuais (Mc 10.2-9). Visto que, quanto a esse princípio, a Bíblia não é temporal, as palavras de Jesus são o critério e o fundamento para todo pronunciamento cristão sobre a sexualidade, não somente para o casamento, mas também para nossa identidade como seres sexuais. De acordo com o ensinamento de Jesus, a sexualidade humana como macho e fêmea tem como alvo a união indissolúvel do casamento. Sobre a homossexualidade — As determinações bíblicas quanto à prática homossexual são claras e não dão margem à ambiguidade quanto à rejeição de tal prática. Todas as afirmações sobre esse assunto concordam mutuamente,
sem exceções [...]. Sobre esse assunto, o judaísmo sempre se viu como distinto de outras nações. Essa mesma distinção continuou a determinar as afirmações do Novo Testamento sobre a homossexualidade, em contraste à cultura helenista, que não via problema algum com as relações homossexuais. Em Romanos, Paulo inclui o comportamento homossexual entre as consequências de se afastar de Deus (Rm 1.27). Em 1 Coríntios, a prática homossexual está, junto com a fornicação, o adultério, a idolatria, a avareza, a bebedeira, o furto e o roubo, entre os comportamentos que impedem a entrada no reino de Deus (1Co 6.9-10). O Novo Testamento não contém nenhuma passagem que possa contrabalançar essas afirmações paulinas. Assim, o testemunho bíblico inclui a prática do homossexualismo, sem exceção, entre os tipos de comportamento que expressam notavelmente a humanidade afastada de Deus. Esse resultado exegético coloca amarras estreitas na visão sobre a homossexualidade que uma igreja sob a autoridade do Espírito Santo pode ter. Sobre o papel da igreja — A igreja tem de conviver com o fato de que,
na área sexual, assim como em outras áreas, desvios de norma não são excepcionais, mas, antes, comuns e difundidos. A igreja deve agir com tolerância e compreensão para com todos os envolvidos, mas também deve levá-los ao arrependimento. Ela não pode abandonar a distinção entre a norma e o comportamento que se desvia da norma. Aqui estão os limites de uma igreja cristã que está sujeita à autoridade das Escrituras. Aqueles que argumentam que a igreja deve mudar essa norma devem estar cientes de que estão promovendo divisões: se uma igreja se deixar levar a ponto de não considerar a atividade homossexual como um desvio da norma bíblica e reconhecer as uniões homossexuais como uma parceria possível de amor equivalente ao casamento, tal igreja não estaria sobre bases bíblicas, mas contra o testemunho inequívoco das Escrituras. Uma igreja que desse esse passo, deixaria de ser a igreja una, santa, católica e apostólica. Traduzido por Vitor Grando da Silva Pereira Wolfhart Pannenberg, teólogo protestante alemão nascido na Polônia, é professor de teologia sistemática da Universidade de Munique e diretor do Instituto de Teologia Ecumênica. É autor de Teologia Sistemática (Paulus). Julho-Agosto, 2010
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A absurda decisão de Capa
não amar o cônjuge Lissânder Dias do Amaral
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repetitiva essa prática se torna, mais nos afastamos do nosso (verdadeiro) cônjuge. Se não houver cura, chegará o dia em que decidiremos amar definitivamente a fantasia da perfeição sem amor a despeito da realidade da imperfeição com amor. Já no adultério, falsificamos a nós mesmos e duplicamos nosso cônjuge. Decidimos amar duas ou mais pessoas, não amando, na verdade, nenhuma. Já não há mais foco e dedicação ao amor. Não há uma pessoa inteira ao nosso lado, com sua história, sentimentos, defeitos e qualidades únicas. Há apenas opções de prazer. E já não somos nós mesmos, apenas consumidores de bemestar. Cometer adultério também faz parte da absurda decisão de não amar o cônjuge. Quanto mais o praticamos, mais reduzimos a quase nada quem um
dia decidimos amar. Amar é uma ordem. Quando Jesus deu essa ordem aos discípulos (Jo 15.12), ele estava estabelecendo um alto padrão de relacionamento para toda a humanidade. Esse padrão é ainda mais relevante no relacionamento conjugal, que tem um grau de intimidade e compromisso muito mais elevado. No entanto, antes de ordenar que os discípulos amassem uns aos outros, Jesus disse que eles deveriam “permanecer no amor dele” (Jo 15.9). Permanecer é decidir diariamente continuar amando, e isso torna a vida maravilhosamente mais bela. À luz desse padrão, decidir não amar é verdadeiramente um absurdo. Lissânder Dias do Amaral é coordenador executivo da Rede Mãos Dadas.
Elio Rocha
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decisão de amar é acompanhada pelo risco de não amar. Nem o compromisso público do casamento extingue tal risco. Amamos quando nos dispomos a dedicar tempo, serviço e coração ao outro. Decidimos não amar quando nosso cônjuge deixa de ser o real objeto do nosso amor e se torna, em nossa fantasia, qualquer outra pessoa — exceto ele mesmo. Desvios sexuais, como a pornografia e o adultério, são, na prática, nossa absurda decisão de não amar o cônjuge. Na pornografia, idealizamos um corpo perfeito e não conseguimos dedicar tempo, serviço e coração para amar o corpo imperfeito do nosso cônjuge. Cada ato pornográfico é, no fundo, a decisão de não amar quem um dia decidimos amar. E quanto mais constante e
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Pai nosso, que estás nos céus!
Mary Latch
Seja feita a tua vontade quanto à nossa sexualidade
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as palestras sobre religião e homossexualidade realizadas na Universidade Federal de Viçosa por ocasião da 1ª Semana da Diversidade Sexual, em maio de 2010, alguém sugeriu que, antes de qualquer coisa, se fizesse a oração do Pai-Nosso. Outro participante achou a ideia estranha, pois a universidade é laica. Se fosse levada a sério, a oração do Senhor poderia ter ajudado, principalmente por causa da terceira súplica que nela aparece: “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Qual é a vontade, ou melhor, a prescrição de Deus quanto à sexualidade humana? A resposta encontra-se no livro-texto do cristianismo, as Escrituras Sagradas, o maior best-seller de todos os tempos (nos últimos anos, só as 147 sociedades bíblicas do mundo colocaram em circulação 145 milhões de Bíblias e 297 milhões de Novos Testamentos). O nigeriano Yusufu Turaki, mestre em teologia e doutor em ética social, explica que “nossa visão sobre a homossexualidade não deve proceder de fontes humanas, mas da Palavra de Deus”. Ele conclui: “A Bíblia define claramente a homossexualidade como pecado” (Comentário Bíblico
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Africano, 2010, p. 1389). Há vários anos, o psiquiatra Armand Nicholi, da Universidade de Harvard, autor de Deus em Questão, escreveu: “Os que baseiam sua fé sobre o Antigo e o Novo Testamentos não podem duvidar que as severas proibições quanto ao comportamento homossexual fazem de sua atividade uma transgressão diante da Lei de Deus” (Dicionário de Ética, 2007, p. 337). Desde o início da vida humana, a companheira do homem é uma mulher e o companheiro da mulher, um homem, como se pode ver no artigo Uma paráfrase da Bíblia sobre a criação da mulher (pág. 25). Só a redescoberta desse ato criador de Deus já seria suficiente para se conhecer os caminhos da heterossexualidade. Todavia, como reforço, é bom consultar outras passagens bíblicas. É comum ridicularizar a história da destruição de Sodoma e Gomorra e pôr panos quentes no pecado principal daquelas cidades próximas ao mar Morto, na Palestina. A descrição nua e crua que a Bíblia faz da orgia homossexual coletiva e generalizada, ousada e incontrolável (Gn 19), tem suporte em outras passagens bíblicas (Ez 16.46-52; 2Pe 2.6-8 e Jd 7). Pedro conta que Ló, que vivia em
Sodoma, “todos os dias [...] ficava muito agoniado em ver e ouvir as coisas más que aquela gente fazia” (2Pe 2.8, NTLH). Embora o livro de Levítico contenha leis cerimoniais, profiláticas e higiênicas, ele contém também leis de valor durável. No capítulo 18, diversas uniões sexuais são consideradas fora da lei e a maior parte delas ainda é levada a sério pelo senso comum. Relações sexuais com a mãe ou outra mulher do pai, com a irmã, a neta, a nora, a cunhada e a mulher alheia eram terminantemente proibidas para o povo judeu. É nessa porção da Bíblia que se encontra a passagem mais explícita contra a homossexualidade: “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher” (v. 22). No versículo seguinte, há outra séria e óbvia proibição: “Não tenha relações sexuais com um animal” e “mulher nenhuma se porá diante de um animal para ajuntar-se com ele; é depravação”. A carta de Paulo aos Romanos é o único texto bíblico que menciona explicitamente a homossexualidade feminina: “Até suas mulheres trocaram suas relações naturais por outras, contrárias à natureza” (Rm 1.26). No verso seguinte, Paulo fala sobre o homossexualismo masculino: “Da
Heterossexualidade sem homofobia e homossexualidade sem heterofobia
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Diego Medrano
mesma forma, os homens abandonaram as relações naturais com as mulheres e se inflamaram de paixão uns pelos outros”. Paulo volta a falar sobre o assunto pelo menos mais duas vezes (1Co 6.9-11 e 1Tm 1.9-10). Certo empresário queria saber se um homossexual poderia deixar de ser homossexual. Para responder a pergunta, seu interlocutor abriu a Bíblia e leu para ele a passagem que mostra que na igreja de Corinto havia ex-homossexuais passivos e ativos (veja A porno-Corinto, pág. 28). Mesmo no meio científico, alguns admitem que homossexuais podem mudar sua orientação sexual. O próprio Robert Spitzer, professor de psiquiatria da Universidade de Colúmbia, famoso por ter ajudado a excluir a homossexualidade da lista de doenças mentais da Associação Psiquiátrica Americana (1973), “descobriu que 78% dos homens e 95% das mulheres que voluntariamente se submeteram a uma terapia ‘restauradora’ relataram uma mudança em sua sexualidade” (Por que confiar na Bíblia?, 2005, p. 124). Embora a hermenêutica dessas passagens bíblicas seja tranquila, naturalmente algumas pessoas, até mesmo cristãs (católicas e protestantes), fazem uma leitura diferente, a “leitura gay”, como se diz.
e todos somos igualmente marcados pelo pecado, tanto potencialmente como na prática, a discriminação por razões morais e religiosas contra, por exemplo, os gays, torna-se ridícula e hipócrita, além de acrescentar mais um pecado ao nosso vergonhoso currículo moral. Além do mais, a oposição que alguns fazem à homossexualidade não é educada, inteligente, coerente e caridosa. Há casos de agressão verbal e física. Em algumas vertentes muçulmanas acentuadamente fundamentalistas, os homossexuais podem ser condenados à morte. Nem todos os prisioneiros dos muitos campos de concentração eram judeus ou inimigos do regime nazista — alguns eram apenas homossexuais. Em contrapartida, os homossexuais não podem dar lugar à heterofobia. Eles podem sair do armário sem pretender colocar os héteros nos armários vazios. A sociedade precisa enxergar esse processo em andamento. Se os homossexuais podem defender a bandeira da homossexualidade, por que os heterossexuais não podem defender a bandeira da heterossexualidade? Se a consciência de um homossexual não o deixar em paz, apesar do apoio ostensivo da mídia, de alguns profissionais da saúde e até de alguns líderes religiosos, por que não se pode dar a ele auxílio psicológico ou pastoral, caso a pessoa espontaneamente o deseje? Se uma igreja se recusa a celebrar um casamento gay ou ordenar um padre ou pastor homossexual, por que zombar, perseguir, multar ou prender o responsável por esse comportamento, exigido por seu credo? Os homos querem liberdade de pensamento e de ação. O mesmo acontece com os héteros. A prática homossexual é condenada pelas três religiões monoteístas do planeta: o cristianismo, o judaísmo e o islamismo. No caso dos protestantes, enquanto eles se conservarem fiéis às Escrituras Sagradas, sua única regra de fé e prática, a conduta homossexual será considerada um desvio sexual. Entretanto, os cristãos horrorizados com a homossexualidade se obrigam pela mesma Bíblia a ficar horrorizados também com o adultério, com a hipocrisia, com o roubo, com o egocentrismo, com a soberba, com a incredulidade, com a inveja, com a violência, com a berrante injustiça social e daí por diante. E com a mesma intensidade!
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A solução do problema gay Kate Northern
na perspectiva cristã
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om a presença de tantos homossexuais na cidade grega de Corinto e a completa ausência de normas contrárias e de reações homofóbicas na sociedade grega, bastaria a Paulo instituir o casamento gay e combater apenas a orgia homossexual. Mas não foi isso o que ele fez nem o que aconselhou. Em sua primeira Carta aos Coríntios, o apóstolo é bem explícito: “Já que existe [aqui em Corinto] tanta imoralidade sexual, cada homem deve ter a sua própria esposa, e cada mulher, o seu próprio marido” (1Co 7.2, NTLH). Para não se colocar contra a maré, contra a cultura, contra a opinião pública, contra os deuses (Apolo em especial) e contra a “corintização”, Paulo deveria ter prescrito no máximo a monogamia homossexual: “Já que existe em Corinto tantos prostitutos, tantas orgias homossexuais, cada homem deve ter o seu próprio homem, e cada mulher, a sua própria mulher”. Se somos realmente cristãos, se devemos obediência às normas preestabelecidas desde a criação, se entendemos que a Bíblia é a Palavra de Deus, se reconhecemos a autoridade do apóstolo Paulo, autor de treze dos 27 livros do Novo Testamento, o casamento gay deve ficar totalmente fora de cogitação. 36
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A rigor, e para os cristãos, a questão gay tem de ser enfrentada de outra maneira. Permanecer no armário ou voltar para ele não resolve. Casar-se com o parceiro do mesmo sexo não resolve. Adotar e criar filhos ora sem mãe ora sem pai não resolve. Fazer uma leitura gay da Bíblia não resolve. Filiar-se a uma igreja gay e ter pastores e bispos homossexuais não resolve. Livrar-se de qualquer preconceito por parte da sociedade não resolve. Isso não quer dizer que não haja solução para a pessoa que nasceu com dificuldade heterossexual ou com tendência homossexual, para a pessoa que recebeu no lar estímulos contrários à heterossexualidade, para a pessoa que foi levada ao homossexualismo por causa de abusos sexuais cometidos por familiares ou estranhos, para a pessoa que chegou a essa situação por curiosidade e para a pessoa que tornou-se homossexual em função da propaganda da homossexualidade (novelas, filmes, internet, paradas gays etc.). A solução é a graça de Deus, que ela deve buscar persistentemente. A graça de Deus a levará à conversão, como aconteceu com certo número de pessoas em Corinto (1Co 6.11). Trata-se, honestamente falando, de um milagre, algo inexplicável operado pelo Espírito Santo. Embora dependente da soberania de Deus, a gênese dessa
experiência religiosa tem muito a ver com o ministério da igreja, que precisa orar, amar, acolher, compreender o drama da homossexualidade e comunicar as boas novas da salvação. A participação de profissionais da saúde não deve ser descartada nem pela igreja nem pela medicina. Na verdade, a Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia não “impede os psicólogos de atenderem pessoas que queiram reduzir seu sofrimento psíquico causado por sua orientação sexual, seja ela homo ou heterossexual”. A proibição, continua o documento, “é claramente colocada na adoção de ações coercitivas tendentes à cura e na expressão de concepções que considerem a homossexualidade doença, distúrbio ou perversão”. Naturalmente, os pregadores do evangelho não estão proibidos, à luz da Bíblia, de condenar como pecado a prática homossexual, desde que chamem todos os outros pecados de pecado e desde que anunciem também a graça de Deus. A conversão não significa obrigatoriamente que o ex-homossexual ou a ex-lésbica precisa contrair matrimônio com pessoa de sexo diferente. A aceitação do evangelho e o compromisso com Cristo indicam uma mudança radical no estilo de vida, seja qual for o estado civil. E o mesmo se requer do heterossexual
solteiro ou casado. No final das contas, a moral sexual cristã não visa apenas os homossexuais, as mulheres e os casados. Ela é também para os héteros, os homos e os solteiros, e em qualquer faixa etária (adolescentes, jovens, adultos e idosos). A conversão não impede que haja um desagradável descuido que provoque uma acidental queda, que deve ser confessada e abandonada para ser perdoada (1Jo 1.9). Entre os muitos problemas de comportamento que havia na igreja de Corinto, um deles era na área sexual. O apóstolo temia encontrar, em sua próxima passagem por Corinto, alguns daqueles irmãos que haviam abandonado as imoralidades sexuais de volta a elas, fato que o humilharia muito e o faria chorar por eles (2Co 12.21). Era sabido que um deles havia sucumbido à tentação de deitarse com a mulher de seu pai (1Co 5.1), embora, depois da disciplina, tivesse se entristecido amargamente e se arrependido (2Co 2.5-8). Em vez de afrouxar as normas de conduta, o apóstolo as confirma: “Fujam da imoralidade sexual, [pois] todos os outros pecados que alguém comete, fora do corpo os comete; mas quem peca sexualmente, peca contra o seu próprio corpo, [que] é santuário do Espírito...” (1Co 6.18-20).
Há esperança para o homossexual temente a Deus William Lane Craig
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Se você é homossexual ou tem inclinação, mantenha-se puro. Se você não é casado, deve praticar abstinência de toda atividade sexual. Eu sei que isso é difícil, mas o que Deus está pedindo que você faça é simplesmente o mesmo que ele requer de todas as pessoas solteiras. Isso significa manter puro não só o seu corpo, mas em especial a sua mente. Assim como o heterossexual deve evitar a pornografia e a imaginação, você também precisa manter sua vida e pensamentos limpos. Resista à tentação de racionalizar o pecado, dizendo “Deus me fez assim”. Deus deixa claro que ele não quer que você ceda ao pecado, mas, sim, que você o honre mantendo puros o corpo e a mente. Procure aconselhamento profissional cristão. Com tempo e esforço, você pode vir a usufruir de relações normais e heterossexuais com a sua esposa. Há esperança!
Traduzido por Vitor Grando da Silva Pereira William Lane Craig, doutor em teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha, e em filosofia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, é professor de filosofia na Faculdade de Teologia da Universidade Biola, em La Miranda, na Califórnia.
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HOJE EM DIANTE...
Não quero me lembrar de tudo
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Mateusz Stachowski
partir de hoje, com a ajuda de Deus, vou deixar de me lembrar de muitas coisas. Não me lembrarei de alguns traumas da infância. Daquele professor que zombou de mim em público quando escrevi uma palavra errada no quadronegro. Daquela correada de meu pai que atingiu o tumor que eu tinha na barriga. Da falta de aplicação aos estudos que me obrigou a repetir a série duas vezes. Das discussões sem fim entre meu pai e minha mãe. Do suicídio do garoto da minha idade perto da minha casa. Daquele tecoteco que caiu e matou o piloto. Não me lembrarei dos pecados anteriormente cometidos, dos pecados ocultos nem dos pecados públicos. Não há proveito algum nessa lembrança mórbida e desnecessária, pois já chorei por eles e eles já foram confessados, perdoados e removidos. Não me lembrarei daquela provocação, daquela injustiça, daquela dolorosa afronta que alguém me dedicou. Vou me esquecer do lugar, da data e das circunstâncias em que o desagravo aconteceu. Considerarei definitivamente perdoada a pessoa que o cometeu. Porei no fogo documentos históricos
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que lembrem esse incidente e qualquer outro do mesmo porte. Ficarei completamente livre de recordações incômodas. Não me lembrarei demasiadamente das placas, dos troféus, dos diplomas, das honrarias, dos prêmios, das coroas recebidos no percurso da minha caminhada. Para evitar o espírito de superioridade, o nariz empinado, a empáfia, a situação de risco, a queda. Para não provocar a inferioridade nem a antipatia alheias. Com a ajuda de Deus, lançarei minha coleção de coroas diante “daquele que está sentado no trono e que vive para todo o sempre” (Ap 4.9). Não me lembrarei unicamente de mim, de minhas dores, de meu sofrimento, de minhas carências, de minha posição, de meus bens. Esse mandamento recebi de meu Pai. Ele tem me dito e repetido: “A pessoa que procura seus próprios interesses nunca terá a vida verdadeira; mas quem esquece a si mesmo terá a vida verdadeira” (Lc 17.33, NTLH). Não me será fácil agir dessa maneira cristã, pois, como descendente de Adão, eu me lembro de tudo, menos dos outros. Porém de hoje em diante será diferente! Que o Senhor me socorra!
R EPORTAGEM
O desafio de trabalhar junto Rede evangélica completa 10 anos e mostra que é possível caminhar em parceria
James GIlbert
por Lissânder Dias
Parceiros oram durante a celebração dos dez anos de Mãos Dadas
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pastor Lindon Carlos entra pela porta de uma escola municipal da cidadezinha de Imaculada, no sertão da Paraíba. Carrega uma Bíblia e alguns exemplares da revista Mãos Dadas. Os professores o recebem com sorrisos, enquanto ele entrega a revista e prega o evangelho. Ele faz isso porque sabe da triste realidade das crianças do seu lugar (alimentação inadequada, sistema educacional precário e merenda escolar insuficiente, insegurança em casa e ausência dos pais, que deixam a família à procura de emprego) e acredita que os cristãos devem lutar em favor das crianças em situação de risco. Ailton Fonseca visita igrejas e seminários da cidade de São Paulo. Enquanto fala da necessidade de os cristãos se envolverem com o problema da delinquência juvenil, também distribui exemplares de Mãos Dadas, como ferramenta útil para mostrar às igrejas a necessidade de olharmos as crianças com compaixão e de nos unirmos em rede. As atitudes de Lindon Carlos e Ailton são bons exemplos do que pode acontecer quando organizações e comunidades cristãs decidem trabalhar juntas. Lindon é membro da Ação Evangélica (ACEV), uma igreja que atua há 72 anos no Nordeste. Ailton é administrador do Ministério JEAME, que ajuda jovens em conflito com a lei, egressos de unidades
Uma Criança os Guiará O ponto alto da comemoração dos 10 anos de Mãos Dadas foi o lançamento de Uma Criança os Guiará – por uma teologia da criança (Ed. Ultimato, 280 pág.), que reúne textos de mais de vinte autores nacionais e estrangeiros, entre teólogos, historiadores, psicólogos, jornalistas e pastores. A criança é mencionada no olhar da teologia, do Antigo Testamento, do Novo Testamento, da sociedade e da própria criança. Nas últimas páginas, John Collier lembra que “Jesus colocou uma criança no meio dos discípulos no momento em que eles estavam engajados num debate teológico sobre grandeza no reino de Deus” (pág. 258). O fato é que — conclui o mesmo autor —, “com a teologia da criança, embarcamos em uma nova jornada com Cristo em direção ao mistério revelado de Deus no mundo” (pág. 259). O título do livro lembra aquela criança que, nos novos céus e nova terra, vai caminhar sem perigo algum com lobos e ovelhas, e brincar perto de cobras e não será picada (Is 11.6-8)!
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socioeducativas. Ambas as instituições são parceiras da Rede Mãos Dadas, por meio da qual quarenta organizações evangélicas transitam e dialogam em um espaço comum. A bandeira da rede é a criança. Sua identidade é o cristianismo. Com a Rede Mãos Dadas, as organizações recebem informação, recursos didáticos (como a revista Mãos Dadas) e encorajamento umas das outras. Na troca, elas descobrem que não caminham sozinhas, apesar dos obstáculos próprios do sertão nordestino ou das grandes cidades. Compartilhando suas lutas e conquistas, igrejas e instituições descobrem que o reino de Deus é maior do que elas mesmas e, com isso, sentem-se motivadas a seguir a caminhada de obediência ao chamado para cuidar dos mais vulneráveis. Trabalhando em rede, elas podem também mudar a cultura de isolamento ainda existente no meio evangélico e abrir caminho para uma cultura de parceria e doação.
Dez anos Em novembro de 2000, quatro organizações sociais evangélicas — Compassion, Tearfund, Visão Mundial e Viva Network —, a agência missionária Equip Inc e a
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Editora Ultimato publicaram no Brasil uma revista de 16 páginas, de linguagem simples, escrita para pessoas que trabalham com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade extrema. Era uma iniciativa inovadora, já que não havia nenhuma publicação tão contextualizada para um público carente de informação. Com uma tiragem de 35 mil exemplares, ninguém tinha certeza se a ideia teria vida longa (daí enumerá-la como edição zero). No entanto, por trás da publicação, havia a intenção de unir organizações cristãs. A disposição para tal fez com que a revista se tornasse não somente uma ferramenta de informação, mas também um meio agregador. Com 26 edições publicadas e 950 mil exemplares impressos, a caminhada já dura 10 anos. O número de parceiros saltou para quarenta e outros projetos foram sendo abraçados pela rede, como o Mutirão de Oração por Crianças e Adolescentes em Situação de Risco, o Programa CLAVES (ferramenta de prevenção contra o abuso infantil), a ferramenta Um Lugar Seguro para as Crianças (que ajuda as organizações a construírem políticas internas de proteção à criança), o processo de reflexão Teologia da Criança e a Campanha Latino-Americana pelos Bons Tratos da Criança. Porém mais do que desenvolver projetos específicos, a caminhada em parceria ajudou a rede a compreender melhor que, de fato, a criança é um cidadão do reino de Deus (e que, por isso, deve ser respeitada) e um pleno sujeito de direitos (e que, portanto, deve ser defendida nas esferas públicas). Com isso, as ações deixam de ser desconectadas das convicções cristãs e da dimensão social e política.
O trabalho em rede é um fenômeno relativamente novo na sociedade. Entre os pressupostos básicos, está a proposta de uma estrutura leve, não hierárquica e disposta a trabalhar em favor de causas e não de instituições. A Rede Mãos Dadas, junto com a Rede Evangélica Nacional de Ação Social e a Rede FALE formam algumas das mais experientes redes no recente contexto evangélico brasileiro. A celebração dos 10 anos de Mãos Dadas, no dia 18 de junho, na Igreja Metodista Central de Belo Horizonte, MG, reuniu cerca de setenta pessoas, entre parceiros, diretores de organizações sociais e pastores. Após o café da manhã regado à comunhão, a editora da revista Mãos Dadas, Elsie Gilbert, apresentou a caminhada histórica da rede, ressaltando as ferramentas construídas ao longo dos anos pelos parceiros e que são úteis na luta em favor das crianças em situação de risco.
Impacto Rocindes Araújo, presidente da Asas de Socorro, uma agência missionária que atua na região Norte, afirma que a Rede Mãos Dadas tem ajudado sua organização a não perder o foco na criança. Para Tânia Wutzki, representante do braço social das Igrejas Batistas Independentes, Mãos Dadas ajuda, entre outras coisas, com capacitação e incentivo. Segundo o diretor-redator da revista Ultimato, Elben M. Lenz César, “a rede tem ajudado na valorização da criança brasileira”. “Eu trabalho como voluntário em escolas, tenho um projeto com artes circenses nas ruas de cidades e povoados do sertão e sei o quanto é importante receber informações tão preciosas. Às vezes ficamos muito
longe das notícias, e a revista Mãos Dadas tem sido uma bênção para minha vida”, afirma, por e-mail, o educador Geraldo Fabian Cabett Diniz, de Irecê, BA. Além da revista, outros projetos da Rede Mãos Dadas causam impacto na igreja evangélica brasileira. Em 2009, 60 mil pessoas decidiram orar em favor das crianças por ocasião do Mutirão de Oração por Crianças em Risco. Desde o ano passado, a rede tem mobilizado igrejas e organizações por meio da Campanha Latino-Americana pelos Bons Tratos da Criança. A proposta é criar oportunidades para as comunidades cristãs repensarem sua maneira de tratar as crianças. Igrejas e organizações de cinco cidades já realizaram campanhas contra a violência infantil. Para o missionário Lucas Pereira Rezende, um dos responsáveis pela campanha na cidade de Ijaci, MG, “valeu a pena realizar esta iniciativa, primeiro porque a igreja conseguiu mostrar para a cidade que é uma instituição disposta a lutar contra a injustiça; segundo porque assim é possível apresentar o amor de Deus pela humanidade”. Mais do que uma exaltação institucional, o aniversário de 10 anos da Rede Mãos Dadas deve ser lembrado como uma proposta simples de valorização do esforço do pastor Lindon Carlos, do Ailton, do Lucas e de tantos outros cristãos brasileiros comprometidos com o evangelho do reino de Deus, na luta em favor dos mais vulneráveis e no testemunho da unidade cristã. NA INTERNET Sua igreja é amiga da criança? Antes de responder, baixe o teste “Igreja Amiga da Criança”, preparado pela equipe de Mãos Dadas. www.ultimato.com.br
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AMBIENTE E fé cristã
Carlos Caldas
Keir Watson
Criação, salvação e o futuro do cosmos
A esperança cristã é otimista — Deus vai fazer justiça na terra e vai restaurar a criação
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radicionalmente, a teologia sistemática divide as matérias do seu conteúdo em unidades estanques. Tal divisão é feita com uma intenção didática, que pode ser boa. Na prática, porém, há alguns problemas. Um deles tem a ver com o uso que se faz da Bíblia. Ao se separar um capítulo, procurase ajuntar os textos que falam sobre aquele tema. Só que os autores bíblicos não tinham essa preocupação. Em vez disso, escreviam com uma liberdade impressionante, e não raro combinavam temas que, séculos mais tarde, foram separados por teólogos no esforço de sistematizar o ensino
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bíblico. Um exemplo é o que a Bíblia fala sobre a criação, a salvação e a escatologia. Ela não trata de tais temas isoladamente. Na tradição evangélica, o tema da criação, por exemplo, tem sido abordado apenas na perspectiva de uma discussão apologética antievolucionista. Se isso acontece, perde-se muita coisa. Biblicamente, a criação é a base da salvação. O problema é que, com séculos de influência platônica, muitos cristãos pensam que a salvação é só da “alma”, enquanto a Bíblia aponta para uma salvação integral. O texto de 1 Pedro 1.9 traz a expressão “salvação da alma”, tanto nas versões protestantes como nas católicas. É uma pena que quase todas as editoras bíblicas tenham optado por traduzir o grego psychon por “almas”, que dá a ideia de uma substância imaterial separada do corpo. A melhor tradução seria “vidas”, isto é, a totalidade da existência, o que inclui o corpo e tudo que faz com que o ser humano seja humano. Em Romanos 8.1924, Paulo fala da expectativa quanto à plenitude da salvação, esperança compartilhada pelos seres humanos e pela própria natureza. Pedro (2Pe 3.13) fala do futuro do cosmos em termos de “novos céus e nova terra”, linguagem extraída de Isaías 65.17. E Apocalipse também fala de “novo céu e nova terra”, lugar da habitação de Deus com seu povo. É surpreendente que, nos capítulos finais da revelação de Deus, não se fala de “almas” que sobem para um “céu”, mas da nova
Jerusalém que desce do céu à terra. Será a concretização da salvação. “Creio na ressurreição do corpo” — é preciso resgatar a linguagem do Credo Apostólico. É oportuno lembrar a expressão que já se tornou clássica em estudos teológicos, criada pelo teólogo alemão Pannenberg: a ressurreição de Jesus é um evento proléptico, isto é, que antecipa o futuro. Se quisermos saber como será o amanhã, basta olhar para o ontem: ontem Jesus ressuscitou; amanhã ressuscitaremos. E em totalidade, corpo e alma, junto com a criação, serviremos ao Senhor. O pensamento bíblico unifica o passado (a criação), o presente (a salvação) e o futuro (a renovação da criação). As implicações para a missão da igreja são várias: se o futuro do cosmos é a renovação da criação, a igreja deve anunciar essa esperança em Jesus Cristo e se envolver em ações de cura de um mundo doente e em ações que promovam a justiça. O texto de 2 Pedro 3.13 faz ecoar duas passagens que falam da vinda do Deus que faz justiça (Sl 96.10-13; Sl 98.4-9). Não é coincidência que, quando os textos bíblicos anunciam a esperança na vinda do Deus que faz justiça, o mar, os rios e as árvores sejam convocados para louvá-lo. A esperança cristã é otimista — Deus vai fazer justiça na terra e vai restaurar a criação. A igreja em missão deve agir nessa direção. Carlos Caldas é professor na Escola Superior de Teologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
Alcir Souza
C AMINHOS
DA MISSãO
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ivemos em um contexto em que a paz parece ter desaparecido da nossa convivência. Diante do império da naturalização da violência, desaprendemos como invocar a paz. Porém, quando ela parece ser algo tão utópico, distante, é necessário anunciarmos o reino de Deus, que é “[...] justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Um passeio pelas Escrituras e pela história da igreja revela o esforço de muitos em construir a paz, ainda que em algumas épocas tenham sido os próprios seguidores de Deus os perpetradores da violência. Na perspectiva do Antigo Testamento, o shalom é a restauração do equilíbrio e da harmonia da pessoa humana com Deus, consigo mesma, com o próximo e com toda a criação. A paz, portanto, é uma das virtudes da aliança de Deus com a humanidade (Ez 37.26; Jo 14.27). A própria palavra “paz” reafirma a ideia de aliança. Ela deriva do latim pangere, que significa comprometerse, concluir um pacto, firmar um acordo entre duas partes. Mais que ausência de conflitos, a paz consiste na construção de uma alternativa para a convivência humana. Um exemplo desta iniciativa vem do ministério do profeta Jeremias. Os israelitas estão no cativeiro babilônico, sem solução aparente para a violência e opressão ao seu redor. Então o profeta declara que é necessário resistir ao escapismo, ao fatalismo
e à vitimização, e reconhecer que a presença de Deus não é um evento perdido no passado nem um sonho projetado no futuro. Os israelitas deveriam viver na Babilônia como uma comunidade de esperança, reconhecendo e anunciando que o poder de Deus é maior do que as forças que geram o mal e a violência. No lugar da fuga e da alienação, o envolvimento e a solidariedade. Em vez do medo, a paz. Não bastava apenas ser diferente, era preciso fazer diferença. Diante disso surge a pergunta: Como trilhar os caminhos da missão pela promoção da paz? Algumas pistas podem nos ajudar: Em meio a uma cultura de violência, promover uma cultura de paz: a resolução de conflitos de forma nãoviolenta; a prática da tolerância; a resiliência ante a dor e o sofrimento; o respeito em meio à diversidade e à pluralidade; a crítica das ideias sem ofensa às pessoas. Entender a solidariedade como um novo nome da paz. Os Evangelhos afirmam que Jesus Cristo foi solidário na vida (cf. At 10.38) e na morte (cf. Jo 15.13). Seguindo seu exemplo, é preciso superar o individualismo e fazer dos relacionamentos uma experiência de gratuidade. A paz como parcela da missão integral. A igreja em missão, com base nas aspirações do reino de Deus, deve reconhecer a paz como possibilidade real, concreta, necessária para a vida humana.
Miguel Ugalde
Os caminhos da paz
Diante do estado de opressão e violência que se apossou de nossas cidades, as Escrituras nos desafiam a rejeitarmos a alienação
Diante do estado de opressão e violência que se apossou de nossas cidades, as Escrituras nos desafiam a rejeitarmos a alienação, o escondimento, e assumirmos o caráter missionário de nossa fé. Afinal, o próprio Jesus Cristo disse que são “felizes os pacificadores” (Mt 5.9). (A agência cristã Tearfund disponibiliza na internet [tilz.tearfund.org/português] recursos para pessoas ou grupos que queriam assumir a promoção da paz como parte de sua missão.) Alcir Souza é professor do Centro Evangélico de Missões, em Viçosa, MG.
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Carlinhos Veiga
N OVOS
ACORdES
Água no deserto
Muito Mais
Boas Novas
Gladir é um dos poetas mais destacados no cenário musical cristão. Um dos pontos altos deste CD é a valorização dos instrumentos acústicos embalando as belas criações desse artista genial. O resultado sonoro é muito agradável. A produção e arranjos são de Geziel Freitas. Praticamente todas as canções são da autoria de Gladir, exceto “O sonho”, em parceria com Jorge Camargo, que a interpreta. Água no Deserto conta ainda com as participações especiais de Tiago Vianna e das crianças Julia e Kevin. Vale a pena deter-se nas canções “Pausa”, “Este país”, “Dança de roda” e “Eterno”. Para adquirir, visite www.lpc.org.br. Para ouvir trechos, acesse o podcast Novos Acordes em www.ultimato.com. br/blogs/carlinhosveiga.
A banda Matizes surgiu em 2004, na cidade de Curitiba. O nome revela sua proposta musical e ideológica: mistura ou combinação de cor ou cores, ou, no caso, de som e sons. Alguns de seus integrantes participaram da extinta Living Soul, na segunda metade dos anos 90, que se tornou conhecida nacionalmente. Muito Mais é o primeiro CD da banda, que tem como estilo o pop, revezando baladas e funks com ritmos comuns ao público evangélico. Com o apoio da Editora Luz e Vida, gravaram esse CD entre os anos 2001 e 2006. O projeto gráfico é de Lunamara Gouvea. As fotos do encarte foram produzidas no atelier do premiado artista plástico Érico da Silva. Visite o site www.matizes.com.br e conheça mais sobre a banda.
Este é o décimo CD do Sal da Terra. O segredo dessa vitalidade está na incansável rotina evangelística do grupo pelo sertão, que o inspira a produzir sempre. A linguagem está cada vez mais contextualizada. As influências musicais de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro estão ainda mais evidentes. Relembram Josué Rodrigues regravando a conhecida “Já raiou”. Destaco ainda “Cheguei do sertão” e “Saudade do Brejinho”, de Marcos Fernandes, “O canto da graúna”, de Aldecy Sousa, e “Simplicidade”, de Cordeiro. Para quem gosta de um bom causo, Robério conta “Mc Fish”. O projeto gráfico poderia ser mais bem trabalhado. Contatos pelo telefone 87 9988-2409. Ouça também o podcast com Sal da Terra em www.ultimato.com.br/blogs/ carlinhosveiga.
brasileira. Saiba como aconteceu pelo www.prosaecanto.org.
trabalho foi composta por Gerson Borges e Jorge Camargo e gravada ao vivo no Som do Céu deste ano. Participaram: Marcos Almeida (Palavra Antiga), Indio Mesquita (Expresso Luz), Carol Gualberto, Lara Carrijo (Sondafé), Gerson Borges, Jorge Camargo, Telo Borges, Marcel (Golgotha), entre vários outros. Mais informações pelo www.mpc.org.br.
Gladir Cabral
Matizes
Sal da Terra
N o t a s d e p a ssag em Aconteceu em junho a segunda edição do Prosa e Canto Festival, na chácara Formiga, em Anápolis, GO. Este ano o evento contou com a participação de Baixo e Voz, Elen Lara, Expresso Luz, Rubão e Cia, Lu & Dread Zion, Josimar Bianchi, Naum Esteves, entre outros. É mais um evento que divulga a arte e a cultura
Sai em breve o CD/DVD com canções de diversos músicos cristãos visando o levantamento de recursos para ajuda humanitária à população do Haiti. Embora a mídia tenha deixado de lado esta pauta, a calamidade naquele país ainda continua. A música título do
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LI N HA DE F R ENT E
Bráulia Ribeiro
Metáforas de uma vida passiva
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entei-me na reunião de quinta com meu caderninho. Procurava comprovar uma preocupação que trouxera do Brasil. O campus de Kailua envia de trezentas a quinhentas pessoas em equipes missionárias de curto prazo para o mundo inteiro a cada trimestre. Jovens dirigem o louvor com solos de guitarra, pulos, vozes intimistas à moda Coldplay ou gritos primais em havaiano. Apesar do sabor internacional, da mistura de estilos, as letras não diferenciam das que cantávamos no Brasil na nossa igreja em Porto Velho. A maioria se refere às minhas emoções e a um Deus que me ama, salva, transforma, ampara, cura, trata, mima. Eu sou o centro de minhas adorações. As palavras que usamos no dia-a-dia influenciam nosso comportamento. Palavras definem nossa relação com o universo e nossa expectativa pela vida. Se interpretamos de maneira mística ou meramente psicológica, o fato é que a linguagem tem uma função essencial em nossa existência. No processo de nos fazer entendidos e tentar entender, criamos com as palavras figuras de linguagem. Usamos metáforas para compor imagens. Metáforas nos ajudam a criar padrões na linguagem, tecer realidades para explicar outras. Cada analogia nos leva a uma rede de referências. De acordo com James Geary, editor da coluna “Quotable Quotes”, da revista Reader’s Digest, e autor de um livro sobre metáforas, usamos
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seis metáforas por minuto, como um recurso corriqueiro na comunicação. Geary constatou por meio de um estudo que as metáforas influenciam nossas decisões.¹ Pessoas se tornam mais propensas a uma decisão quando é estabelecido um determinado contexto, e metáforas criam o contexto das conversações. No Brasil fiz uma análise textual de algumas músicas cristãs. Em quase todas o eu é soberano e central. Aqui procurei por metáforas. O que cantamos em nossos cultos, como nos
vemos e como vemos ao Senhor? O que encontrei não me surpreendeu. O Senhor é doce, suave, meigo, uma brisa, um furacão, um abraço, um calor que me inunda, o abrigo que me protege, a mão que me ampara, um grande coração, aquele que me faz voar, aquele que chora por mim, que tem ciúmes de mim. Ele é também glória, majestade e beleza. É o Cordeiro com muito mais frequência do que é o Leão... Nenhum problema. O nosso Deus é mesmo tudo isto. Mas é também muito mais. Eu, por minha vez, sou frágil, estou abatido, magoado, ferido e cansado; sou um nada, preciso
de proteção; estou sempre à beira do pecado, estou chorando, meu canto é um eterno lamento. Vemos aqui um quadro triste no evangelicalismo atual. Embora verdadeiras, as imagens de um Deus extremamente meigo e dos seres humanos fragilizados, a quem ele serve, não nos contam toda a história. Produzem um estado mental angustiado e egocêntrico. Enquanto olho pra minha fragilidade, não ajudo o próximo. Enquanto fraco, nada vejo além do meu umbigo. Envolvido em meu romance celestial, esqueço meu destino terreal. Nos anos 80, as músicas que produziram a minha geração missionária falavam de guerra, de exército, de conquista. Jesus era o Leão de Judá, o Senhor dos Exércitos, e eu, o soldado obediente à missão a qualquer preço. Pode-se argumentar que as metáforas daquela época produziram, quem sabe, o erro de uma missão arrogante, cega à realidade humana. As metáforas de hoje, no entanto, produzem uma passividade total. Enquanto canto àquele que me ama, sou uma árvore plantada no lugar de minha conveniência esperando que a brisa me refresque e o abrigo me proteja. Minha missão inexiste. Só nos resta esperar que James Geary esteja errado. Nota 1. www.ted.com/talks/james_geary_ metaphorically_speaking.html Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona, Havaí, com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). braulia.ribeiro@uol.com.br
René Padilla
M ISS ãO
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O mandamento de fazer discípulos
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a Grande Comissão (Mt 28.16-20), a afirmação da autoridade universal do Senhor Jesus Cristo precede a definição da missão da igreja representada pelos onze discípulos que o rodeavam naquele momento: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (v. 18b-20a). Fica claro neste texto que o senhorio universal de Jesus Cristo é a base da missão universal da igreja. Essa missão se resume no mandamento: “fazei discípulos”. Curiosamente, para expressar essa ideia, o Evangelho Segundo Mateus usa o verbo matheteúsate, que, no Novo Testamento, aparece apenas quatro vezes: três delas nesse Evangelho (13.52; 27.57; 28.19) e uma em Atos (14.21). Em contraste com o verbo matheteuein, o substantivo “discípulo” (mathetes) é comum nos Evangelhos e em Atos, porém não é encontrado em nenhum outro livro do Novo Testamento. Tal expressão é característica nos Evangelhos para referir-se aos seguidores de Jesus Cristo: aparece 73 vezes em Mateus, 46 vezes em Marcos e 37 vezes em Lucas. Para entender devidamente o sentido do mandamento é indispensável prestar atenção em um detalhe gramatical que nem sempre é levado em consideração: no texto grego, matheteúsate é o único verbo
no modo imperativo. As outras três formas verbais ligadas a este verbo matheteúsate — “ide”, “batizando-os” e “ensinando-os”— estão, de acordo com o original grego, na forma verbal gerúndio e sua função é qualificar a ação a que se refere o verbo principal — “fazei discípulos”. O primeiro gerúndio (no grego) presente na frase é traduzido como “ide”, mas poderia ser traduzido como “marchem”, e não deve ser interpretado separadamente do mandamento central expresso pelo verbo no modo imperativo no grego. O que Jesus diz é: “Marchem: façam discípulos”. Os outros dois gerúndios respondem à pergunta: como se faz discípulos? A resposta é: “batizando-os e os ensinando”. Concluindo, o foco da Grande Comissão não é outro senão o de fazer discípulos de Jesus Cristo. Esta é a missão que Jesus Cristo delegou à sua igreja, é a tarefa central da igreja até o fim do mundo. A conexão entre essa missão e o senhorio universal de Jesus Cristo é estabelecida por uma expressão que aparece logo no início do versículo 19: “portanto”. Em outras palavras, pelo fato de que Jesus Cristo é o Senhor de toda a criação e de todos os aspectos da vida humana, a igreja recebeu o mandamento de fazer discípulos, ou seja, pessoas que reconheçam esse senhorio e vivam de acordo com ele. Jesus Cristo é o Senhor de todos; portanto, todos devem reconhecê-lo como tal. Se levarmos em conta que, durante seu ministério terreno, Jesus Cristo dedicou muito de seu tempo à formação de seus discípulos, torna-se
O foco da Grande Comissão não é outro senão o de fazer discípulos de Jesus Cristo
evidente que a missão que ele confiou a seus discípulos pouco antes de sua ascensão é continuar o que ele mesmo fez com eles. A missão da igreja, representada pelo corpo apostólico, é o prolongamento da missão de Jesus Cristo, prolongamento este que se baseia em um discipulado missionário idealizado para continuar até o fim do mundo. A esfera de ação do trabalho de fazer discípulos abarca “todas as nações”. E, visto que a autoridade de Jesus Cristo está presente “no céu e na terra”, a missão que ele delega a seus discípulos é igualmente global: tem de se estender a “todas as nações”. Traduzido por Wagner Guimarães C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral? (Editora Ultimato)
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ordem Ariovaldo Ramos
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erto dia uma jovem contou que, no caminho para a igreja, ao passar por uma avenida onde se realizara uma passeata com conotações de ordem ético-moral, vira uma placa remanescente que pedia por um Estado laico. Tal menção reportou-me a uma novela recém-terminada numa emissora de televisão na qual o autor propunha alterações nos estatutos morais. Com a placa mencionada, o que se pressupõe é que as mudanças que tal população propõe à coletividade só estão em compasso de espera por causa de ênfases religiosas que um Estado laico deveria relevar ou mesmo desconsiderar. Subentende-se que um Estado laico é, por definição, destituído de conteúdo ético-moral, que fica, portanto, por conta da população religiosa que intenta impor aos demais suas posturas nesse quesito. É fato que o Estado é regido por leis. Porém, de onde elas vêm? No 1º Congresso Teologando, Rubem Alves disse que “cultura é um jeito particular de ser gente”. Logo, a cultura é produto do senso coletivo de finalidade, que, de acordo com Enrique Dussel, é “elemento 48
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transcendental crítico” que incide numa “determinação da práxis” — a moral (Ética da Libertação, Editora Vozes). É desse jeito particular de ser gente, necessariamente carregado de conteúdo ético-moral, que as leis vêm. Assim, quando o autor da novela propõe a normalidade do adultério e a poliandria (união conjugal com mais de um homem, simultaneamente) ou
Qualquer proposta de alteração cultural exige plebiscito, uma vez que é uma redefinição de profundo espectro na forma de admitir o ser quando os protagonistas da passeata propõem uma redefinição de gênero e de família, estão apresentando uma reformulação desse jeito particular de ser gente. Logo, diz respeito a uma redefinição de conteúdo ético-moral. É interessante notar que, por excelência, o autor da novela condena o principal protagonista, adúltero, a ficar só. Parece o uso de recurso — comum a roteiristas — para punir
Bev Lloyd-Roberts
Questão de
comportamentos que a cultura, no mínimo, procura inibir. Se assim for, fica demonstrada a presença de pruridos morais na cultura. De qualquer maneira, toda proposta de alteração cultural exige plebiscito, uma vez que é uma redefinição de profundo espectro na forma de admitir o ser. Uma coisa é compreender alguém que rejeita o seu papel zoológico; outra é propor a existência de outro gênero. Uma coisa é garantir o direito de partilha a quem construiu um patrimônio comum com uma pessoa do mesmo gênero; outra é dizer que tudo é a mesma coisa. Tais questões são, no mínimo, plebiscitárias. Parece que o que está em curso no país labora no equívoco de que o Estado não pode legislar sobre moral. Porém, de fato, tudo o que se faz parte do conceito ético-moral subjacente à cultura. Logo, toda lei está sub judice da moral. Não há como ser diferente, sob pena de perda de identidade. Não que não se possa chegar a novos acordos; porém, para isso, todos os implicados precisam ser ouvidos à exaustão. E, nesse caso, os implicados somos todos nós. Ariovaldo Ramos é pastor na Comunidade Cristã Reformada e na Igreja Batista de Água Branca, ambas em São Paulo.
Ricardo Barbosa
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CAMINHO DO CORA çãO
Assentados em lugares celestiais
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uando era jovem, ficava fascinado com a afirmação de Paulo segundo a qual Deus nos fez “assentar em lugares celestiais”. Não sabia exatamente o que isso significava, que lugares eram estes, onde ficavam, mas me parecia algo muito espiritual. Tinha a impressão de que se tratava de um “estado espiritual”, um tipo de arrebatamento que iria me subtrair da realidade terrena e me lançar num espaço abstrato de gozo celestial. Para se alcançar tal estado, era necessário não se importar muito com a vida terrena, mas cultivar uma mística espiritual, algo como fechar os olhos e se deixar levar para os “lugares celestiais”. Uma grande dificuldade que os cristãos sempre tiveram foi estabelecer uma relação adequada entre a terra e o céu, o temporal e o eterno, o humano e o divino. Levei algum tempo para entender essa linguagem. Ainda encontro dificuldades. Porém, arrisco dizer que esses “lugares
celestiais” são o lugar onde o céu e a terra se encontram. O lugar onde a ressurreição de Cristo realiza em
Os “lugares celestiais” não são esferas abstratas de uma espiritualidade subjetiva, mas a natureza gloriosa da vida que nasce da ressurreição nós o milagre divino da verdadeira humanidade. Na Carta aos Colossenses, Paulo afirma que, uma vez que fomos ressuscitados com Cristo, devemos pensar e buscar as coisas lá do alto, e não aquelas que são aqui
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da terra (Cl 3.1-3). É um convite para elevar nossos desejos e anseios. Um convite para viver a partir de uma nova realidade. “Deus nos ressuscitou com Cristo e com ele nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus [...]. Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos” (Ef 2.6 e 10). Um convite para não mais vivermos conformados com este mundo
(Rm 12.2). A ressurreição de Cristo realizou isto. Uma onda de frustração, futilidade e falta de sentido vem tomando conta da humanidade. Perdeu-se a noção do que significa ser humano. Os valores e tradições que davam algum sentido ou ordem à vida e à sociedade não existem mais. A família, que sempre foi reconhecida como a “célula mãe” da sociedade, hoje representa a matriz de muitas patologias sociais. A igreja, que simbolizou o eixo moral, encontra-se mergulhada em muitos escândalos. Sem saber o que fazer, somos levados a viver da forma como os outros vivem, empurrados por uma cultura decadente e consumista. A humanidade encolheu. A mediocridade é uma marca da nossa cultura. Vivemos cercados de celebridades fúteis, políticos inescrupulosos e estúpidos, negociantes ambiciosos e desumanos, religiosos vulgares e narcisistas. Por todo lado que olhamos, não encontramos alguém que nos inspire, que valha a pena imitar, que nos desperte para algo maior, mais sublime, mais real. É claro que eles existem, mas parece que ninguém se importa com eles. O que move a nossa cultura é a vulgaridade. É num contexto assim que Paulo fala sobre os “lugares celestiais”. É um convite para elevar nossas expectativas, linguagem, anseios e desejos. Elevar, enfim, nossa humanidade
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à semelhança da humanidade de Jesus Cristo. Os “lugares celestiais” não são esferas abstratas de uma espiritualidade subjetiva, mas a natureza gloriosa da vida que nasce da ressurreição, da vida liberta da presente ordem cultural e elevada a uma nova realidade da qual Jesus é o primogênito. Somos a nova criação de Deus. Fomos libertos e redimidos da escravidão da futilidade imposta à humanidade pelos pensamentos e filosofias vazias da cultura que nos cerca. A nova criação de Deus, realizada em Cristo, abre as portas para uma realidade nobre e gloriosa, para uma humanidade moldada pela humanidade real de Cristo. Os “lugares celestiais” são a expressão que Paulo usa para descrever essa nova realidade. Fazemos parte dela. Fomos colocados neste lugar pela fé em Cristo e pela participação em sua ressurreição. Somos tentados, ora por um escapismo subjetivo de uma espiritualidade abstrata que nos afasta da realidade, ora por uma forma de engajamento cultural que nos torna parte deste sistema. A espiritualidade cristã é a expressão da vida de quem foi assentado em lugares celestiais pela fé em Jesus Cristo. Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.
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R EFLEXÃO
Robinson Cavalcanti
50 anos
Liz Valente
de crente (1960-2010) parte final
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ou grato a Deus por me ter permitido três vidas em uma: a profissional, a política e a ministerial. A troca da advocacia pelo magistério universitário melhor viabilizou a compatibilização entre profissão e ministério. Como profissional das áreas de pesquisa e ensino, sempre me vi dando o melhor de mim, com ética, e ao mesmo tempo sendo um missionário ao mundo universitário. Nas Universidades Federal de Pernambuco (UFPE) e Federal Rural de Pernambuco, ocupei a maioria dos cargos e funções, inclusive nos conselhos superiores. Coordenei o mestrado em ciência política e dirigi o Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Aposentado, trabalhei como voluntário cinco anos e, ao completar quarenta anos que ali entrara como calouro, fechei 52
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o escritório com um sentimento de realização pessoal e dever cumprido. Muitas vezes participei, como dublê de professor/pastor, de efemérides religiosas no campus. Essa missão para o mundo me levou a integrar a Academia Pernambucana de Educação e Cultura, o Rotary Club e a Academia Pernambucana de Ciências Morais e Políticas. Na vida política, o fato de ter parentes paternos e maternos militantes de várias frentes, levoume a participar da primeira greve aos 12 anos. Fiz parte do grêmio do colégio. Participei de uma diretoria da União dos Estudantes Secundaristas de Alagoas (UESA), do Centro dos Estudantes Secundaristas de Pernambuco (CESP), do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito da UFPE, de diretórios e executivas (nos âmbitos municipal e estadual) de partidos. Abracei uma candidatura
profético-pedagógica a deputado estadual (na época da ditadura militar), outra candidatura a viceprefeito, uma assessoria a prefeito e a deputado federal. Participei ainda da fundação de um sindicato e, por fim, de movimentos sociais — inclusive fui um dos fundadores do Movimento Evangélico Progressista (MEP). Cumpri meu dever ao integrar a coordenação nacional das campanhas (1989, 1994) de Luiz Inácio Lula da Silva entre os evangélicos. Partidos e organizações foram canais históricos do exercício da cidadania responsável. Saí do PMDB quando esgotou seu projeto, com a promulgação da Constituição de 1988, e do PT com minha eleição ao episcopado (além da sua descaracterização). Não sou filiado a partidos, mas a sindicatos e associações civis. Parafraseando Nelson Rodrigues, tenho sido um “pastor de passeata”.
Anglicana — 26 anos como ministro ordenado (diácono, presbítero = pastor) e aproximadamente 13 anos como bispo. No anglicanismo fiz uma síntese pessoal entre um catolicismo sem romanismo e um protestantismo sem sectarismo/legalismo. Ordenei quase cem pastores. Abri um grande número de frentes missionárias e congregações — tenho recebido uma média de quinhentos novos membros a cada ano. Mantemos obras sociais e uma mensagem integral do evangelho. Porém é também aí que tenho, nos últimos anos, vivenciado os momentos mais tristes da minha vida. Por um lado, Tenho sido um cristão sofri a tragédia de cismas confessional: afirmando motivados por projetos pessoais e, por outro, o cada ponto convergente confronto com heresias, das confissões de fé da que me fez perder amizades pessoais — algo que nunca Reforma. Um ortodoxo que tinha vivenciado no espaço procura ser ortoprático secular. O anglicanismo, amplamente ortodoxo em seus 165 países, tem passado por uma e internacionais da minha geração crise dolorosa devido ao fato de suas fazem-me confessar a graça e a províncias do espaço euro-ocidental misericórdia de Deus. Desde a Igreja (como acontece com outros ramos Romana, tenho sido um “cristão históricos) e alguns satélites na periferia credal”, afirmando cada artigo dos terem sucumbido ao sopro iluministaCredos Apostólico e Niceno. Desde racionalista do “espírito do século”. a Igreja Luterana, tenho sido um Tal crise deve-se ainda à adoção de um cristão confessional: afirmando cada relativismo e de uma “inclusividade ponto convergente das confissões ilimitada” (sem doutrinas e padrões de fé da Reforma. Um ortodoxo de comportamento), representados que procura ser ortoprático. No pelo liberalismo revisionista pósprotestantismo, sempre me vi como moderno, que tem como uma das um evangélico (evangelical) — anunciando a expiação na cruz, o novo decorrências o advogar a agenda nascimento, a santidade e o imperativo GLSTB (homossexual). Fui difamado missionário. Posicionamentos político- e processado, e sofri um nunca imaginado martírio no interior da ideológico-partidários e o uso de própria igreja. Continuo, porém, ainda ferramentas da filosofia e das ciências vivo, ministrando, assistido por meu humanas para melhor compreender Senhor! e obedecer às Sagradas Escrituras me levaram, muitas vezes, a ser tido Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife como “liberal” por conservadores e e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica como “fundamentalista” por liberais. e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo — desafios a Há 34 anos sou membro da Igreja uma fé engajada. www.dar.org.br Na vida religiosa, tive formação cristã e fui vocacionado desde a infância. Converti-me na adolescência, e seguiram-se filiação e púlpito. Tinha visão missionária desde quando era estudante universitário. Na igreja exerci das mais humildes tarefas às maiores responsabilidades — foi parte do meu processo de aprendizagem. O privilégio de ser ministrado por heróis da fé, a literatura a que fui exposto, a honra de ser agraciado pela Providência com a presença nos principais congressos nacionais
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Ricardo Gondim
Andrew Steinle
R EFLEXÃO
Teologia e esperança T
eologia é linguagem sobre Deus. Com teologia procuramos juntar os cordões que podem dar sentido à nossa existência. Ansiamos por achar a nós mesmos enquanto arfamos pelo Divino. Rubem Alves acertou quando disse que a teologia não pode ser malha que prende o Mistério, mas é rede onde nos deitamos. Teologia é linguagem precária. Nela peregrinos se aconchegam e encontram ânimo na busca por Deus. Como pastor de uma comunidade pujante, que reúne quase três mil pessoas por domingo, sei que em todos os sermões, de alguma forma, faço teologia. Adolescentes irrequietos, universitários idealistas, pequenos e médios empresários, funcionários
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públicos e idosos sábios chegam com muitas perguntas. Diante de suas aflições, vaidade, arrogância e cinismo perdem força. Domingo, molhei a camisa com as lágrimas de uma mãe que havia enterrado o filho que se suicidara menos de um mês antes. Meu abraço, mesmo sem palavra alguma, era uma resposta calada diante de sua dor. Ali, eu articulava teologia em silêncio. Na impotência de não ter o que dizer naquela situação, simultaneamente comum e brutal, notei que o encadeamento da lógica religiosa carece da delicadeza de um violino. Naquele rápido momento, vi que não havia como padronizar uma resposta. A gente só percebe o vício do lugar-comum, do
clichê, do jargão, quando se vê diante de alguém destroçado pela tragédia. Nesses confrontos inesperados com a dor, aprendemos a respeitar os dramas que nos rodeiam. Ficamos diante da insuficiência da linguagem. Foi desses encontros trágicos que mudei e mudei muito. Agora, quero teologar com menos altivez. Quero falar de Deus sem exigências messiânicas; desprovido da presunção de lídimo defensor da sã doutrina. Desejo tão somente oferecer o ombro e abrir mão de minhas muitas explicações. Se no passado confundi entusiasmo com afobação, zelo com intolerância, arrojo com precipitação, hoje tento um pisar mais simples diante de Deus e dos homens.
Quero falar de Deus com mansidão. Sem reputação a defender, desisto do fascínio do sucesso, de angariar plateias, de inebriar-me com aplausos. Quero encarnar o significado mais profundo de “estar crucificado com Cristo”. Depois de tantos anos, ainda não me vesti da mesma atitude do meu Senhor, que se esvaziou para servir. Quero falar sobre bondade, essa rara e nobre virtude que transcende nossas ações para nos integrar ao agir
cravado no calendário, mas daquele que diz “basta” diante dos reclames da riqueza. Quero que a existência não se resuma ao trabalho; despertar para a urgência de eternizar cada encontro. Recordo-me de ter lido um verso sucinto: “A vida é curta, e acaba...”. Não levaremos daqui outra coisa senão as nossas memórias, portanto, que elas sejam doces. Quero falar sobre Deus, sem esquecer o chão da fábrica, o quintal da casa, o pátio do colégio, a coxia do teatro, o corredor do hospital e a encosta da favela. De nada me adiantará “falar em tese”, se não conseguir encarar os Josés, as Tânias, os Rodrigos e as Kátias, que lutam bravamente para dar sentido à vida. Vejo a necessidade crescente de conversar com pessoas cujos nomes foram escritos não apenas no Livro da Vida, mas na palma da mão de Deus. Não quero que discursos substituam a força do abraço. Os amigos de Jó tropeçaram nos cadarços porque se imaginaram aptos para oferecer consolo com juízos horrorosos. Quero falar do céu sem desgrudarme do mundo e mostrar que a vida abundante prometida por Jesus não merece ser empurrada para depois da morte. Repetirei as palavras de Paulo: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou”. Vou enfatizar que a verdadeira religião consiste em cuidar do órfão e da viúva. E não esquecerei: toda a lei se resume em amar a Deus e ao próximo como a mim mesmo. Se conseguir teologar assim, com a ternura dos poetas e a paixão dos profetas, completarei a minha carreira, tendo guardado a fé. Soli Deo Gloria.
Quero falar sobre Deus, sem esquecer o chão da fábrica, o quintal da casa, o pátio do colégio, a coxia do teatro, o corredor do hospital de Deus. Preciso ser bondoso comigo mesmo, não deixando que falsas culpas detonem processos internos de intransigência com o próximo; ser paciente com as inadequações dos que claudicam e doar-me como São Francisco de Assis: “Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado; compreender que ser compreendido, amar que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se nasce para a vida eterna”. Quero pregar mais sobre o Deus comensal, que nos convida ao banquete como pretexto para a intimidade. Quero fomentar uma espiritualidade de cozinha e não dos academicismos gelados. Desejo aprender lealdade na camaradagem da conversa solta; e no riso farto experimentar a alegria do reino de Deus. Quero falar sobre os benefícios do sábado, não do sábado legalista,
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Ricardo Gondim é pastor da Assembleia de Deus Betesda no Brasil e mora em São Paulo. É autor de, entre outros, Eu Creio, mas Tenho Dúvidas. www.ricardogondim.com.br Julho-Agosto, 2010
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Valdir Steuernagel
R EDES COBRINDO
A PALAVRA DE DEUS
Chamados para expulsar demônios Jon Warren
Libertação e graça Uganda: com medo de serem raptadas, crianças buscam um lugar seguro para dormir
N
ormalmente, em contextos menos urbanos, a vida vai se acalmando no final do dia. Quando o sol desaparece e os últimos raios se confundem com as luzes fracas e escassas, as crianças ainda se arriscam a brincar por ali. E aos poucos vão chegando mais perto de casa, até que, quando vem a escuridão, procuram o aconchego e a proteção do lar. Porém, em um lugarejo a 20 quilômetros de Gulu, no norte de Uganda, parece que é o contrário. Quando o sol ainda está longe de se pôr, uma estranha agitação toma conta do lugar. As mães, nervosas, chamam pelos filhos e as próprias crianças carregam no olhar uma preocupação incomum para sua idade. Pegam
uma coisa aqui e outra ali e logo estão prontas para partir. É melhor ir logo, enquanto ainda é claro. E assim acontece a cada final de tarde. Umas são maiores — devem ter uns 14 anos. Outras, de tão pequenas, parecem ainda não ter 8. E lá vão elas, rumo a Gulu. Caminham rápido, juntas, sob estritas ordens de não se separarem até chegar ao lugar onde vão dormir. Na manhã seguinte, farão o caminho de volta. Por estranho que pareça, vão dormir longe de casa para dormir em segurança. A história é longa e trágica! Desde 1987 existe, no norte de Uganda, um grupo de rebeldes que se intitulam “Exército de Resistência do Senhor”. Iniciado como um movimento para derrubar o governo de Uganda, eles
se transformaram num grupo rebelde que já provocou o deslocamento de mais de 2 milhões de pessoas e assassinou mais de 12 mil. Alimentam suas fileiras raptando pessoas, o que pode incluir vilas inteiras. Porém, sua maior especialidade é o rapto de crianças — mais de 30 mil já foram raptadas, algumas com meros oito anos de idade. Elas são transformadas em guerreiras pela força, além de terem de carregar armamento nas constantes andanças do grupo; e as meninas são transformadas em escravas sexuais. Graça foi uma delas. Por vários miseráveis anos ela viveu com o grupo, forçada a roubar, lutar e matar. Foi dada como “noiva menina” a um dos homens daquele exército e, como tal, duramente tratada. Até que Julho-Agosto, 2010
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não aguentou mais. Um dia, numa batalha, apavorada demais para tentar fugir, ela fingiu-se de morta e foi achada por um soldado do exército de Uganda, encontrando assim a liberdade. Nos outros artigos desta série, fomos lembrados que Jesus nos chamou para expulsar os demônios. Ele próprio fazia isso, conduzindo as pessoas à liberdade. Mas a realidade demoníaca não se manifesta apenas de forma individual; é também coletiva e até estrutural. O “Exército de Resistência do Senhor” é um exemplo claro disso. É um exército que rapta, mata, oprime e explora. Acusado dos mais bárbaros crimes da humanidade, é um exército com marcas demoníacas que está a serviço da morte e produz todo tipo de desconstrução humana, espelhando de forma muito evidente a realidade do mal. O mal tem muitas outras expressões, algumas bem mais sutis. Porém, o padrão é sempre o mesmo: ele explora, oprime e mata. Só sabe fazer isso, mesmo que seja a cores e ao som de muita música e dança. No final do dia, porém, é sempre demoníaco. Vivemos num mundo marcado pelo mal e por sua presença nas mais diferentes expressões da vida humana. Ele se manifesta de forma pessoal e
coletiva, particular e institucional. Negá-lo é querer ser cego à realidade. O mal, no entanto, não tem a última palavra — seus dias estão contados. Jesus está presente entre nós e o seu Espírito nos capacita a anunciar a palavra libertadora e a vivenciar a realidade de um amor que caminha para a construção e para a afirmação da humanidade e da vida
O mal não tem a última palavra. Jesus está presente entre nós e o seu Espírito nos capacita a anunciar a palavra libertadora em comunidade. Jesus deixou isso muito claro em seu ministério e na mensagem que nos legou. Ele diz com muita firmeza e clareza que veio para que tenham vida, e a tenham plenamente (Jo 10.10). Sua chegada é sinal de esperança e sua presença é sinal de libertação. Onde há opressão, ele produz liberdade. A exploração é substituída pelo amor e a própria morte é vencida pela vida.
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Foi o que aconteceu com a jovem Graça. O dia da sua libertação chegou e ela foi encaminhada para o Centro de Repatriação para soldados infantis que a Visão Mundial mantém em Gulu. Lá ela encontrou amizades, apoio comunitário, aconselhamento e treinamento profissional. Mesmo ainda lutando com terríveis memórias, recentemente foi escolhida como “líder de turma”, responsável por instalar os recém-chegados ao Centro. “Agora me sinto segura”, ela diz com um sorriso. “Sinto que posso ser alguém na vida, quem sabe até me tornar presidente de Uganda.” A verdade é que, para ser alguém, Graça não precisa ser presidente do seu país. Ela já é alguém aos olhos de Deus e, por meio de representantes do seu povo, descobriu que é amada por Deus e foi chamada por ele para estender as mãos a outros que também precisam se encontrar com os braços do Pai — braços que amparam, consolam, purificam e impulsionam para o futuro. Foi assim com ela e conosco, que também dependemos da graça de Deus para viver. Graças a Deus pela Graça e por sua graça!
Valdir Steuernagel é pastor luterano e trabalha com a Visão Mundial Internacional e com o Centro Pastoral e Missão, em Curitiba, PR. É autor de, entre outros, Para Falar das Flores... e Outras Crônicas.
Tais Machado
d eixem
que elas mesmas falem
O
evangelho é mesmo poder de Deus, força transformadora para aqueles que creem e, por isso, experimentam novidade de vida. A partir da relação com Cristo nossas relações ganham um novo frescor. Algumas mudam o rumo, outras recebem novo significado, e a qualidade melhora. Com Jesus a linguagem da alma é resgatada e assim aprendemos a nos expressar mais e melhor. A profundidade é buscada e promovida; afinal, as perguntas de Jesus nos obrigam a sair da superficialidade, revelam coisas enterradas dentro de nós, trazem luz às nossas trevas. O evangelho de Cristo nos faz repensar como nos relacionamos, nos faz refletir sobre o cuidado com as palavras, com as pessoas, nos enche de compaixão, nos mobiliza em direção ao outro para servi-lo. Nossas práticas são revistas e transformadas. Uma sensibilidade crescente em relação ao próximo nos indica que Cristo está fazendo algo novo em nós. A partir daí novas responsabilidades nascem, o próximo passa a ser alvo de minha atenção, e compromissos brotam, trazendo-nos novas agendas. O pecado causou um estrago enorme em nós, contaminando também nossos relacionamentos. Devido a isso, a conversão a Cristo traz-nos mudanças radicais. Restaurações são necessárias. Entretanto, a queixa constante ainda é: “Se o ser humano é complexo, fulano é uma mutação piorada”. Contudo, se o pecado nos adoeceu a todos, quais os sinais de saúde que o evangelho promove? Quando falamos de relações e convivências difíceis, facilmente
nos vem à mente a comunidade dos coríntios. Ali há desrespeito, difamação, competição, malícia, arrogância, inveja, deslealdade, ganância e uma lista que cansaria qualquer um. Como conviver com gente assim? Onde encontrar ânimo? O apóstolo Paulo, a certa altura, escreve: “Falamos abertamente a vocês, coríntios, e lhes abrimos todo o nosso coração! Não lhes estamos limitando nosso afeto, mas vocês estão limitando o afeto que têm por nós. Numa justa compensação, falo como a meus filhos, abram também o coração para nós!” (2Co 6.11-13, NVI). A transformação do evangelho na vida de Paulo é impressionante; antes perseguidor, agora acolhedor. O apóstolo fala-lhes de tristezas, conversa a partir de sua própria pobreza, assumindo que de si mesmo nada tem a oferecer, e com exemplo e coragem convida os irmãos a abrirem o coração. Ele expressa seu afeto por aquelas pessoas com inteireza — “é de todo o coração”. Como é difícil em nossos dias sermos pessoas que se rendem de todo o coração. Nosso contexto é de fragmentação, e à medida que o medo aumenta os muros crescem. Parece que estamos cada vez mais isolados e confusos. Carentes, porém, temerosos; desejosos por profundidade, mas resistentes à intimidade. Para muitos, compromisso hoje em dia é sinônimo de aprisionamento, e manter distância é sempre assegurar-se de algum conforto e maior segurança. Como o evangelho nos muda apesar desse contexto doentio? A dica vem do próprio Jesus. É como se ele dissesse: “Ouça a Deus, você está debaixo de novo senhorio. Ouça a sua recomendação, escolha a vida, atente
Hajnalka Ardai
Um novo sabor relacional
para o que ele ensina. Ame o Senhor, o seu Deus, e o faça de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças. Assim você aprenderá a amar o próximo como a si mesmo” (Mc 12.30-31). Uma nova consciência surge, a alma é tocada, uma profundidade inédita nos toma e os encontros jamais são os mesmos. Como diz o famoso escritor argentino Ernesto Sabato, “toda vez que perdemos um encontro humano uma coisa se atrofiou em nós, ou se quebrou”. Agora, por causa de Cristo, saímos da toca, tocamos e somos tocados; novas manifestações da alma apuram o paladar de nossas relações. NA INTERNET Guia para estudo em grupo baseado neste artigo. Tais Machado é uma paulista que busca alternativas para nutrir relações apesar da loucura da metrópole. Aproveita da psicologia, atuando como psicóloga clínica, mas tem esperança de aprender a amar de todo o coração.
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Alderi Souza de Matos
Sofrendo pelo nome de Cristo:
perseguição no mundo contemporâneo
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Ward Meremans
ma realidade chocante, porém pouco divulgada no mundo ocidental, é o grande aumento da intolerância religiosa contra cristãos em muitas regiões do mundo. A experiência da perseguição não é novidade na história do cristianismo: o próprio Jesus foi objeto de ódio religioso e os seus seguidores desde o início sofreram ataques verbais e físicos dos seus adversários. Os três primeiros séculos da igreja ficaram conhecidos como “a era dos mártires”. Após a ascensão do imperador Constantino, a igreja experimentou maior segurança. Todavia, dentro de pouco tempo surgiu um novo e terrível fenômeno: a intolerância de cristãos contra cristãos. No fim do período antigo e na Idade Média, grupos como donatistas, priscilianos, monofisitas, cátaros, valdenses e hussitas sofreram repressão por sua condição de hereges. Durante a Reforma Protestante não foi diferente. Muitos adeptos do novo
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movimento experimentaram confisco de bens, exílio, tortura e execuções cruéis em diferentes partes da Europa. Após o advento do Iluminismo, surgiu uma atmosfera mais tolerante. Todavia, a partir do século 19, quando um intenso esforço missionário levou a fé cristã a todos os recantos do mundo, foram lançadas as sementes para novas e violentas manifestações de agressividade anticristã. No século 20, os fenômenos combinados do colonialismo, da pobreza e do fanatismo produziram em muitos países do terceiro mundo uma fortíssima hostilidade contra suas populações cristãs. E esse fenômeno só tem crescido nos dias atuais. A Missão Portas Abertas, uma organização que objetiva servir os cristãos perseguidos, promove todos os anos, logo depois de Pentecostes, o “domingo da igreja perseguida”. Com base em levantamentos cuidadosos, essa missão calcula que entre 80 e 120 milhões de cristãos são objeto de
intolerância. Portas Abertas mantém uma lista atualizada dos cinquenta países mais hostis ao cristianismo. A lista é encabeçada pela Coreia do Norte, o Irã e a Arábia Saudita. Outros países, embora não estejam entre os primeiros, nos últimos anos foram palco de alguns dos casos mais deploráveis de intolerância e perseguição aberta. Tais casos são descritos brevemente a seguir, como exemplos do que tem ocorrido em pleno século 21.
Índia
A Índia está em 26º lugar no ranking dos países com maior intolerância contra cristãos. É o segundo país mais populoso da terra, com 1,2 bilhão de habitantes, e apresenta grande diversidade de culturas, idiomas e religiões. Destas, as principais são o hinduísmo (80,5% da população), o islamismo (13,4%), o cristianismo (2,3%) e o siquismo (1,9%). Os cristãos se dividem em católicos, protestantes e independentes (pentecostais e outros). Ironicamente, trata-se de uma nação democrática em que existe liberdade de culto e de propaganda. Todavia, alguns estados possuem leis anticonversão e são omissos em reprimir manifestações de intolerância. Grande parte da perseguição é promovida por alas radicais de hindus e muçulmanos. Em dezembro de 2007, irrompeu uma terrível onda de violência no estado de Orissa, na costa leste da Índia. Oito meses depois, o assassinato de um líder hindu e a falsa acusação de que o delito teria sido cometido por cristãos levaram a um massacre sem precedentes. Muitos cristãos de Orissa e estados vizinhos foram alvo de incêndio criminoso, assalto, agressão física e até assassinato.
Dezoito mil ficaram feridos e 50 mil fugiram de suas casas, abrigando-se em campos de refugiados do governo. Dezenas de cristãos foram mortos, tendo sido destruídas cerca de 4.500 casas e 150 templos. O governo foi omisso em prender os criminosos. Muitos cristãos temem voltar para suas vilas e serem forçados a se converter ao hinduísmo. Há refugiados que não têm para onde voltar, pois suas antigas propriedades foram tomadas.
Sudão
A situação desse país é muito diferente, porque nele o governo é diretamente responsável pelo que acontece com os cristãos. Localizado no nordeste da África, o Sudão é o maior país do continente. Seu território se divide em duas regiões bem distintas: uma área desértica ao norte, onde predomina o islã (70% da população), e uma área de savanas e florestas tropicais ao sul, na qual são maioria cristãos e animistas. Desde 1983, o país vive uma guerra civil cujo estopim foi a introdução da sharia (lei islâmica) em âmbito nacional. Isso desagradou a população do sul, que se revoltou contra o norte e procura a separação.
Nunca houve tanta repressão, destruição e vítimas como nos dias atuais O governo, localizado em Cartum, no norte, e liderado pelo presidente Umar Hassan Ahmad al-Bashir, não aceita a separação, visto que as riquezas naturais do país, como o petróleo, se encontram na parte sul. O conflito entre as duas regiões já causou a morte de 1,5 milhão de pessoas. Os cristãos somam cerca de 8 milhões
(20% da população do Sudão), dos quais 5,5 milhões vivem no sul. Além de muito pobres, eles sofrem com as lutas entre os militares e os rebeldes. Os combatentes desalojam a população civil, roubam os rebanhos e incendeiam vilarejos. Apesar dos esforços das Nações Unidas, pouca ajuda chega aos refugiados famintos, pois o governo retém as remessas humanitárias como retaliação pelos ataques das forças rebeldes. Além disso, um movimento rebelde de Uganda também tem atacado vilas no sul do Sudão. Nessa situação caótica, os cristãos sofrem deslocamentos forçados, fome, destruição de casas e outras dificuldades. Espera-se para este ano ou o próximo um referendo sobre a independência da região, o que poderá aliviar a situação da população cristã.
Indonésia
Com 237 milhões de habitantes, esse imenso arquipélago do sudeste asiático abriga a maior população islâmica do mundo. Os muçulmanos somam 78% da população e os cristãos, 17%. A Constituição reconhece a liberdade religiosa e o governo geralmente a respeita. No entanto, a maioria islâmica exerce forte pressão para que sejam restringidas as atividades das igrejas. Além disso, os radicais muçulmanos incitam a violência contra os cristãos e pressionam para que a lei islâmica seja implementada no país. As pessoas de minorias religiosas, como os cristãos, sofrem forte discriminação, especialmente os convertidos vindos do islamismo. A Indonésia tem uma longa tradição de violência religiosa entre muçulmanos e cristãos. Entre 1999 e 2002, as regiões de Ambon e Poso se transformaram em campos de batalha que deixaram mais de mil mortos e deslocaram milhares de pessoas. Mais de duzentas igrejas foram incendiadas e destruídas. Em 2005, num caso especialmente
trágico, três meninas cristãs foram decapitadas e uma quarta gravemente ferida por um bando de extremistas,
As histórias de sofrimento, fé e superação servem de inspiração e alerta para muitos cristãos ao saírem de uma escola cristã em Poso. Nos últimos anos os cristãos têm sofrido mais pressão à medida que cresce a influência islâmica no país. Pastores têm sido assassinados e templos incendiados, enquanto as autoridades se veem impotentes para coibir a violência, principalmente em regiões afastadas.
Conclusão
As perseguições contra o cristianismo no passado empalidecem diante das ocorrências da atualidade. Nunca houve tanta repressão, destruição e vítimas como nos dias atuais. E o mais chocante de tudo é a insensibilidade e indiferença da mídia e dos governos ocidentais em relação ao problema. O temor de ferir suscetibilidades, o pragmatismo político e econômico e a diplomacia contaminada por influências ideológicas fazem com que vozes influentes se calem diante das violações dos direitos humanos dos cristãos em tantos países. No meio de tantas provações, a igreja persevera nesses lugares e as histórias de sofrimento, fé e superação servem de inspiração e alerta para muitos crentes de outras terras. Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil. asdm@mackenzie.com.br Julho-Agosto, 2010
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o casamento
E N TRE V IST A
Guilherme Nacif de Faria
é uma instituição de direito entre um
homem e uma mulher Líderes religiosos têm plena liberdade de falar e escrever sobre a questão gay, da mesma forma que a filosofia, a ética, a psicanálise e outras áreas podem se manifestar livremente sobre a questão.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil divulgou um documento que diz: “Embora respeitando profundamente as pessoas em questão, [a Igreja] não pode admitir ao seminário e às ordens sacras aqueles que praticam homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas ou apoiam a chamada cultura gay”. A igreja pode tomar tal medida?
É uma resposta difícil. A Igreja Católica é uma instituição privada e tem o direito de aceitar ou rejeitar quem achar melhor para as suas ordens, 62
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Uma instituição privada e confessional, comprometida com os valores morais do seu credo, pode não contratar ou dispensar funcionários homossexuais?
A base dessa resposta é a mesma da anterior. Se uma instituição é privada e atende a comunidade confessional, considero e defendo a licitude do ato. Outro exemplo: se um colégio é confessional e obriga os alunos a assistirem à aula da religião praticada, é também lícito. Se não quero que meu filho assista àquelas aulas, devo
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mudá-lo para um colégio público, não obrigar o colégio a ensinar todas as religiões. Essa é a postura adotada pelo direito norteamericano. No Brasil, ela não é muito aceita. Há uma confusão entre instituições particulares e instituições públicas e, muitas vezes, as particulares são obrigadas a se comportar como se fossem públicas — o que não é correto. No entanto, no caso de um hospital credenciado para atendimento ao público — pelo SUS, por exemplo —, a situação muda. Ele passa a ser um prestador de serviços públicos e deve ser comportar como instituição pública. ivo p
desde que não se trate de mera discriminação. É lícito que ela recuse, por exemplo, que uma mulher seja ordenada padre e que reze missas. Se alguém não concorda, que procure uma igreja mais de acordo com suas convicções. Isso pode ser aplicado também aos homoafetivos. Não se trataria de uma discriminação, pois toda igreja tem o direito de manter suas práticas e ideias e recusar quem professa ideias e comportamentos diversos daqueles que ela apregoa. Seria um contrassenso se não fosse dessa forma. É diferente de se recusar uma pessoa negra ou alguém com necessidades físicas especiais. Não estou concordando com a medida — apenas reconheço o direito de a Igreja Católica exercê-la.
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maior parte dos brasileiros não está suficientemente a par do Projeto de Lei 122/06, que define os crimes resultantes de descriminação de raça, cor, identidade sexual etc. Alguns simplificam demais e outros se apavoram demais. Para tentar corrigir essa desinformação, Ultimato recorre a um doutor em direito privado. Guilherme Nacif de Faria, 48 anos, casado, dois filhos, é professor de direito civil na Universidade Federal de Viçosa.
Os líderes religiosos têm liberdade de falar e escrever sobre a questão gay do ponto de vista bíblico?
Devemos ter sempre em mente que podemos julgar as pessoas pelo que elas fazem, julgar seus atos, mas não podemos julgá-las pelo que são. Isso seria discriminatório e inaceitável. Os líderes religiosos
têm plena liberdade de se manifestar livremente sobre a questão, da mesma forma que a filosofia, a ética, a psicanálise e outras áreas do conhecimento. O importante é que essa manifestação seja argumentativa, não discriminatória. O que não é possível é uma incitação à discriminação, à segregação ou à violência. Porém, a linha divisória é tênue e alguns abusos podem ser cometidos, tanto do lado de quem argumenta, quanto do lado de quem se sente discriminado. Não se pode impedir uma discussão baseada em argumentos por força de lei. Se assim fosse, o sol continuaria girando em torno da terra, tal como impôs Urbano VIII a Galileu.
necessária às ciências. Esses religiosos são, justamente, os guardiões da moral do grupo que representam e lideram e, se procurados, devem atuar no sentido de resguardar essa moral e aplicá-la conforme lhes convier. Se uma pessoa procura ajuda religiosa para suas questões sexuais, pressupomos que, sendo autônoma, ela está de acordo com a visão que aquela religião tem sobre o assunto e a ninguém cabe interferir nessa liberdade.
Segundo o Conselho Federal de Psicologia, a ajuda oferecida por um psicólogo a um paciente com problemas de identidade sexual não pode envolver a questão moral ou religiosa. Os ministros e conselheiros religiosos e os capelães que exercem seu ministério em hospitais, escolas, irmandades e quartéis estão livres para tratar a questão mais amplamente?
A diversidade sexual é lícita, ou seja, ela é legal, é jurídica. Cada pessoa vive conforme uma visão de mundo própria e a ninguém cabe recriminála por isso. Os princípios da República, escritos no artigo 1º da Constituição, garantem essa condição, já que protegem a dignidade da pessoa e o livre desenvolvimento de cada uma. Ela é protegida conforme as leis brasileiras vão, aos poucos, regulamentando as situações criadas pela homoafetividade, mas ainda não impede de forma eficaz a discriminação. A aceitação já é mais difícil. Não se trata de força da lei. O respeito pela condição do outro, a consideração de que o outro é um igual e deve ser considerado na sua diversidade, seja ele negro, asiático,
A indicação do CFP está correta. Não se pode admitir que convicções morais — que são minhas ou do meu grupo social — interfiram com a ciência da psicologia. A deontologia — o estudo dos deveres — dos profissionais de saúde se baseia na ética e no direito, que são (ou pretendem ser) universais, e não na moral, que é pessoal. Da mesma forma, um juiz decide um caso conforme as questões jurídicas envolvidas, nunca conforme a moral própria, que é dele, particular. Já o contrário é verdade para os profissionais religiosos. A deontologia destes trabalha com as questões morais próprias de cada grupo, e não com a ética universal
A lei me obriga a reconhecer a diversidade sexual como lícita, aceita e protegida?
judeu ou homoafetivo, é algo que eu aprendo na escola e se torna inerente a minha pessoa. Se isso não ocorre, a lei deve impor a tolerância para o apaziguamento social. Essa consideração do outro pode não ser inerente a mim (respeito), mas tenho que me comportar como se fosse (tolerância), porque uma ação discriminatória pode ser considerada um ato ilícito civil ou penal. Gostar ou não de uma pessoa é questão de foro íntimo (respeito), mas devemos ter em mente a tolerância, que é dever jurídico, é obrigatória por lei. Não fosse assim, a África do Sul, exemplo mundial de apaziguamento social, não teria derrubado o apartheid.
Toda igreja tem o direito de manter suas práticas e ideias e recusar quem professa ideias e comportamentos diversos daqueles que ela apregoa
O que é decisão de fundo?
Trata-se de um termo usado para diferenciar as soluções dadas pelo direito norte-americano e pelo direito francês à questão da homoafetividade. Diz respeito ao nível hierárquico da decisão. Uma decisão de fundo é uma decisão constitucional sobre a questão e responde à pergunta: é possível discriminar uma pessoa homoafetiva? Seu resultado é que, após tomada, não cabe mais às leis ordinárias ou decisões judiciais (questões de plano) contrariá-las. No Brasil, ela deverá ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal, como ocorreu nos Estados Unidos. O contrário ocorreu no direito francês, que não tem uma Julho-Agosto, 2010
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tradição constitucional forte como os Estados Unidos têm e como o Brasil está caminhando para ter. Lá, eles resolveram o problema com decisões de plano, ou seja, por meio de várias leis ordinárias que regulamentam caso a caso. O Brasil caminha por essa segunda via. Qual a diferença entre autonomia e heteronomia?
Esses termos e ideias pertencem ao filósofo Kant. Resumidamente, a autonomia seria a lei interna e subjetiva, aquela dada por mim e para mim conforme minha racionalidade. É uma lei moral e unilateral, uma vez que não dependo de outra pessoa, senão de mim mesmo, para compreendê-la e executá-la. Já a heteronomia é a lei que me é imposta por outrem. É jurídica e bilateral, já que esse outro
me obriga. Não parte da minha razão, mas da compreensão alheia ou comum e, assim, pode me ser estranha.
Há uma confusão entre instituições particulares e instituições públicas e, muitas vezes, as particulares são obrigadas a se comportar como se fossem públicas — o que não é correto A autonomia é respeitada e cada um pode viver conforme achar melhor, desde que sua prática não interfira nos direitos e na vida alheios ou em interesse público.
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O exército brasileiro pode vedar a prática homossexual entre os militares?
Esse é um tema mais afeito à ciência militar do que ao direito, e sob aquele ângulo deve ser respondido. A princípio pode — desde que tenha argumentos que não sejam discriminatórios. Acredito que não se duvide que um soldado homossexual pode ser tão bom soldado quanto um heterosssexual. Assim, a questão fica restrita a outras circunstâncias, como, por exemplo, a situação de confinamento, comum na vida militar, na qual todos estão impedidos de ter relações sexuais. Se um casal homossexual se forma, ele consegue burlar essa restrição a despeito dos outros. Isso pode levar a uma situação crítica para a disciplina da tropa. Outra questão é a da aceitação social. Um militar de patente ou
um diplomata não podem temer ter sua vida sexual exposta. Ambos seriam alvo fácil de chantagem. Sob esse aspecto, é preferível que a homossexualidade seja assumida, tornada pública. Os dicionários afirmavam que o casamento era “o relacionamento que une um homem e uma mulher”. Como ele é definido agora?
O casamento é e deverá continuar sendo uma instituição jurídica entre um homem e uma mulher. É um erro querer mudar isso. Não há que se falar em casamento homoafetivo, senão para uso de analogia. O que os homoafetivos querem é poder ter sua vida ordenada, formar um núcleo de afetividade — que é como o direito entende a família hoje — e ter direitos e deveres como qualquer pessoa. Para isso, tenho defendido que é melhor criar outro instituto
jurídico, como o direito francês criou o pacto civil de solidariedade. É uma lei que institui uma união
Um militar de patente ou um diplomata não podem temer ter sua vida sexual exposta. Ambos seriam alvo fácil de chantagem. É preferível que a homossexualidade seja assumida, tornada pública civil entre pessoas e na qual o sexo não é um ponto essencial. O importante é a vida em comum, a estabilidade e o reconhecimento dos efeitos jurídicos de tal união.
A lei da homofobia existe?
Sim. É o projeto de Lei PLC 122/06 e ainda está em votação do Congresso. Promove alterações na Lei 7716/89, que define os crimes resultantes da discriminação de raça e cor, e outras leis. A intenção é justa, mas tem sofrido muitas críticas. O projeto não foi bem pensado e é mal elaborado, além de permitir interpretações extensivas demais e muito além do razoável, o que não é bom. Um exemplo: o artigo 8º do PLC manda alterar o artigo 20 da Lei 7.716/89, que diz que pratica, induz ou incita a discriminação quem (e acrescenta o §5º) pratica qualquer ação constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica. A pena é de reclusão (regime fechado) de até três anos. Voltamos a Urbano VIII.
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Rubem Amorese
Atendimento, entendimento e presença
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Liz Valente
todas as tentativas de lançar pontes de comunhão, todos enho ouvido no rádio a nova campanha os mecanismos comunitários de alcançar segurança publicitária de um banco, apoiada em duas e significado têm por base a busca de entendimento e expressões-chave. A primeira é mais ou menos atendimento? E que encontramos plena saciedade dessa assim: “Para atender é preciso entender”, referindo-se fome e sede no onipresente “seio de Abraão”? à sua capacidade de compreender as necessidades dos Sim, há muito encontramos aquele que é completo; clientes. A segunda diz: “Atendimento requer presença”. que nos entende e atende misericordiosamente. Por dois Aqui, o banco valoriza sua imensa rede. Anteriormente, mil anos temos celebrado sua promessa de estar conosco ele se dizia “completo”; agora, tendo chegado a todos os municípios brasileiros, ele se diz presente. Apesar de minha insensibilidade às ofertas dessa peça publicitária, considerei interessante a forma como o banco afirma atender, oferecendo entendimento e presença. Certamente há estudos por trás da definição dos conceitos e valores que suportariam o reclame. Imagino que se tenha ido buscar no imaginário coletivo, no patrimônio simbólico de todos nós, aqueles anseios mais profundos da alma. Nossos mais secretos A tarefa, então, é provocar um processo inconsciente de associação anelos estão ligados a entre esses anseios e a imagem do alguma forma de volta banco. O efeito comportamental ao “colo de Deus” esperado é que, ao buscar atendimento nesse banco, em resposta à propaganda, o cliente estará “consumindo” entendimento e presença. todos os dias, até que, finalmente, voltemos para o Pai; Vou mais longe em minha mercadologia: acho que o de nos enviar seu Espírito consolador e revelador para banco oferece, em forma visível de serviços, o invisível estar presente onde estivermos e nas condições em que “colo da mamãe”. Sim, se há algo que pode ser definido nos encontrarmos; o Espírito que nos compreende idealmente como entendimento, atendimento e presença é o melhor que nós mesmos e que pode nos revelar os longínquo seio materno. Se você quiser ir além, pense, segredos do coração, como nenhuma agência bancária antropologicamente, no jardim do Éden. Estará pensando jamais fará. no mesmo sentimento de perda e no mesmo anelo que As comparações precisam parar por aí, pois, no lateja, silencioso e indefinível, em nossas veias. Anelo primeiro caso, por mais feliz que seja a oferta, trata-se este que agora encontra satisfação simbólica em uma de um artifício psicológico. Nunca um banco pretendeu agência bancária. ou pretenderá satisfazer os anseios da nossa alma. Já no Surpreso, compreendo a feliz estratégia de marketing. segundo caso, a oferta é real, literal e intencional quando Acho que vai dar certo. Mas noto também que diz: “Agrada-te do Senhor, e ele satisfará os desejos do originalidade não é o seu forte. Na verdade, eles cavaram teu coração” (Sl 37.4). tão fundo que encontraram as fundações do cristianismo. Ou não sabemos que nossos mais secretos anelos estão Rubem Amorese é consultor legislativo no Senado Federal e presbítero na Igreja ligados a alguma forma de volta ao “colo de Deus” Presbiteriana do Planalto, em Brasília. É autor de, entre outros, Louvor, Adoração e Liturgia e Fábrica de Missionários — nem leigos, nem santos. ruben@amorese.com.br (Sl 131.2)? Ou não será useiro e vezeiro entre nós que
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