Arco nº 2

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ARCO

JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURAL • Ano 1 • Nº 2 • Out/Dez 2013 ISSN: 2318-0757

Natureza x Combustíveis UFSM em busca de energia mais limpa e renovável para mover o mundo



CARTA

DOS EDITORES

Em tempos de digitalização da cultura, na contramão dos gadgets e dos dispositivos eletrônicos em geral, ainda percebemos a importância de meios de comunicação agora ditos tradicionais, como os veículos impressos. Por isso, em plena “era digital”, investimos na criação de uma revista para a UFSM. Desde que iniciamos a concepção da Arco, estamos ininterruptamente pensando no nosso público leitor: o assunto vai interessá-lo? O texto ficou claro? O infográfico vai facilitar o entendimento do tema? E, além disso, a nossa desafiante tarefa tem sido trabalhar em um produto impresso que fique tão interessante quanto os atrativos tecnológicos disponíveis no mercado. Nessa perspectiva, almejamos que a Arco seja usada, atrelada ao material didático das salas de aula, em escolas e universidades brasileiras. O desafio fica por conta da abrangência desse público, que engloba ensino fundamental, médio e superior, e da ambição geográfica, que busca atingir as regiões próximas e as longínquas do nosso país. Já em nossa primeira edição, recebemos um convite para que a Arco acompanhasse as aulas de uma escola em Carrancas, Minas Gerais, uma região bem distante da nossa sede. Sim, para a nossa equipe, tratou-se de um convite. Fazer-se presente, através da publicação, enquanto crianças vasculhavam gráficos, ilustrações e textos, ávidas por respostas, informações e conhecimento, é uma honra e um reconhecimento da dedicação que destinamos à revista.

Perceber que estamos conseguindo ultrapassar os limites do campus nos deu energia extra para preparar esta segunda edição. O slogan da campanha de lançamento, “Revista Arco. Aproxima o saber do seu cotidiano”, revela aonde queremos chegar e mostra o que nos guia na seleção dos temas que farão parte da publicação. Neste segundo número, o Dossiê coloca em evidência pesquisas e projetos desenvolvidos na UFSM que têm seu foco na produção de combustíveis. Esses estudos também revelam facetas de preocupação social e ambiental, como, por exemplo, as pesquisas desenvolvidas pelo Cepetro, que buscam formas para facilitar a diminuição do enxofre do óleo diesel, e que resultarão, consequentemente, em menos poluição do ar. Estamos, aos poucos, aprendendo a melhor forma de trabalhar na produção da Arco, e a ajuda dos nossos leitores vai ser fundamental nessa trajetória. Estreamos, nesta edição, a seção Carta dos Leitores, que pensamos ser um espaço importante de interlocução com nosso público. *** Investimos na revista impressa, mas não descuidamos do mundo virtual. A tiragem da Arco ainda é modesta, mil exemplares, por isso disponibilizamos em ufsm.br/arco a revista on-line, para quem não tiver acesso ao exemplar em papel. Além disso, e pensando na interatividade proporcionada pelas redes sociais, criamos um perfil no Facebook para a publicação: facebook.com/revistaarco. Lucas Missau e Luciane Treulieb Editores da revista Arco

carta dos editores

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SUMÁRIO 10

PáG.

COMO SURGIU? A história das bibliotecas desde os registros feitos em argila até os modernos e-books

PáG.

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CURIOSIDADES A origem do termo “lagartear” e outras questões interessantes

PáG.

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NOSSAS INVENÇÕES União de conhecimentos impulsiona pequena indústria moveleira

PáG.

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SOCIEDADE

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PáG.

DIÁRIO DE CAMPO Os índios Macuxis e a Roraima dos anos 80 reencontrados nos diários de pesquisa de Neusa Carson

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PáG.

Projetos focados em combustíveis aliam a inovação científica com a busca de soluções para problemas sociais e ambientais

PáG.

PáG.

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CEPETRO

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BIOCOMBUSTÍVEIS

Petrobras e UFSM: unidos para melhorar o óleo diesel

Energia limpa e renovável também pode ter função social

PáG.

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SOLUÇÃO SUSTENTÁVEL De bebida apreendida a combustível: uma parceria que deu certo

Quilombolas da região de Santa Maria são beneficiados pelo Programa Pilão

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PáG.

SAÚDE A difícil decisão de doar os órgãos de um ente querido quando o luto é recente


ARCO a Revista de Jornalismo Científico e Cultural da Universidade Federal de Santa Maria Universidade Federal de Santa Maria Reitor Felipe Martins Müller Vice-Reitor Dalvan José Reinert

Conselho Editorial

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PáG.

PáG.

MEMÓRIA

ENSAIO

A trajetória do cantor chileno Victor Jara contada em livro-reportagem

Berço da Quarta Colônia Italiana, Silveira Martins esbanja beleza e tranquilidade

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PáG.

PáG.

CIDADANIA

RECORDAÇÕES

Um tijolo por vez: projeto realiza sonhos capacitando mulheres para a construção civil

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Em quadrinhos, Augusto Paim relembra viagens proporcionadas pela Universidade

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PáG.

PáG.

TECNOLOGIA

ESCRITOS

Os agricultores de Estrela já não sabem viver sem internet

O menino que andava de bicicleta e gargalhava contra o vento

Coordenador de Iniciação Científica da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Alessandro Dal’Col Lúcio Professora do Departamento de Letras Clássicas e Linguística Amanda Eloina Scherer Coordenador da Educação Básica, Técnica e Tecnológica Antônio Carlos Mortari Professor do Departamento de Fisiologia e Farmacologia Bernardo Baldisserotto Professor do Departamento de Ciências de Comunicação (Cesnors) Cássio dos Santos Tomaim Vice-Reitor Dalvan José Reinert Coordenadora da Coordenadoria de Comunicação Social Elisângela Carlosso Machado Mortari Professor do Departamento de Zootecnia Ivan Luiz Brondani Professor do Departamento de Química José Neri Gottfried Paniz Professor do Departamento de Métodos e Técnicas Desportivas Marco Aurélio de Figueiredo Acosta Professora do Departamento de Metodologia de Ensino Marilda Oliveira de Oliveira Professora do Departamento Multidisciplinar (Udessm) Mônica Elisa Dias Pons Pró-Reitor de Graduação Orlando Fonseca Coordenador de Eventos e Difusão Cultural da Pró-Reitoria de Extensão Oscar Daniel Morales Mello Professor do Departamento de Eletrônica e Computação Raul Cerett a Nunes Diretor do Núcleo de Inovação e Transferência em Tecnologia Sérgio Luiz Jahn Professor do Departamento de História Vitor Otávio Fernandes Biasoli

Expediente Editora-chefe Luciane Treulieb Editor Lucas Dürr Missau Projeto gráfico, diagramação e ilustrações Projetar Empresa Júnior de Desenho Industrial: Augusto Zambonato, Ana Elise Gonçalves, Carlos Augusto Hisserich, Mariana Michelotti Bolzan Fotografias Pedro Henrique da Silveira Porto Repórteres Camila Marchesan Cargnelutti, Daniela Pin Menegazzo, Natascha Rosa de Carvalho e Nicholas Pereira Lyra Ruviaro (acadêmicos de Jornalismo) Colaboradores Augusto Machado Paim, Cristian Poletti Mossi, Ernani de Lima Nascimento, Neila Richards, Rafael Happke, Sonia Zanin Cechin Revisão Alcione Manzoni Bidinoto

Revista Arco Telefone: (55) 3220 9659 e-mail: arco@ufsm.br ufsm.br/arco UFSM - Av. Roraima nº 1000 Cidade Universitária Bairro Camobi, Prédio 67, sala 1211 CEP: 98400-000 – Santa Maria – RS – Brasil Distribuição: Gratuita Impressão: Imprensa Universitária Tiragem: Mil exemplares


Foto: Pedro Porto

Lançada oficialmente no dia 22 de julho, a revista Arco atraiu professores, funcionários e alunos curiosos para conhecerem a nova publicação da UFSM

carta do

leitor

Este é o espaço reservado para os nossos leitores. Ficou com alguma dúvida? Percebeu algum erro? Quer fazer um comentário ou um elogio? Escreva para a gente e colabore para que a Arco fique cada vez mais interessante e útil!

CORREDORES Primeiramente, gostaria de parabenizá-los pelo sucesso da revista, que tenho acompanhado pelos comentários nos corredores da UFSM. Em breve vou ir atrás de um exemplar para mim! Henrique dos Santos Felipetto, aluno do curso de Tecnologia em Geoprocessamento do Colégio Politécnico da UFSM

ERRAMOS Ficou muito boa a revista, só tenho uma ressalva: na reportagem sobre as plantas medicinais está mencionado que nosso trabalho com antiparasitários tem a ver com doença de Chagas, malária, etc... Na verdade é com antiparasitários para peixes.

Fale com a gente

Bernardo Baldisserotto, professor do Departamento de Fisiologia e Farmacologia

Telefone: (55) 3220 9659 E-mail: arco@ufsm.br www.ufsm.br/arco

ASSINATURA

UFSM - Av. Roraima nº 1000,

Olá. Gostaria de saber quando vai sair a próxima edição da revista Arco e como faço para me inscrever.

Cidade Universitária, Bairro Camobi

Eloísa Tolotti

www.facebook.com/RevistaArco

Prédio 67, sala 1211 CEP: 98400-000 – Santa Maria, RS, Brasil

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carta do leitor

Resposta: Eloísa, a revista é trimestral, e não temos uma forma de “inscrição” ou “assinatura”. Divulgaremos sempre no site da UFSM e no facebook da Arco quando o próximo número estará disponível e você poderá pegá-lo nas bibliotecas da Universidade.


Você sabia? É verdade que...? dE onde vem o termo ‘lagartear’? Expor-se ao sol e permanecer sem fazer nada por um bom tempo poderia ser uma boa descrição para o ato de “lagartear”. Mas a explicação que vem da ciência é um pouco mais complexa. Ela se deve ao fato de os lagartos serem animais ectotérmicos — eles não possuem um mecanismo interno que regula a temperatura de seus corpos. É através da exposição ao sol que os lagartos se aquecem e têm o metabolismo acelerado, o que permite que eles desenvolvam suas atividades cotidianas. Dessa maneira, é dando uma “lagarteada” que animais como lagartos, jacarés e cobras conseguem ir atrás de alimentos e em busca de parceiros para reprodução.

A cada edição da revista Arco, a seção Curiosidades responderá àquelas questões que você sempre quis saber se eram mitos ou verdades e contará histórias singulares sobre a UFSM

Por que o arco-íris é um arco? Na verdade, o arco-íris é um círculo! O nosso ponto de vista, a partir da superfície da Terra, impede-nos de ver o círculo completo e só é possível que vejamos um semicírculo, ou seja, um arco. Por outro lado, se estivermos afastados da superfície, como, por exemplo, quando viajamos de avião, será possível ver o círculo completo e não um “arco”-íris. As seguintes condições têm de estar presentes ao mesmo tempo para vermos um arco-íris: haver gotas de chuva suspensas no ar e o sol estar nas costas (atrás) de quem vê essas gotas. A luz solar, que ilumina as gotas de chuva no ar, é refletida nelas e atinge nossos olhos na forma de um arco (ou círculo) que forma um ângulo constante de 42 graus entre o feixe de luz solar e os nossos olhos. Este ângulo de 42 graus se dá por causa da geometria circular da maioria das gotas de chuva, e é o fator que explica o porquê do formato de arco (ou círculo): outro ângulo qualquer, diferente de 42 graus em relação aos nossos olhos, não gera o fenômeno; então este está “preso” a um ângulo. Duas pessoas nunca verão exatamente o mesmo arco-íris; este não é um arco sólido fixo, mas um fenômeno ótico que “depende” da posição de quem vê. Se a pessoa se mover de carro, verá o arco se mover junto.

é verdade que comer maçã gera sensação de mais fome? Na verdade, a maçã possui ácidos (málico, tartárico, ascórbico) que estimulam a liberação do suco gástrico e fazem com que a digestão seja mais rápida. Consequentemente, com o estômago vazio, vem a sensação de fome. Estes mesmo ácidos são responsáveis pela queda do pH da boca, fazendo com que os micro-organismos da placa bacteriana demorem mais para se multiplicar. Entre os benefícios da fruta, também podemos destacar que a maçã é rica em pectina, uma fibra solúvel que é importante para a flora intestinal e controle do colesterol; e possui ácido fosfórico, que é importante para o funcionamento cerebral e age sobre o trato vocal, favorecendo a voz e conferindo melhor ressonância para quem fala. Já se o problema for a saciedade, é aconselhável ingerir a maçã com outra fruta ou mesmo com outras fontes de fibras, como a linhaça e a chia. Mande a sua dúvida ou conte a sua história curiosa relativa à UFSM para nós: arco@ufsm.br Colaboraram os professores Ernani de Lima Nascimento, Neila Richards, Sonia Zanin Cechin

curiosidades

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Simplificando

Foto: Pedro Porto

processos Tecnologia dinamiza o modo de produção de uma pequena indústria moveleira local Francisco mostra a máquina que mudou a rotina produtiva da Móveis Back

Criar um processo padrão para produzir móveis em que cada Numérico Computadorizado (CNC), que são máquinas automátidetalhe precisasse ser pensado a partir do espaço disponível cas, nas quais escrevemos, em um programa, quais movimentos elas devem realizar. Ou seja, aqui é feita a parte de software, de e do gosto do comprador. Essa sempre foi uma das principais preocupações de Francisco Back, dono da Móveis Back. Porém, programação. A Tecnopampa já fazia máquinas programáveis, só por conta das dificuldades financeiras e técnicas, o procedimento que para corte de metais, não de madeiras. Então eles fizeram utilizado na empresa sofria limitações, especialmente de tempo. adaptações até chegar a um modelo ideal. Tudo isso foi feito a partir das especificações do Francisco. A mudança começou quando um de seus clientes apresentou-lhe Para o proprietário da Móveis Back, outra grande vantagem novas tecnologias. A partir desse momento, tornou-se possível a parceria que trazida pela parceria é a mudança de mentalidade na forma mudou a rotina da empresa. Unindo conhecimentos, o professor como a fábrica é pensada. Essa modificação ocorreu a partir das do curso de Engenharia Mecânica da UFSM Alexandre Dias, a possibilidades que o conhecimento da tecnologia CNC gerou: indústria de máquinas Tecnopampa e a Móveis Back adaptaram — Antes nós tínhamos que pegar a mesma peça várias vezes uma tecnologia já existente e conseguiram simplificar a forma e colocar na máquina para realizar o processo. Tudo isso para como eram produzidos os móveis na fábrica. O professor Alexan- poder aproveitar a regulagem. Então a gente tinha que fazer uma dre explica como isso ocorreu: operação na peça e depois, quando a máquina era reposicionada, — A gente trabalha, aqui no NAFA [Núcleo de Automação e era feita outra. Tudo era muito “burocrático”. Processos de Fabricação da UFSM], com máquinas de Comando A parceria já dura cinco anos, tempo em que tanto a máquina quanto o software têm sido modificados e aperfeiçoados. Isso acontece à medida que são observadas novas necessidades ou que algum problema é detectado. Para Francisco, as mudanças não teriam sido possíveis sem o trabalho desenvolvido ainda antes da entrada da tecnologia de Comando Numérico Computadorizado: — Através da orientação do professor Alexandre, foi possível compreender o que essa nova tecnologia significaria e quais modificações seriam possíveis com ela. Ele plantava condições para que a gente sonhasse. Atualmente, a empresa de Francisco já possui outras duas máquinas semelhantes à produzida pela parceria com a UFSM e a Tecnopampa, porém importadas da Itália. Apesar de o novo maquinário proporcionar maior número de operações e rapidez, a máquina adaptada segue fazendo parte da rotina de produção e possui algumas vantagens com relação às de tecnologia italiana, como a facilidade na troca de peças e na realização de trabalhos artesanais.a Repórter: Daniela Pin Menegazzo Entenda como a adoção da Tecnologia de Comando Numérico Computadorizado mudou a rotina de produção dos móveis

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nossas invenções


plantar, escrever,

desenvolver

Mãos negras firmes seguram um longo pedaço de madeira. Suor na testa e força nos braços, o milho logo ali embaixo, esperando ser moído. Era neste utensílio, feito de tronco de árvore, que as escravas esmagavam os mais diversos alimentos: pilão, testemunha da força das mulheres negras. Não por acaso esse também é o nome de um importante projeto de extensão da UFSM, o Programa Pilão — Presença negra no campo, coordenado pela professora Beatriz Rigon. Idealizado por integrantes do Grupo de Trabalho Cidadania em Ação, o projeto iniciou em 2005, com uma proposta bem diferente da atual. Tudo começou com visitas às comunidades quilombolas próximas a Santa Maria. Idealizadora e coordenadora executiva do projeto, Vania Paulon conta que eram inúmeros os problemas existentes nas comunidades, desde a ausência de infraestrutura básica nas casas até a falta de alimentos. O primeiro projeto do Pilão foram as “Ações contra a fome”, em que cestas básicas foram doadas à comunidade quilombola Arnesto Penna, localizada em Palma, 8º distrito de Santa Maria. Logo foi percebido, no entanto, que aquela comunidade, como outras que viriam a ser atendidas, não precisava apenas de comida. “Não adiantava a gente ir lá e doar uma cesta básica que no final do mês acabava; eles precisavam conseguir se manter sozinhos. Algo mais precisava ser feito”, argumenta Vania.

Foto: Pedro Porto

Projeto realiza diversas atividades junto a comunidades quilombolas da região

Projeto de alfabetização em Palma deve durar até o final do ano

O Pilão em ação Algo mais o quê? Oficinas de crochê, de artesanato? Não, eles queriam mexer na terra. “Eles estavam acostumados a lidar com a vida no campo, é isso que eles queriam fazer: plantar, colher...”, analisa a idealizadora do projeto. Diferentes oficinas começaram, então, a ser realizadas junto a cursos da UFSM nas comunidades de Palma, Restinga Seca e Formigueiro. Em parceria com o Colégio Politécnico, por exemplo, foram desenvolvidas oficinas de fruticultura, hortigranjeiros, e piscicultura. Logo vieram os resultados, para mostrar que o projeto estava no caminho certo: a senhora que, pela primeira vez, pôde pagar sua conta na farmácia com o dinheiro adquirido com a venda das ervilhas que ela mesma plantou, ou o jovem que criou os pintinhos que lhe foram dados até virarem galinhas poedeiras e, hoje, sustenta-se com a venda dos ovos. O Pilão também busca melhorar a educação dos quilombolas. O mais novo projeto é o de alfabetização de adultos em Palma,

coordenado pela professora do curso de Pedagogia Débora de Leão. Em um pequeno espaço construído pelo projeto, Débora e a pedagoga Jaqueline Brondani ensinam as letras, juntam as sílabas e formam palavras. Na plateia, os alunos, com lápis nas mãos e olhos curiosos, atentam para cada volta do “c”, cada traço do “e”. E no final sai, com a dificuldade prazerosa de quem está aprendendo algo novo: ce-bo-la. Mais uma palavra no caderno dos alunos. Vilmar Penna não tem dúvida sobre o que vai fazer quando aprender a ler.“Assim que eu souber mais um pouco, eu vou tirar a carteira de motorista”, comemora o senhor de 61 anos. Consultas odontológicas e perfurações de poços artesianos também fazem parte da história do Pilão. Mais do que um projeto assistencial, o Programa Pilão é um canalizador de recursos. Através de atividades voltadas à saúde, educação ou capacitação, o foco vai ser sempre o mesmo: a qualidade de vida dos quilombolas.a Repórter: Natascha Carvalho

sociedade

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TEMPLOS DO

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SABER

Desde os primórdios da humanidade, a preocupação em armazenar o conhecimento escrito em espaços físicos esteve presente nos diferentes povos. Assim surgiram as bibliotecas. a Repórter: Nicholas Lyra

As pioneiras

A mais antiga

A biblioteca de Alexandria

A biblioteca de Pérgamo

Os primeiros registros de armazenamento de literatura remontam à Mesopotâmia, mais de dois milênios antes de Cristo. As bibliotecas da época continham livros gravados em argila que tratavam de temas diversos, desde preces até poesias, passando inclusive por registros contábeis.

A biblioteca considerada mais antiga do mundo data do século VII a.C. Na antiga cidade de Nínive, à época capital do império Assírio e hoje Mossul, no Iraque, o rei Assurbanipal II organizou uma biblioteca que chegou a armazenar 25 mil placas. Os arquivos continham profecias, encantamentos, hinos sagrados e peças literárias escritas nas diversas línguas da Mesopotâmia, entre elas o assírio, o sumério, o aramaico e o acádio.

Alexandria, fundada em 331 a.C. pelo conquistador Alexandre, o Grande, abrigou a mais famosa biblioteca da História. Com a morte do idealizador da cidade, o general Soter deu sequência aos planos de Alexandre e concebeu a construção da biblioteca. As bibliotecas da época, no Egito, armazenavam seu conteúdo no formato de rolos de papiros e pergaminhos. Acredita-se que a biblioteca de Alexandria tenha armazenado cerca de 700 mil documentos.

Foi na Ásia Menor que surgiu a segunda biblioteca mais importante da Antiguidade, atrás apenas da de Alexandria. Localizada onde hoje é a Turquia, a biblioteca de Pérgamo teria abrigado mais de 200 mil volumes. É creditada à cidade de Pérgamo a origem do uso do pergaminho em detrimento do papiro egípcio.

como surgiu


A Biblioteca da UFSM A Biblioteca Central da UFSM está em atividade desde a fundação da Universidade, no ano de 1960. Até o ano de 1971, funcionou no prédio da Antiga Reitoria, no centro da cidade. Em 1972, com a construção do prédio próprio no campus, a biblioteca migrou. Atualmente, conta com mais de 288 mil itens, entre livros, monografias e teses, e passa por um processo de reforma e ampliação.

O surgimento das bibliotecas romanas

A consolidação no Oriente

Idade Média e Renascimento

Bibliotecas digitais

Até o tempo do imperador Júlio César, os livros eram bens privados. Após a morte de César, foi criada a primeira biblioteca pública de Roma. Depois, o imperador Augusto fez questão de superar seu antecessor em tudo, inclusive nas bibliotecas. Dentre os grandes edifícios da época, está a Biblioteca Palatina de Augusto, uma das maiores do período, atrás apenas da do imperador Trajano.

No período que se sucedeu entre a morte de Alexandre e a ascensão do Islã, foi na Síria que esteve abrigada a herança cultural grega. Posteriormente, no século VII, quando os exércitos de Maomé conquistaram a Pérsia, iniciou-se um período de construção das bibliotecas muçulmanas, que duraria mil anos.

A Idade Média, marcada pelo detrimento da ciência em nome da religião, foi o período mais complicado para as bibliotecas. Nessa época, três tipos se destacavam: as monacais, em mosteiros; as particulares; e as universitárias, na parte final do período. Já no Renascimento, as bibliotecas passam a exercer o papel que possuem até hoje. Com a possibilidade de impressão, e não mais a utilização manuscrita, os livros se proliferam rapidamente, e o armazenamento torna-se mais fácil, com menor desgaste dos materiais.

O século XXI marca a integração da biblioteca física com a virtual. O melhor aproveitamento do espaço e os diferentes meios tecnológicos disponíveis fazem com que cada vez mais o público se aproxime dessa realidade. O surgimento dos e-books (como são chamados os livros virtuais) são uma prova disso.

como surgiu

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Vozes DENTRO DE UMA caixa azul A língua, a cultura e a história dos índios macuxis da década de 80 reencontradas através dos diários de campo da pesquisadora Neusa Carson Uma sala de professores atravancada de caixas. Um digitalizá-lo e disponibilizá-lo o mais breve possível. mapa envelhecido da França colado na parede à Dentre os materiais doados, estão artigos, trabalhos, direita de quem entra. Duas escrivaninhas, uma certificados de participação em eventos e corresponem frente à outra, uma mesa redonda entre elas e dências trocadas com pesquisadores e universidades várias cadeiras ao seu redor. Uma estante com livros nacionais e estrangeiras. No entanto, não existem e caixas azuis de plástico que chamam a atenção registros em fotografias dos macuxis ou da pesquiem um espaço onde cada centímetro é disputado. sadora em seu trabalho de campo – à época, os A inscrição na porta de entrada identifica o lugar: indígenas temiam que a máquina fotográfica pudesse Fundo Documental Neusa Carson (FDNC). “tirar a alma” dos retratados. Entre as raridades do São mais de 500 documentos compondo o arqui- acervo, estão os diários de campo da pesquisa de vo da pesquisadora que dá nome ao Fundo, perten- doutorado de Neusa, Phonology and Morphosyntax cente ao Laboratório Corpus. Guardados em caixas of Macuxi (Caribe). Natural de Santa Maria, Neusa foi professora do azuis de plástico, estão provisoriamente empilhados na estante da sala da coordenadora executiva curso de Letras da Universidade Federal de Santa do projeto, Simone de Oliveira, pós-doutoranda em Maria nas décadas de 60, 70 e 80. Em sua tese Letras da UFSM. A idealização de um Fundo Docu- de doutorado, realizou um estudo de descrição do mental para guardar os arquivos da pesquisadora Macuxi, língua indígena do então Território Federal de Roraima. Para tanto, embrenhou-se na Roraima Neusa Carson partiu da professora do curso de Letras da UFSM e coordenadora geral do projeto, Amanda dos anos 80 e passou dias convivendo com as tribos Eloina Scherer. indígenas da região. Seu objetivo era reunir dados sobre uma língua pouquíssimo estudada, visando à O acervo, doado por Hugo Carson – filho da professora –, atualmente está em fase de organização. preservação da cultura e da história de seus falantes. A intenção, de acordo com Simone de Oliveira, é Em seu diário, Neusa fez anotações atentas sobre a língua – fonologia, entonação, derivação – e sobre a cultura Macuxi. Através dos apontamentos feitos pela pesquisadora, é possível visualizar diversos aspectos das tribos por onde passou. Além da descrição da língua Macuxi, ela escreveu sobre suas moradias, sua alimentação, sua rotina de trabalho e sobre a divisão de tarefas entre homens e mulheres. Explicou também alguns de seus rituais, lendas, celebrações e histórias. Seus ouvidos e olhos vigilantes perceberam ainda algo não tão explícito quanto os sons e o vocabulário de uma língua: o processo de desagregação cultural que os indígenas da região estavam sofrendo após o contato com os homens brancos. Mais que um registro pessoal para suas pesquisas científicas, os diários de Neusa guardam as histórias de muitas pessoas que cruzaram o seu caminho. E, nas entrelinhas, também ficaram rastros da sua própria trajetória.

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diário de campo


TRECHOS DO DIÁRIO DE CAMPO – NEUSA CARSON (BRASÍLIA, 15 A 18/04/84) Alimentação, moradia e cultura Suas malocas consistem de casas de quatro cantos, modernamente. Tradicionalmente, elas eram feitas circulares, com uma técnica especial. O material usado mais comumente é adobe (taipa) para as paredes, com cobertura de palha (buriti). Os macuxis vivem em vilas circulares em grupos de até 300 pessoas (aproximadamente 50 famílias). *** Eles ainda caçam e pescam sendo esta a sua ocupação primária e uma fonte de nutrição para todos. As mulheres, tradicionalmente ocupam-se das lavouras ou roças de mandioca, feijão, milho e outras plantas deste tipo. O pão é feito por elas, de mandioca, depois de bem ralada. A mandioca, depois de fermentada de modo especial é também a base de dois tipos de bebida: “cassiri” e “pajuarú”. *** O grupo vive entre 3 e 4 graus norte e 60 a 61 graus oeste. Seu território compõe-se principalmente de savana, o que quer dizer vegetação baixa e esparsa e palmeiras de buriti nas margens dos riachos. Os macuxi localizam-se na bacia do Rio Branco, especialmente seus afluentes Tacutu e Uraricuera. Ainda

encontram-se caça, pesca e frutos em abundância nesta área. A área compreende 213.000 km² e aproximadamente 35.000 índios vivem aí. A área cultural é a Norte-Amazônica. *** Antes de sair o sol, os familiares se reúnem para uma refeição. Esta consistia, na ocasião, de uma sopa e pão de beju feito de farinha de mandioca. Então a mulher segue para sua roça de mandioca; é um dia de muito sol, de verão. Lá, ela cuidadosamente corta os troncos superiores dos vários pés de mandioca, depois os arranca do solo ressequido, o que faz sua tarefa mais difícil. *** Suas canções e rituais tradicionais estão desaparecendo gradualmente. Suas histórias geralmente apresentam hábitos humanos personificados através de animais.

Mitos e rituais Para os rapazes se tornarem homens fortes e bons caçadores e pescadores eles devem passar por certos rituais que são dirigidos por um parente mais velho. Para ser bom pescador, um rapaz recebe pequenos cortes nas pernas e braços com espinho de arraia ou osso de aguti. Pode ser esfregada pimenta vermelha, ardida, nos cortes. E também um amendoin especial, sagrado é assado e esmagado em pó com uma pequena batatinha (alucinogênica) de uma planta, esmagada com outras raízes; todas são misturadas e passadas nas pernas do jovem caçador ao mesmo tempo que o pajé faz algumas preces, para que o homem tenha pernas ágeis e rápidas. *** Após a primeira menarca (ou período menstrual) – eesem sá – quando a jovem é colocada em uma rede bem alta na casa, ela é ensinada sobre os costumes do seu povo. Ela aprende sobre o casamento (wémirima ou aniáyá), as relações sexuais (èskú), o nascimento (eesémpó). Ela não pode andar no

sol quente logo após sua 1ª menstruação. Suas mãos e braços são colocados em um ninho de formigas pequenas, ardedeiras, para que as bebidas que ela prepara para seu marido sejam doces. *** Em outros tempos costuma haver urnas funerárias onde tanto o homem quanto a mulher eram enterrados em uma posição fetal. Os objetos pessoais do morto, tais como colares, cestas, arco e flechas eram enterrados com o morto. A casa era destruída e reconstituída em uma nova posição ou em um estilo diferente. O nome do falecido não era dado a outra pessoa por vários anos [...] Hoje em dia o índio é enterrado em sua própria rede e o seu cemitério não é muito longe de sua maloca.

diário de campo

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Canções, danças e tradições Os indígenas costumavam ter celebrações festivais na época da troca de artefatos entre os grupos, com danças, cantos e comidas típicas. Os yanomani, grupo ainda dedicado à caça com arco e flecha e ainda dados a encontros menos amistosos com grupos, trocavam seus excelentes arcos e flechas pelas excelentes redes de algodão (as deles são de buriti) dos macuxi; ambos os grupos sempre prezaram muito as melhores canoas da região que é feitio dos maiongongues. *** Enquanto trabalha, a vovó canta e conta histórias. As canções, cantadas pelas mulheres no seu trabalho falam sobre o pão que elas fazem para esperar a caça que o irmão ou o namorado irá trazer; as canções religiosas eram traduções dos cantos de igrejas cristãs, ensinadas pelos missionários; e danças antigas, como Tukui (“beija-flor”), cantada e dançada em celebrações inter-tribais. *** Tukui é a palavra para beija-flor em macuxi. É uma dança para representar a amizade entre malocas e até tribos. A dança é

executada quando os visitantes chegam, o que tradicionalmente ocorria mais ou menos na metade das estações (seca ou chuvosa). A tribo hospedeira serve comida e bebida especialmente preparadas para a ocasião e são trocados objetos de feitio das tribos, ao estilo de uma feira. *** No passado os homens tocavam flauta de osso ou bambu (taquara) e usavam máscaras representando um macaco, um jacaré ou um peixe. Suas roupas, segundo vovó D. constava de um cocar e saia de folhas de buriti. Seus cabelos, especialmente os das crianças, era decorado com penas do peito do pato, preso com resina das árvores. Seus tornozelos eram decorados com castanhas para fazer o som de guizo. Em suas mãos havia um bastão para marcar o compasso.

Contato com os brancos A cultura indígena tem sofrido mudanças através do contato com os colonizadores brancos o que provavelmente iniciou logo após a chegada de Cristóvão Colombo ao Mar Caribe. A propósito, Kariwa é a palavra para “homem branco” em vários dialetos caribes e também para “magro”, inclusive em macuxi. *** Os brancos que aqui vieram primeiro (fim do século XVIII) trouxeram gado, que necessita enormes porções do território para sobreviver. Em tempos mais recentes, a construção de estradas e no momento a mineração de ouro, diamantes, estanho e bauxita em diferentes pontos do território atraem mais e mais pessoas alheias à cultura indígena do Território. *** Alguns dos grupos indígenas tentam ajustar-se à nova situação. Alguns tornam-se criadores de gado. Alguns tentam estabelecer suas próprias minas, e alguns vendem

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diário de campo

canoas, farinha de mandioca e grãos para os colonizadores/ mineradores/fazendeiros. Alguns indígenas simplesmente trabalham para os brancos nas fazendas e minas. Frequentemente eles são mal pagos, ou recebem roupas usadas e utensílios em troca, pelo seu trabalho. Embora não estejam bem habituados com a economia ou o sistema de pagamento do homem branco, isto não parece importante. De fato, se eles recebem dinheiro, há a tendência em usá-lo em quinquilharias, como óculos de sombra, pasta-executivo, rádios, relógios, bebidas e doces. As mulheres jovens muitas vezes se tornam prostitutas para os mineiros, e todo o grupo se torna portador de doenças previamente desconhecidas.


Desagregação cultural Hoje em dia o macuxi se veste como o branco, cozinha seu alimento, usando seus próprios utensílios, ou panelas e outros utensílios domésticos de alumínio. Eles principalmente fervem sua comida, e já usam o sal; iniciam o fogo riscando um fósforo, usam sabão para lavar a si e aos seus utensílios. Têm lâmpadas à querosene e alguns tem radinhos de pilha, toca-discos portáteis, filtros para água, fogão à gás e outros utensílios deste tipo. *** É assim que os costumes antigos, e com eles a língua, são pouco a pouco deixados de lado. Portanto, a tendência, especialmente para os homens que deixam a tribo para procurar

emprego é abandonar sua cultura. Desconhecendo os valores do homem branco, eles são deixados de mãos vazias. O resultado final é a desagregação cultural. *** As mulheres tendem a permanecer na vila e ensinar sua língua aos filhos. Elas permanecem também monolíngues por mais tempo que os homens. Mas assim que as crianças iniciam sua escolarização, são forçados pelo sistema vigente a aprender português desde o 1º minuto.

Optou-se por não corrigir pequenos deslizes de ortografia ou concordância para preservar a grafia original da pesquisadora em seu diário de campo.

Fotos: Fund o Documen ta

l Neusa Ca rson

QUEM FOI NEUSA CARSON? Neusa Coden Martins nasceu em Santa Maria (RS), no dia 27 de julho de 1944. Aos 21 anos, iniciou sua graduação em Letras – Inglês, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Imaculada Conceição, atual Centro Universitário Franciscano. Em 1968, então com 24 anos e recém-formada, tornou-se professora do curso de Letras da UFSM. Pouco tempo depois, em 1970, viajou para os Estados Unidos, onde fez sua dissertação de mestrado e conheceu o norte-americano William Carson, com quem se casou, em 1972. Esse também foi o ano em que Neusa, retornando ao Brasil, tornou-se oficialmente professora assistente da UFSM. Com a intensificação das pesquisas, Neusa passou a se interessar cada vez mais pelos estudos de Linguística e aprofundou as investigações sobre o que viria a ser sua tese de doutorado – um estudo de descrição do Macuxi, língua indígena do estado de Roraima. Neusa Carson faleceu de câncer, no dia 16 de dezembro de 1987, aos 43 anos de idade. a Repórter: Camila Marchesan Cargnelutti

diário de campo

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Vidas continuam que

A complexa relação entre a realidade do luto e a possibilidade da doação de órgãos

Podemos compreender a morte como parte do curso da vida, mas a aceitação diante dela não costuma ser tão simples. Quando se trata de uma mãe ou pai dizendo adeus ao filho, a situação é ainda mais difícil. Como explicar essa inversão do que esperamos ser o ciclo natural de nossa existência? Não parece haver uma resposta que dê sentido às coisas. Há casos, porém, em que a morte não é necessariamente o fim e nos quais ela passa a ser vista como o recomeço para outra pessoa. É aqui que entra em cena a doação de órgãos.

A relação entre a doação e a morte de um filho foi abordada na UFSM pela pesquisa intitulada A perda de um filho: luto e doação de órgãos. Ela foi realizada pela psicóloga Ana Luiza Portela Bittencourt, pelo professor de Psicologia Alberto Manuel Quintana e pela professora de Medicina Maria Teresa Aquino de Campos Velho. O objetivo foi pensar sobre o sofrimento advindo da perda do filho e como isso se apresenta nas situações em que há a possibilidade de doação de órgãos.

A realidade do luto A morte não é um evento individual, pois traz repercussões no desenvolvimento de pais, irmãos e amigos. Cada uma dessas pessoas é afetada de diferentes formas – afinal, o luto não segue sempre um padrão. No entanto, encará-lo quando se trata de alguém jovem torna-se mais difícil, pela prematuridade que é posta. É menos doloroso enfrentar a morte quando temos a noção de que o ente querido viveu o suficiente para realizar seus sonhos e alcançar a felicidade.

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saúde

O luto constitui um processo de reorganização, é o momento em que são expressos os sentimentos decorrentes da perda. O professor Alberto Quintana ressalta que ele não deve ser ignorado pelos profissionais da saúde; pelo contrário, é uma fase que precisa ser valorizada e acompanhada. A vivência do luto permite o entendimento de que a morte é real e possibilita a retomada da rotina.

O que é morte encefálica? É a definição legal de morte. Ela representa a completa e irreversível parada de todas as funções do cérebro. Isto significa que, como resultado de uma forte agressão ou ferimento grave no cérebro, o sangue que vem do corpo e supre o cérebro é bloqueado, e ele morre.


A doação e a equipe de saúde A doação de órgãos, com exceção daquelas feitas em vida, pode — Todas as campanhas têm uma proposta de nos ser realizada quando é detectada a morte encefálica, ou morte fazer entender que é bom doar, que você pode salvar cerebral, como é mais conhecida. Porém, ainda que o pacien- vidas. Na pesquisa que nós fizemos, quase a totalite tenha declarado o desejo de ser um doador, cabe à família dade das pessoas era a favor da doação. Mas quando autorizar ou não que isso aconteça. A grande dificuldade é que se perguntava se elas doariam os órgãos de alguém o processo precisa ocorrer de forma rápida e coincide com um próximo que teve morte encefálica, a grande maioria momento em que a família ainda não foi capaz de assimilar a respondia que não. perda. Além disso, ainda há muitos mitos e dúvidas envolvendo As pessoas sabem o quanto doar é positivo, mas o assunto. O professor Alberto cita ainda outro fator que pode ainda assim têm receio de fazê-lo. Essa é uma mentainfluenciar na decisão: lidade que está ligada a uma — Observamos que quanto mais a pessoa série de questões, tais como: “ Na pesquisa que nós fizemos, quase se sente confiante e satisfeita com o atencrenças, medo de violar o corpo, a totalidade das pessoas era a favor dimento que foi prestado à pessoa que abordagem inadequada, falta da doação. Mas quando se perguntava faleceu, mais ela está inclinada a doar. de informação e tantas outras. se elas doariam os órgãos de alguém Isso porque a doação depende muita da Entre essas outras questões está também o desconheciconfiança na equipe que vai solicitá-la. próximo que teve morte encefálica, a Também segundo a pesquisa, outra mento, por parte da família, de grande maioria respondia que não” dificuldade é a de que, quando é dado o que o ente gostaria de ter seus diagnóstico de morte encefálica, o possível doador ainda apresen- órgãos doados. Deixar isso claro é uma forma de fazer ta batimentos cardíacos e respira com a manutenção de equipa- com que essa vontade seja respeitada. mentos. Assim, muitos pais costumam ter receio de que a pessoa Se por um lado a doação de órgãos é muito imporainda esteja viva e sentem medo de causar algum dano a ela. tante, é também fundamental a manutenção da ética Nesse sentido, a atuação da equipe de saúde é fundamental. É por parte dos profissionais envolvidos no processo. A preciso que fique claro para a família o conceito de morte ence- escolha por doar os órgãos do familiar não pode ser fálica e que seja dado um tempo até a informação ser processada. feita mediante pressão. O que precisa ocorrer é um consentimento informado, que se caracteriza quando Para isso, é importante que a equipe de saúde esteja pronta para responder a todas as dúvidas sobre o assunto e deixar os pais há o entendimento da situação e, livre de qualquer controle por parte de outro, autoriza-se que o profismais seguros sobre a decisão a ser tomada. A forma como são conduzidas as campanhas em prol da doação sional realize o procedimento. Quando o contrário de órgãos também é, na visão de Quintana, um dos empecilhos acontece, a decisão é baseada em pressões externas para que ações como essa sejam realizadas em mais ocasiões: e a experiência pode ser traumática.

O momento de decidir Enquanto o momento da morte é de luto para alguns, — A gente veio para casa, junto com nossos outros dois filhos, e pode adquirir um significado de uma vida que ressur- conversamos sobre o que fazer. Decidimos doar os órgãos dele, ge para outros. Foi o que motivou Ecilda Nunes e porque sabemos que tem muita gente que precisa. Naquele momenClaudiomiro Rodrigues a doar os órgãos do filho, to estávamos arrasados, mas sabíamos que aquele gesto ia ser a Felipe da Silva Rodrigues, de 19 anos, quando foi alegria de algumas pessoas que há tempos estavam na fila de espera. diagnosticada a morte encefálica. Na própria família, Ecilda e Claudiomiro já haviam acompaFelipe foi atropelado por uma motocicleta enquan- nhado o caso das sobrinhas, que possuíam problemas renais e to trabalhava e já chegou ao hospital em estado críti- precisavam de um transplante. Ambos conhecem o sofrimento co. Foram dez dias até que viesse a confirmação da causado pela espera. A doação é um ato de colocar-se no lugar do outro. Talvez esse seja um bom (e necessário) exercício a se fazer. morte cerebral. Quando isso ocorreu, a família logo conversou e decidiu pela doação, como explica Ecilda: a Repórter: Daniela Pin Menegazzo

saúde

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A voz que

ditadura

A

(Não)

calou

Livro-reportagem conta a história do cantor Víctor Jara, perseguido e morto pela ditadura militar chilena Estádio Chile, 1969. Nesse local, no Festival da Nova Canção Chilena, grandes nomes da música nacional apresentavam-se. Entre eles, estava o cantor Víctor Jara, que acabaria vencendo o festival daquele ano. No ano seguinte, engajado com a política e os problemas sociais do país, Jara esteve ao lado do candidato socialista à presidência da república, Salvador Allende. Três anos depois, em 1973, Allende seria deposto por um golpe militar que colocou Augusto Pinochet no poder. Ainda nos primeiros dias da recém instaurada ditadura militar chilena, diversos lugares transformaram-se em verdadeiros campos de concentração, com interrogatórios, torturas e assassinatos sumários. Um desses locais foi o Estádio Chile, com capacidade aproximada de cinco mil pessoas. Víctor Jara estava entre os presos políticos levados para lá logo depois do golpe. Dali, ele só sairia morto, após ser torturado durante dias. E foi nesse estádio que Víctor escreveu seu último poema, Somos cinco mil (Somos cinco mil aquí/En esta pequeña parte de la ciudad/Somos cinco mil/¿Cuántos somos en total/ en las ciudades y en todo el país?). No local, hoje chamado de Estádio Víctor Jara, a cadeira onde o cantor escreveu a derradeira obra de sua vida é a única pintada de branco, no meio de todas as cadeiras verdes no ginásio.

A história reconstruída em um livro-reportagem O livro-reportagem Un Temblor de Primaveras, escrito pelo egresso do curso de jornalismo da UFSM Maurício Brum, conta a história de Víctor Jara. O material foi apresentado como trabalho de conclusão de curso (TCC), em fevereiro de 2013, com mais de 300 páginas, entre o livro e a parte teórica.

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memória

A narrativa inicia-se no próprio Estádio Chile, com o festival da Nova Canção Chilena vencido por Víctor. Depois, em ordem cronológica, a primeira parte do livro é destinada à vida do cantor, desde a infância até os dias finais do governo de Allende, com a contextualização social e política da época. Na segunda parte, os detalhes dos dias em que Víctor esteve no Estádio Chile após o golpe, desde a prisão, no dia 12, até a sua morte, ocorrida em algum momento entre os dias 15 e 16 de setembro de 1973. O interesse de Brum pela vida de Jara veio juntamente com o desejo de saber mais sobre a história do Chile e sobre o golpe de 1973. Ao conhecer também a obra do cantor, com a qualidade artística aliada à militância de esquerda, o jornalista pensou em produzir uma reportagem aprofundada sobre o tema. Em 2011, com a proximidade do TCC, aproveitou a oportunidade para desenvolver o livro-reportagem: “Eu já havia reunido alguns materiais e vinha lendo sobre o assunto, e pareceu a oportunidade perfeita, com um ano inteiro para me dedicar a uma pauta”. Para o trabalho de pesquisa, levantamento de materiais e apuração, Brum esteve mais de três meses no Chile, em duas passagens pelo país. Ele aproveitou essas temporadas para aquisição de bibliografia não existente no Brasil, realização de entrevistas, visitação e busca de materiais nos acervos do Museu da Memória e dos Direitos Humanos e da Fundação Víctor Jara. Desde 1993, existe em Santiago do Chile essa fundação que leva o nome do cantor. O espaço, criado para manter viva a memória do artista que tanto cantou as injustiças do seu país, apresenta para as novas gerações o legado musical – e de lutas sociais – que Jara deixou para o Chile após sua morte. a Repórter: Nicholas Lyra.


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mais puro Diante de altos índices de poluição, reduzir os gases que causam o envenenamento do ar se torna necessário. Em parceria com a Petrobras, grupo de pesquisa desenvolve projeto para redução de enxofre no óleo diesel, através de energia alternativa O que é um hidrocarboneto? Basicamente, é um composto químico formado por átomos de carbono e de hidrogênio. O óleo diesel, um derivado do petróleo, utilizado para abastecer veículos como ônibus, caminhões e camionetes, é constituído por hidrocarbonetos. Um motor movido a óleo diesel tem sua vida útil cerca de 30% maior que outro movido a gasolina, e ainda gasta menos combustível. Em contrapartida, este motor torna-se mais caro e menos ágil. Dado o momento em que todos os olhares se voltam ao meio ambiente, é preciso estudar maneiras de diminuir a emissão de poluição. Uma das principais questões envolvendo o óleo diesel é justamente essa: a poluição a partir de sua queima. Quando um combustível sofre combustão, moléculas de nitrogênio e enxofre são liberadas na atmosfera. A

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quantidade dessas moléculas é maior no diesel, por isso ele é mais poluente que outros combustíveis, como a gasolina e o álcool. São essas moléculas que causam problemas para o meio ambiente, como a chuva ácida. Contrabalanceando benefícios e desvantagens, uma coisa é certa: se o uso do diesel é indispensável, reduzir seus prejuízos na natureza é tão importante quanto. Foi buscando exatamente isso que, em 2006, a Petrobras iniciou mais um projeto com o Laboratório de Análises Químicas Industriais e Ambientais (Laqia), dentro de um convênio que já existe desde 2004 com a UFSM. O projeto da empresa estatal com o grupo de pesquisa da Universidade concentra-se na busca de alternativas para o melhoramento do óleo diesel, com foco na redução dos compostos de enxofre e nitrogênio do combustível


Óleo diesel sob ação da sonda de ultrassom

Reduzir e remover O processo para melhorar a qualidade do diesel é feito em duas etapas. Quando se trabalha com reações químicas, temperatura e pressão são fatores muito importantes. Aumentar pressão e temperatura geralmente acelera a reação, mas isso acaba aumentando o grau de dificuldade para realizá-la. Industrialmente, o processo de remoção do enxofre do óleo diesel é feito através de um processo de hidrogenação. Nesse processo, utiliza-se uma temperatura de 300 graus centígrados e 200 atmosferas de pressão. O resultado obtido é um diesel contendo de 100 a 500 partes por milhão (ppm) de enxofre. Segundo o professor do Departamento de Química e coordenador

do projeto, Érico Marlon Moraes Flores, a hidrogenação não consegue remover todos os compostos de enxofre, uma vez que alguns deles são tão resistentes que permanecem no óleo diesel. A equipe do Laqia propôs, então, uma mudança. Em vez de retirar as moléculas poluentes do combustível através da hidrogenação, resolveu partir para um processo de oxidação assistido por ultrassom. Nesse novo processo, consegue-se trabalhar com temperatura de 90 graus e pressão atmosférica, ou seja, sem a necessidade de adição de hidrogênio. O resultado foi surpreendente. Trabalhando com temperatura e pressão baixas, chegou-se à marca de cinco partes por milhão.

Por que ultrassom? A energia do ultrassom é utilizada para acelerar reações químicas. Nesse caso, o uso do ultrassom dispensa temperatura e pressões muito altas, facilitando o processo. Ele aumenta a eficiência da reação e ainda diminui o uso de agentes químicos, solventes e reagentes. Por isso, é considerado uma tecnologia alternativa, já que permite trabalhar com condições não tão severas, reduzindo, assim, a energia utilizada no processo. Conforme o professor Érico, o ultrassom possui ainda algumas peculiaridades em relação a outras radiações, como a formação de bolhas de cavitação. São elas as responsáveis pela rapidez do processo. Essas bolhas são pequenas gotículas de gás que surgem de maneira dissolvida no meio líquido.

Sob ação do ultrassom, essas bolhas começam a pulsar e vão aumentando de tamanho até que implodem. Ao implodir, elas promovem jatos de alta pressão e velocidade no meio líquido, chegando até 400 metros por segundo. Com o aumento da temperatura, há uma agitação muito grande no meio — o que facilita o contato dos reagentes e acaba acelerando a reação. Sem o ultrassom, a reação de retirada das moléculas de enxofre e nitrogênio do diesel demora cerca de seis horas. Já, com o uso do ultrassom, esse tempo cai para cerca de quinze minutos, o que significa que a reação torna-se vinte e quatro vezes mais rápida.

Bolhas de Cavitação: um dos fatores que aceleram o processo

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Foto: Pedro Porto Diesel S10: menos enxofre na atmosfera, menos poluição no meio ambiente

Mais perto do que você imagina O projeto para melhorar a qualidade do diesel resultou em uma série de benefícios. A equipe do Laqia conseguiu desenvolver o método para remoção efetiva de enxofre e nitrogênio assegurando que o combustível estivesse dentro das especificações, e dentro das novas recomendações da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, a ANP. E, além disso, utilizando uma tecnologia que gasta menos energia e, consequentemente, causa menos danos ao meio ambiente. Até o final de 2012, além do óleo diesel comum, que contém 500 ppm de enxofre, os postos brasileiros disponibilizavam também um diesel menos poluente, o S50. A letra ‘S’ é o símbolo do elemento enxofre, e o número é o mesmo que o ppm, ou seja, 50 mg de enxofre por litro de diesel. Atendendo a medida do Programa da Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores, Proconve, em janeiro deste ano o diesel S50 começou a ser substituído pelo S10, ou seja, com teor de enxofre ainda menor. Os benefícios do novo combustível são visíveis para quem abastece. O advogado Walter Mendes Mucha, que faz uso do novo diesel para abastecer a sua camionete, diz perceber a diferença entre os combustíveis pelo cheiro produzido pelo diesel S10, segundo

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ele, menos forte que o do diesel comum. Ainda que quisesse abastecer com o diesel comum, Walter não poderia, já que sua camionete foi produzida para rodar apenas com o S10. Desde o ano passado, os motores a diesel estão sendo fabricados para rodar somente com este tipo de diesel, podendo comprometer seu funcionamento caso sejam abastecidos com o comum. Caso o motorista insista, os postos de combustíveis podem exigir sua assinatura, responsabilizando-se pelos danos que o diesel comum possa vir a causar em seu veículo. Já o contrário não causa risco nenhum. Motores anteriores a 2012 podem abastecer sem problemas com o novo diesel. Com o diesel S10, o lubrificante do veículo pode ser trocado em um maior intervalo de tempo, já que ele reduz a incidência de contaminantes do lubrificante. Além disso, esse combustível melhora a partida a frio, sistema que impulsiona o funcionamento dos veículos em dias de baixas temperaturas, e ainda diminui a emissão de fumaça branca, prejudicial ao meio ambiente. Todas essas vantagens vêm do melhoramento do combustível, da redução do enxofre em sua fórmula. Mas isso depende da complexidade do processo de refinamento do combustível, o que custa caro. O resultado está na tabela de preços: o diesel S10 é mais caro que o comum.


Despoluir é preciso Muitos dos processos industriais dependem da utilização de combustíveis em alguma etapa. Eles são necessários para que fábricas, usinas e veículos possam funcionar. Em contrapartida, a queima de combustíveis fósseis, que permitiu o desenvolvimento industrial, acarretou também a poluição do meio ambiente. O enxofre é liberado na atmosfera a partir da queima do óleo diesel, da sua matéria prima, o petróleo, e também do carvão. Uma vez no ar, ele entra em contato com o oxigênio, ocasionando aquela nuvem escura que paira sobre os grandes centros. No ar, as moléculas de enxofre causam inúmeros problemas à saúde. A exposição contínua a essa poluição pode causar irritação no nariz e garganta, ocasionando tosse e falta de ar, além de agravar doenças respiratórias, como asma e bronquite, e doenças cardiovasculares. Em reação com a água presente na atmosfera, o enxofre é um dos causadores da chuva ácida. A chuva contém um pequeno grau de acidez naturalmente, mas a emissão de gases como o enxofre intensifica esse efeito a ponto de causar prejuízos ao meio ambiente.

Ao chegar até as nuvens, as moléculas de enxofre reagem, formando ácido sulfúrico, resultando na chuva ácida. Os principais problemas causados pelo fenômeno são a destruição da cobertura vegetal, como florestas e lavouras, a alteração de ecossistemas presentes em lagos e rios, a contaminação da água potável e, ainda, a destruição de monumentos e construções. Além disso, a chuva ácida pode cair em locais distantes de onde se originou a poluição. Isso se dá graças à ação dos ventos, que podem levá-la até quilômetros de distância. O projeto de redução do enxofre no óleo diesel por meio do ultrassom segue em andamento. A pesquisa já rendeu a patente do projeto junto à Petrobras, uma menção honrosa pelo Prêmio Capes de Tese em 2012 e o Prêmio Inventor 2012 da Petrobras. Além disso, foi construído na UFSM o Centro de Estudos em Petróleo, o Cepetro, onde as pesquisas estão sendo desenvolvidas. Através da tecnologia alternativa, o diesel vai sendo melhorado para que o produto final resulte em um combustível menos poluente, um ar mais puro para o meio ambiente e para a população. a Repórter: Natascha Carvalho

Foto: Pedro Porto

Érico, Cláudio e Paola, parte da equipe do Laqia no Cepetro

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Plantando

consciência As perspectivas e implicações da indústria do biodiesel para o ambiente, a economia e a sociedade.

Atualmente, mais de 90% dos meios de transporte no mundo são movidos a gasolina ou óleo diesel, produtos derivados do petróleo. Você consegue imaginar o que aconteceria se um dia o petróleo acabasse? Embora não se saiba quando, é praticamente consenso entre os especialistas que, se continuarmos no ritmo atual de consumo, ele vai, sim, esgotar-se. A estimativa do fim depende de diversos fatores, como a descoberta de novas reservas e o aumento da produtividade e do consumo. “Há algumas décadas, a visão industrial era a de que os recursos eram inesgotáveis. Atualmente a única certeza que temos é de que os recursos são finitos”, assinala Clândia Maffini, professora do Programa de Pós-Graduação em Administração da UFSM. A professora Clândia afirma ainda que encontrar novas tecnologias “constitui-se em condição para garantir o alcance de uma sociedade mais harmônica e justa”. A produção dessas tecnologias é essencial para alcançarmos um desenvolvimento sustentável, minimizando os impactos ambientais e garantindo fontes alternativas para o futuro. Nesse cenário, em que os biocombustíveis surgem como tecnologia alternativa de fonte energética, o Brasil tem se destacado e conquistado reconhecimento internacional.

Os biocombustíveis (etanol, álcool ou biodiesel) são gerados a partir de compostos de origem animal ou de produtos vegetais, como cana-de-açúcar, soja, milho e girassol, sendo então considerados combustíveis limpos e renováveis. Eles podem ser utilizados em motores, substituindo parcial ou totalmente o uso de combustíveis fósseis. Além disso, os biocombustíveis são biodegradáveis, decompondo-se facilmente, e a emissão de gás carbônico resultante de sua queima é menor que a dos combustíveis fósseis, reduzindo os impactos à natureza.

O que é desenvolvimento sustentável? É um modelo de desenvolvimento, utilizado pela primeira vez pela ONU, na década de 80, que propõe harmonizar o crescimento econômico com a inclusão social e a proteção ambiental.

matriz energética no mundo

81% fósseis

matriz de transportes no mundo

93% derivados de petróleo

Dados da Agência Internacional de Energia mostram a porcentagem de combustíveis fósseis utilizados no mundo em 2010

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Foto cedida por Rafael Happke

Crescendo com sustentabilidade Para incentivar a produção e a utilização de biocombustíveis no Brasil, o governo criou o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB). Instituído em 2004, o programa objetiva implementar de forma sustentável a tecnologia do biodiesel, com enfoque no desenvolvi- “Hoje não existe mento regional e na inclusão social dos crescimento sem trabalhadores. Para tanto, também criou desenvolvimento o Selo Combustível Social (SCS), concesustentável. E isto dido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário às empresas produtoras de biodie- passa pela adoção de sel que promovem a inclusão social dos combustíveis mais pequenos agricultores, através da aquisi- limpos e com menos ção de material da agricultura familiar e impactos ambientais” da prestação de assistência técnica. Com o intuito de pesquisar os impactos do Selo no desenvolvimento sustentável, na ação e na estratégia das empresas produtoras de biodiesel no estado, a pesquisadora Rozali Araújo dos Santos desenvolveu sua dissertação de mestrado em Administração na UFSM, Selo Combustível Social: a perspectiva da indústria de biodiesel do Rio Grande do Sul, defendida em 2012. De acordo com Rozali, o interesse pelo tema despertou pelo fato de o biodiesel ser “uma inovação que traz consigo um viés ambiental e que no Brasil vislumbra a dimensão social, oriunda do Selo”.

canola

mamona

soja

biocombustível

dendê

milho girassol cana-de-açucar

Produtos que geram biocombustíveis

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Colhendo energia Para obter o Selo, as empresas produtoras de biodiesel devem adquirir um mínimo de matéria-prima da agricultura familiar, variável de acordo com a região do país, e assegurar capacitação e assistência técnica gratuita aos agricultores contratados. Em contrapartida, recebem alguns benefícios do governo, como diferenciação ou isenção de impostos, acesso a melhores condições de financiamento e participação em leilões públicos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Desde 2010, todo o diesel comercializado no país deve possuir 5% de biodiesel misturado. A ANP realiza leilões que têm por objetivo garantir a mistura obrigatória de biodiesel prevista na lei. O combustível resultante leva o nome de B5, e a intenção do governo é ir aumentando aos poucos essa quantidade. Além de garantir mercado para o biodiesel produzido, a nova mistura diminui os gastos com a compra de petróleo, gerando economia, e reduz a emissão de gás carbônico na atmosfera, resultante da queima do combustível. João Artur Manjabosco, gerente da Unidade de Negócios Biocombustíveis da Camera, localizada em Santa Rosa (RS) e uma das empresas participantes da pesquisa de Rozali, explica que, além da redução tributária na venda do biodiesel, também está garantido por lei que no mínimo 80% do biodiesel vendido nos leilões regulares da ANP devem ser de empresas detentoras do Selo. Aliada a essas vantagens, ainda há a dimensão social do programa: “Somos o único país no mundo que inovou, unindo produção de biocombustíveis com geração e distribuição de renda”, afirma. Para André Roseira, do Departamento Comercial da Granol, empresa de Cachoeira do Sul que possui o Selo desde 2007 e que também fez parte do estudo de Rozali, as principais vantagens do SCS residem no fato de as empresas contarem com um novo mercado para o óleo produzido e para seus subprodutos, como a glicerina. Além disso, “os produtores passaram a ser mais bem atendidos na questão técnica e recebem valor melhor pelo seu produto, sendo valorizados na cadeia produtiva”, acrescenta. As falas de João Artur e de André estão de acordo com as constatações da dissertação de Rozali, que notou no discurso das empresas participantes as expectativas, em torno do mercado, da maior participação nos leilões e da maior proximidade com os agricultores familiares. “No que diz respeito ao relacionamento com os agricultores familiares, as empresas vão além do obrigatório, promovendo cursos e palestras e incentivando feiras, além de buscarem uma interação maior com a comunidade”, ressalta Rozali.

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Em sua pesquisa, Rozali também compilou algumas críticas dos empresários em relação ao Selo, constatando que elas se concentravam principalmente na questão da adequação à realidade da região Sul e em relação ao desenvolvimento regional, que deixa de existir quando empresas de fora apenas adquirem o produto, sem realizar a contrapartida da prestação de assistência técnica. João Artur resume: “Entendemos que o Selo deveria ser regionalizado nas proximidades de cada usina. Hoje, usinas de outros estados compram lotes de soja de cooperativas aqui no Rio Grande do Sul, ou seja, da agricultura familiar, e rotulam isto como Selo Social. Entendemos que a proposição inicial do Selo era um pouco diferente”. Conhecer os impactos do SCS nas estratégias, na inovação e no desenvolvimento sustentável, bem como as perspectivas e as críticas das empresas produtoras de biodiesel quanto ao Selo foram os objetivos principais do projeto de mestrado de Rozali. Segundo ela, ao longo da pesquisa foi possível perceber que as estratégias de uma empresa produtora repousam sobre o Selo. “O Selo proporciona inovação nos processos, principalmente de compra, e no desenvolvimento sustentável afeta as três dimensões – econômica, ambiental e social”.

dimensão econômica Proporciona maior faturamento para a empresa, aumentando a possibilidade de investimentos e gerando empregos e renda para a região.

dimensão ambiental Pode impactar, por exemplo, através da orientação de aplicação correta de produtos químicos, evitando o desperdício e a erosão do solo.

dimensão social Auxilia na integração do agricultor familiar na cadeia produtiva do biodiesel, na distribuição de renda e na fixação das famílias produtoras no campo.


produção de biodiesel

refinamento

ração

energia solar

extração do óleo da planta

recursos renováveis

combustível renovável

liberação de CO2 absorção de CO2 através da fotossíntese

Ciclo de vida do biodiesel

A preocupação com a dimensão social De acordo com a professora Clândia, atuar de forma do desenvolvimento sustentável existe mais sustentável torna-se condição necessária para a também internamente nas empresas. A própria continuidade da ação empresarial. João Artur Camera, por exemplo, que possui o Selo corrobora: “Hoje não existe crescimento sem desenCombustível Social desde 2011, formou volvimento sustentável. E isto um Núcleo de Agricultura Familiar visan- passa pela adoção de combus- “O Selo permite a aproximação do do ao acompanhamento e fornecimen- tíveis mais limpos e com agricultor antes marginalizado pelo to de assistência técnica aos pequenos menos impactos ambientais”. sistema, gera mais renda e impacta na produtores rurais. “São muitas famílias Para Rozali, além de contriincluídas e que recebem benefícios dire- buir para a inclusão e para o economia local, regional e nacional”. tos, ou seja, distribuição de renda, bem desenvolvimento local, o Selo como fixação destas famílias no campo. Combustível Social também assume um papel fundaAs empresas vão na linha dos objetivos mental de conscientização sobre sustentabilidade: do programa; afinal, o biodiesel é 100% “A pesquisa permitiu verificar que o Selo permite a renovável, uma energia produzida aqui, aproximação do agricultor antes marginalizado pelo no interior do Brasil, gerando empregos, sistema, gera mais renda e impacta na economia renda e oportunidades”, afirma João Artur, local, regional e nacional e tem como consequência a gerente da Unidade de Negócios Biocom- conscientização da necessidade do desenvolvimento bustíveis da empresa. sustentável”.a Repórter: Camila Marchesan Cargnelutti

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Bebida que vira

combustível Parceria entre a Receita Federal de Santa Maria e a UFSM cria solução para dar destino a bebidas alcoólicas e perfumes apreendidos

São constantes as notícias que anunciam a apreensão, por parte da Receita Federal, de bebidas alcoólicas recolhidas em condições ilegais ou sem o selo do Imposto de Produto Industrializado (IPI). No final de contas, são milhares de litros que precisam de um destino, pois não podem permanecer para sempre estocados em depósitos. Legalmente, são três as formas pelas quais o material apreendido pode ser destinado: encaminhamento para leilão, doação para entidades sem fins lucrativos ou órgãos públicos e destruição ou inutilização. Escolher a forma mais adequada, no entanto, exige analisar cada situação específica. No caso de Santa Maria, o delegado da Receita Federal do Brasil, Alexandre Rampelotto, destaca que a natureza fragmentada das apreensões inviabiliza, técnica e economicamente, a obtenção dos laudos que garantem que os produtos são próprios para o consumo. Sem esses laudos, não é permitido que os produtos apreendidos sejam doados. Além disso, o delegado cita as políticas governamentais de combate ao consumo de drogas lícitas, como o álcool, que vão na linha contrária à possibilidade de doação do mesmo. Já o encaminhamento das mercadorias para leilão foi descartado ao

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se considerar o impacto negativo que poderia gerar na economia local, ao criar concorrência com as empresas do ramo já estabelecidas na cidade. Assim, a opção que se mostrou mais viável foi a destruição das mercadorias. O modo escolhido para que isso acontecesse havia sido, inicialmente, o despejo das bebidas em redes de tratamento de efluentes. Essas redes são locais em que produtos líquidos ou gasosos produzidos por indústrias ou resultantes dos esgotos domésticos são tratados e então lançados no meio ambiente. No entanto, a solução nem sempre se mostrava completamente eficaz. O despejo de uma quantidade tão grande de bebidas alcoólicas poderia dificultar o processo de tratamento e causar um problema ambiental. Consciente disso, o delegado viu na Usina Piloto de Etanol do Colégio Politécnico da UFSM uma alternativa. É o que ele destaca: - No momento em que soubemos da existência de um projeto do Colégio Politécnico que utilizava uma destilaria modelo, iniciamos os contatos com a Universidade para saber do interesse em formar uma parceria no sentido de utilizar o resíduo da destruição de bebidas para a produção de álcool.


A parceria A Usina Piloto de Etanol entrou em funcionamento em 2009, ano em que começou a processar álcool a partir de resíduos de arroz, mandioca, batata, batata doce, entre outros. Em geral, o espaço serve para a realização de experiências e pesquisas de alunos dos mais diversos cursos da UFSM e do próprio Colégio Politécnico. Porém, essa demanda nem sempre mantinha as máquinas ocupadas, como seria o ideal. Com a parceria firmada entre a microdestilaria e a Delegacia da Receita Federal (DRF) de Santa Maria, em 2011, esse problema foi resolvido e o trabalho é contínuo. Só no ano inicial do acordo, foram aproximadamente 30 mil litros de bebidas entregues à Usina. O delegado Alexandre explica como ocorre esse processo: - Na prática, a destruição das bebidas ocorre ainda dentro do Depósito da Receita Federal na cidade, quando as garrafas são

abertas e o conteúdo é misturado em recipientes de mil litros, o que descaracteriza completamente as mercadorias. É essa mistura que é entregue à Usina e depois passa pelo processo de destilação. As garrafas são quebradas e, juntamente com as embalagens, são destinadas a associações de coletores de materiais recicláveis da cidade. Os resíduos entregues na Universidade são resultado, principalmente, de bebidas apreendidas em ações realizadas pela DRF de Santa Maria na sua área de abrangência, que compreende a região central e as fronteiras norte e oeste do Rio Grande do Sul. Entretanto, ao entenderem a importância da parceria, outras unidades da Receita Federal no estado também têm direcionado bebidas para serem entregues à destilação.

Os resultados Todo o conteúdo recebido é redestilado e dá origem a novos produtos, como álcool gel e álcool etanol. O último dá origem ainda ao álcool de uso doméstico (50GLº), utilizado no dia a dia para limpeza e desinfecção. A quantidade de álcool redestilado depende, no entanto, da concentração das bebidas recebidas, que possuem uma variação considerável na graduação alcoólica. Quanto mais alta esta for, maior é o volume produzido. O coordenador da Usina, professor Cícero Nogueira, destaca que a geração de combustível tem sido tão satisfatória que há uma nova ação em fase de implementação: — Nós estamos implementando um posto de abastecimento, com sistema de filtro, bomba... Estamos com um estoque grande de álcool e, no momento em que isso ficar pronto, vamos fazer uma doação desse produto para a Brigada Militar e o Corpo de Bombeiros. Isso porque tanto nós quanto a Receita não estamos utilizando todo o combustível gerado. Após redestilados, parte dos produtos é entregue à Receita Federal e o restante fica armazenado na UFSM, onde é utilizado no próprio Colégio Politécnico, na desinfecção de laboratórios, limpeza do Restaurante Universitário e abastecimento da frota de veículos. O professor Cícero destaca o quão importante é a tomada de iniciativas como essa: — A Receita Federal é uma instituição pública que tinha um problema ambiental a ser resolvido. A Universidade tinha a Usina instalada, porém com falta de matéria-prima. Esse é um exemplo de como é importante e necessária a ação da UFSM para além de seus muros. É uma ponte entre o meio acadêmico e a sociedade.

O sucesso da iniciativa despertou, inclusive, a atenção de outras unidades da Receita Federal. É o caso da DRF de Divinópolis (MG). Alexandre conta que o delegado da cidade mineira esteve em Santa Maria, conheceu o projeto e já encaminhou parceria semelhante com uma universidade de sua região. São atitudes que pouco a pouco se disseminam e criam soluções simples para problemas que podem ter grande impacto. a Repórter: Daniela Pin Menegazzo

bebidas apreendidas pela Receita Federal

posto de abastecimento

reservatório

destilador álcool gel

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um sonho em construção

Projeto estimula empoderamento feminino através da qualificação de mulheres de baixa renda para o trabalho na construção civil De pequena, Sandra queria ser pedreira. O tempo passou e ela cresceu. Deixou de ser menina e, sem oportunidade, deixou também o atípico sonho adormecer. Em vez de construir casas, passou a limpá-las e organizá-las. Sandra virou faxineira. Trabalhou de domingo a domingo, sem descanso, até que um dia, em 2010, viu um cartaz no mural da escola onde estudava, na comunidade da Vila Maringá, em Santa Maria. O cartaz convidava as mulheres do bairro a participarem de um curso de construção civil. Sandra conversou com as professoras da escola, informou-se

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e logo fez a inscrição. Foi o primeiro passo rumo à realização do sonho de infância adormecido. Também foi o momento em que o caminho de Sandra Oliveira Santos cruzou pela primeira vez com o do Núcleo de Estudos sobre Mulheres, Gênero e Políticas Públicas (NEMGeP) da UFSM. Era o NEMGeP que estava oferecendo o curso para mulheres interessadas em trabalhar na área de construção civil. O programa de extensão Mulheres Conquistando Cidadania surgiu do engajamento do Núcleo na luta pela implementação do Plano Nacional de Políticas


Públicas para Mulheres, que tem como um dos eixos fundamentais o estímulo à autonomia econômica das mulheres e à igualdade no mundo do trabalho, com inclusão social. O Núcleo, formado em 2009, no curso de Enfermagem da UFSM, sob a coordenação da professora Maria Celeste Landerdahl, desenvolve diversas atividades relacionadas à saúde e cidadania das mulheres. Atualmente, além de acadêmicas da Enfermagem, o grupo possui integrantes de cursos como Serviço Social e Psicologia. Na mesma época em que o Núcleo surgiu, nasceu a ideia de implementar o Mulheres Conquistando Cidadania na cidade. “A partir desse momento, nós fomos nos sentindo comprometidas e responsáveis por estar criando novas frentes. Foi assim que começou. E em cada espaço que a gente sentia que tinha que lutar por direitos das mulheres a gente entrava. Nessa caminhada continuamos até hoje ”, conta Celeste. De acordo com a professora, projetos como o Mulheres Conquistando Cidadania já vinham sendo implementados em outros municípios, inclusive no Rio Grande do Sul, com a proposta de qualificar mulheres de baixa renda para o trabalho na construção civil. “Seria uma alternativa à falta de trabalho ou ao trabalho doméstico remunerado informal. Uma possibilidade a mais de trabalho àquelas que desejassem um campo de atuação que propiciasse autonomia financeira”, explica a professora. Para Celeste, a independência conquistada através do trabalho é entendida como um requisito importantíssimo para a promoção da cidadania e da saúde da mulher. A política atual considera as desigualdades de gênero e a falta de empoderamento das mulheres como questões que afetam a saúde feminina. “O que causa doença? Não é só comer alimento estragado. O tipo de relação que você mantém com as pessoas com quem convive pode causar doenças, sim. E colocar isso em uma política para mulheres é um avanço, porque temos que atacar isso. É uma questão de saúde pública”, afirma. As atividades do Mulheres Conquistando Cidadania começaram em 2010. Incluindo Sandra, o programa teve 60 mulheres inscritas, todas de localidades onde o curso de Enfermagem desenvolvia ações de saúde. O curso profissionalizante foi dividido em dois eixos: técnico e político. O primeiro foi ministrado

pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), contando com aulas de assentamento de cerâmica e de pintura predial interna e externa. O segundo eixo foi desenvolvido pelo NEMGeP, através de oficinas de saúde e cidadania, com rodas de conversas e dinâmicas. Dentre os temas discutidos, estavam assuntos como gênero e empoderamento, direitos das mulheres, políticas públicas para mulheres, violência e igualdade de gênero. No final de 2010, o programa entregou os certificados de conclusão do curso profissionalizante a 38 mulheres, ampliando as possibilidades de independência econômica, empoderamento e melhor qualidade de vida para elas e suas famílias. “A Universidade tem um papel fundamental na mudança da sociedade, sempre por meio do conhecimento, para que as pessoas tenham um pensamento mais crítico. E é isso que a gente tem tentado fazer. Alguma coisa estamos conseguindo. Se a gente não pensar que está conseguindo, a gente para. Temos que acreditar que é possível. Sempre pra nós a mudança é possível”, fala Celeste. Dentre as formandas, lá estava Sandra novamente, cheia de felicidade. Um mês depois, em janeiro de 2011, ela foi chamada para trabalhar em uma empresa de construção civil na cidade. “Comecei como servente e desde que eu entrei eles assinaram minha carteira, tudo regular. Antes eu não tinha isso. Depois passei a meio-oficial e agora sou pedreira profissional”, conta Sandra, com o orgulho de quem realizou um sonho de infância. Mas o sonho cresceu. Agora ela quer ser mestre de obras. Enquanto procura o curso profissionalizante para isso, segue sua rotina de trabalhadora, na empresa e em casa. Sandra está construindo com suas próprias mãos a futura casa da família. a Repórter: Camila Marchesan Cargnelutti

cidadania

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O sinal que

campo

Mãe e filho fazem uso da internet no meio rural de Estrela

Fruto do processo de modernização, a internet provoca mudanças na vida de agricultores familiares e auxilia em atividades da produção rural Iri_Kamp: Guria, eu sonhei que tu tinhas vindo me visitar. Será que é um déjà vu? Jaqueline_Melodia: Seu aniversário é 21 de janeiro, não é? Iri_Kamp: É. Jaqueline_Melodia: O que você gostaria de presente? Iri_Kamp: Você! Déjà vu ou não, Irineu Haberkamp, professor aposentado e produtor rural, não teve tempo de pensar. Alguns dias após essa conversa, Eva Muniz de Oliveira, natural de Acaraú, no Ceará, informou ao gaúcho: “Dia 19 de janeiro estou desembarcando aí!”. O primeiro encontro aconteceu exatamente na data prometida por ela. Irineu viajou 115 quilômetros, da zona rural de Estrela até Porto Alegre, para encontrar Eva no Aeroporto Salgado Filho. Segundo ele, não foi um encontro, mas um reencontro, tal a intimidade que conquistara com Eva durante quatro meses de tecladas em sites de bate-papo.

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tecnologia

Foi buscando entender como pessoas do meio rural, como Irineu, relacionavamse com a internet, que Ariane Fernandes da Conceição ingressou no mestrado em Extensão Rural da UFSM. Formada em Gestão de Cooperativas pela Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, Ariane percebeu que os moradores da zona rural necessitavam de meios que permitissem a comunicação imediata, como a internet. Em seu estágio de graduação, Ariane teve contato com produtores rurais em uma cooperativa no triângulo mineiro. Lá ela começou a notar, curiosa, a relação deles com o computador. “Os poucos que tinham computador, até mesmo sem internet, recebiam seus vizinhos para mostrar e compartilhar a novidade”, conta Ariane, que a partir daí passou a pesquisar sobre o assunto. Já como mestranda na UFSM, Ariane ficou sabendo do investimento da prefeitura de Estrela-RS para levar o acesso digital até a zona rural do município. Desde 2007, a administração municipal

Foto: Pedro Porto

chega até o


tem implantado centrais que distribuem sinal de internet banda larga aos moradores do campo. Diante disso, Ariane decidiu aplicar sua pesquisa neste município. Para a dissertação, intitulada Quem está online? Um estudo de caso sobre o uso e apropriação da internet por agricultores familiares de Estrela/RS, Ariane entrevistou quinze famílias da zona rural de Estrela que faziam uso da internet, assim como Irineu. Além de usar a web como fonte de informação e para comunicação, Irineu, 57 anos, é um caso à parte.

Ele conheceu Eva, 43 anos, através de um site de relacionamentos em 2008. O casal seguiu o namoro à distância, por meio da internet, até que, em agosto de 2009, decidiram morar juntos. Eva se mudou para Estrela, e os dois se casaram. Irineu, descontraído, diz que além de ter “baixado” a esposa da internet, ainda usa a tecnologia para auxiliar nas atividades do campo. “Uma anomalia que apareça nas ovelhas, uma peste no pomar, tudo isso eu posso descobrir o que é na internet”, pondera.

em nome da educação

Foto: Arquivo pessoal

Segundo os relatos dos entrevistados Conforme Ariane pôde observar em sua pesquisa, a participantes da pesquisa, o uso da rede é chegada da internet influencia diretamente no cotivariado. Há os que a utilizam para entre- diano dos entrevistados e amplia a informação no tenimento, lazer e também como ferra- meio rural. Novas técnicas para o manejo do campo menta para ajudar com as questões ligadas e maneiras de reorganizar a produção estão sendo à produção rural. Outro apontamento da introduzidas a partir da web. É o que se chama rurbapesquisa é o fato de a tecnologia ser insta- nização: a intensa ligação entre o rural e o urbano, lada para auxiliar nos estudos das crianças ocasionando mudanças nas atividades do campo. e adolescentes, como foi, por exemplo, na Mas, conforme alerta Irineu, se deixar, a internet casa de Arvido Schroer Baumbach, de 71 consome o dia inteiro. “Eu sou determinado, entro anos, produtor de leite e suínos. meia hora, faço as minhas coisas, e deu.” Esse ponto Em meados de 2008, também foi observado por Ariane. Há os que utilizam a internet Em alguns casos, o uso desmedido quando a internet chegada rede causou atrasos nas atividava à zona rural, Arvido para entretenimento, lazer des da propriedade e o afastamento ouviu falar que com a e também como ferramenta novidade poderia fazer entre os familiares dentro de casa, para ajudar com as questões uma vez que o uso do computavárias coisas. Mesmo sem dor é uma atividade basicamente ter certeza dos benefícios ligadas à produção rural individual. que a tecnologia poderia De qualquer maneira, não se pode negar a evoluproporcionar, Arvido solicitou a instalação. A casa, hoje, cerca de cinco anos depois, ção. Há alguns anos, os pioneiros no uso da tecnoconta com um computador, um notebook, logia em Estrela sofriam com a internet discada, que um netbook e um tablet. deixava a linha ocupada e encarecia a conta telefônica. A novidade ganhou rapidamente Agora, o sistema é outro. Funciona quase igual ao dos Adriana, 36 anos, e Wiliam, 18, filha e grandes centros, com a diferença do verde à janela, neto de Arvido. Adriana, às vezes, precisa do ar puro e da tranquilidade do campo. da ajuda do filho Wiliam, mas já conse- a Repórter: Natascha Carvalho gue navegar sozinha. Além dos amigos e parentes que encontrou nas redes sociais, ela busca receitas culinárias, artesanato e trabalhos manuais. Para Wiliam, estudante do curso técnico em agropecuária no Colégio Teutônia, na cidade vizinha, a rede é indispensável para realizar os trabalhos de aula. Ter acesso à web em casa facilita a vida do estudante, que pode realizar suas tarefas sem ter que se deslocar até a escola para acessar a internet. No final do ano, Wiliam irá prestar vestibular para Medicina Veterinária na UFSM. Se for aprovado, o contato com a mãe e os avós poderá ser mantido através da internet, quando ele se mudar para Santa Maria, mas desde já a rede se mostra útil. “A internet já ajudou, eu fiz minha Do Ceará ao Rio Grande do Sul: Irineu e Eva se conheceram em um site de bate-papo. inscrição pela web!”, conta o estudante. tecnologia

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la

bella Fotografias revelam os encantos de um domingo ensolarado na bucólica Silveira Martins

A palavra “berço” muitas vezes é usada para passar a ideia de origem ou de conforto. Berço da Quarta Colônia, Silveira Martins está entre os lugares que conseguem conciliar bem os dois conceitos no mesmo espaço. Entre a típica e convidativa culinária local, a beleza simplista e a tranquilidade pacificadora, a Città Bianca (Cidade Branca), como era originalmente chamada por seus fundadores italianos, oferece paz de espírito de sobra para passar um final de semana tranquilo e revigorante. O ensaio a seguir foi fotografado em uma auspiciosa tarde de domingo e foi feito em parceria com o curso de Turismo da Unidade Descentralizada de Educação Superior da UFSM em Silveira Martins (Udessm). O curso, que pretende formar profissionais com base no planejamento turístico sustentável, tem nas paisagens da cidade e de toda a Quarta Colônia de Imigração Italiana a matéria-prima necessária para ajudar no desenvolvimento turístico da região. Texto e fotografias: Pedro Porto

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ensaio


ensaio

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O trabalho, instrumento de luta fez das serras um lar, um jardim, fecundou amor, fé e consciências, esperança, alvorada sem fim florescendo a Quarta Colônia, Cita Nuova, Silveira Martins. Trecho do hino de Silveira Martins Aristilda Rechia

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recordações

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Sobre existir contra o

vento por Cristian Poletti Mossi*

Dias atrás, enquanto caminhava pela cidade, vi um menino que andava de bicicleta e, sem nenhum pudor ou medo, soltava as mãos do guidão e abria os braços como asas, feliz da vida, descendo a rua em alta velocidade. Invejei-o. Como invejei aquele menino em uma fração de segundos que ele passou por mim! Invejei-o como há muito não invejava algo ou alguém. Não o invejei só porque ele fazia isso com a tranquilidade e a maestria de um profissional, ou porque ainda por cima de tudo conseguia fechar os olhos e sorrir sentindo a brisa batendo em seu rosto enquanto o peso de seu corpo o levava sem destino, mas principalmente porque ele, embora corresse um risco real – já que não possuía nenhum equipamento de segurança e a via por onde andava não era das mais tranquilas com relação ao trânsito de outros veículos que o ultrapassavam desarvorados às seis da tarde – não se importava com o que acontecia ao seu redor. Aquele menino não tinha antes nem depois. Senti inveja dele porque simplesmente não parecia estar indo para lugar algum. Ele sequer parecia ter vindo de qualquer lugar. A vida dele naquele instante era somente entrever sua existência gargalhar contra o vento, sem lhe passar pela cabeça o perigo da queda sobre a bicicleta desassegurada. Vida em estado puro, movimento-sopro que se refratava no instante de sua passagem. Aquele menino era tudo o que eu também queria ser. Trajeto sem destino, ponto de partida misterioso, ponto de chegada sem controle. Fração de vida que preferia, em uma breve passagem, ser por inteiro, esquecer os para sempre e os por enquanto inventando um soluço de tempo entre os dois. Aquele menino era apenas existência contra o vento, riso solto, e só.

*Cristian Poletti Mossi é formado em Desenho e Plástica - Bacharelado e Licenciatura e atualmente cursa Doutorado em Educação na UFSM

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escritos




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