6 minute read

ARTEFICIAL

CHICO SCIENCE NÃO SABIA, mas foi profético ao cantar que “computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro” na década de 1990. Graças à inteligência artificial (IA), a mais estranha das ideias pode se materializar numa nova imagem num piscar de olhos. Nada a ver com aquela arte digital feita em softwares de edição, ao longo de horas e por uma pessoa de carne e osso. A novidade é de outro patamar: a partir de uma descrição textual aleatória, o programa é capaz de produzir uma ilustração novinha em folha, em segundos.

Duvida? Pense numa imagem sem pé nem cabeça. Por exemplo, uma pintura a óleo de um urso panda vestindo sombrero mexicano, segurando um suculento taco? Essa ilustração, apresentada na página ao lado, foi produzida pela ferramenta Dall E 2. Todas as imagens desta reportagem foram criadas dessa forma. O nível de exigência pode variar conforme o gosto do cliente. Reprodução de estilos, como cubismo, e de técnicas, como aquarela? Basta acrescentar isso no pedido e a IA se encarrega da produção.

Advertisement

Ferramentas de geração de imagens criadas artificialmente como o Dall E 2 e o Midjourney estão disponíveis para qualquer um. O que todas têm em comum é associar textos a imagens e, dependendo da programação, geram resultados mais ou menos refinados. Com tanta facilidade, é natural que um amplo espectro de questionamentos surjam. São mesmo criadas “do zero”? Infringem direitos autorais? De quem é a autoria? São consideradas obras de arte? Há originalidade nelas? São eticamente defensáveis? Contribuem para a desinformação? Uma coisa de cada vez.

Bruno Fernandes, mestre e doutor em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que o Dall E 2 se baseia num tipo de aprendizado de máquina, chamado de redes neurais. Elas operam de maneira parecida ao cérebro humano: cruzam e relacionam informações, enxergam padrões e podem aprimorar suas capacidades na busca por resultados cada vez mais precisos. “A gente consegue fazer com que a máquina aprenda por meio de exemplos rotulados, não-rotulados, por reforço positivo, negativo. Dentro do aprendizado de máquina há vários modelos”, explica Fernandes.

Quanto mais rotulações são feitas pelo programador, mais aprofundada é a busca — e mais sofisticados tendem a ser os resultados. Pelo processo de difusão, o Dall E 2 associa termos e atribui características estéticas a um objeto descrito na caixa de texto. O nome da ferramenta ressalta sua intenção de sintetizar arte e tecnologia de ponta: é um jogo de palavras entre Salvador Dalí, pintor surrealista espanhol, e a animação da Disney/Pixar, Wall-E .

Tamanha sofisticação autômata não poupou nem um dos maiores nomes do barroco europeu — para não dizer da história da arte. Uma campanha de marketing da Microsoft e do banco ING recriou o que seria “a próxima obra” de Rembrandt. O pintor holandês, morto em 1669, teve suas cores, estilo e pinceladas analisados de perto e reproduzidos por inteligência artificial. A máquina “deu à luz” uma pintura totalmente nova, com características de uma obra barroca. Em setembro, o designer Jason Allen venceu um concurso de belas artes no Colorado, Estados Unidos, e gerou polêmica nas redes com sua obra criada por meio do Midjourney: pode uma máquina produzir arte?

As fotografias foram o centro de discussão parecida, e isso já ao longo do século 19. Detratores da então novidade diziam que bastava apertar um botão, e tudo se resolvia. As fotos não passariam de mera reprodução mecânica da realidade. Portanto, eram desprovidas de valor artístico. Aspectos da atividade dos fotógrafos como domínio de técnicas

“Pintura a óleo de um urso panda vestindo sombrero mexicano e segurando um suculento taco”*

“Dois jogadores de futebol erguem a taça da Copa da Mundo: Messi e Mbappé, estilo aquarela ”* e “olhar privilegiado” eram relegados ao campo das trivialidades. Não tardou até que o entendimento fosse contestado e desconsiderado. Hoje, é difícil encontrar quem não reconheça a fotografia como expressão artística. No caso das imagens geradas por IA, o caminho é o mesmo?

Obras de arte derivadas são velhas conhecidas do público: são criações feitas a partir de uma original. A debochada Mona Lisa de bigode, de Marcel Duchamp, é um exemplo dessa categoria. Na música, são ainda mais comuns as derivações e samples. Para as ilustrações criadas por inteligência artificial, pode-se dizer que a imagem obtida não se baseia em apenas uma ou duas originárias, mas num conjunto delas. O resultado é uma síntese de sabe-se lá quantas outras — tudo depende da profundidade da busca e do domínio que o usuário tem da ferramenta que utiliza.

Elementos como intenção e originalidade são pontos-chave quando se fala em arte, por se relacionarem com a autoria das obras. A quem se deve atribuí-la: ao usuário que digita termos aleatórios e chega a uma imagem única ou ao programador que “ensina” a máquina como realizar uma pesquisa adequada? São protagonistas e, ao mesmo tempo, variáveis. Seriam coautores? Bruno, que também é professor do curso de Engenharia da Computação na Universidade de

Pernambuco (UPE), prefere não arriscar uma resposta, mas aponta para outra possibilidade: a de pertencer à própria ferramenta — ou ao proprietário dela, para ser exato. Isso porque as imagens podem ser protegidas por direitos autorais.

A OpenAI, empresa desenvolvedora do Dall E 2, se apresenta como uma instituição sem fins lucrativos, com a missão de “assegurar que a inteligência artificial beneficie toda a Humanidade”. Alguns se referem à atividade como “IA amigável”. Pelo menos essas eram as pretensões ao ser fundada, em 2015. Quatro anos depois, a empresa recebeu 1 bilhão de dólares da Microsoft, que se tornou sua principal investidora. Em seguida, a OpenAI anunciou a intenção de comercializar licenças para alguns de seus serviços. Maior banco de imagens do mundo, a Shutterstock declarou, em outubro, que passaria a vender imagens criadas pelo Dall E 2. Contrariou a Getty Images, que, no mês anterior, anunciou que estava descartando a comercialização das imagens produzidas por IA.

SE POR UM LADO as redes neurais podem produzir obras de arte, outro de seus desdobramentos é ainda mais chocante. Olhe para as quatro pessoas na parte inferior da página ao lado e tente adivinhar quantas existem e quantas não. Se respondeu uma, duas ou três, sinto informar, mas errou. Todas foram criadas artificialmente por meio de redes generativas antagônicas — tradução livre de generative adversarial networks (GANs). Essa classe, dentro do que se compreende por machine learning, é capaz de aprender “brincando de polícia e ladrão”, como simplifica o professor da UPE. A máquina extrai dados de uma foto e aplica a outra. Nesse jogo de tira e põe, uma imagem nova é produzida. Assim, ela chega ao cúmulo de apresentar rostos realistas — até familiares — que não existem. Prato cheio para a desinformação, ainda que alguns digam que elas são apenas para ilustrar um conteúdo qualquer.

Qual a chance de uma imagem gerada por IA ser tão parecida com uma pessoa, a ponto de lhe causar problemas? “As bases que a ferramenta usa são conhecidas”, diz Bruno Fernandes, descartando a hipótese de roubo de imagens. Mas não rechaça a eventualidade, ainda que remota. Ensina quais pontos podem denunciar possíveis fraudes: “Olhos, cabelos, fundo da imagem e roupas tendem a sair com mais imperfeições em criações artificiais”.

Uma revolução acontece debaixo dos seus dedos. Avatares personalizados feitos a partir de fotografias reais tomaram conta das redes sociais no fim do ano passado, como os gerados pelo perfil @lensa.ai. E a tecnologia não para. Hoje, sete em cada oito pixels para games online já são produzidos por IA, como no clássico Portal, da NVidia. O risco é grande, principalmente quando fatos valem menos do que convicções e crenças. Não resta dúvida: computadores fazem muito mais do que arte. Fazem, inclusive, o contrário dela. Ou, retomando Chico Science, fica o recado: “Computadores avançam, artistas pegam carona/ Cientistas criam o novo, artistas levam a fama”. @

*As legendas das imagens foram traduzidas para o português. O site do Dall-E 2 exige termo na língua inglesa para geração de imagens.

O Aterrorizante Chatgpt

Nos primeiros dias de janeiro, um assunto antes circunscrito a rodinhas de programadores, nerds e geeks tomou conta do mundo: o ChatGPT, robô de inteligência artificial da OpenAI. Do Vale do Silício ao Fórum de Davos, na Suíça, das redes sociais ao noticiário geral, havia um misto de surpresa e temor em relação ao potencial que a engenhoca é capaz de fazer. Até a gigante Alpha, dona do Google, começou a se preocupar com o “concorrente”. Pergunte qualquer coisa ao robô, qualquer coisa mesmo, e o ChatGPT levará segundos para responder. Com uma base de dados a partir do que já circula na internet e até 2021, o algoritmo elabora de três a quatro parágra- fos de resposta. Testado, ele tiraria nota suficiente para ser aprovado em provas para médico, advogado e MBA nos Estados Unidos. Diante da novidade, escolas de Nova York decidiram proibir o acesso à ferramenta (bloqueando seu acesso), uma forma de evitar que os alunos colem respostas de avaliações. É o mesmo que enxugar gelo. (EN)

This article is from: