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INVESTIGAR É PRECISO
from Revista Cásper #33
Saiba como Hyury Potter produziu a reportagem “As pistas da destruição”, publicada no Intercept Brasil
NO FIM DE 2019, já era evidente o retorno do ciclo de destruição da Amazônia. Os dados de satélite permitiam estimar com precisão o tamanho da área desmatada, acendendo um sinal de alerta. Em novembro daquele ano, o site InfoAmazonia lançava o projeto “Amazônia Minada”, uma ferramenta que permite a qualquer pessoa mapear onde há pedidos de garimpo, inclusive em áreas de proteção e terras indígenas - o que é proibido por lei. Hyury Potter, um repórter investigativo daqueles fuçadores, viu algo a mais nesses dados e decidiu ir além. Três anos depois, ele publicou uma reportagem especial pelo Intercept
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Brasil que começava assim:
Um pequeno risco marrom que rasga o verde da mata. É assim que uma pista de pouso construída no meio da floresta se parece quando vista por imagens de satélite. Lá embaixo, no chão da Amazônia, são estradinhas de às vezes meros 300 metros de extensão e uns 20 metros de largura, o suficiente para pousos e decolagens de aeronaves de pequeno porte.
Em agosto de 2022, a reportagem “As pistas da destruição” foi ao ar com a denúncia da existência de 362 pistas de pouso clandestinas ou sem autorização da Agência Nacional de Aviação, a Anac, perto de áreas devastadas pelo garimpo na Amazônia. As pistas descobertas por Hyury revelam uma pequena extensão da grande cadeia do ouro - que começa em um garimpo ilegal na floresta amazônica, passa pelo processo conhecido por “esquentamento do ouro” (similar à lavagem de dinheiro) e termina em mercados internacionais e empresas globais de tecnologia.
A convite da CÁSPER, o jornalista Hyury Potter revela como foi o processo de apuração e produção da reportagem especial, um trabalho que levou mais de um ano para ser feito. Um repórter investigativo enxerga o que a maioria dos jornalistas não costuma ver e sua curiosidade o motiva a não se contentar com a primeira informação. Hyury olhava as imagens de satélite e via que, de tempos em tempos, clareiras em formato de linhas retas eram abertas no meio da mata. O que seriam elas?
“Quando você analisa as imagens por satélite é muito comum encontrar perto de um garimpo ilegal uma pista de pouso. Pelo acesso difícil na Amazônia pode demorar dias para você acessar algum lugar. Se tiver um avião, são alguns minutos, por isso são construídas tantas pistas”, afirma o repórter.
Pelo “Amazônia Minada”, é possível mapear as atividades de mineração que sobrepõem (total ou parcialmente) Terras Indígenas e unidades de conservação da Amazônia Legal. O mapa é atualizado por um robô, acompanhando os dados do governo. O projeto também tem uma conta no Twitter (@amazonia_minada) que tuíta toda vez que um requerimento de mineração é aberto em uma região ilegal, mostrando o requerimento, o dono do processo, a mineradora e sua dona.
Partindo desse projeto e depois de muita leitura das imagens via satélite, não demorou muito para Hyury ligar os pontos e entender que as pistas estavam sendo usadas para manter a cadeia produtiva de ouro ilegal. Com isso em mente, só foi possível começar uma investigação com financiamento. O repórter aplicou para uma bolsa de um ano, a Rainforest Investigations Network e conseguiu o apoio financeiro do Pulitzer Center. Esse passo foi essencial para garantir que ele tivesse recursos, tempo e apoio para fazer a reportagem.
Com o financiamento em mãos, Hyury precisava de dados. Ele pediu ajuda da organização e agência de produtos digitais para o meio ambiente Earthrise Media, que costuma colaborar com projetos de jornalismo investigativo. A agência criou um programa de inteligência artificial que descobria as pistas abertas no meio da Amazônia. Aquilo que Hyury identificava no olho passou a ser feito por um robô, vasculhando o trecho de terra em linha reta no meio da floresta verde: “Basicamente vamos ensinando um robozinho a detectar as coisas. Ele vai cometendo erros e você tem que ensinar o que está certo ou errado. Então demora, a primeira base de dados que eles me enviaram levou cerca de 3 meses”.
Com esses dados detectados, Hyury utilizou o programa gratuito QGIS, que permite fazer upload de dados geoespaciais e mapas. Nesse caso, ele utilizou o programa para fazer o carregamento dos dados entregues pela Earthrise Media e imagens de satélites de outro programa, o Planet. Por meio do QGIS, foi possível ver a localização das pistas em cima do mapa e das imagens de satélite, que aparecem em pontos vermelhos.
Com essa base de dados no programa, o próximo passo foi a checagem manual e individual das pistas. Primeiro, excluir da conta as pistas já registradas pela Anac, incluindo aeródromos privados, pistas civis, militares e aeroportos - elas eram legais.
PARA ESSA CHECAGEM, Hyury teve o auxílio de alguns colegas da rede Rainforest Investigation Network, da bolsa do Pulitzer. Os jornalistas Manuela Andreoni e Blacki Migliozzi do New York Times, o ajudaram a levantar os dados e checar as pistas individualmente, processo que durou mais alguns meses. Como resultado dessa colaboração, Manuela e Blacki utilizaram o programa e a base de dados para fazer uma outra reportagem, denunciando como as pistas ilegais levam minerais tóxicos para comunidades indígenas, contaminando-as. Essa repor- tagem, intitulada The Illegal Airstrips Bringing Toxic Mining to Brazil’s Indigenous Land, foi publicada no New York Times em agosto de 2022.
Para Hyury, grande parte da reportagem é um trabalho coletivo: “Aquela ideia do repórter que vai fazer tudo sozinho, quietinho na sua casa e conseguir aquele grande furo não existe mais. Muitas vezes você vai precisar de ajuda, seja por que não tem acesso a um site, documento ou lugar específico, ou por que outra pessoa tem uma expertise maior em um determinado assunto ou por que algum documento está em uma língua que você não domina”.
Paralelamente ao longo processo de checagem, também foi feito uma extensa apuração sobre as mineradoras, a cadeia do ouro, documentos, pesquisas, inquéritos e entrevistas para entender melhor o assunto. Hyury precisou ainda viajar para Santarém e Itaituba, no estado do Pará, e para a capital Manaus (AM) para fazer entrevistas. Uma dessas viagens rendeu um mini-documentário sobre os pilotos por trás das pistas da Amazônia.
Outro braço da reportagem principal foi uma investigação sobre uma mineradora da empresa Gana Gold Mineração, que começou a operar irregularmente e já extraiu 32 vezes mais ouro que o previsto. Como resultado, Hyury publicou no Intercept Brasil a reportagem “Gana por Ouro”.
Na era do digital, a produção de conteúdo muitas vezes é pautada pela quantidade de cliques e pelo engajamento. Já o jornalismo investigativo prefere ir por um outro caminho: “Uma coisa que sempre aconteceu comigo durante a minha carreira é que quando você faz uma história bem apurada, por mais que ela não fique muito popular, as pessoas que efetivamente trabalham com isso (pesquisadores, pessoas do Ministério Público, Polícia Federal) sabem reconhecer o que é uma matéria frágil e o que é uma bem apurada e confiável.”
É por meio dessas pessoas que o trabalho jornalístico transforma a sociedade: “A Polícia Federal cita a gente em um dos inquéritos, o Ministério Público abriu investigações depois da nossa matéria da Gana Gold, procuradores, delegados de polícia e pesquisadores pediram para ver os dados e conversar também”.
No caso dessa reportagem, um outro exemplo de uma boa consequência foi o da empresa Apple. A gigante mundial de tecnologia retirou a refinadora Marsan Refinadora de Metais da lista de seus fornecedores por ela comprar ouro da Gana Gold. Outras empresas, como Google, Amazon, e Tesla, também estavam entre os compradores de ouro retirado ilegalmente da Amazônia. O mundo agora sabe disso graças a Hyury Potter. @