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A ARTE DE OUVIR
from Revista Cásper #33
Se antes faltava público para prometida “era do podcast”, agora não falta mais: são 34,6 milhões de ouvintes no Brasil
COMO SE TORNAR PESSOAL , falando com milhões? Essa pergunta, um dos grandes enigmas que os comunicadores tentavam desvendar há tempos, agora já tem uma resposta: podcasts. Promessa desde pelo menos 2004, quando surgiram os primeiros produtores, esses programas audiofônicos já conquistaram uma audiência estimada em 34,6 milhões de ouvintes no Brasil. E se ainda hoje persiste uma maioria que produz episódios por hobby (65,7%, segundo a Podpesquisa 2020/21), há outros 14,6% que contam com uma equipe de produção remunerada. Em outras palavras, a brincadeira ficou séria.
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A hora e a vez dos podcasts chegou e sempre que isso acontece pipocam marcos aqui e acolá. Foi o que aconteceu com os sete episódios de A Mulher da Casa Abandonada, podcast produzido pelo jornalista Chico Felitti para a Folha de S.Paulo. A reportagem especial fez história ao bater 7 milhões de downloads pouco mais de um mês após ser disponibilizada. Virou febre, até mesmo entre quem nunca tinha ouvido um podcast na vida.
“Onde faço natação, velhinhas de 60 ou 70 anos comentavam sobre o podcast enquanto faziam hidroginástica”, conta Chico Felitti à revista CÁSPER. Com bom humor, ele comenta que ficou ainda mais surpreso com o conteúdo sendo consumido pela outra ponta da pirâmide etária: “Amigos me escreviam, dizendo que filhos e sobrinhos estavam escutando o podcast. Eram grupos demográficos com os quais não contava”.
A Mulher da Casa Abandonada, história investigada e narrada por Felitti, causou comoção por tratar de um caso de escravidão moderna soterrado sob as paredes de uma mansão em Higienópolis, tradicional bairro da elite paulistana. O jornalista se interessa por “lendas urbanas”. Em 2017, fez uma longa reportagem sobre o “Fofão da Augusta”, forma folclórica e pejorativa como era conhecido Ricardo Corrêa da Silva. A reportagem viralizou no Buzzfeed. Naquela época, Felitti já era consumidor e entusiasta dos podcasts, tanto que chegou a transformar o conteúdo viral sobre Ricardo em material audiofônico. “Mas o texto acabou tendo um alcance muito maior”, conta ele, num misto de orgulho e lamento.
Ao avaliar sua produção mais recente para a Folha, Felitti não esconde a expectativa que tinha antes de ir ao ar: “Sabia que não seria um flop”, brinca. Explica que empenhou à série grande esforço de apuração, que resultaram em 5 horas e 23 de minutos de programa. Além disso, seria improvável que o desenrolar da história de Margarida Bonetti não gerasse espanto e burburinho. No entanto, confessa que não imaginava bater números tão expressivos. Toda a mídia tradicional, sensacionalista inclusive, correu atrás da história pinçada por Felitti.
NA CORRIDA POR CLICKS, sai na frente quem pode dar visibilidade ao conteúdo que faz — mesmo que seja em nome de likes e shares. Grandes empresas de jornalismo inseridas no eixo Sul-Sudeste, como a Folha de S.Paulo, são velhas conhecidas do público e dos produtores de conteúdo. Esses veículos contam com milhões de seguidores nas redes sociais. Isso facilita impulsionar aquilo que produzem com facilidade e “cutucam” os algoritmos a todo momento. A disputa acaba se tornando desleal quando ao lado estão jornalistas independentes de iniciativas nativas digitais.
Aldenora Cavalcante é jornalista, podcaster e co-fundadora do Malamanhadas. A iniciativa nasceu e se consolidou com quatro mulheres que queriam abordar questões de gênero e classe. “Eu trabalho num podcast independente do Piauí que trata de direito das mulheres. Minha possibilidade de furar bolhas é menor”, avalia ela. Mesmo assim, Aldenora conta que seus episódios “são consumidos por pessoas de outros gêneros, Estados e regiões do País” e favorece a difusão de narrativas não hegemônicas, produzidas por pessoas que não estão nos veículos tradicionais. Para a jornalista, a essência do podcast é essa.
O Malamanhadas é hoje uma produtora que incentiva a criação de conteúdos do Nordeste. Para captar recursos e alcançar a sustentabilidade, as empreendedoras oferecem serviços de consultoria, roteirização, pós-produção e distribuição. Elas realizam palestras e cursos, contam com financiamento coletivo e, recentemente, ganharam seu primeiro edital. “Nós ainda não nos financiamos de maneira satisfatória, mas estamos construindo o que queremos.”
Podcasts levam uma vantagem sobre outras mídias por serem compatíveis com a lógica “multitarefa” do cotidiano. Quem nunca ouviu um programa arrumando a casa, lavando louça ou no deslocamento para o trabalho? Mas o hábito não é unanimidade: “Prefiro parar para ouvir, assim como para ler um livro. É uma mídia de aprendizado”, confessa Aldenora. A podcaster atesta o potencial educativo dos podcasts citando o Projeto Querino. Ao ler a biografia da filósofa brasileira Sueli Carneiro, Aldenora se deparou com informações sobre o movimento negro, trazidas por episódios produzidos por outro podcast.
O Projeto Querino é uma iniciativa do jornalista Tiago Rogero para recontar a história do Brasil de um ponto de vista afrocentrado. A inspiração veio do jornal New York Times, que aposta no formato e, em 2019, lançou uma série de cinco episódios em podcast chamada 1619 Project. A produção abordava o racismo presente na sociedade norte-americana. Os 400 anos da chegada dos primeiros africanos escravizados às colônias britânicas da América do Norte serviram como ponto de partida. Apresentado pela jornalista Nikole Hannah-Jones, o podcast rendeu a ela, no ano seguinte, o maior prêmio do jornalismo: o Pulitzer. Tiago Rogero ficou tão impactado com o programa que partiu em busca de parceiros para tirar um projeto seu do papel. A solidez chamou atenção do Instituto Ibirapitanga e da Rádio Novelo, com quem Rogero firmou parceria.
Chico Felitti, responsável pela apuração da série de reportagens “A Mulher da Casa Abandonada”.
Durante um ano, o jornalista reuniu fontes documentais, preparando-se para a etapa das entrevistas. Mas nada poderia antecipar o contato tête-à-tête com os personagens. Rogero lembra de Anderson, que ao sair para procurar um emprego, foi preso sob a acusação de roubo por 16 meses. Na delegacia, embora a vítima do assalto tenha dito que o ladrão tinha uma cicatriz no rosto — e Anderson não tinha — ele foi detido por ser o único negro entre dois brancos na sala de reconhecimento. “Aquilo mexeu muito comigo. Quando saí da entrevista, entrei no carro e desabei a chorar”, lembra Rogero, que decidiu se dedicar de corpo e alma ao Projeto Querino. O podcast ganhou o reforço de mais de 40 profissionais, em sua maioria negros e mulheres.
Para Tiago Rogero, pesaram dois aspectos na escolha do formato podcast: a vontade que ouvintes têm de aprender algo novo e o potencial de atingir públicos amplos — “furar a bolha”, no jargão digital. Terminar um episódio sabendo mais do que quando ele começou gera bem-estar e vínculo entre o conteúdo e seus consumidores, ainda que o formato seja pouco explorado no Brasil: “Tem gente que acha que podcast é sinônimo de vídeo.”
ESTÉTICA SONORA é outro aspecto do qual não se pode abrir mão para criar um podcast. “Tem produção que é fast food. Aqui, a gente faz maniçoba”, conta Tiago. O prato típico do Pará, feito com a folha da mandioca mo- ída, demanda sete dias de cozimento até que possa ser consumido. Criar ambiência, textura e sensações, assim como preparar maniçoba, leva tempo. O resultado é uma imersão na narrativa, graças ao trabalho de estimular o imaginário por meio de sons.
Autor do livro A República das Milícias, Bruno Paes Manso proporcionou ao ouvinte um mergulho no ambiente da violência urbana. Em 2021, ano seguinte à publicação do livro, o jornalista aceitou a proposta da Globoplay de adaptar sua obra para oito episódios do podcast homônimo, produzido também pela Rádio Novelo.
Relatos desconfortáveis sobre a criminalidade, vividos por carrascos e vítimas do mecanismo miliciano fluminense, ganharam melodia e sotaque. Os áudios captam riso, choro e hesitação. Humanizam personagens de maneira única, como o impresso jamais conseguiria. O objetivo do jornalista, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) é o de analisar a criminalidade dos pontos de vista histórico e sociológico. Ele também faz parte do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Ao longo da carreira, a maioria em veículos impressos como Veja e Estadão, Bruno Paes Manso se habituou a entrevistar criminosos, sempre procurando ouvi-los e não julgá-los. Temas delicados nem sempre podem ser sonorizados, como as tantas confissões de crimes que ouviu dos entrevistados. Mas o jornalista conta que gravar entrevistas vai além da ambientação: “É um método. Gosto de gravar sempre que posso”, revela.
A vivacidade dos relatos também implica em dilemas: as fontes podem ser reconhecidas? Quais descrições fazer das personagens? Como selecionar o grau de exposição? São questionamentos éticos presentes quando vidas estão em jogo. Bruno Paes Manso afirma que não fez acordos formais: “É mais uma conversa, o santo que bate e a pessoa topa falar”. Os riscos que as revelações poderiam significar para todos os envolvidos foram devidamente avaliados. Depois de colhidas e publicadas as entrevistas, nenhum contato adicional foi feito com as fontes: “Nunca mais conversei. Publiquei na torcida de que tudo desse certo. Esse é o espírito”, diverte-se Bruno. Com o podcast, boa parte das histórias que só o jornalista tinha colhido agora pode ser ouvida por milhões. @