REGINA PARRA JACOPO TINTORETTO LASAR SEGALL PAUL KLEE COLETIVO LÂMINA
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com DESIGNER Moiré Art
Capa: Regina Parra, Tenho medo que sim, 2018 (Detalhe).
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Contracapa: Jacopo Tintoretto, O Casamento de Ariadne e Bacchus, 1578. © Photo Archive - Fondazione Musei Civici di Venezia
REGINA PARRA
12 PAUL KLEE
6 De Arte a Z 72 Livros 73
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LASAR SEGALL
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Coluna do meio
JACOPO TINTORETTO
COLETIVO LÂMINA
RESENHAS
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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte
SARAH MAPLE ESTREIA NOS EUA A artista britânico-iraniana Sarah Maple recebeu ameaças de morte por seu trabalho ousado que aborda religião, política, imigração e gênero. Agora, como parte de sua primeira exposição individual nos EUA, intitulada – um aceno à epidemia de tiroteios em massa no país – Maple exibe um de seus trabalhos mais controversos: (2010), um autorretrato pintado em que ela está usando um vestido branco com uma mancha vermelha na virilha.
ESTÚDIO DE TRACEY EMIN VIRARÁ MUSEU
PINTURAS DE HITLER NÃO VENDEM
LOUVRE ABU DHABI REVELA
No futuro
Em leilão
Um Rembrandt
A artista revelou planos de transformar seu estúdio, no Reino Unido, em um museu quando ela morrer. Emin adquiriu um espaço de 9 mil m2 em 2017 para abrigar seus grandes estúdios de pintura e escultura. Agora, ela diz que começou a criar estratégias sobre o armazenamento de estoques, de modo que ela não precise mais fazer compras para o museu póstumo.
Cinco aquarelas, atribuídas ao ditador, não venderam na casa de leilões Weidler em um controverso leilão de nazista. As pinturas foram estimadas entre US$ 21 - US$ 50 mil. Alguns suspeitam que as obras tiveram problemas em encontrar compradores devido ao fato de que, poucos dias antes, 63 obras atribuídas a Hitler foram confiscadas da casa de leilões por suspeita de falsificação.
O museu adquiriu uma pintura do século 17 do velho mestre holandês da cabeça de um jovem homem com as mãos entrelaçadas: . A pequena pintura de Cristo faz parte da exposição
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. Porém, o foco está em outros rumores. Ainda não há notícias sobre o muito atrasado primeiro aparecimento de em Abu Dhabi.
GIRO NA CENA PRÊMIO DE ARTE MARCOS AMARO Inscrições até 28/02 Realizado pela Fundação Marcos Amaro em parceria com a SP-Arte, o Prêmio de Arte Marcos Amaro tem como objetivo fomentar a produção artística contemporânea, agraciando artistas em meio de carreira que tenham uma produção experimental, a partir da inovação em técnicas, suportes e linguagens. Para sua terceira edição, será oferecida uma premiação no valor de R$ 50 mil ao artista selecionado. Além disso, o vencedor desenvolverá um projeto inédito de até R$ 45 mil, a ser exposto na Fábrica de Arte Marcos Amaro (Itu, São Paulo), em 2020. Inscreva-se em fmarte.org.
Garoto Propaganda Andy Warhol roubou a cena mais de três décadas após sua morte em um comercial para o Burger King, na forma de um clipe longo e inédito do artista pop comendo um sanduíche . O enigmático spot de 45 segundos, transmitido durante o Super Bowl LII é um segmento de um filme de 1982 do cineasta Jørgen Leth, intitulado , uma série de vinhetas sobre a vida nos EUA.
Para despedir “Lamentamos a sua perda, mas celebramos o legado interminável da sua arte e o seu impacto na forma como vemos o mundo.” Arne e Milly Glimcher, co-fundadores da Pace Gallery, em declaração pela morte de Robert Ryman, artista americano minimalista conhecido por suas telas brancas sobre branco.
Cópia ou mera coincidência? O artista russo-americano Vladimir Kush entrou com uma ação em um tribunal de Nevada acusando a estrela pop Ariana Grande de plagiar duas de suas pinturas no vídeo de seu hit . Em duas pinturas de 1999 e 2000, e , uma vela gigante queima em frente a um céu azul nublado, com uma mulher em silhueta dentro do pavio, cena muito semelhante lançada pela cantora.
GIRO NA CENA
As dez melhores cidades da arte Nos EUA, um novo estudo analisou quais cidades têm o maior número de negócios relacionados . com a arte Curiosamente, Nova York não faz parte da lista. O site imobiliário Apartmentguide registrou apenas cidades com população acima de 100 mil. No top 3 aparecem Berkley, na Califórnia; Miami, na Flórida e Charleston, na Carolina do Norte, no topo da lista.
Projeto de Jenny Holzer é cancelado Comissão da artista para a Bienal do Deserto X foi cancelada devido a um surto de pneumonia que aflige carneiros na área e poderia colocar em risco multidões de visitantes que se dirigissem ao local. Holzer planejava instalar suas projeções de texto de LED – desta vez usando trechos de poesia e depoimentos de membros da família, ativistas e sobreviventes cujas vidas foram abaladas pela violência armada – no oeste das montanhas, em Whitewater Preserve.
8 DE ARTE A Z
ERIKA VERZUTTI NO POMPIDOU Como parte da terceira edição do programa , o Centre Pompidou apresenta pela primeira vez na França uma rica exposição dedicada à artista brasileira Erika Verzutti. Composta principalmente por esculturas, o trabalho da artista se caracteriza pela sensualidade de suas formas, pela tatilidade dos materiais e pela inclusão de detalhes inesperados. Realidade e ficção, natural e artificial são todas as relações de dualidade subjacentes à sua pesquisa. Mostra até 15/4. Em breve matéria na Dasartes.
VISTO POR AÍ Artista Jennifer Rubell está convidando o público a jogar migalhas em uma modelo vestida como a primeira dama Ivanka Trump, enquanto ela as aspira. O trabalho se encaixa perfeitamente dentro da obra provocativa da artista. Antes, ela convidou os visitantes da galeria a jogarem uma torta na cara dela, como parte de sua obra (2018), inspirada no movimento #MeToo e nas discussões sobre gênero e dinâmica de poder.
ALEX FLEMMING A Emmathomas Galeria abre a exposição "ALEX FLEMMING", com a nova série de trabalhos do artista criada conceitualmente em Berlim em 2018. As 27 peças apresentadas foram trabalhadas pelo artista em programa de residência em um ateliê na sede da Fundação Marcos Amaro em Itu. O artista, que chama sua nova série de , utilizou pias de banheiro das décadas de 70 e 80 nas quais esculpiu, com ponta de diamante, desenhos de mãos. As pias são mostradas de maneira não convencional: são postas em pedestais como um objeto que remete à forma dos altares domésticos do barroco brasileiro. Ao todo são 27 pias de formatos e cores diferentes, que farão uma metáfora sobre como as pessoas se comportam no atual cenário 10 AGENDA
político, lavando as mãos para as grandes responsabilidades que o país enfrenta. Alex Flemming utilizou a passagem bíblica sobre a crucificação de Jesus Cristo como base de sua crítica. são as palavras que Pôncio Pilatos teria dito ao apresentar Jesus perante a multidão e ordenar que eles escolhessem o destino do filho de Deus. Após o povo optar pela crucificação de Jesus Cristo, Pôncio Pilatos lavou as mãos diante de todos, e disse: "estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso". Disso nasceu o ditado 'lavo as minhas mãos'.
Alex Flemming • Ecce Homo • Galeria Emmathomas • São Paulo • 14/2 a 23/3/2019
Tenho medo que sim, 2018.
REGINA
PARRA Eu me levanto
EM NOVA EXPOSIÇÃO, A ARTISTA REGINA PARRA INVESTIGA O EROTISMO E A VULNERABILIDADE COMO MEIOS PARA CRIAÇÃO DE NOVAS POTÊNCIAS
POR GALCIANI NEVES Não é a realidade que é exterior, é que não há exterior em uma prática artística em que o corpo é matéria, instrumento e itinerário de percepções. A menos que admitamos (perspectiva cega e reducionista) um trabalho de arte como um corte aleatório em um percurso disperso demais ou, por outro lado, como o resultado de uma produção, com intuitos extremamente egoicos, 15 CAPA
devemos reconhecer que uma das mais fundamentais vocações das práticas artísticas é se aliar com a complexa possibilidade de experienciar, deglutir e compartilhar o mundo no corpo, como desdobramentos e afetações do corpo, como reverberação entre um corpo e outro. Há tempos as elucubrações acerca de corpo e arte foram se destituindo da ideia de corpo como abrigo ou amparo
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Como responder com jogos perceptivos e gestos de embate político àquilo que desafia, gera rupturas e esfacelamentos ao corpo no espaço, no tempo, na experiência, e, portanto, na mutualidade desses agentes?
do "eu" e de arte como atividade de subsistência de um corpo com objetivo de expressão. Concepções substancialmente distintas dessas rasas ideias têm emergido em manifestações políticas recentes (#elenao #mariellepresente) e em práticas como a pintura, a dança, o teatro, a performance e a caudalosa mistura entre essas linguagens, desde o início do século 20, colocando-nos processos de alargamento e deslimites do corpo: onde acontece o movimento? Onde começa e termina o corpo? Limites antes estáveis, circunscritos e constituintes de identidades fixas se desterritorializam e estimulam uma alforria dos fluxos e refluxos do corpo (coletivamente, inclusive). Mas o que significa experimentar e compartilhar as coisas e os acontecimentos, através e a partir do corpo, dado que perceber é, também, participar de algo e se inserir nas tramas desse algo? Como responder com jogos perceptivos e gestos de embate político àquilo que desafia, gera rupturas e esfacelamentos ao corpo no espaço, no tempo, na experiência, e, portanto, na mutualidade desses agentes? Podemos localizar nessas inquietações o exercício poético/político de Regina Parra. Nesse sentido, seus trabalhos não são comentários, mas reinvenções e transfigurações do que o pensador francês David Lapoujade nomeia como "a realidade do fato", ou seja, daquilo que "é o caráter indubitável da realidade" que modifica "alguma coisa no modo de existência dos seres" (2017). São processos em que a artista renegocia e convoca outros sentidos e dúvidas implicados em um mundo que não segue o mesmo a cada novo instante e frágil acontecimento.
Como se outra estratégia de se atentar às coisas também as modificassem em certa medida, Regina Parra age na "patuidade" da existência dos tormentos, dos desejos, dos temores, dos gozos e das feridas. , a artista, consciente Na mostra dos riscos operantes na topografia onde funcionam os dispositivos de poder (feminicídio, heteronormatividades, sexismos) e onde toda e qualquer inocência é banida, articula um "estar com - e, por isso, ser" em fabulações tanto de resistência, quanto de falência do corpo, em que se dão a ação e a reação habituais do corpo, o impacto das imagens e das táticas de opressão, expectativas do dar-se a ver, falar e amar. E, assim, seus trabalhos ousam encarar a sobrevivência de um corpo reduzido à sua "nudez última" e as restrições de espaços aos quais o corpo teima em se reestabelecer em sua memória muscular subjetiva e encarnada. Sob a ótica das condutas sexistas que incidem no corpo-mulher e suas insurgências, Regina Parra nos provoca a pensar como nos situamos, construímos presença e afetamos os territórios de tensão, em que procedimentos de redução, constrangimento e estagnação assolam o corpo com "proibição verbal e a obrigação de dizer a verdade, de esconder aquilo que se faz" e com obrigação designativa de se apresentar e "decifrar quem se é" definitivamente. As adjacências entre as pinturas e a série , dirigida por Regina Parra coreográfica e Bruno Levorin, e performada por Clarissa Sacchelli e Maitê Lacerda, abrigam traduções, rearranjos e vocabulários que impulsionam insubordinação. 16 REGINA PARRA
À direita: Not waving, but drowning, 2017. Na página seguinte: Not waving III, 2018.
O pássaro Crició, que habita as florestas latino-americanas, é o assunto das pinturas (2016). Comumente conhecido como "Capitão da Floresta", ele anuncia com um canto muito peculiar se algum movimento anormal acontece na mata. Seu apelido se deve ao fato de que ele
18 CAPA
revelava escravos em fuga. Nesta série, Regina Parra pinta Crició silenciado, em um repouso forçado que o destitui de sua tarefa na perseguição. O ponto de partida dos trabalhos (2018) e (2017) é o afogamento de um refugiado em um dos famosos canais
de Veneza. Muitos turistas assistem passivos aos gestos de socorro do homem, até que ele morre sem ajuda. Regina Parra investiga uma espécie de coreografia instintiva de gestos nos instantes finais de um afogamento, sem ilustrá-los ou encená-los, mas na tentativa de visualizá-los como uma
"metáfora para a luta de sobrevivência e exaustão de nossa era contemporânea. (...) O esgotamento, portanto, não deve ser tomado como um sinal de fraqueza, mas sim como uma expressão do poder resistivo do corpo. Essa é a ideia que mais me interessa: o corpo em colapso como
Assentamento, 2013.
meio de comunicação em sua crueza", explica a artista. O políptico (2018) tem como título a fala de Ofélia, personagem da peça (15991601), de William Shakespeare. A personagem parece desenhar o caminho de sua própria morte, pois concede sua vida e castidade ao pai e ao irmão. Regina Parra refaz Ofélia em um corpo que nos encara com gestos entre a condenação e a lascívia. A frase que está na última pintura da série é um tormento impassível diante da incerteza e pode ser lida como a pronúncia de um corpo em amplitude de possibilidades e audácia. E, daí, sucumbir não é uma opção, mas se incondicionar como potência do fazer de si à revelia ao outro. Em (2018) e (2018), o espaço é uma figura ficcional que enfatiza os gestos de um corpo que age e também padece sem culpa. Parece ser nessa dualidade que o corpo em cena se opõe às normas do regime representativo: o feminino, a musa, o corpo posado. O corpo aqui é movimento. São pernas que flutuam ou tentam caminhar? É um corpo depois da queda ou se trata de um instante de mero desleixo?
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Tenho medo que sim, 2018.
Desenho da série Tecelãs, 2003.
Lasciva é uma palavra, como muitas, que está no dicionário flexionada no gênero masculino: "que ou aquilo que incentiva aos prazeres do sexo; lúbrico. Que provoca a luxúria ou é por ela inspirado; sensual, libidinoso". Nessa série coreográfica, que permeia questões que atravessam o erotismo, a vulnerabilidade e a força, com gestos, imagens e palavras, Regina Parra, em parceria com Bruno Levorin e Haroldo Saboia, investiga o que pode distinguir urgência de velocidade, questionando clichês e fetiches existentes no imaginário masculino colonial quando os corpos de duas mulheres ativam a cena. "Lasciva se manifesta como um anseio revolucionário por um modo completamente diferente de amar e se relacionar. Assim, permanece fiel ao que ainda está por vir", conta Regina Parra. As duas pinturas (2018) e (2018) são estudos de observação das experimentações de Clarissa Sacchelli e Maitê Lacerda durante os ensaios. Regina Parra esgarça a distinção entre o que é próprio e o que é culturalmente aprendido e entre o que é imaginado e o que é sentido. Assim, desenha o lugar do "eu" no corpo como uma possibilidade de escolha, de estar ali presa e a ponto de se soltar. Nesses instantes de corpo, tudo é permeado pela vontade.
Ainda assim, como pó, vou me levantar foi inscrita por Regina Parra na parede da sede Fundação Marcos Amaro - a Fábrica de Arte Marcos Amaro. Trata-se de um verso do poema - tradução do poema (1978), de Maya Angelou (dançarina, cantora, atriz, motorista de ônibus, editora, professora, pesquisadora e ativista americana). Calcar esse verso na parede responde a um modo de escrita formal, a serviço da palavra. É, portanto, uma teimosia, como que para sair da explanação do assunto e entrar em sua livre operação. "Ainda assim" é uma condição temporal que tenta vencer as domesticações e suas aparências monstruosas. Regina Parra força a escrita a se liberar e aderir ao que chama Blanchot de um jeito "anônimo, distraído e disperso" de estar em relação com x outrx, assim, tudo pode ser questionado por todxs incluídxs no diálogo. - outro excerto da tradução do poema O título da mostra , de Maya Angelou, aponta também para a seguinte questão: quais ações são possíveis para nos expor a pele, sim, mas também para expurgar e contrariar os ditames do patriarcalismo? Angelou se rebela contra a história, contra o medo e
o terror, e afirma um erguer-se do próprio corpo em sua elegância perturbadora, em sua esperança altiva e sexualidade. A poeta narra um corpo que se levanta em si e dança "como se tivesse diamantes na altura da virilha" e ainda traz os "dons de seus antepassados", pois esse corpo, ao se levantar, ergue também "o sonho e as esperanças do escravos". "Eu me levanto" é uma frase de embate radical às formas de dominação e verbalização de um transbordamento do corpo na brutalidade de sua força. Ainda citando Foucault e suas pesquisas acerca das regras e proibições da sexualidade e acerca das restrições a que esta é violentamente submetida, podemos pensar o pronome "me", neste verso de Angelou, como um pronome de hiper-significação que remete à ação do "eu". Um "eu" erótico, político e livre. Nada ensimesmado, nem cerrado em si, mas intensamente poroso e acessível. Ou seja, Parra conjuga e
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adensa enfaticamente a ação do "eu", a partir de fundamentos operantes, transitórios, da ordem do desejo que são sempre silenciados e negados. Nessa perspectiva, a intenção do "eu" de Parra com Angelou é adensar simultaneamente a força de autoria do eu e as intensidades da expansão incontida do "eu" quando com outrxs.
‘Eu me levanto’ é uma frase de embate radical às formas de dominação e verbalização de um transbordamento do corpo na brutalidade de sua força.
Lasciva e Lasciva II, 2018.
Verbalizar um "eu" incontido e em esfera pública não pretende fechar os trabalhos da mostra em um "eu" - único agente - mas integrar esse "eu" na cumplicidade de um "nós", que vibramos em modos de existência e nos desvelamos aderindo e nos nutrindo de outras epidermes. Não se trata, portanto, de uma individuação como potência de invenção, mas da integração de nossas muitas línguas e adversidades para nos assegurar a mobilidade em saltos sempre hiperbólicos e imanentes e nos impulsos mais modestos e involuntários do tônus do corpo.
Galciani Neves é curadora, professora e pesquisadora no campo das artes visuais.
Regina Parra: Eu me levanto • Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA) • 15/12/2018 a 9/3/2019
PAUL
KLEE
CONSIDERADO UM DOS GRANDES ARTISTAS DO SÉCULO 20, PAUL KLEE TEM UMA OBRA AINDA POUCO EXPLORADA, SUBMERSA EM POESIA E COR. EXPOSIÇÃO NO CCBB MERGULHA EM SEU MUNDO PARA TRAZER À TONA O ENCANTO DESTES TRABALHOS
POR GONÇALO IVO Poucos artistas do século 20 são tão singulares quanto o suíço Paul Klee. Sua obra é como um grande lago que guarda todo o frescor e também o insondável mistério da vida. Imagens se sucedem evocando algo inconsciente e imemorial. Há um tempo passado, um resto de lembrança da infância que emerge e nos coloca dentro de um sonho desconexo, num mundo habitado pela doce fantasmagoria de orvalhos, vertigens e eclipses. Poderíamos também associar a viagem por meio desta obra, como a escolha entre caminhos em claro/escuro, por estradas que ora nos levam a passeios por jardins paradisíacos, ora a pesadelos de fogo e morte. A obra de Paul Klee vai mais além da radiosa aurora e da terra que reclama sua parcela da luz e do calor do sol. Desce também às raízes das plantas, aos estratos e aos seres inferiores que habitam o solo, tornando-o fértil; e às tempestades que as irrigam e alimentam. O mar de significados que identificamos em sua pintura se deve ao reflexo e ao trânsito que esta estabelece entre o sonho, a realidade, o vivido individual e a memória coletiva. Suas imagens são carregadas de valores ambíguos numa simbiose entre tempos, arquétipos, símbolos...
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À direita: Park near Lu, 1938. Foto: Zentrum Paul Klee.
Acima: "O" breites Format, 1915. Foto: Zentrum Paul Klee, Berna, doação de Livia Klee.
Sua monumental obra vai mais além de ser o reflexo ou resultado de seu tempo histórico, pois há nela uma internalidade espiritualmente próxima a artistas como Morandi, Zurbarán, Volpi, Hopper, criadores que construíram uma muralha ao seu redor para forjar uma obra única e autorreferente. Percebemos sua arte como vitrais em vastos mosaicos de sucessivos planos 28 PAUL KLEE
de transparência. Paul Klee plasma o instinto e a intuição infantil a uma sofisticada estrutura pictórica ancorada em décadas de investigação, querem seu laborioso ofício de professor da Bauhaus, de músico, pensador, ou no eufórico e cotidiano embate de ateliê - a pintura, seus materiais e procedimentos. E é justamente essa forma pendular de colisões e coexistências que
Como qualquer artesanato, pode acabar produzindo objetos úteis, ou pode chegar ao nível da arte.
Página 27: Pendurado na parede, 1926. À esquerda: Anni-Alber em seu estúdio de tecelagem no Black Mountain College, 1937. Abaixo: Estudo para um wallhanging não executado, 1926. Todas as Fotos: © 2018 The Josef and Anni Albers Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York/DACS, London.
A pintura de Paul Klee se nutre de geometria da imprecisão, do mundo manual que transmite calor e humanidade.
harmonizam o todo, isto é, o que há de onírico e esplendoroso se associa a uma secreta mecânica matemática. A pintura de Paul Klee se nutre da geometria, como atestam, por exemplo, as centenas de diagramas minuciosamente traçados a régua, compasso e esquadro em Weimar, entre 1920 e 1922. Porém, esta é uma geometria da imprecisão, do mundo manual que transmite calor e humanidade à obra.
À esquerda: Com Verticais, 1946 © 2018. Foto: Tim Nighswander/Imaging4Art. Acima: Nó, 1947 e Colar, c.1940.
Acima: Comedy, 1921. Foto: Tate. Purchased.. À esquerda: Static-Dynamic Intensification, 1923. Foto: Metropolitan Museum of Art, New York.
Homenagem a Paul Klee, do poeta João Cabral de Melo Neto: Nele houve o insano projeto De envelhecer sem rotina; E ele o viu, despelando-se De toda pele que tinha. Sem medo, lavava as mãos do que até então vinha sendo; de noite, saltava os muros, saía a novos terrenos.
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Pasto, 1958.
Fire at Full Moon, 1933. Foto: Museum Folkwang, Essen, Germany.
Acima: Redgreen and Violet-yellow Rhythms, 1920. Foto: © The Metropolitan Museum of Art. À direita: Steps, 1929. Foto: Moderna Museet - Stockholm, Sweden.
Paul Klee não chegou a ver todo o horror da Segunda Guerra Mundial. Morreu no dia 29 de julho de 1940, aos 60 anos, no vilarejo de Muralto, na Suíça. Porém, desde seu nascimento (1879), em uma localidade próxima a Berna, pôde presenciar fatos como a virada do século que tanto prometia aos homens com suas vanguardas artísticas, avanços científicos e técnicos, indústrias, novas ideologias, compromisso de bem-estar bem, como a devastadora Primeira Guerra Mundial. Podemos estabelecer alguns paralelos da obra de Klee com a de outros artistas contemporâneos a ele, como Herman Hesse, Piet Mondrian, Thomas Mann, Emil Nolde e Carl G. Jung - este, principalmente, como Klee, trouxe para seu campo de indagações a questão do mito, do arquétipo, do símbolo, das sociedades ditas primitivas, e da sincronicidade da vida e do sonho. 34 ALTO RELEVO
Carta aberta, 1958.
A obra de um artista é a manifestação da razão, fruto de seu raciocínio e projeção do seu tempo ou é a revelação de sua imaginação, instintos emanados de seu corpo, sua carne e seu espírito? E, afinal, o que queria dizer Paul Klee quando proclamava que era necessário ver "a realidade através das coisas visíveis"? A arte e a cultura classificadas no mundo ocidental como primitivas ou populares - não se - e, de forma menos arrogante e polida como na França, baseia em extensos discursos racionais ou filosóficos para se autojustificar. Sua existência orbita o que é sagrado, ritual ou religioso. Simplesmente é! O homem contemporâneo vem perdendo a capacidade de encantantamento e contemplação. O passar do tempo é cada vez mais rápido, rarefeito e caro. Refiro-me agora precisamente ao momento de espanto no qual o artista é subjugado pelo fazer e a embriaguez do ato criativo percorre sendas
Acimna: A Face of the Body, Too, 1939, 1119 e Woman in Traditional Costume, 1940, 254. Fotos: Zentrum Paul Klee, Berna, doação de Livia Klee.
desconhecidas e misteriosas. Existe, portanto, mais além, uma realidade intangível - esconde-se nos objetos cotidianos, em fatos, paisagens -, pois em tudo há segredos. Se todo o homem é uma ilha, a obra de arte faz revelar sua geografia. Torna visível o contorno insular. Essa cartografia afetiva nos revela praias e baías tranquilas e também seus arrecifes submersos. A obra inquietante de Paul Klee é então o astrolábio que nos conduz durante a viagem, mas não nos assegura a chegada ao destino. 36 PAUL KLEE
Gonçalo Ivo é artista plástico, com ateliês em Paris e Teresópolis e tem fascinação pelos museus de Madri.
Paul Klee • Equilíbrio Instável • Centro Cultural Banco do Brasil • São Paulo • 13/2 a 29/4/2019 Rio de Janeiro • 15/5 a 12/8/2019 Belo Horizonte • 28/8 a 18/11/2019
LASAR SEGALL
ENSAIO SOBRE A COR
38 FLASHBACK
MOSTRA NO SESC APRESENTA O ESTUDO DA COR COMO MEIO EXPRESSIVO ESSENCIAL À COMPREENSÃO DA PINTURA DE LASAR SEGALL. DIVIDIDA EM 4 SEGMENTOS, A EXPOSIÇÃO TRAZ OBRAS DE VÁRIAS FASES DO ARTISTA E SUA VIDEOBIOGRAFIA
POR MARIA ALICE MILLIET ANGÚSTIA (de meados da década de 1910 a 1923) Nascido na comunidade judaica de Vilna (Lituânia), (1891-1957) adquiriu formação acadêmica em Berlim e participou da Secessão de Dresden (1919), onde vivenciou a rebeldia dos jovens expressionistas. A turbulência política que caracteriza os anos que antecederam à Primeira Guerra Mundial e as terríveis consequências do conflito levaram o artista a acolher em sua arte a dor e o desamparo dos refugiados, dos pobres e das prostitutas. Nesse período, suas realizações se mostraram firmemente enraizadas na experiência libertadora do expressionismo. Além de adotar uma temática cara à sensibilidade do meio artístico que frequentava, Segall trabalhou o espaço raso de suas composições com formas geometrizadas e esquemas cromáticos altamente sofisticados em sintonia com as vanguardas de seu tempo. Durante esses anos difíceis – de sofrimento pessoal e coletivo – ele amadureceu como artista e deu os primeiros passos em sua carreira. Muito ao gosto expressionista, a exacerbação de sentimentos se manifestou no desenho anguloso das figuras e no uso de cores intensas e contrastantes, como se observa nas obras (1917), (1919) e (1919). As cores, aparentemente arbitrárias, – roxos, azuis profundos, rosas macerados e amarelos biliosos – são como gritos de angústia em uma sociedade doente. Cabe lembrar que São Paulo conheceu o uso expressivo da cor na célebre exposição de Anita Malfatti em 1917. (1915-16), na época, foi um escândalo! No início da década de 1920, a pintura de Segall perdeu a estridência. Ele aderiu a uma paleta de meios tons tendente à monocromia. Nas obras (1920), (1921) e (1921), um véu de melancolia desce sobre os esquálidos personagens e os ambientes que habitam. A fragilidade da condição humana foi tema recorrente na obra do artista. À esquerda: Aldeia Russa, 1917-18. Todas as fotos: Jorge Bastos. Coleção Museu Lasar Segall - IBRAM_MinC.
Abaixo: Menino com Lagartixas, 1924. À direita: Mãe Negra Ente Casas, 1930.
40 LASAR SEGALL
SOB O SIGNO DOS TRÓPICOS (de 1924 a 1935) Assegurada a modernidade de sua pintura, Segall obteve os primeiros sinais de reconhecimento, com algumas obras adquiridas por museus alemães. É com essa bagagem que chegou ao Brasil, fixando-se em São Paulo, em 1924. Sob o impacto da luz tropical, sua pintura ganhou nova intensidade. O artista investiu em uma paleta solar em que sobressaíam os vermelhos e os ocres terrosos e o verde exuberante da vegetação. Mais tarde ele diria: “o Brasil me revelou o milagre da luz e da cor”. Um quadro emblemático dessa fase é (1927), no qual um mar de folhas de bananeiras serve de pano de fundo a uma vigorosa cabeça de negro. Seduzido pela generosidade da terra, Lasar desejava permanecer no país, enquanto Margarete Quack, sua esposa, decidiu retornar à Alemanha. Superada a separação, ele se casou com Jenny Klabin, de família judia radicada no Brasil. Com o apoio dela, aproximou-se do núcleo modernista e se deixou conquistar pela pregação de uma arte “nacional”. Na ânsia de incorporar a identidade brasileira, ele se apresentava como mulato, no de 1930. Não lhe foi difícil abandonar o repertório europeu e partir para a descoberta de elementos “exóticos” que infundiriam brasilidade à sua pintura. Até porque a força das culturas “primitivas” já vinha servindo de inspiração às vanguardas europeias. Segall, como os viajantes do século 19 antes dele, se sentia atraído pelo exótico da natureza e pela gente da terra. Bananeiras, palmeiras, largatixas, morros, favelas e jovens negros e uma atmosfera quente e sensual compunham sua visão de Brasil. Percebe-se que era um admirador de Tarsila do Amaral pela adesão a uma pintura lisa de cores saturadas em seus trabalhos.
Refugiados, 1922.
Lรกgrimas de Sรฃo Pedro, 2005-2018.
SOLIEDARIEDADE (de meados de 1935 a 1945) Um cromatismo de baixa intensidade toma conta da pintura segalliana. Em seus quadros prevalecem os ocres, os acinzentados e os pretos temperados por verdes e rosas rebaixados. Nessa fase, predomina a abordagem de temas coletivos relativos à guerra e ao deslocamento de populações marginalizadas, assuntos que tocam a sensibilidade do artista, conhecedor do drama dos judeus e dos horrores da guerra. Mais que qualquer outro pintor brasileiro, Segall sentia o dever de se posicionar frente aos trágicos acontecimentos cujo palco era a Europa pré e pós-Segunda Guerra Mundial. Em obras monumentais como (1936), (1937) 44 FLASHBACK
À esquerda: Pogrom, 1937. Abaixo: Estudo Para Campo de Concentração, 1945.
e (1942), bem como em desenhos fluidos, impulsivos, desesperados, ele trouxe para a arte essas ocorrências, infelizmente tão atuais. Nesses trabalhos, nada existia que não fosse o sofrimento humano. Nenhuma paisagem emoldura os que deixaram sua pátria ou abrigava os cadáveres amontoados. É de gente que essa pintura trata, gente sem nome e sem lugar. Esse enfoque tão especificamente humano levou o pintor a conferir certo realismo às figuras. Sob o aspecto do realismo, Segall se aproximou de Portinari dos (1935) e se distanciou do Picasso de (1937), que considerava um quadro “obscuro”, difícil de ser interpretado. O fato é que, sensíveis à violência e a injustiça social, os três artistas produziram obras de denúncia, iconografia impregnada de tons sombrios.
Ao lado: Retrato de Lasar Segall. À direita: Favela, 1955.
INSTROSPECÇÃO (de meados de 1940 a 1957, ano da morte do artista) Certos temas – cabanas, bois e florestas – eram recorrentes nessa fase que correspondia a um momento de introspecção do artista em seu refúgio nas montanhas de Campos do Jordão. Do ponto de vista pictórico, Segall fez um exercício de depuração em que aliou a forma compacta a um cromatismo requintado para revelar o palpitar da vida, sob a aparente quietude da zona rural. “Suas paisagens são retratos psicológicos da natureza”, observou Roger Bastide. E também uma viagem dentro de si mesmo, eu diria. Nessas obras permaneceram os tons baixos. Dessa feita, são azuis, verdes e amarelos em gradações sutis, tão requintadas quanto a pátina que recobre os troncos úmidos das árvores no interior da mata. Nas montanhas da serra da Mantiqueira, Segall reencontrou a choupana na floresta dos contos do folclore russo, motivo que corresponde a um movimento de íntimo retorno a situações da infância. Em outros quadros, mesclou corpos femininos e troncos em ritmos verticais, como se vê em (1956) ou integrou o gado ao campo, os homens à terra, cada grupo circundado por um halo luminoso, em uma visão quase mística da natureza. Com as florestas, o pintor chegou às bordas da abstração, atento aos intervalos de claro e escuro, ou seja, à luz como elemento fundante da pintura. Por fim, chegou aos estudos das favelas que antecedem sua morte, em 1957. São tentativas de transpor para a tela a dura realidade social dos que vivem precariamente. Sentia-se atraído pela estrutura construtiva desses aglomerados, tal como Milton Dacosta quando pintou a cidade vista da janela de seu apartamento. Ambos, artistas maduros de tradição figurativa, foram, até certo ponto, contaminados pela vaga do abstracionismo geométrico, em alta no Brasil da década de 1950. Dacosta chegou lá e depois recuou. Já Segall morreu afirmando sua fidelidade ao humanismo e à representação pictórica. 46 LASAR SEGALL
Suas paisagens são retratos psicológicos da natureza.
Maria Alice Milliet é curadora em Artes Visuais, crítica e historiadora da arte, com doutorado em História da Arte pela USP.
Lasar Segall • Ensaio sobre a cor • SESC 24 de Maio • São Paulo • 26/10/2018 a 5/3/2019
1519 TINTORETTO 2O19 ANOS
ALPHONSE MUCHA
Mulher com margarida, 1900. Š Mucha Trust 2018
EM COMEMORAÇÃO AOS 500 ANOS DO NASCIMENTO DO MESTRE RENASCENTISTA VENEZIANO JACOPO TINTORETTO, EXPOSIÇÕES EM VENEZA, NOVA YORK E WASHINGTON EXPLORAM TODA A REALIZAÇÃO DO ARTISTA COMO PINTOR E DESENHISTA
POR ELISA MAIA Jacopo Robusti, conhecido como Tintoretto, nasceu em Veneza entre 1518 e 1519, não se sabe ao certo. Por ocasião de seus 500 anos, sua obra está sendo mostrada em uma iniciativa que atravessa o Atlântico, organizada pela Fondazione Musei Civici de Veneza e pela National Gallery de Washington. As obras do mestre italiano, que estiveram em exibição na Gallerie dell'Academia e no Palazzo Ducale de setembro de 2018 a janeiro de 2019, serão apresentadas a partir de março na National Gallery, em Washington, no Metropolitan Museum e na Morgan Library, em Nova York. Com curadoria de Robert Echols e Frederick Ilchman, que vêm há quase uma década desenvolvendo o projeto, a mostra tem o intuito de lançar uma nova luz sobre o trabalho do mestre italiano, cuja importância fora da Itália acabou sendo de certa forma obscurecida em razão da proeminência de outros grandes mestres com quem disputou espaço, em especial, Ticiano. A segunda metade do século 16 em Veneza reuniu pintores de talentos extraordinários, mas nenhum artista da época rompeu de modo mais drástico com as exigências clássicas, sob quase todos os aspectos, do que Tintoretto. Ticiano impressionou papas e reis com a suntuosidade de seu colorido e a sensualidade de suas pinturas e Veronese se distinguiu pela harmonia, elegância e sofisticação de suas composições. Tintoretto, no entanto, foi certamente entre os três o melhor contador de histórias, tendo criado memoráveis pinturas narrativas de forma inventiva e surpreendente para os padrões de sua época. Sua capacidade de representar ações que parecem se desenvolver no tempo levou Jean-Paul Sartre a se referir ao pintor como "o primeiro diretor de cinema". Suas obras subverteram a perspectiva linear, um dos pilares da pintura renascentista, e criaram um estilo singular e amplamente influente, que inspirou artistas como El Greco, Velázquez e Rubens. As composições de pujante energia espacial, a acentuada carga dramática e a escala sobre-humana de suas figuras, assim como a predileção por pontos de vista incomuns que às vezes davam a impressão de que suas figuras saíam do plano pictórico, questionou, no seu tempo e nos séculos seguintes, o que poderia a pintura.
São Jorge e o Dragão, c. 1553/1555.
51
Abaixo: Catedral de São Vito, São Venceslau (Duque
O biógrafo do século 16 Carlo Ridolfi conta que Jacopo fizera um brevíssimo estágio como aprendiz na oficina de Ticiano, de onde fora mandado embora sob as acusações de que sua pintura seria grotesca. Sem qualquer educação formal, aos 20 anos entrou em contato com o Maneirismo por meio de um de seus célebres representantes, Francesco Salviati. O estilo adotado por uma nova geração de pintores em Roma e Florença, entre os quais se destacavam Bronzino e Parmigianino, adotava algumas convenções anticlássicas ao mesmo tempo em que olhava para a geração de Michelangelo e Rafael como sua maior referência, buscando pintar "à maneira" dos grandes mestres. 52 JACOPO TINTORETTO
O milagre do escravo, 1947-48.
A personalidade competitiva e a forma agressiva como Tintoretto disputava as comissões para criar obras gigantescas que dominariam espaços públicos proeminentes de Veneza foram características importantes da sua identidade como artista. Entre os mestres da pintura do século 16, nenhum chegou perto de produzir a quantidade de obras que Tintoretto realizou para prédios públicos, igrejas e palácios particulares. Nos períodos em que as comissões se avolumavam, conta-se que seu ateliê funcionava como uma verdadeira corporação e Tintoretto, embora ainda criando as composições e supervisionando de perto a produção das obras, delegava a execução das pinturas aos seus assistentes. Em períodos mais calmos, ficavam apenas os ajudantes da família, entre os quais estavam seus filhos, Domenico e Marietta, conhecida na época por seu talento como "La Tintoretta". Em 1548, Tintoretto entregou à Scuola Grande di San Marco uma pintura de proporções gigantescas que se tornaria um divisor de águas em sua retrata carreira. a história de São Marcos, patrono da cidade, que salvou um escravo que desobedecera ao seu senhor ao venerar as relíquias do santo em Veneza. De acordo com a lenda, São Marcos conseguiu bloquear de forma milagrosa cada uma das punições que o mestre tentou infligir ao escravo cegá-lo com uma estaca de madeira, amputar suas pernas com um machado e golpear sua boca com um martelo. Entre os diversos aspectos inovadores da obra, está a forma como Jacopo conseguiu reunir vários episódios consecutivos na mesma composição.
A carga emotiva da obra não é expressa pelas expressões faciais, mas pelos gestos e movimentos poderosos dos corpos. O grupo de pessoas que assistia ao milagre direciona a ação da esquerda para a direita, onde o mestre abre os braços em um gesto de arrependimento, enquanto a figura encurtada de São Marcos parece mergulhar de cabeça na cena, sua silhueta coberta pela sombra que contrasta de forma dramática com a luminosidade do corpo nu do escravo. 54 DO MUNDO
A carga emotiva da obra não é expressa pelas expressões faciais, mas pelos gestos e movimentos poderosos dos corpos, que Jacopo pinta com maestria. O foco na maneira como as figuras se dobram, se contorcem e se esticam é uma característica que acompanha toda a sua obra. São os corpos musculosos e esculturais, por meio de suas ações dinâmicas, os
Minha arte, se é que posso chamar assim, cristalizou.
Acima: Casamento de Caná, 1561. À direita: Forja de Vulcano, 1578.
principais agentes da narrativa. Sua sensibilidade foi comparada a de um diretor de teatro, capaz de movimentar seus atores de forma a evocar fortes sentimentos de empatia no público. A luz, que o pintor utiliza sem observar os critérios racionais da perspectiva linear, funciona como o holofote de um palco que ilumina apenas determinadas figuras enquanto as demais permanecem na escuridão. Essa luz pode passar pelas formas ocultando figuras importantes e realçando secundárias. Elementos que mestres de outrora se esforçariam para salientar com clareza uniforme são omitidos por Tintoretto, que os obscurece ou os torna insignificantes. Muitas vezes as ações principais saem da posição central para habitar as margens da tela, como na pintura (1561), onde Cristo é apenas uma cabeça diminuta ao fundo da longa mesa por onde circula uma multidão de pessoas.
O pescador, tríptico (painel central) e (painel da direita), 2005. © Copyright Paula Rego. Cortesia Marlborough Fine Art.
A Deposição de Cristo, c. 1562.
Salon des Cent: exposição do trabalho de Mucha, 1897.
O Zodíaco, 1896. © Mucha Trust 2018.
Abaixo: Zênite, 1985 (Colaboração com Jean-Michel Basquiat) À direita: A última ceia, 1986.
Algumas das figuras que aparecem no fundo das pinturas de Tintoretto, quando vistas de perto, tornam-se quase abstratas. Indicadas apenas por uma silhueta espiral, pintadas de forma fugidia com tinta branca sobre o fundo escuro, parecem se dissolver no espaço. Essas "pinceladas aparentes" foram criticadas por muitos de seus contemporâneos como evidências de uma atitude descuidada e uma técnica negligente, típicas de um pintor que se comprometia com mais trabalhos do que seria capaz de executar. Tornou-se um lugar comum a 58 JACOPO TINTORETTO
Fantásticas e extravagantes, a mente mais extraordinária que a pintura já produziu.
A Madonna dos Tesoureiros, 1567.
acusação de que Jacopo entregava "obras inacabadas". Giorgio Vasari, conhecido por escrever biografias de artistas italianos, descreveu Tintoretto como "a mente mais extraordinária que a pintura já produziu". Ainda assim, Vasari considerava que suas composições "fantásticas e extravagantes", executadas de maneira contrária às normas, às vezes eram pintadas de forma tão displicente que se podia ter a impressão de que, para ele, a arte não seria mais do que uma piada. Pontuando o caráter inacabado das obras, as "pinceladas aparentes", o crítico advertiu que, tivesse Jacopo pintado à maneira de seus predecessores, teria sido ele um dos maiores pintores que Veneza já produzira. Em realidade, ao tornar visíveis as evidências materiais de seu processo, Tintoretto estava rompendo com um dos princípios basilares do método de representação dominante na época, segundo o qual quanto mais identificada com a realidade empírica fosse (1579) é um uma pintura, mais virtuosa ela seria. exemplo singular desse gesto. Na pintura é possível ver escuras linhas verticais
de pigmentos que escorreram pela tela. Tal como um mágico que revela seu truque, ao deixar aparentes vestígios do processo de criação da imagem, como o excesso de tinta e as marcas do pincel, Tintoretto exibe ao espectador a artificialidade da representação pictórica. Seu tratamento do espaço, considerado demasiado livre e fluido para os padrões da perspectiva linear renascentista, também foi alvo de críticas. Nas pinturas de Jacopo, o espaço é investido de energia e as formas se unem e se fundem produzindo a ilusão de movimento. Limites permanentes cedem lugar a contornos inquietos e fugidios que favorecem a ligação entre os elementos. As massas de claro e escuro se buscam umas às outras e o todo passa a ser animado por um movimento misterioso. Dependendo
60 DO MUNDO
da forma como o foco do espectador se move pela tela, o espaço pode se transformar, contrair ou expandir. Como disse o acadêmico Hans Tietze sobre as figuras de Tintoretto, elas "não parecem estar em chão firme, mas em movimento no 'deck' de um navio em alto mar". Surpreendentemente, fora da Europa nunca houve uma exposição individual do artista e, mesmo em sua cidade natal, até o ano passado, a última retrospectiva de sua obra havia sido em 1937. O principal impedimento teria sido o imenso formato de suas obras, que tornam algumas delas muito difíceis de serem transportadas. Além disso, o pintor é tão intimamente relacionado à cidade de Veneza que por muito tempo predominou o entendimento de que uma mostra individual do artista não funcionaria fora da cidade. Sabe-se que, nas
Abaixo: São Roque curando as vítimas da peste, 1549. À esquerda: Summer, c. 1546/1548.
execuções de suas obras, Tintoretto prestava especial atenção ao local em que seriam expostas, estabelecendo deliberadamente uma integração entre o espaço pictórico e o espaço real. A forma como o pintor adaptou suas pinturas à arquitetura da Scuola Grande di San Rocco é um exemplo digno de nota. O voo do anjo Gabriel no quadro (1583) espelha a entrada do visitante pelo portão principal da sala, enquanto a paisagem que serve de pano de fundo em (1582) dialoga com o formato das janelas adjacentes do prédio. Assim como foi alvo de duras críticas, a obra de Tintoretto também acumula elogios de figuras célebres. El Greco, comumente considerado o principal discípulo do pintor, desqualificou a crítica de Vasari como "enganosa e perversa" e enalteceu (1549) como "a melhor pintura do mundo". Édouard Manet relatou ao seu biógrafo que nunca visitara o Louvre sem parar por um tempo diante do autorretrato que Tintoretto pintara em 1588, considerado por ele "uma das pinturas mais belas já feitas". Henry James descreveu seu encontro com as obras do pintor como uma espécie de revelação, afirmando que "Ticiano é um grande poeta, mas Tintoretto é quase um profeta". Giacometti também registrou seu impacto diante de suas obras em Veneza, pelas quais diz ter sentido um intenso afeto, "foi uma descoberta maravilhosa para mim, era como se um mundo novo tivesse se descortinado, um mundo que ao mesmo tempo refletia exatamente o mundo real ao meu redor". Tintoretto criou imagens de um mundo transformado pela imaginação, no qual as leis da gravidade, da refração da luz e do movimento operam de formas imprevisíveis. É possível dizer que este mundo fantástico de muitas formas 61
Abaixo Auto-retrato, 1588. À direita: São Jorge, São Luís e a Princesa, 1552.
espelha a própria experiência visual da cidade de Veneza. Diferente de qualquer cidade do mundo, os cenários de Veneza parecem reproduzir uma atmosfera onírica, onde as formas sólidas se dissolvem na neblina, a paisagem acompanha o movimento constante das gôndolas, edifícios magníficos emergem de dentro das águas, os raios de sol percorrem os caminhos oblíquos das ruelas, sendo suavizados pelo vapor da água e dispersos em feixes de luz de diferentes tons. Quem percorre as ruas ou os canais da cidade de Veneza experimenta uma sensação vertiginosamente peculiar de tempo e espaço. As distâncias e as direções parecem seguir uma lógica própria que nos causam um senso de desorientação. A paisagem parece fluida, cheia de contrastes e surpresas. Alternam-se de forma inesperada as
sombras das ruelas estreitas e a luminosidade intensa de uma praça ou do grande canal. Da mesma forma que a clareza absoluta era tão natural aos olhos de Leonardo da Vinci, o movimento deve ter sido natural aos olhos de Tintoretto, que aprendeu a ver nessa cidade em que a lógica parece dar lugar à magia.
Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.
Tintoretto: Artist of Renaissance Venice • National Gallery of Art • Washington • 24/3/2019 a 7/7/2019
COLETIVO LÂMINA POR THIAGO FERNANDES Em sua 10ª edição, o já tradicional Salão dos Artistas sem Galeria apresenta duas mostras coletivas simultâneas em São Paulo, nas galerias Sancovsky e Zipper, com objetivo de avaliar, exibir, documentar e divulgar a produção de artistas plásticos que não sejam representados por qualquer galeria de arte na cidade de São Paulo. Entre os selecionados, está o coletivo Lâmina (SP), formado pela dupla Gabriela De Laurentiis e João Mascaro. O Lâmina é um dos diversos coletivos estético-políticos que surgiram a partir das grandes manifestações de junho 64 GARIMPO
de 2013. O fenômeno dos coletivos, impulsionado no início deste século em grande parte dos casos, como busca de alternativas de atuação e de autonomização da figura do artista diante de um sistema artístico insatisfatório - ganhou novos contornos nos últimos anos, quando o principal mote para seu surgimento passou a ser a situação política do país. Esses coletivos mais recentes costumam ter alvos e pautas bem definidos e, no caso do coletivo Lâmina, vemos a ênfase recair sobre a questão da violência policial.
Seu trabalho é atravessado por questões políticas e pela relação entre indivíduo e imagem.
Acima: Controles, 2014-16. À esquerda: Superfície, 2016-18.
A pesquisa do coletivo Lâmina se apropria do volume imagético produzido no contexto das manifestações de junho de 2013 e após. A fotografia, no século 19, teve seu caráter objetivo enfatizado, como "espelho do real", servindo como meio para a antropologia criminal identificar criminosos. Nas recentes manifestações, a fotografia serviu tanto para policiais identificarem manifestantes quanto para que manifestantes pudessem denunciar abusos policiais. Essa objetividade é subvertida pelo Lâmina, que ressalta o caráter subjetivo da imagem fotográfica. A dupla recombina e manipula imagens captadas em manifestações, produzindo novas narrativas e questionando relações de poder. Dessa maneira, o Lâmina não apenas produz as imagens, que teriam natureza documental, mas reapropriam essas documentações transformando-as em dobras dos acontecimentos primeiros. Além de manipulações, o coletivo lança mão de gambiarras em seu processo de à brasileira, re-apropriação imagética. A gambiarra, considerada um implica em desvio ou uma improvisação aplicados ao uso de dispositivos, objetos e espaços antes destinados a outras funções. Tal prática, que possui forte sentido cultural no Brasil, é tomada pelo Lâmina na criação de dispositivos de projeção de imagem, como uma televisão de 14" que tem seu circuito alterado para exibir uma fotografia de forma estática ( , 2015-2016). Quando ligada, a TV exibe automaticamente a fotografia produzida e manipulada pela dupla, propondo uma fusão entre a imagem e o meio físico que a projeta. O mesmo
66 COLETIVO LÂMINA
Acima: Marcha, 2014-18. À esquerda: Tomos, 2014-16.
ocorre em (2014-2016), que consiste em um computador programado para projetar uma única imagem - a fotografia de um policial segurando uma filmadora. Essas gambiarras colaboram com a reapresentação das imagens produzidas pelo coletivo. Dessa maneira, o Lâmina evoca não apenas diferentes olhares sobre a imagem, como também diferentes maneiras de apresentá-la, por meio de dispositivos não convencionais, elaborados especificamente para as imagens que produziram. Os trabalhos do coletivo Lâmina reforçam que nenhuma imagem se encerra em sua própria lógica e qualquer testemunho imagético visa mais do que ele apresenta em sua
visualidade. Suas manipulações nos ajudam a ver o que a imagem visível não mostra, suprimindo a noção de objetividade. Dessa maneira, o coletivo Lâmina colabora com o dissenso, propondo novas possibilidades de olhar e de narrar.
Thiago Fernandes é Crítico e historiador da arte. Mestrando em Artes Visuais pela UFRJ.
Salão dos Artistas Sem Galeria • Galerias Zipper/Sancovsky • São Paulo • 17/1 a 16/2/2019
RESENHAS exposições
Ultramar • Até 26/01/2019 Intempéries permanentes • Até 23/2/2019 Referência Galeria • Brasília • POR LAÍSE FRASÃO
A Referência Galeria de Arte que, em 1995, deu início a suas atividades com uma exposição individual de Amilcar de Castro, nesses seus 23 anos de atuação, vem destacando-se pela sua ininterrupta contribuição ao cenário artístico para além dos limites da capital federal. Seu diversificado acervo sinaliza, analogamente, o processo de conurbação promovido entre as tessituras artísticas local, regional (centro-oeste) e nacional. Conurbação esta que também se apresenta na conexão temática e, sobretudo, cromática das exposições e , que encerram o ano da galeria. A primeira, uma individual do artista Matias Mesquita, indicado ao Prêmio Pipa 2016, com curadoria de Cinara Barbosa, transita entre a sublimação simbólica e a materialidade da construção da paisagem, ladeando fronteiras escultóricas espaciais, por meio da "expertise da pintura sobre materiais diversos [suportes também estruturais construtivos]" - aspecto 68
Abaixo: Obra de Tyna Adebowale. À esquerda: Obra de Riet Wijnen.
Matias Mesquita, Estabilidade Falida.
destacado pela curadora. Assim, porosas placas de barro, concreto e cimento fundem-se à permeabilidade das nuvens e folhas de árvores retratadas. Já o peso visual dos blocos e tijolos cerâmicos e de concreto contrastam com a leveza das caixas de ferro e alumínio. Os trechos de horizontes retratados tendem a imensidão independentemente dos seus suportes estarem apoiados diretamente no chão ou suspensos nas alvenarias. Em especial, as obras (2018) e (2018) estabelecem entre si um diálogo pendular que, estilhaçando
diretamente as ideias de densidade e racionalidade vinculadas à solidez dos volumes e operando com indícios de nossa frágil e contraditória realidade urbana, parecem sinalizar possíveis novos apontamentos da pesquisa do artista. Já a segunda exposição, cujo título remete à cor azul ultramar, é resultado da produção dos artistas visuais Adriana Rocha, Ana Michaelis, Celso Orsini, Cris Rocha, Patricia Furlong e Reynaldo Candia, que compõem a formação atual do grupo , criado em 2004. Vale frisar que a palavra grupo, aqui, propositalmente, diferencia-se do termo coletivo, na medida em que demarca algo que vai além de um conjunto de profissionais envolvidos em um fazer artístico comum e/ou homogêneo: sinaliza um compartilhamento de produções múltiplas pautado no debate e ressignificação de ideias e poéticas contemporâneas. No caso da exposição em pauta, as obras são conectadas por meio de aproximações cromáticas, embora as composições pictóricas tenham concepções formais diferenciadas. "Ainda que não exista a interferência de um artista sobre a obra de outro, esta é uma linha que costura a organização da exposição. É uma cor [azul] recorrente em nossas obras, mesmo quando estão sob camadas de veladuras ou são apenas fios", afirma Adriana Rocha. Dessa maneira, as duas exposições têm mais em comum do que só a pintura como linguagem predominante. Por conurbação, o mar de
Obra de Celso Orsini.
intempéries permanentes que engloba o azul celeste é permeado e permeia o azul ultramar, em suas nuances nada permanentes. E essa imensidão azulada é inundada por fúlgidos tons terrosos que emergem, de maneira marcante, ora nos suportes e elementos compositivos de Matias; ora nos alaranjados (de Celso Orsini e Cris Rocha) e avermelhados (de Adriana Rocha e Reynaldo Candia).
Laíse Frasão é arquiteta e urbanista e graduanda do curso Teoria Crítica e História da Arte pela Universidade de Brasília (UnB).
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RESENHAS exposições Vista da exposição. Foto: Eduardo Ortega.
Sonia Gomes: Ainda assim me levanto MASP • São Paulo • 14/11/2018 a 10/3/2019 POR MICHELE BETE PETRY Janelas expostas, sem cortinas, no subsolo do Masp e no alto da Casa de Vidro, como queriam Sonia Gomes (1948) e Lina Bo Bardi (1914-1992). Duas artistas de origens diferentes, uma europeia e outra latino-americana, porém, ambas ligadas ao universo da cultura popular brasileira. As artes de fazer do povo são valorizadas nesses espaços que convidam Sonia Gomes a expor e a criar com eles. Suas obras , com e sem títulos da série e outras "costuras, amarrações, tecidos e rendas diversos sobre arame e madeira" (2018) são elaboradas a partir de uma estreita relação com a arquitetura do local: instalações que se fundem com a terra, no emaranhado de tecidos e troncos, também se impõem no concreto do edifício e no mobiliário que o habita. São como fragmentos de corpos em um balé, cristalizando posições. Lembram Pina Bausch e Niki 70
de Saint Phalle, mas também algo de Klimt. Esparramam-se, contorcem, lançam, agitam, tencionam, resistem e prendem nos movimentos uma verborragia visual que quase explode, contida pelo fechamento das formas no interior da sua plasticidade. Contudo, funcionando como cavaletes de vidro, as obras de Lina, o Museu de Arte (1947) e a Casa de Vidro (1951), permitem a Sonia romper com os limites dessa materialidade, alastrando a completude dos gestos de modo integral para o exterior.
À esquerda: Exposição, 1961. Abaixo: Desenho com autorretrato, 2001. Fotos: Acervo Millôr Fernandes / Instituto Moreira Salles
Crescem com a arquitetura, do subsolo para os pavimentos superiores, das salas para os jardins. Os cavaletes de vidro pensados por Lina para a visibilidade das obras também se encrustam na cidade com a intervenção de Sonia Gomes. Há, portanto, um duplo movimento da exposição , com a curadoria de Amanda Carneiro, promovida em torno do ciclo temático “Histórias e narrativas Afro-atlânticas”, no museu. Por um lado, os cristais de Lina transluzem a potência da obra de Gomes; por outro, a obra de Sonia desvela o silenciado. Esse fazer artístico conjunto torna a série de obras absolutamente inédita na medida em que apresenta uma narrativa sobre
violência (a forma fechada de Sonia) e visibilidade (a forma aberta de Lina). Lembra, ainda, o trabalho de outras artistas mulheres, notadamente, o de Rosana Paulino e o de Guerrilla Girls. Sob o número 222, uma obra de Sonia aparece no último corredor do Acervo em Transfor-mação do Masp, ao lado de (2017), de Guerrilla Girls, respondendo e, ao mesmo tempo, devolvendo a pergunta sobre a presença de artistas mulheres em exposição.
Michele Bete Petry é historiadora, doutora em Educação pela UFSC e realiza pesquisas na área de artes visuais
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LIVROS lançamentos
Library of love Textos de Paola Fabres, Steven Matjicio e Josué Mattos Ateliê Fidalga Mais de 200 artistas foram convidados a escrever um livro / objeto que reflete a qualidade e a complexidade do amor em suas diversas formas, desde uma abordagem familiar, romântica e de relações humanas às expressadas na/da natureza, animais e nações. Como objetos a serem tocados e histórias para compartilhar, para a artista Sandra Cinto a biblioteca tem o objetivo de ampliar, do português, o significado de contemplação, transcender de uma meditação solitária para oferecer uma experiência compartilhada onde damos e presenteamos uns aos outros. Ao refletir sobre aquilo que nos torna fundamentalmente humanos, ela oferece um remédio implícito para as políticas e ideologias que se dividem.
Ana Rovati: Offline Fotos: Ana Rovati. Textos: Luísa Kiefer e Taís Cardoso Atelier das Pedras De dezembro de 2015 a dezembro de 2016, Ana Rovati se lançou em uma provocação artística que transformaria radicalmente suas dinâmicas (externas e internas), impactando rotinas, relacionamentos, questões econômicas, formas de pensar, de sentir e também de agir: ficar um ano sem utilizar a internet para então refletir/criar/gerenciar os impactos que daí surgissem. A publicação é o resultado dessa proposta. Com fotografias e textos, nos convida a uma reflexão profunda sobre como vivemos nossas vidas num fluxo , com demandas ininterruptas.
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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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