Revista Dasartes 149

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A Revista Dasartes (ISSN 1983-9235) é uma publicação da Indexa Editora Ltda ME.

Capa: Sonia Dias Souza, Da série Somos um ponto visto pelas estrelas, 2018/19/2019. © Sonia Dias Souza.

LIVROS

94 COLUNA DO MEIO

SONIA DIAS SOUZA

, mostra individual da artista baiana Nádia Taquary, está disponível para a visitação no MUNCAB (Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira), localizado em Salvador. A mostra documenta a complexa conexão entre o feminino sagrado e os fluxos da dinâmica da vida.

Em Iorubá, significa “caminho de ferro”, remetendo à trajetória de povos africanos para as Américas e sua resiliência espiritual inquebrantável. A exposição elege o trânsito ferroviário intenso como metáfora, com linhas de trem que se

multiplicam em infinitos destinos, perspectivas e encruzilhadas, para celebrar a poética do movimento e dacomunicação,ondeoorixáExuse alimenta, e da tecnologia, reverenciada na figura de Ogum, para que todos os caminhos se abram.

NÁDIA TAQUARY:

ÒNÁ ÌRÍN: CAMINHO DE FERRO • MUNCAB • SALVADOR • 30/11/2024 A 23/3/2025

de arte ,AZ

CURIOSIDADES • , de Robert Smithson , a renomada instalação de Land Art de 54 anos no Grande Lago Salgado de Utah, foi oficialmente adicionada ao Registro Nacional de Lugares Históricos. SupervisionadapeloNationalParkService, a lista reconhece lugares de importância nacional. A adição de Spiral Jetty à lista tornará mais fácil preservar a peça a longo prazo. O artista criou a instalação em 1970,apenastrêsanosantesdesuamorte.

PELO MUNDO • O artista de rua Banksy postou uma imagem retratando a Virgem Maria amamentando o menino Jesus. A pintura apresenta o que parece ser um furo de drenagem de água com uma mancha vermelho-ferrugem no lugar do mamilo de Maria, evocando um ferimento de bala. A composição da imagem gerou várias teorias, com muitos usuários sugerindo que a obra de arte é simbólica aos ataques fatais em andamento contra mães e crianças em Gaza.

PRÊMIOS • A competição Nikon Comedy Wildlife Photography existe desde 2015 e comemorou sua maior taxa de envio este ano, com mais de 9 mil imagens submetidas. A fotografia de Milko Marchetti garantiu o 1º lugar, rendendo ao fotógrafo italiano de vida selvagemumaviagemdesafári,noQuênia. O esquilo de Marchetti traz um pouco de fofura e leveza ao ser clicado entalado em uma árvore.

GIRO NA CENA • O Instituto Moreira

Salles - IMS, em São Paulo, exibirá, em 2025, exposições de figuras seminais da fotografia mundial: Zanele Muholi (1972), um dos nomes mais aclamados da fotografia contemporânea, cuja obra documenta a beleza e o ativismo negro e queer da África do Sul; o norte-americano Gordon Parks (1912-2006); Agnès Varda (1928-2019) e o paraense Luiz Braga (1956), autor de um vasto material em que revela a diversidade do território amazônico e de seus habitantes.

REINAGURAÇÃO

• Após fechar devido aos danos causados pelo furacão em julho deste ano, a histórica Capela Rothko, em Houston, Texas, reabriu ao público. A capela ostenta um conjunto de 14 grandes pinturas do artista, com a escultura monumental do artista abstrato americano Barnett Newman, (1963–67) do lado de fora. Foi encomendada pelos poderosos colecionadores do mundo da arte John e Dominique de Menil, em 1964, e inaugurada, em 1971.

• DISSE O COLETIVO 215 em artigo publicado no site Dasartes a respeito da PLP 68/2024, em tramitação no Congresso Nacional desde 27 de junho e que preocupa o setor de artes visuais.

Livros,

contempla 36 projetos arquitetônicos emblemáticos que exploram o uso do vidro na arquitetura entre 1851 e 2023. Dentre eles, obras como o Crystal Palace (1851), de Joseph Paxton, em Londres; o pavilhão de Lucio Costa e Oscar Niemeyer para Feira Mundial de Nova York de 1939 e o pavilhão do Jardim Botânico de Joaquin Guedes (1996) no Brasil. A publicação destaca o papel do vidro como material essencial na arquitetura moderna, com imagens de mais de 50 acervos de 18 países.

PAVILHÕES DE VIDRO: UMA TIPOLOGIA DE VANGUARDA • Org. Sol Camacho • Editora RADDAR + Arquine • 321 páginas • R$ 100,00

Com 200 páginas, a publicação abrange toda a múltipla obra da artista Bea Machado, em pintura e escultura, desde o início de sua trajetória nas artes, em 1983, até os dias de hoje, com textos da crítica e historiadora da arte Sônia Siqueira. Além de apresentar as obras mais conhecidas de Bea Machado, o livro também traz pinturas inéditas, nunca mostradas ao público.

BEA MACHADO ARTS – PINTURAS E ESCULTURAS • Aut. Sonia Siqueira • Livraria Argumento • 200 páginas • R$ 180,00

O livro de Eurípedes Gomes Cruz Jr., que trabalhou por 25 anos junto com Dra. Nise da Silveira (1905-1999), analisa a relação entre as obras produzidas por pacientes psiquiátricos e os museus, nos últimos cem anos. Músico e museólogo, Eurípedes aborda coleções da loucura existentes na França, Alemanha e Itália, entre outros países, e o pioneirismo do Museu de Imagens do Inconsciente.

DO ASILO AO MUSEU - NISE DA SILVEIRA E AS COLEÇÕES DA LOUCURA • Editora Hólos Consultoria e Assessoria • 432 páginas • R$ 150,00

ANTHONY McCALL

Installation view of Doubling Back, 2003, Tate Modern, 2024.
Photo © Tate (Josh Croll).

ANTHONY McCALL É UMA FIGURA-CHAVE NA

PRÁTICA DA ARTE CONTEMPORÂNEA. ELE

DESCREVE SEU TRABALHO COMO “EXISTENTE NO

ESPAÇO ONDE CINEMA, ESCULTURA E DESENHO SE SOBREPÕEM”. SUAS OBRAS DE “LUZ SÓLIDA”

INFLUENCIARAM MUITOS ARTISTAS QUE HOJE TRABALHAM COM VÍDEO E INSTALAÇÃO

POR REDAÇÃO

As obras de “luz sólida” de Anthony McCall confundem os limites entre cinema, escultura e desenho. Feixes de luz projetada traçam lentamente os contornos das formas, criando câmaras esculpidas e tridimensionais.

A Tate Modern está apresentando uma exposição das instalações do artista britânico radicado nos EUA. Um dos pioneiros do cinema experimental e da arte de instalação, McCall é conhecido por suas instalações onde a luz projetada é visivelmente aprimorada usando uma névoa fina para produzir formas de luz sólida. Os visitantes são convidados a interagir com cada uma das quatro obras de luz sólida, oferecendo um encontro imersivo inesquecível. A exposição também inclui material de arquivo documentando a técnica extraordinária de McCall.

Solid Light, Installation View at Tate Modern, 2024.
Photo © Tate (Kathleen Arundell).

for Fire, 1972.

Landscape
Photo by Carolee Schneemann. Courtesy of artist and Sprüth Magers Gallery.

A prática do artista se desenvolveu durante o início de sua carreira no início dos anos 1970, quando ele estava envolvido na comunidade cinematográfica independente de Londres. A exposição apresenta fotografias e filmagens das primeiras performances do artista, incluindo a (1972), que retrata uma sequência cuidadosamente coreografada realizada ao ar livre: participantes uniformizados do coletivo de arte Exit acendemfogueirasemumaespéciede formação de grade geométrica acompanhada de uma trilha sonora de sirenes, neblina, vento e queimadas. Contrastando a imprevisibilidade da natureza com a ordem matemática, a obra fala do interesse conceitual em desenvolvimento de McCall em forma e movimento. A exposição também inclui suas primeiras obras como (1973), demonstrando o interesse crescente do artista em intervenções arquitetônicas e de luz.

limitesentreesculturaefilme.Inspiradopelofeixedeluzqueirradiava dos projetores, ele desenvolveu uma ideia que inverteria as regras do cinema: convidando o público a se virar e encarar a fonte da luz em vez da tela. Isso levou à concepção da sua primeira obra de luz sólida: (1973). A obra, que foi adquirida pela Tate em 2005, é a primeira instalação de luz sólida que os visitantes encontram nessa exposição.

Anthony McCall during the Solid Light Work Cone of Variable Volume, 1974.
Photo by George Griffin.

Room with Altered Window, 1972-2017. Courtesy of artist and Sprüth Magers.

Installation view of Face to Face, Sean Kelly, New York, 2013. Photo by Stefania Beretta © DACS 2024.

No final da década de 1970, McCall se retirou da arte e não retornou à sua prática até o novo milênio, atraído pelo potencial artístico que a tecnologia emergente prometia. Máquinas de neblina poderiam melhorar a visibilidade das obras adicionando névoa ao ar, dando às obras de luz sólida uma qualidade mais tátil. Enquanto isso, os projetores digitais ofereciam novas possibilidades; não mais preso à proporção de aspecto 4:3 dos projetores analógicos; o artista foi capaz de realizar formas mais complicadas, experimentando com "ondas flutuantes" para transformar bolsões de espaço dentro das obras de luz sólida. Exibido na exposição está o ambicioso (2003), o primeiro trabalho de McCall a reimaginaro conceito de “luz sólida” para o século 21. (2013) vê as possibilidades desenvolvidas ainda mais; suas formas projetadas se interligam, permitindo que o espectador olhe paradoxalmente para o projetor e uma tela para ver a pegada da forma em que estão.

A exposição culmina com uma das últimas obras do artista, (2018). Usando um espelho para interromper umplano de luz, a obra é, talvez, a mais complexa visualmente de McCall até hoje, continuando a ampliar as possibilidades de reinterpretar o espaço escultural usando dispositivos cinematográficos.

Solid Ligh, Installation View at Tate Modern, 2024.
Photo © Tate (Josh Croll).

Solid Light, Films and Other Works, 1971-2014. Eye Film Museum, 2014. Photo ©studiohanswilschut

Line Describing a Cone,1973. © Anthony McCall, Whitney Museum of American Art, NY, 2001. Photo by Hank Graber.

Doubling Back, 2003. Installation

view, Tate Modern, 2024. Photo © Tate (Josh Croll).

Linha descrevendo um cone

Em seu primeiro trabalho de “luz sólida”, um ponto branco projetado se move lentamente para preencher o espaço escuro com um cone de luz, a instalação tem trinta minutos de duração e é realizada pela projeção de um filme de 16 mm. No início, a fumaça do ambiente cria a impressão de um lápis de luz que atravessa o espaço do projetor até a parede,onde se vê o ponto.Lentamente, o ponto se move desenhando um círculo que, ao final, define um cone de luz oco no espaço, imergindo os membros da audiência em seu campo com efeito hipnotizante. É possível assisti-lo como quiser, mas o recomendado é ficar de costas para a imagem e olhar para o projetor. Afinal, o carácter revolucionário desta obra está na solidez da luz.

SOLID LIGHT • TATE MODERN • 27/6/2024 A 27/4/2025

SONIA DIAS

SOUZA

Da série Ecos, 2017. © Sonia Dias Souza. ,

A MOSTRA DA TERRA QUE SOMOS, DA ARTISTA PAULISTANA SONIA DIAS SOUZA, CONVIDA-NOS

A UMA REFLEXÃO SOBRE A TRANSFORMAÇÃO DA

NATUREZA, A RELAÇÃO DO HOMEM COM ELA E O SEU

LUGAR NO UNIVERSO. SUAS OBRAS DE ARQUITETURA INTRINCADA ABRANGE UMA GAMA DE FORMAS SIMBÓLICAS E ORGANISMOS BIOLÓGICOS

A IMPREVISTA ORDEM QUE ATRAVESSA O TODO

POR AGNALDO FARIAS

Essa exposição é movida pelo sentido de urgência, pelo receio que as avaliações sobre o quadro climático, cada vez mais dramáticas, com ênfases apocalípticas, caiam no vazio. No que diz respeito às nossas angústias, aos nossos medos, o mais é menos. A altura dos ruídos termina por nos ensurdecer; o apelo aos sentidos nos anestesia. É por isso que Sônia Dias Souza nos convida ao silêncio e à meditação, sugerindo que entremos devagar por essa atmosfera de cor rebaixada, correspondente à camada que corre por debaixo da pele da terra. Mais que uma reunião de trabalhos, ela nos apresenta uma paisagem povoada menos por objetos artísticos – não são pinturas, desenhos, esculturas, talvez atendam pela designação vaga de instalações – do que elementos extraídos à natureza, direta ou indiretamente ligados a ela, ao seu âmago,quetambéméonossopróprioâmago,poisfomos todos germinados em úteros, nutrimo-nos do líquido amniótico e depois do leite sugado do seio materno ou não. Qualquer que seja o caso, todos nos comportamos com a mesma avidez de um bichinho sedento, com o mesmo atavismo muscularde trazerpara dentro do corpo, pelaboca,portodosossentidos,enfim,amatériaqueserá transformada em energia.

Da série Somos um ponto visto pelas estrelas, 2018/19/2019. © Sonia Dias Souza.

Da série Somos um ponto visto pelas estrelas, 2018/2019. © Sonia Dias Souza.

Segundo a artista, “vivemos um momento em que o distanciamento da natureza se tornou quase inevitável, e os ritmos naturais são constantemente suprimidos pelo ritmo frenético das cidades e da vida digital. As obras enfrentam o desafio de reconectar o espectador com ciclos naturais e orgânicos, convidando-o a desacelerar e contemplar processos que muitas vezes se perdem na correria diária.”

Como qualquer criança, Sônia foi atraída pela enigmática energia vital adormecida no interior de uma semente,deumovo.Comoépossível a transformação incessante de tudo? Aperguntaprimordialremonta,entre os autores localizáveis, a Heráclito, o filósofo pré-socrático, que defendia a mudança, ou o conflito – os tradutores não são unânimes –, como pai de todas as coisas. Se é certo que sua origem é muito mais remota, é provável que, dentre as infinitas formas de transformações, a passagem da semente à planta, de um ser ao outro, deve ter sido causa do encantamento maior.

Uníssono, 2023. Foto © Sonia Dias Souza.
Da série Ecos, 2017.
© Sonia Dias Souza.
A semente que somos, 2020. © Sonia

Dias Souza. Foto: André Nacli.

Embora sua atração pela prática artística tenha vindo cedo, pela prática de desenhos,o adensamento teórico proveniente de leituras de campos disciplinares diversos –Física, Matemática, Biologia, simultaneamente as leituras sobre Mitos e História das Religiões –, sobre causas e ciclos dos fenômenos naturais, foram se sobrepondo às suas observações mais e mais apuradas, resultantes de anos dedicados ao cultivo de plantas e restauração de jardins, levaram seu trabalho para regiões imprevistas. Mais do que pensar, seu problema se converteu em como transpor a ordem fractal do crescimento dos galhos das árvores, verificável nas estruturas nervosas e enxutas dos cachos de uvas, recuando e avançando para além, muito além, das células dos micro-organismos à formação e expansão das galáxias; como lidar comas comunicações das plantas pelas raízes constituindo-as seres de dimensões colossais; da sua capacidade de memorizar situações; da atualíssima descoberta da imprevistacapacidadedeumaplanta emimitaroutra;traduziramiríadede símbolos que os diferentes povos, as culturas e civilizações espalhadas no tempo e no espaço vêm atribuindo a esses infinitos fenômenos.

Da série Somos um ponto visto pelas estrelas, 2018/19. © Sonia

Dias Souza.

Para Sonia, “a efemeridade da Arte Contemporânea, onde conceitos muitas vezes se sobrepõem à forma e a durabilidade das obras é secundária, minhas peças enfrentam o desafio de permanecer relevantes, tanto material quanto conceitualmente. Elas buscam equilibrar o efêmero com o eterno, explorando a coexistência de materiais perecíveis e formas simbólicas duradouras. Esses trabalhos são, acima de tudo, uma tentativa de criar um ponto de resistência contra a alienação e o esvaziamento simbólico do nosso tempo. Eles convidam o público a reconsiderar sua posição no mundo e sua relação com o que é fundamental: a terra que somos, o ciclo do qual fazemos parte e a consciência que nos conecta a tudo.”

Grávidas, 2021. © Sonia Dias Souza.

Da série Somos um ponto visto pelas estrelas, 2018/2019. © Sonia

Dias Souza.

Sonia Dias nos convida a conhecer esferas de terra interconectadas por cipós vermelhos como veias sanguíneas, um triângulo apontado para o chão, esquema arquetípico da feminilidade, fertilidade e da água, tratado como mosaico, máquina de muitos e variados motores, o conjunto de peças de feltro vermelho, semelhante a hemácias, a imagem de uma semiesfera cavada em um barranco, um buraco, um poro de feições regulares exalando uma névoa, uma respiração tênue e constante. Seres enigmáticos, estranhos, não obstante familiares. Uma família de objetos assentados na interconexão entre o homem, a natureza. Uma aposta em uma ordem maior –lembremo-nosdequecosmosvemdogrego “ordem” – como antídoto ao caos. Em meio à crescente devastação ambiental, as obras enfrentam o desafio de abordar a urgênciadapreservaçãosemcairemdiscursos didáticos ou alarmistas. Elas propõem uma reflexão poética sobre a fragilidade e a resiliência da Terra, usando materiais orgânicos e processos naturais para evocar o ciclo contínuo de vida, morte e regeneração.

Agnaldo Farias é professor doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo daUniversidadedeSãoPauloeCurador Geralda3a.BienaldeCoimbra.

Vista da exposição Da Terra que somos no Museu da República, 2024. © Sonia Dias Souza.

mira

Sem título, da série objetos gráficos,1960/1961. Foto: Ricardo Miyada. © Mira Schendel.

schendel

ESPERAR QUE A LETRA SE FORME É UMA EXPOSIÇÃOENSAIO ACERCA DA PRESENÇA DO SINAL GRÁFICO,

ENTRE TANTOS PROCESSOS, NO DESENHO-ESCRITURA COMO EXERCÍCIO DO CORPO

POR PAULO MYADA E GALCIANI NEVES

Mira Schendel transitou entre diversas línguas aprendidas como decorrência de sua origemfamiliar múltipla e de sua trajetória diaspórica,que não encontrou morada definitiva na Europa ocupada pelo antissemitismo e se assentou no Brasil. Sua produção extrapola tentativas de interpretação apenas pelo viés biográfico, ao mesmo tempo em que resiste a vinculações estreitas com movimentos artísticos. Tecida na pluralidade de procedimentos e experimentações e em uma busca inquieta por maneiras de capturar a vivência do instante, sua produção consiste em um dos mais densos corpos de pensamento experimental acerca das relações entre a matéria, o desenho e a escrita em alfabeto latino. Valendo-se desses elementos, Mira ousou traduzir a vida em símbolo – no seu caso, a letra.

Como a própria artista anotou, no mesmo datiloscrito em queconsiderou“esperarquealetraseforme”,Miraqueria surpreender a si mesma com a urgência em dar sentido aoefêmero,enquantoseestimulavacomodesejodefazer coincidir a vida e as palavras (“reino da linguagem”): “A sequência das letras no papel imita o tempo, sem poder, realmente,representá-lo.Sãosimulaçõesdotempovivido, e não capturam a vivência do irrecuperável, que caracteriza esse tempo. Os textos que desenhei no papel podem ser lidos e relidos, coisa que o tempo não pode. Fixam, sem imortalizar, a fluidez do tempo”. Sem título, 1960. Foto: Ricardo Miyada. © Mira Schendel.

À direita: Sem título, 1964. Foto: Ricardo Miyada. © Mira Schendel.

CHEGADA AO BRASIL E À PALAVRA

Mira Schendel enfrentou inúmeras dificuldades entre 1941 e 1949, quando fugiu da Europa assolada pelo antissemitismo. Ela cruzou o Atlântico, trabalhando como datilógrafa, e, quando chegou ao Brasil, em 1951, não se identificava plenamente com nacionalidade alguma.Começouasededicaràpinturaepublicou no jornal gaúcho duas cartas abertas em que discutia a hostilidade enfrentada por imigrantes em solo brasileiro. Como artista, realizou um arco de experimentos pictóricos em que foi de representações de objetos comsilhuetas esquemáticas emambientes fechadosaté composiçõesde elementosabstratos em campos ortogonais traçados à mão livre. Em paralelo, realizava projetos editoriais, que compartilhavamcomapinturaainsinuaçãodeuma malha gráfica estruturante.

Nadécadade1960,Mirarevisitouarepresentação de objetos cotidianos, encontrando em rótulos umaprimeiraoportunidadedetrazerparaocentro das composições a grafia de palavras escritas, antes presentes na assinatura, título e data que ela posicionava habilmente em suas obras. A partir de 1964, Mira produziu desenhos e colagens em que experimentou usar rótulos de embalagens e outros impressos, além de citar textos e poemas. A letra, a palavra, o texto adentravam seus processos com mais ênfase.

ESCRITURA-DESENHO ESTRUTURANDO ESPAÇOS

Depois de se valer de elementos textuais provenientes de rótulos e embalagensdeprodutosindustrializados,emnaturezas-mortasecolagens, Mira iniciou um importante capítulo em sua trajetória: a experimentação de relações entre a palavra e o espaço. A artista passou a produzir desenhos em que letras, signos gráficos e garatujas estruturavam composições espaciais.

Repetição de gestos que se assemelhavama caligrafias ou letras diminutas em amplos espaços vazios são procedimentos característicos desses trabalhos,emque a artista usou nanquim,carvão e a técnica da monotipia, evidenciando uma espécie de escritura coreográfica. Isso criou oportunidades para que o público acompanhasse o ofício da mão que confabulou esses rastros no suporte.

Sem título, 1964-1965. Foto: Ricardo Miyada. © Mira Schendel.

Formas circulares e elípticas produzidas repetidamente, rabiscos velozes em muitas direções, manchas e traços misturados a letras dão a ver uma escritura gestual que transborda a legibilidade – uma escrita sem leis rígidas, com traços entremeados como se pudessem atravessar o suporte pormeiodofluxodeumdesenhoqueéumtantoescritaoudeumaescrita que se faz como desenho.

Haroldo de Campos, experimentador e pensador da poesia concreta, traduziu em uma poesia-constelação a “arte-escritura” de Mira, em que o signo gráfico é, para a artista, matéria, questão estética e fabulação de espaços.

Sem título, 1964-1965.
Foto: Ricardo Miyada. © Mira Schendel.

A PALAVRA EM ESPIRAL

Poliglota e apátrida, Mira Schendel operou uma linguagem polissêmica, levando para a arte o italiano e o alemão, línguas que herdou dos pais, que aparecem junto ao português, língua oficial do Brasil. Eventualmente, surgem também palavras em latim e francês. A variação entre essas línguas é intensa e várias delas convivem em uma mesma obra.

Essa diversidade de expressões e pronúncias efetiva a palavra no trabalho da artista como uma espécie de acontecimento de enunciação de algo, como se escrever/desenhar as letras e sua decodificação fizessem realizar o que ali está posto. A palavra instaura, assim, uma situação.

Além disso, Mira estava interessada nos arranjos que signos gráficos, palavras e textos eram capazes de constituir. Mira convivia com problemas de linguagem muito desafiadores: como apreender o instante presente, como fazer coincidir o “reino dos símbolos” (das letras) e a vida e como mobilizar a escritura e a leitura em percursos espirais e, portanto, não planos e não lineares. Em muitos experimentos, Mira estava lidando com as palavras e textos em suas mínimas partes, tanto em seus sentidos denotativos, como em suas presentificações gráficas e matéricas, em grafias, espaçamentos e ritmos.

Sem título, 1975.

À esquerda: Sem título, s.d. Foto: Ricardo Miyada. © Mira Schendel.

Sem titulo, da série objetos gráficos, 1967. © Mira Schendel.

ARTE: ENCONTRO COM O CORPÓREO

Mesmo expulsa da faculdade de Filosofia na Itália, quando jovem, Mira Schendel seguiu se dedicando a leituras filosóficas e teosóficas. A artista usufruía de trocas com pensadores como Vilém Flusser, Haroldo de Campos, Mário Schenberg e Hermann Schmitz, entre outros, enquanto experimentava em seu trabalho questões relacionadas ao signo, à sua mediação e à compreensão da arte como um fenômeno –um acontecimento disponível no cotidiano que reverbera emmúltiplas dimensões do corpo e da existência.

Durante os anos 1970, Mira se dedicou especialmente à fenomenologia de Hermann Schmitz, que se orienta pela ideia de corporeidadeedequesignosanimamapotência das experiências. No mesmo período, ela retomou um recurso usual no seu ofício do desenho gráfico: o uso de letras impressas transferíveis a seco para a superfície do papel e do acrílico, conhecidas pelo nome de . As letras se somaram, assim, à grafia manual, ao uso eventual de máscaras de estêncil e, mais tarde, à datilografia das máquinas de escrever, no repertório de signos da artista. Devido ao caráter mecanizado desse recurso, sua atenção se concentrou nas relações posicionais de sinais gráficos reconhecíveis dentro do campo da imagem.

Em cada feito sobre papel de arroz, pequenos recortes de papel tingido se encontram com uma ou algumas letras transferidas a seco. Já nos feitos em acrílico, cada diminuto paralelogramo recebe a impressão direta dessas letras. As distâncias e os vazios se tornam a matéria mesma que sustenta aobraemrelaçãoaseuespaçointerioreexterior.

À esquerda: Sem título, 1964-1965. Abaixo: Sem título, s.d. Foto: Ricardo Miyada. © Mira Schendel.

REFLUIR DE PÁGINAS FECHADAS E

ABERTAS

Uma obra-jogo que solicita de quem a manuseia compactuar com regras abertas enãoprescritas:assim,acríticaecuradora brasileira Aracy Amaral descreveu os cadernos de Mira Schendel. Essas obras –feitas, em sua grande maioria, no ano de 1971 – são exercícios de composição em papéis encadernados, perfurados, grampeados ou colados, como brochuras ou simples aglomerados de páginas. A artista usufruiu de centenas de conjuntos de folhas, de muitas dimensões, que, compreendidas em sua sequencialidade, formam um percurso no tempo e no espaço. O espaço, nesse caso, é como o de um livro, e o tempo é o dos gestos: leitura/coreografia de manusear, tocar, girar. , adesivos circulares, setas, retas, furos, arranjos com signos gráficos e letras, labirintos feitos com a letra “o”, e desenhos com as letras “b”, “d”, “p” e “q” habitam esses ambientes e convidam a uma leitura tão vinculada a uma experiência estética quanto aos seus procedimentos de construção. Essas composições, ancoradas em minuciosa linguagem gráfica, apresentam comportamentosambivalentes:aomesmo tempo que funcionam no espaço condensado de apenas uma página, parecem também escapar para uma narrativa visual que acontece na sequencialidade gráfica, na navegação pelo caderno, ou seja, no fluxo de folhear uma página depois da outra.

ONDAS PARADAS DE PROBABILIDADE, UM SUSSURRO

A instalação foi realizada pela primeira veznaXBienaldeSãoPaulo(1969),quesofreuboicoteexplícitoouvelado de diversos artistas brasileiros e estrangeiros em repúdio à suspensão dos

simultaneamente sutil e mesmerizante. Assim, quando diversos artistas escolheram a retirada como ruidosa forma de silêncio, Mira construiu uma inefável forma de presença. Seus fios concretizam no espaço o vazio, a espessura, o silêncio e a distância como experiência sensível e compartilhável.Emparalelo,otextobíblicoque acompanhaaobraaponta para a complementaridade entre presença e imanência como aspectos da existência. É neste mundo, agora, tal como ele é – na codependência sempre limítrofe entre imanência e presença, entre transparência e opacidade,entrepenetrabilidadeeembate–,queaespessuradosussurro e a densidade do corpo da palavra habitam.

Ondas paradas de probabilidade, 1969.

© Mira Schendel.

MONOTIPIAS E OBJETOS GRÁFICOS

Certa vez, Mira ganhou um imenso volume de papel japonês – frágil, transparente, difícil de manusear. A natureza do papel a levou por muitas experiências, até que se deparou com a monotipia. Em dois anos, calcula-se que Mira produziu mais de duas mil monotipias com tinta preta aóleoempapeldearroz.Apósentintarumasuperfícielisaepolvilhartalco sobre ela para diminuir a transferência involuntária de tinta, pousava sobre ela a folha de papel retangular e desenhava em seu dorso com as unhas ou outro instrumento pontiagudo. A pressão do traço mais ou menos fino, mais ou menos regular,fazia a tinta impregnar as fibras orgânicas do papel translúcido, formando riscos e manchas visíveis, na frente e no verso do papel. Cada resultado dessa sequência de gestos era único, irrepetível, ainda que ela com frequência produzisse grandes grupos de obras com variaçõesdeelementosrecorrentes.Asoluçãoparaapresentaressasobras entreplacasdeacrílicosuspensaspossibilitouàartistaenfatizarasmúltiplas possibilidades de observação e leitura de suas obras translúcidas, experimentandoaconstituiçãodedistâncias,direçõesdeleituraerelações entre obra e público. Esse recurso se desdobrou na criação dos objetos gráficos de Mira, em que ela reunia múltiplas monotipias ou datiloscritos entre duas amplas placas de acrílico, produzindo uma espécie de aglomeração de páginas,desenhos e grafias percebidos emcontiguidade.

PauloMiyadaécuradordoInstitutoTomieOhtakee pesquisador de arte contemporânea. Possui mestrado em História da Arquitetura e Urbanismo pelaUniversidadedeSãoPaulo(FAU-USP),SP,pela qualtambémégraduado.

Galciani Neves é curadora, professora e pesquisadora no campo das artes visuais. É graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pósgraduadaemDesigngráficopeloSenacSP.

MIRA SCHENDEL: ESPERAR QUE A LETRA SE FORME • INSTITUTO TOMIE OHTAKE • SÃO

PAULO • 24/10/2024 A 2/2/2025

Sem título, 1965. Foto: Ricardo Miyada. © Mira Schendel.

FLAVIO CERQUEIRA,

AS ESCULTURAS FIGURATIVAS EM BRONZE DO ARTISTA FLAVIO CERQUEIRA CONVIDAM O PÚBLICO A CONTEMPLAR AS HISTÓRIAS CONTIDAS EM CADA DETALHE DE PERSONAGENS TIPICAMENTE BRASILEIROS. RECONHECIDAS PELA ORIGINALIDADE E RIQUEZA DE DETALHES, AS OBRAS SÃO EXPOSTAS EM UMA RETROSPECTIVA DE 15 ANOS INÉDITA NAS UNIDADES DO CCBB

POR FLAVIO CERQUEIRA

Better Together. © Flavio Cerqueira.

João sem braço, 2008. © Flavio Cerqueira.

“João sem braço
Ninguem nunca esquece. Foto: Ding Musa. © Flavio Cerqueira.

Foi assim que me ensinaram

Foi assim que me ensinaram, 2011. Foto: Ding

Musa. © Flavio Cerqueira.
Cansei de aceitar assim. Foto: Romulo Fialdini.
© Flavio Cerqueira.

Pretexto para te encontrar. Foto: Edouard Fraipont. © Flavio Cerqueira.

“Amnésia

Amnésia, 2015. Foto: Romulo Fialdini. © Flavio Cerqueira.

Em memoria de mim. Foto: Romulo Fialdini. © Flavio Cerqueira.
Tião.
Foto: Romulo Fialdini.
© Flavio Cerqueira.

No meu ceu ainda brilham estrelas. Foto: Romulo Fialdini.

© Flavio Cerqueira.

“No meu céu ainda brilham estrelas
Avua. Foto: Romulo Fialdini. © Flavio Cerqueira.
“Desenho cego
Desenho cego, 2024. Foto: Estudio em obras. © Flavio Cerqueira.

FLAVIO CERQUEIRA: UM ESCULTOR DE SIGNIFICADOS • CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL (CCBB) • SÃO PAULO

• 7/12/2024 A 17/2/2025

Coluna do meio

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Francisco Galeno

Galatea

São Paulo

Kille e Leandro Spett Kovak & Vieira

São Paulo

São

Sergio Scaff, Francisco Galeno e Miriam Scaff
Conrado Mesquita, Francisco Galeno, Antonia Bergamin e Tomas Toledo
Alessandro Aued
Edgar Pereira e Heloisa De La Torre
Renata Fonseca e Mônica Costa
Fernando Tajima e Imani Lima
Bruna Kherlakian
Gabriel Nehemy
Kille e Leandro Spett
Natasha Schlobach, Rosaria Bernardes e Iury Simões
Antonia Bergamin e Paulo Vicelli
Jay Boggo, Dorli Kamkhagi e Will de Carvalho
Sergio Free MITS Galeria
Paulo

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