Revista Dasartes 150

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A Revista Dasartes (ISSN 1983-9235) é uma publicação da Indexa Editora Ltda ME.

Capa: Denise Milan, Vista da mostra Viagem ao Centro da Terra, 2024. Foto: Carol Quintanilha. © Denise Milan.

ARTE A Z

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10 12 AGENDA LIVROS

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94 COLUNA DO MEIO

A fauna do Cerrado, do Pantanal e dos Campos Rupestres – biomas característicos de Minas Gerais, do Mato Grosso do Sul e de São Paulo –retratada em imagens fabulosas e enigmáticas. Essa é a proposta de ,novaexposiçãodaCasaFiat de Cultura.Comoitoobrasdoartista visual sul-mato-grossense Paulo Agi, a mostra, por meio da pintura, expande e aprofunda a pesquisa pictórica do artista e incorpora cenas da natureza para construir narrativas que confundem as percepções de ilusão e de realidade.

Paulo Agi apresenta seis obras em óleosobretelaeduasemcarvão,em

pequenos e grandes formatos, que atuam como uma reverberação de questõescontemporâneaserefletem sobre o antropoceno e o protagonismo do ambiente nas relações universais. Com cores e enquadramentos inusuais, o artista cria uma atmosfera de tensão, mistério e, por que não, magia.

PAULO AGI: QUIMERA • CASA FIAT DE CULTURA • BELO HORIZONTE • 21/1 A 16/3/2025

de arte ,AZ

PELO MUNDO • Em frente à icônica pintura de Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, no Louvre, o presidente da França Emmanuel Macron anunciou uma grande reforma estimada em mais de € 700 milhões, bem como uma nova sala construída sob medida para exibir exclusivamenteafamosatela.Apenasuma fração do custo total será financiada pelo estadoeorestanteserápagopordinheiro fornecido pelo Louvre Abu Dhabi, bem como por patrocínios.

CURIOSIDADES • Uma antiga escultura sem cabeça acaba de aparecer no lixo na Grécia. A estátua que data do período grego helenístico apareceu no mais improvável dos cenários. Tudo começou quando um grego de 32 anos, na cidade de Tessalônica, tropeçou em uma esculturaembrulhadaemumsacoplástico e a denunciou ao Departamento de InvestigaçãoCriminaleProcessamentode Thermaikos que ainda está investigando

MERCADO • Uma pintura resgatada do lixo de uma garagem em Minnesota por menos de US$ 50 pode, na verdade, ser umaobraperdidadeVincentvanGogh— potencialmente valendo US$ 15 milhões. Recentementeatribuídaaofamosopintor pós-impressionista pela empresa de ciência de dados LMI Group, a obra de arte,intitulada ,passouporextensa análise científica e estilística.

CURIOSIDADES • Deixadosparatráspela civilização do Vale do Indo, que surgiu há mais de cinco milênios na atual Índia e Paquistão, símbolos pictóricos foram encontrados em milhares de placas de cobre,cerâmica,bronzeseselosdeselos. Agora, em uma tentativa de estimular a quebra do código, o estado indiano de Tamil Nadu está oferecendo uma recompensa de US$ 1 milhão para especialistasqueconseguireminterpretar com sucesso a escrita do Vale do Indo.

CASO DE POLÍCIA • Quatro tesouros de ourocentenáriosforamroubadosdurante um assalto a um museu da Holanda. Os ladrões entraram no Museu Drents, na cidade de Assen, nas primeiras horas da manhã, explodindo várias janelas com explosivos. Entre os objetos roubados, estava o capacete dourado de Cotofenesti, do século V a.C. Ele foi emprestado por um museu na Romênia. O museu está fechado e ainda não anunciou sua reabertura.

• DISSE A CURADORA Cinthia Guedes, para promover a abertura da exposição , no CCBB São Paulo, após passar pela unidade de Brasília.

Livros,

contempla 36 projetos arquitetônicos emblemáticos que exploram o uso do vidro na arquitetura entre 1851 e 2023. Dentre eles, obras como o Crystal Palace (1851), de Joseph Paxton, em Londres; o pavilhão de Lucio Costa e Oscar Niemeyer para Feira Mundial de Nova York de 1939 e o pavilhão do Jardim Botânico de Joaquin Guedes (1996) no Brasil. A publicação destaca o papel do vidro como material essencial na arquitetura moderna, com imagens de mais de 50 acervos de 18 países.

PAVILHÕES DE VIDRO: UMA TIPOLOGIA DE VANGUARDA • Org. Sol Camacho • Editora RADDAR + Arquine • 321 páginas • R$ 100,00

Com 200 páginas, a publicação abrange toda a múltipla obra da artista Bea Machado, em pintura e escultura, desde o início de sua trajetória nas artes, em 1983, até os dias de hoje, com textos da crítica e historiadora da arte Sônia Siqueira. Além de apresentar as obras mais conhecidas de Bea Machado, o livro também traz pinturas inéditas, nunca mostradas ao público.

BEA MACHADO ARTS – PINTURAS E ESCULTURAS • Aut. Sonia Siqueira • Livraria Argumento • 200 páginas • R$ 180,00

O livro de Eurípedes Gomes Cruz Jr., que trabalhou por 25 anos junto com Dra. Nise da Silveira (1905-1999), analisa a relação entre as obras produzidas por pacientes psiquiátricos e os museus, nos últimos cem anos. Músico e museólogo, Eurípedes aborda coleções da loucura existentes na França, Alemanha e Itália, entre outros países, e o pioneirismo do Museu de Imagens do Inconsciente.

DO ASILO AO MUSEU - NISE DA SILVEIRA E AS COLEÇÕES DA LOUCURA • Editora Hólos Consultoria e Assessoria • 432 páginas • R$ 150,00

Loplop Introduces Members of the Surrealist Group, 1931. The Museum of Modern Art, New York. Purchase, 1935. © Max Ernst.

O ARTISTA ALEMÃO MAX ERNST OCUPA UMA POSIÇÃO DE DESTAQUE NA ARTE DADAÍSTA E SURREALISTA.SEUNOMEREPRESENTAOBRASQUE MISTURAM GÊNEROS E COMBINAM SONHO E REALIDADE. SUA MAIS RECENTE EXPOSIÇÃO É A PRIMEIRA A BUSCAR PONTOS DE INTERSECÇÃO ENTRE SEU TRABALHO E A FOTOGRAFIA

POR NICHOLAS ANDUEZA

MAX ERNST E AS COISAS DO MUNDO

Inaugurada em 18 de outubro de 2024 e indo até 27 de abril de 2025,

é uma exposição realizada em parceria entre a Kunstbibliothek, do Staatliche Museen Zu Berlin, e a Coleção Würth. Como fica explícita no título, a curadoria traça um diálogo entre obras de Ernst e o meio fotográfico, o que é uma abordagem inédita em relação ao artista. Ernst é um dos grandes nomes, tanto do dadaísmo quanto do surrealismo, ambas vanguardas do início do século 20, e, embora ele não tenha fotografado nem cenas construídas, nem o mundo (como Man Ray, Lee Miller ou Laszlo MoholyNagy, por exemplo), suas experimentações artísticas foram influenciadas pela então recente utilização da fotografia na produção artística – seja pelas fotomontagens, ou pela invenção da técnica da frotagem, por exemplo, como veremos mais adiante. Isso sem falar no fato de o artista se interessar pessoalmente por ser fotografado, gerando alguns dos retratos reunidos em uma das sessões da exposição.

Joseph Breitenbach: Max Ernst, Paris 1936. Sammlung Würth © The Josef and Yaye Breitenbach Charitable Foundation.

All rights reserved leemiller.co.

Lee Miller, Leonora Carrington and Max Ernst, Lambe Creek Cornwall England, 1937. Lee Miller Archives;

Un autre caprice de Venus, 1961. Sammlung Würth © VG Bild-Kunst, Bonn 2024.

faz menção a , conceito desenvolvido por Max Ernst e Hans Arp para nomear seus trabalhos de fotocolagens dadaístas realizados a quatro mãos, em 1920. , para além de sua proximidade fonética dom “Dadá”, é também a abreviação de uma provocação: (“fabricação de quadros gasométricos garantidos”). Por meio do estilo do título, tipicamente dadá, sugere-se que as fotografias recortadas e coladas junto a textos formariam obras capazes de medir ou organizar os “gases” – do quê, não se sabe. Da arte e da cultura? De fato, essas colagens trazem fotografias do mundo e material de imprensa, ou seja, são construídas a partir de certo caldo cultural, ou de certos “ares” que pairam na atmosfera da cultura.

Mas é preciso lembrar que o dadaísmo é formulado, antes de tudo, como um escarro na arte; porque, se esta era colocada pelo projeto iluminista-burguês como um elemento edificante à humanidade, a eclosão da Primeira Guerra Mundial, na qual todo o “progresso” foi decididamente voltado à carnificina, evidencia o patético e a falência da arte. A “antiarte” dadá seria a manifestação explícita do absurdo velado que é a própria arte, proporcionando uma exploração radicalíssima acerca do que é arte e do que não é. A célebre (1917), de Marcel Duchamp, por exemplo, junto com todo seu conceito de , insere-se nesse gesto irônico-crítico, maravilhosamente desrespeitoso. A “gasometria” do título de Ernst e Arp, em referência a técnicas e tecnologias modernas, já seria irônico o suficiente (e, sem ironia, não há dadá); mas eles ainda terminam seu com uma “garantia” de gasometria – o cúmulo. Assim, a interessante escolha da paráfrase “FOTOGAGA” como título para a exposição na Kunstbibliothek já nos lança diante de questões basilares sobre as problemáticas da arte, ao mesmo tempo em que sinaliza o coração “fotográfico” da mostra.

Importante ressaltar que as práticas dadaístas não eram apenas joguetes. Quando Hugo Ball se vestiu de modo absurdo e proclamou uma poesia sem sentido no Cabaré Voltaire, em Zurique, em 1916, ou quando Tristan Tzara deu a receita da colagem aleatória dadaísta (sortear o que e como será colado), ou ainda quando Max Ernst fez , em 1920 (colandomaterialextraídodelivrosalemães sobre armamentos da Primeira Guerra), o que está posto é uma crítica radical aos pilares da sociedade moderna e da arte. O poema absurdo de Ball sinaliza a precariedade da linguagem em si, sua incapacidade de dizer o mundo; a receita aleatória de Tzara questiona a agência do autor (e do gênio artístico) sobre a obra, descentralizando essa figura até hoje fetichizada por mercados e certas noções de arte. No caso da obra de Ernst, a imagem suscitada pelo “rouxinol” do título, de um pássaro, cantante, esvoaçante, dócil, é formalmente contraposta por uma colagem bruta de vários elementos fotográfico-midiáticos que nada têm a ver com a ave; em paralelo, também os céus, signos de abertura, liberdade e até do divino, passaram a ser cruzados por aviões bombardeiros e dirigíveis militares – aves metálicas e assassinas. É por essa natureza também política (mesmo que absolutamente anárquica e ilógica) que é necessário reconhecer a influência dadá, por exemplo, na visualidade das colagens antinazistas de um John Heartfield, mesmo se estas são de um contexto pós-dadaísta, trazendo um sentido político mais claro e escolhas não tão aleatórias.

Le rossignol chinois, 1920. Musée de Grenoble © VG Bild-Kunst, Bonn 2024.

Em uma análise atenta a , de Ernst, que consta na exposição da Kunstbibliothek, a historiadora da arte e curadora Adrian Sudhalter lembra ainda que a fotocolagem foi enviada por Ernst contendo uma descrição textual falsa, mencionando elementos que não constam na composição. A autora argumenta que esse vão entre a imagem e o discurso expressa o moderno da instabilidade do sentido das coisas –uma questão que virá a ser fundamental posteriormente nos trabalhos de um surrealista como René Magritte, por exemplo (o cachimbo, o que é?). Em , de Ernst, em particular, tal instabilidade é pareada não com uma imagem em geral, mas especificamente com o meio fotográfico, passando a ficar desestabilizado, mesmo mediante sua suposta objetividade maquínico-ótica enquanto registro de câmera. Nesse sentido, para Sudhalter, Ernst pareceu tentar subverter os meios, trabalhando o fotográfico como pictórico, como um quadro, um gasométrico. Ela aponta que o interesse dadaísta pela fotografia passa pela relação direta desse tipo de imagem com a realidade, pela “aderência” do referente ao que vemos, como diria Roland Barthes. Manipular a fotografia, neste caso, é romper com mais um fetiche técnicoestético-moderno, fragmentando o real para liberar os gases imaginários e sem sentido que o habitam, como em uma espécie de contragranada. A acidez e a violência dadaístas são também, para além de uma explosão de desrazões e ironias, um protesto antibelicista.

Mas a mostra na Kunstbibliothek não se inicia com . Ela começa, na verdade, com obras que refletem o próprio o ato de ver, na sessão intitulada

. Como fica evidente pelo título da sessão, apesar da referência da (dadá), a mostra também caminha com referência à participação de Ernst no movimento surrealista, que surgiu em Paris, pouco depois do dadaísmo. As relações entre ambas as vanguardas sempre foram fortes, basta lembrar que, não só Ernst, mas o próprio André Breton, autor dos manifestos surrealistas de 1924 e de 1929, já havia participado dos círculos dadaístas. A propósito, é importante lembrar o canônico (1921), considerado uma pintura surrealista de Max Ernst. Ainda assim, apesar de certas proximidades contextuais e estéticas, é equivocado entender o dadaísmo meramente como uma preparação ao surrealismo. São movimentos muito diferentes, apesar de ambos se caracterizarem, no geral, pela carnavalização, pela estridência e pelo absurdo.

The Elephant Celebes (or short Celebes), 1921. © Max Ernst.

Two Children Are Threatened by a Nightingale, 1924. © The Museum of Modern Art, New York. Purchase, 1937.

A diferença maior está no princípio fundante de cada um. O dadaísmo pretende violentar a arte, expor sua falência mediante um mundo em chamas, atacando pilares como as noções de “gênio” ou “autor” (colagens aleatórias), de técnica ( ), de eternidade da “grande obra” (performances não registradas), de linguagem (o ). O surrealismo pretende usar a arte para violentar a ordem, a moral e a estética racionalistas-burguesas, tentando entrar em contato com o desejo e o inconsciente (escrita automática, associações livres), questionando distinções entre sonho, fantasia e realidade – “o fantástico não existe; tudo é real”, diz-nos Breton. E aqui vale frisar um ponto: “surreal” é um neologismo proposto por Guillaume Apollinaire a partir do prefixo francês , que significa “sobre”; ou seja, “surreal” não é sinônimo de “irreal”, muito pelo contrário, trata-se de um -real de um -real, uma -realidade alcançada por uma compreensão maior e mais ampla (não obstruída por racionalismos) da realidade. Breton se apropria do conceito de Apollinaire, homenageando o autor, para escrever os manifestos. Nesse sentido, é interessante como as fotocolagens de Max Ernst cultivam as ambivalências e diferenças entre dadá e surreal: contraexplosivas pelo insólito e pelo , como na colagem destrutiva e aleatória dadá, mas também alucinatórias e oníricas, como na colagem fantástica surrealista, que descontextualiza para recontextualizar e revelar pulsões e desejos ocultos. Ernst provou, pela própria obra, que as categorias da arte (e da vida) não são estanques.

E, na medida em que o principal sentido usado na organização e interação com o mundo, no Ocidente, tornou-se a visão, ela estará também no centro de muitas investigações surrealistas. É essa a sugestão da primeira sessão da exposição em questão: para ver. Por isso, consta nessa parte, por exemplo, a colagem (1922), onde Ernst representou um homem que olha para o chão com duas lunetas, enquanto outro passa por trás de bicicleta sobre trilhos – três dispositivos técnico-modernos (luneta, bicicleta, trilho), que amplificam, mas também podem limitar, o gesto de ver e as formas de estar e ser no mundo, na medida em que obrigam corpo e olhos a se comportarem dentro das regras desses dispositivos (a luneta determina o enquadramento, o trilho, o caminho). É também nessa sessão que, em uma provocação curatorial, estão expostas fotos de alguns artistas do movimento surrealista com os olhos fechados, arranjados em torno de um nu feminino pintado por Magritte (um tom masculino e heterossexual do desejo sempre esteve presente entre os surrealistas – talvez uma das várias razões para Frida Khalo nunca ter se interessado em ser lida como surrealista, apesar das investidas de Breton). Tomemos, enfim, a forte imagem do olho cortado de (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dalí: é preciso fechar os olhos (abandonar a razão, opressora) para ver.

Les malheurs des immortels, 1922.
© Max Ernst.

Ernst, Marie-Berthe Aurenche and Jean Aurenche, Photomaton, ca.1929. Sammlung Würth © VG Bild-Kunst, Bonn 2024.

Max

Além dessa primeira sessão, há ainda mais quatro outras: , onde se exploram técnicas e conceitos visuais que Ernst desenvolveu para seus livros (1926) e (1964); em seguida, , cuja inversão fotográfica do negativo ao positivo parece se fazer presente nas obras de Ernst, com atenção especial às ilustrações de fundo preto e traços claros que o artista fez para o livro de René Crevel, (1936); , sessão que se concentra nas fotocolagens de Ernst e na fotografia surrealista de seus contemporâneos (é nessa parte que se encontra o tal , e as questões já tratadas ao início do texto); e, finalmente, , cuja exposição se volta para o interesse que Ernst nutria em ser fotografado das mais variadas maneiras e por diversos fotógrafos, entre os quais Lee Miller, Berenice Abbott, Arnold Newman, Irving Penn e Man Ray. Tendo já versado sobre as fotocolagens de Ernst (que estão na quarta sessão), resta-me destacar, na segunda e terceira sessões, e , a presença da técnica da frotagem, hoje relativamente banalizada, mas que foi uma invenção importante do próprio Ernst. Na frotagem, uma ilustração ou pintura adquire formas e texturas extraídas de algum objeto material colocando-se o papel ou a tela sobre este último e se traçando por cima a lápis ou pincel; o resultado é que as formas desse objeto ficam impressas e podem ser utilizadas para a criação de texturas e padrões diversos, inclusive abstratos. Ernst concebeu essa técnica de “esfregar” ( em francês, donde ) em 1925, consolidando-a em seu , totalmente baseado nela. O mais interessante é que o gesto curatorial da exposição, de relacionar as obras de Max Ernst à fotografia, lança uma luz bastante específica sobre a frotagem: se a foto é resultado do entre o mundo e o plano de representação (o filme, a película, que é impressionada e depois revelada e ampliada), então a frotagem pode ser lida como uma espécie de fotografia tátil, manual, na qual é o entre mundo e plano de representação (papel ou tela) que gera a imagem.

É uma espécie de implosão da função fotográfica, a pictorialização máxima da fotografia; a abstracionalização, a fantasia das coisas do mundo; ao mesmo tempo, é também a realização máxima da pulsão escópica implícita na foto, substituindo de vez o ótico pelo háptico. Assim, em , apesar dos desenhos oníricos, por vezes até abstratos, há um contato material profundo com o mundo (natural), por meio do qual entram todos os mistérios do livro. Basta observar, por exemplo, ( ) ou ( ), ambas imagens altamente sugestivas, mas não tão interessadas na figuração. O mesmo vale para as ilustrações em negativo do livro , um trabalho mais figurativo, mas repleto de texturas bastante eróticas, no sentido da tatilidade que sugerem. Por fim, concluir a exposição (e este texto) com uma sessão de fotos do próprio artista é se indagar uma vez mais sobre quem ele é. É ter em mente que os esforços discursivos em torno de suas obras não dão conta da experiência que elas proporcionam, ampliando-se cada vez mais à medida que o tempo passa. As fotografias de Ernst, em vez de registros que evidenciam quem ele era,tornam-se,assim,uma espécie de véu:parecem transmitir parte do mistério das obras por meio do corpo do artista. É o lugar dessa antifotografia, aquela que vê ao , que Ernst parece ocupar – talvez aí esteja o argumento maior de . E quanto mais nos aprofundamos na imagética de Max Ernst, mais ela fica escorregadia e polissêmica, e mais luminosa: como ocorre com as coisas do mundo. Não há fantástico, porque tudo é real.

Nicholas Andueza é professor de Cinema na PUC-Rio, Coordenador da Central Técnica da Cinemateca MAM Rio, editor assistente da Revista Eco-Pós, pesquisador em cinema, montador audiovisual e câmera.

FOTOGAGA. MAX ERNST AND PHOTOGRAPHY

A VISIT FROM THE WÜRTH COLLECTION

• MUSEUM FÜR FOTOGRAFIE • BERLIM • 18/10/2024 A 27/4/2025

Un coup d'oeil) from Histoire naturelle, c. 1925. © Max Ernst.
Self-Portrait, 1924. © Käthe Kollwitz Museum Köln.

Käthe Kollwitz,

AARTISTAALEMÃKÄTHEKOLLWITZÉCONHECIDAPOR SEU VASTO CORPO DE TRABALHOS GRÁFICOS, ONDE TRAZLUZÀSPERSPECTIVASSOCIAISPORMEIODEUMA

REPRESENTAÇÃO CRUA E SEM POLIMENTO DA CONDIÇÃO HUMANA. ALÉM DA GUERRA, TRISTEZA, OPRESSÃO, MORTE E POBREZA, QUE SÃO TEMAS

RECORRENTES EM SEUS INTENSOS E CONFRONTACIONAIS DESENHOS, HÁ TAMBÉM CUIDADO, ESPERANÇA E AMOR

TESTEMUNHO DA DOR

POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA

“Mais um ano se passou desde a morte de Peter. Estou sentada aqui novamente, abrindo gavetas, tocando suas cartas e suas fotos”. ( , Käthe Kollwitz).

O relato desta mãe poderia ser visto como algo íntimo e pessoal, porém, quem conta sobre essa dor é Käthe Kollwitz (1867-1945), uma artista que testemunhou cinco décadas na Alemanha que foram conturbadas pelos desdobramentos da Revolução Industrial, por duas guerras mundiais e pelo nazismo. Nesse contexto, os ressentimentos descritos nesse trecho e em sua produção artística também são vividos por mulheres, em especial aquelas que perderam (e continuam perdendo) seus filhos para a fome, a pobreza, as guerras e outras mazelas.

Hoje, o repertório dessa artista está ligado à expressão da técnica, do feminino, mas, sobretudo, relaciona-se às dores da humanidade. Nesse sentido, a exposição , organizada no Statens Museum for Kunst (SMK) –a primeira individual da artista em Copenhague –, apresenta 130 obras, entre desenhos, gravuras e esculturas, que exploram, com profundidade, a tristeza e a esperança como emoções inerentes à pessoa, mas, acima de tudo, ao humano.

Hunger, Sheet 2 of the series
Proletariat, 1925. © SMK, National Gallery of Denmark.

Charge, sheet 5 of the cycle Peasants War, 1902/03. © Käthe Kollwitz Museum Köln.

Como a “arte sem subterfúgios” dessa mulher-artista ainda é capaz de evocar as dores do mundo? Os eventos da primeira metade do século 20, registrados em suas obras, servem de lição para os tempos atuais? Käthe Kollwitz acreditava que a arte poderia provocar mudanças sociais, então, quais seus temas, abordagens e intenções? Na busca por respostas ou, ao menos, por indicativos para a compreensão da arte produzida por Kollwitz, convido você para um mergulho na vida-obra dessa artista alemã, que uma vez disse: “Eu, Käthe Kollwitz,quero ver até onde posso ir com meu trabalho”.

Ela nasceu em Königsberg (atual Kaliningrado, Rússia). Estimulada pela família, fez aulas de desenho em uma época em que era vedado o acesso de mulheres às academias de Belas-Artes.

Na sequência, estudou em Berlim (18841885) e Munique (1888-1889), sendo aluna de pintura de Karl Stauffer-Bern, Emil Neide e Ludwig von Herterich. De início, ela foi treinada como pintora e, mais tarde, após conhecer o trabalho de Max Klinger, que defendia o desenho em detrimento da forma livre da pintura, Kollwitz se concentrou nas artes gráficas. Suas incursões no campo da escultura se devem aos estudos realizados em 1904, em Paris, ocasião na qual frequentou a renomada Academia Julian. De todo modo, gradualmente, ela desistiu da pintura em favor da escultura, do desenho e da gravura, e, mais tarde, direcionou seu fazer arte às técnicas da litografia e da xilogravura.

Solidarity, 1931/32. © Käthe Kollwitz Museum Köln.

Na sua prática artística, ela buscou, cada vez mais, simplificar a linguagem visual, sem nunca prejudicar a legibilidade da obra. Na cena artística da época, seu naturalismo parecia obsoleto, especialmente quando a abstração já se mostrava como uma forte corrente vanguardista. Porém, para Kollwitz, a qualidade detalhada do desenho, de fato, correspondia às suas preocupações em registrar os flagelos da humanidade e transmitir uma ideia de transformação. Nesse intuito, foram muitos os motivos para o privilégio do desenho e da gravura, entre eles, a acessibilidade, o impacto visual, a capacidade expressiva, a versatilidade criativa, a adaptação ao contexto e, ainda, a efetividade na comunicação das mensagens sociais. Por suas opções plásticas, as obras de Kollwitz são vistas como uma arte “sem distrações” ou, ainda, “sem subterfúgios” – a linha dura e seca atribui o acento grave à composição, expressa ideia e, principalmente, potencializa os sentimentos. São as redes de linhas que dão os contrastes claros e escuros. Assim, suas representações de experiências humanas universais se tornam densas e dotadas de grande poder emocional. Alguns pesquisadores indicam influências importantes em seu trabalho, entre elas, as já citadas proposições de Max Klinger, mas, também, a literatura de Émile Zola e Máximo Gorki e a dramaturgia de Henrik Ibsen e Gerhart Hauptmann – deste último autor, a peça teatral (1892) serviu de inspiração direta à produção da série de gravuras (18931897) – e está em destaque na mostra em Copenhague. Na fase final da produção de Kollwitz, é possível aproximá-la às formas expressionistas de Ernst Barlach e Edvard Munch.

Unemployed, sheet 1 of the series Proletariat, 1924/1925. © Käthe

Kollwitz Museum Köln.

Kollwitz cumpriu um dos fundamentos do expressionismo alemão, ou seja, a arte com finalidade social. Muito exigente com a própria produção, ela deixou anotações em diários de sua busca pelo aperfeiçoamento técnico e expressivo. Nessa procura, enfatizam-se seus traços melancólicos que se diga estão também em diversos contemporâneos seus, tais como Otto Dix, Ernst Ludwig Kirchner e outros expressionistas alemães. Porém, diferentemente de seus pares, acreditava na capacidade de a arte influenciar as massas e provocar mudanças sociais. Nessa crença, escolheu como tema os dramas humanos. Contudo, essa temática parece sintetizar sua própria vida: o convívio com a classe operária, a luta por condições igualitárias e a dor das perdas do filho e do neto nos . A preocupação com o social, herdada da família, somada às suas vivências no agitado contexto alemão, orientaram o caminho da artista à produção de uma arte de denúncia e protesto em relação à injusta condição social e política da classe operária. O tema de sua obra estava em sua vida. Em 1891, por exemplo, ela se casou com o médico Karl Kollwitz e juntos foram morar em um bairro operário de Berlim. Ela encontrou muitos de seus motivos na clínica médica de seu marido, onde também mantinha seu estúdio. A artista conviveu com o difícil cenário das famílias proletárias e essa realidade se tornou objeto de sua obra e do seu compromisso social. Ela retratou de forma visceral a vida sofrida dos pobres e dos trabalhadores; capturou a luta diária e as adversidades enfrentadas por essa classe.

Outro exemplo que conecta vida e tema é a perda de seu filho durante a I Guerra Mundial. Esse acontecimento trágico a levou ao tema do luto: Peter morreu em batalha na Bélgica e Kollwitz se comprometeu com o pacifismo. Como uma artista que viveu durante ambas as Guerras Mundiais, ela teve seu trabalho impactado por esses eventos. Na sua abordagem, o luto, a perda e a destruição ocasionados pela guerra se tornavam dores injustificáveis. O sofrimento das mães, pais enlutados, viúvas e órfãos se tornaram a motivação para seu processo criativo e à denúncia existente em seu trabalho. Seu enfoque recaiu também sobre a experiência feminina: suas representações de mulheres, incluindo seus frequentes autorretratos, comunicam efetivamente os problemas de um período no qual as mulheres ainda estavam negociando maneiras de se representar nas artes – uma difícil passagem do estado de musas à protagonistas de suas histórias. Foram aproximadamente 130 autorretratos que podem ser divididos em: juventude (1888-1904), idade madura (1904-1924) e velhice (1924-1943). No fundo, seus autorretratos se mostram como construções autorreferenciais – um “desenho de si” –em um instante mesmo em que se representa. Kollwitz disse sobre o feminino. Não à toa, uma das integrantes do , grupo de artistas feministas anônimas que combate o sexismo na arte, adotou seu nome como pseudônimo.

Need, sheet 1 of the cycle A Weavers’ Revolt, 1893-97. © SMK, National Gallery of Denmark.

The Sacrifice, sheet 1 of the series War, 1922. © Käthe

Kollwitz Museum Köln.

Woman with Dead Child, 1903. SMK © National Gallery of Denmark.

Outra forte experiência feminina, abordada por Kollwitz, é, sem dúvida, a maternidade como símbolo duplo de amor e dor. A artista, muitas vezes, aborda a mulher idosa que perde seu filho, ou, ainda, a mãe que tenta proteger sua prole. É a figura da mulher que mais aparece em condições miseráveis. São elas que precisam lidar com a fome, a doença, a morte e os desdobramentos da guerra. A artista mostra com crueza as circunstâncias impostas às mulheres em uma sociedade dominada por homens, pelo capitalismo e pela luta de classes. A essa altura, é possível perceber que sua vida foi marcada por reviravoltas. Em 1919, ela foi nomeada para a Academia de Belas-Artes de Berlim. Dez anos mais tarde, suas obras foram exemplo para artistas da Associação de Artistas Plásticos Revolucionários (AAPR), fundada em Berlim e Dresden (1928-1929). Em 1933, passou a ser perseguida pelos nazistas, por suas convicções sociais. Seus trabalhos foram considerados “arte degenerada” e ela e o marido sofreram ameaças de serem levados para os campos de concentração. Em 1936, o casal decidiu abandonar Berlim. O refúgio nos EUA foi oferecido por um colecionador, mas ela recusou, preferindo ficar perto de sua família.

Seu marido, Karl Kollwitz, faleceu em 1940 e, em 1942, seu neto morreu enquanto lutava na Rússia. Em 1943, Kollwitz evacuou sua casa em Berlim, que foi arrasada por bombas pouco depois. Muitas de suas obras foram destruídas no ataque, bem como fotografias, cartas e lembranças de sua vida familiar. Em 1944, ela seguiu para a região de Moritzburg, na Saxônia. Desesperançada, Kollwitz pediu ao filho Hans, em junho de 1944, permissão para cometer suicídio; ele pediu que se abstivesse, pelo menos até o fim da guerra. Em 22 de abril de 1945, 16 dias antes do término da II Guerra, Käthe Kollwitz morreu de insuficiência cardíaca, aos 78 anos de idade.

Com efeito, a vida-obra de Käthe Kollwitz faz refletir sobre transformações do mundo,sobredor,resiliênciaeesperança. E quando ela depõe: “quero ver até onde posso ir com meus trabalhos”, pode-se responder que ela foi bem mais distante do que as fronteiras da Alemanha. Em terras brasileiras, por exemplo, tem-se a presença de suas ideias. Em 1933, suas obras foram expostas no Clube dos Artistas Modernos de São Paulo (CAM), influenciando, consideravelmente, artistas gravadores brasileiros, entre eles Lívio Abramo, Renina Katz e Fayga Ostrower. O crítico de arte Mário Pedrosa destacou o trabalho dela em seu livro (1933), reforçando seu papel como uma figura de influência na arte social brasileira. Vale dizer que, no período, o Brasil vivia em tensão entre a Ação Integralista e os movimentos antifascistas. Desde aquela época, as questões sociais e uma arte politicamente engajada marcaram o cenário nacional. Aliás, têm-se obras de Kathe Kollwitz em museus brasileiros – aqui chamo a atenção para dois trabalhos, em particular, existentes no acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP): (1919) e (1922-1923) – esta última obra está exposta, agora, na mostra – exposição que comemora os 60 anos de fundação do museu e, ao mesmo tempo, faz uma reflexão sobre a história da instituição.

Self-portrait, 1919. © Käthe Kollwitz Museum Köln.

A gravura pertencente à série é uma imagem forte Nela, uma massa negra central se apresenta sob a interferência de poucas, mas fundamentais, linhas que determinam a densidade da composição. Um grupo de mulheres, mães unidas e abraçadas, protege seus filhos. As expressões são tensas, os olhos assustados, as mãos rígidas se posicionam como escudos, amparo e proteção para crianças. Já os filhos espreitam sob a muralha formada pelos corpos das mulheres. Como dado interessante, observa-se que as fisionomias das mães se assemelham à da artista, procedimento comum em outros trabalhos. Mulher, mãe e artista se integram ao tema do medo da guerra gerado pela própria humanidade. Por essa e outras criações, considera-se que ela cumpriu sua sentença: “É meu dever dar voz ao sofrimento dos homens”. A compaixão de Kollwitz pelos necessitados lhe rendeu reconhecimento internacional. Ela já teve

exposições organizadas nos últimos anos, no MoMA (Nova York) e no Museu Städel (Frankfurt), e, agora, no SMK. Hoje, seu nome evoca imagens de mães enlutadas, crianças doentes, pais angustiados e, de forma mais geral, sofrimento e morte. Contudo, sua reputação, embora amplamente definida por seu assunto socialmente crítico, também repousa em suas técnicas e no impulso para a experimentação. Kollwitz alcança em suas obras a verdade atemporal do drama humano. Por fim, Kollwitz foi uma artista comprometida com ideais de justiça social e paz. Sua arte pede por mudanças, reflete a preocupação com conflitos e a desigualdade. Ela prova que a dor de uma mãe pode ser universal. Suas obras são marcadas por uma imensa compaixão pelos sofrimentos humanos. Ela continua sendo uma voz potente para a justiça e para a empatia por meio de sua arte – algo que, no contemporâneo, ainda precisamos tanto.

The Mothers, sheet 6 of the series War, 1921/1922.

© Käthe Kollwitz Museum Köln.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais (ECA-USP). Pós-doutorado em Artes Visuais (Unesp). Curadora independente. Professora do CELACC (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA-USP). Especialista em Cooperação e Extensão Universitária no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Membro da Associação Internacional de Crítica de Arte (AICA). Articulista do Jornal da USP, editora da Revista Arte & Crítica e colaboradora da DasArtes. Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da resistência (MCSP, 2022).

Alighiero Boetti

Autoritratto. © Andrea Veneri; Archivio Alighiero Boetti.

Alighiero Boetti,

DUAS EXPOSIÇÕES EM ROMA CELEBRAM EM

DETALHES A LUMINOSA FIGURA DE ALIGHIERO

BOETTI, CUJO LEGADO

CONTINUA INSPIRANDO GERAÇÕES INTEIRAS DE ARTISTAS

POR MATTEO BERGAMINI

ALIGHIERO E BOETTI: AJEITAR À ORDEM UNIVERSAL

Uma de suas frases favoritas era , ou seja, colocar o mundo no mundo, parir tudo o que o universo carrega em si. Uma operação destinada ao fracasso absoluto, utópica: a expressão perfeita da eterna busca que acompanhou toda a vida de Alighiero Boetti, perseguindo “as infinitas possibilidades de existência”.

Alighiero (Turim, 1940 – Roma, 1994), autodidata, debruçou-se no mundo da arte nos meados da década de 1960, vestindo o papel do escultor e utilizando as matérias da “modernidade”: plásticos, esmaltes, objetos encontrados na vida cotidiana, além de retratar – em preto e branco, os dispositivos tecnológicos de outrora – microfones, câmeras, televisões. Juntou-se, logo no começo, ao grupo da Arte Povera – cujo manifesto foi assinado pelo crítico Germano Celant, em 1967, publicado pelas páginas da revista ; repentinamente, deu-se a outro rumo, imaginando novas formas para “organizar” as leis da ordem da linguagem, da matemática, das categorizações e das classificações.

Specchio Cieco, 1965.
©
Courtesy Tornabuoni Arte; Archivio Alighiero Boetti.

Até o próximo mês de março, Alighiero Boetti é homenageado em Roma – na Accademia di San Luca e na Galeria Tornabuoni – com duas exposições que celebram de forma inusitada, por meio de detalhes, alguns momentos marcantes de sua carreira, iluminando tanto os primeiros anos de produção do artista e sua paixão pelo ato de dispor, quanto o último projeto monumental realizado no Centre National d’Art Contemporain de Grenoble, na França, em 1993, poucos meses antes de morrer. Mesmo sendo mostras independentes, – na Tornabuoni, uma visão introspectiva e familiar do mundo de Alighiero – abre idealmente o caminho para [ ndr], exposição cujo foco está na , uma das maiores já realizadas pelo artista, é inteiramente apresentada em uma sala da Accademia di San Luca. Tudo, sem se esquecer do amor pelos números e pela que, desde sempre, pertenceu à poética de Alighiero.

Ouvre postale (De bouche à oreille), 1993.
© Francesca Tecardi, Courtesy Tornabuoni Arte; Archivio Alighiero Boetti.

Juntamente com está exposta também : a escultura replica o próprio corpo do artista, feita em concreto moldado por suas próprias mãos, uma borboleta encostada ao peito, à altura do coração; a matéria e o espírito, a carne e a alma, dão-se por pequenas balas arrumadas no espaço a delimitar um perfil básico, até infantil, remarcando uma segunda identidade, a do alinhada por Arthur Rimbaud. Dessa forma, o artista acabava de traçar um de seus , como tinha acontecido também no ano precedente com ( , 1968), fotomontagem na qual se observam dois Alighieros de mãos dadas caminhando por uma avenida de Turim; prevejo de mais uma modalidade de apresentação de si mesmo. De fato, a partir de 1972, o artista passou a assinar como Alighiero e Boetti, no qual a conjunção entre o nome e o sobrenome ia aglutinando as personalidades – o e da filosofia

Abaixo: Lo che prendo il sole a torino il 19 gennaio, 1969-1992. À direita: Gemelli, 1968. © Courtesy Tornabuoni Arte; Archivio Alighiero Boetti.

taoísta; o princípio feminino, escuro, receptivo, eternamente conectado ao ativo, luminoso e extrovertido, mas também o e o , nome dentro do qual entrava durante as suas peregrinações no Oriente Médio, nos territórios do Afeganistão onde encarregava os mestres tecelões para produzir suas maravilhosas tapeçarias que voltavam à Europa meses ou até anos depois do primeiro contato com os artesãos. , também, proporciona o começo das intervenções realizadas com o auxílio inconsciente dos correios: enviando 50 cópias da fotomontagem aos amigos, em formato de cartão postal, abria-se uma relação parassimpática entre o artista e o seu mesmo ato criativo, completando-o com o trabalho de pessoas externas, na mesma dinâmica que envolvia as tapeçarias: ativando processos.

À direita: Ouvre postale (De bouche à oreille), 1993.

© ©Francesca Tecardi, Courtesy Tornabuoni Arte; Archivio Alighiero Boetti.

A partir desse ponto, tornou-se mais evidente a determinação do artista em enfrentar os limites, o desafio aos sistemas convencionais – curvados à sua própria vontade, tornando-os seus aliados. Tudo devido ao gosto que Alighiero tinha em receber a correspondência, fantasiando sobre mundos alheios, lugares distantes... Antecipando a imensa , Boetti relatava que as obras realizadas utilizando combinações de selos nos envelopes podiam ser consideradas trabalhos matemáticos pelos quais brotavam formas estéticas: “Não aquele esteticismo que vem da graça de Deus, mas, assim, normal. Parece um encefalograma, pois, para ser realizado, é necessário ter certas estruturas mentais; trata-se de visualizá-las em uma ordem específica, a minha, conforme regras que eu mesmo criei”, declarava o artista à crítica Laura Cherubini. De acordo com o crítico e curador Jean-Christophe Ammann, podemos nos perguntar qual era a mira de Boetti em relação aos trabalhos realizados pelo correio: sendo isso um sistema de ordem com caráter distributivo e a prática do artista um sistema particular, até empírico, eis a colisão entre os dois. Com o seu procedimento, o artista se apropriava da estrutura, “colocando calor em um sistema concebido como pura base logística”, incluindo uma dialética entre a ordem e a desordem.

Viajador incansável – “atraído pelo Oriente que, sem dúvida, é um lugar geográfico, mas por ele também era o lugar psíquico do além, o lugar onde pesquisar – entre camadas infinitas, as sedimentações das andanças culturais do homem na Terra”, escreveu Marco Tirelli, artista e Presidente da Accademia de San Luca. Alighiero escolheu Roma como própria cidade: aqui, em 1972, na parede do ateliê com vista à praça de Santa Apolônia, no bairro de Trastevere, deu-se início a ( ) hoje remontado em três grandes partes nas paredes da Galeria Tornabuoni.

Cabinet de curiosités, Tornabuoni Arte Roma, 2024.

© Giorgio Benni, Courtesy Tornabuoni Arte; Archivio Alighiero Boetti.

Alighiero – como relembra Agata Boetti, a filha – guardava tudo o que cativava a própria atenção, começando outrora uma obra de “montagem” bem caseira, incluindo fotografias e convites de exposições, cartas, desenhos, documentos: avistam-se, entre os outros, o primeiro passaporte do artista e o relato do sequestro de uma pequena dose de haxixe, emitido pela polícia de Veneza em 1988, compreendendo pequenas obraspresentes doadas por amigos ou do mesmo Alighiero. Antecipando as estéticas e as expografias mais atuais, se espalhava, modificava e se reduzia, à medida que o tempo passava e os lugares mudavam. Uma obra-anotação que se tornou uma das mais originais e particulares dentro da incrível produção do artista.

Observar lentamente as inúmeras partes que compõem é empreender uma viagem por fragmentos até inesperados –relembrando os do arrumado por Roland Barthes. E bem curioso, mesmo: pelo , pula-se na direção de outros inúmeros projetos, constantemente realizados alternando medidas e medições, da vastidão ao mínimo, como aconteceu com a ciclópica pesquisa dedicada aos mil rios mais longos do mundo.

Disposta entre 1970 e 1973, com a ajuda da esposa Anne Marie Sauzeau, a busca foi publicada em 1977, em um livro de capa vermelha, cada página remetendo a um curso d’água. Porém, a natureza indescritível do elemento, a dificuldade em identificar as nascentes certas e os problemas relacionados à hidrologia, levantaram inúmeras dúvidas sobre os métodos de classificação e nomenclatura aplicados. Eis que o mapeamento humano da natureza, a tentativa de listá-la hierarquicamente, torna-se provisório e ilusório – isto é, tornando provisória a fabulação de uma ordem na ordem. Ainda assim, para Alighiero, o método era a própria possibilidade de verificar a arte.

Cartolina di Alighiero Boetti a Annemarie SauzeauBoetti, 1970. © Archivio Alighiero Boetti.

Na Tornabuoni, a exposição é completa pela obra , derivação da construção de uma paisagem fantástica utilizando centenas de miniaturas de animais, criada com os filhos Agata e Matteo, em 1979. Elefantes, cangurus, porcos, girafas, camelos, galinhas, gorilas, raposas... todos dispostos no chão, o pôr do sol recortado em papel colorido às paredes. Agata revelou: “Sentávamo-nos no tapete, observando. Chamávamos de tapete voador, pois parecia que estávamos no alto, e eles [os animais, ndr] pequenos lá embaixo”. Mais uma obra decorrente do interesse do artista pelas nomenclaturas do reino animal, pela classificação das espécies e de eras: “Esses animais trazem consigo a lembrança de milhões e milhões de antepassados e lembram o tempo, aquele antigo, lento, anônimo, idêntico, imóvel, inalterado...”. Maravilhoso, tal como um entardecer nos desertos do Oriente.

Zoo, installation view, Tornabuoni Arte Roma, 2024. © Giorgio Benni, Courtesy Tornabuoni Arte; Archivio Alighiero Boetti.

Matteo Bergamini é jornalista, crítico e escritor especializado em Arte Contemporânea. Colabora com a revista italiana ArtsLife e com a portuguesa Umbigo Magazine.

ALIGHIERO BOETTI: CABINET DE CURIOSITÉS • TORNABUONI ART • ROMA • 6/11/2024 A 22/2/2025

ALIGHIERO E BOETTI: RADDOPPIARE DIMEZZANDO • ACCADEMIA DI SAN LUCA • ROMA • 29/10/2024 A 15/2/2025

FORMADA POR PEDRAS ORIGINADAS AO LONGO DA EVOLUÇÃO PLANETÁRIA E “ESCUTADAS” PELA ARTISTA DENISE MILAN, A EXPOSIÇÃO VIAGEM AO CENTRO DA TERRA, NOFAROLSANTANDER, REVELAUMACOMPREENSÃOSILENCIOSAEPROFUNDADOTEMPO E NOSCONDUZA UMA JORNADA IMAGINÁRIA PELASENTRANHAS DE PEDRAS, CRISTAIS, MINÉRIOS E MAGMAS QUE COMPÕEM AS CAMADAS DE NOSSO SOLO. CONVIDAMOS A ARTISTA PARA DESCREVER O PROCESSO DE INSPIRAÇÃO PARA A CRIAÇÃO DE SUAS OBRAS DE ARTE POR DENISE MILAN

Vista da mostra Viagem ao Centro da Terra, 2024. Foto: Leandro Andrade. © Denise Milan.

Mist of the Earth
Infinity. Foto: Jacob Bluestone.
Vistas da mostra Viagem ao Centro da Terra, 2024. Foto: Carol Quintanilha. © Denise Milan.

Viagem ao Centro da Terra

Nascimento.
Foto: Carol Quintanilha. © Denise Milan.
Vista da mostra Viagem ao Centro da Terra, 2024. Foto: Carol Quintanilha. © Denise Milan.
Banquete da Terra. Foto: Sérgio Coimbra. © Denise Milan.
Banquete da Terra
Vista da mostra Viagem ao Centro da Terra, 2024. Foto: Carol Quintanilha. © Denise Milan.

Brasil, luz da Terra. Foto: Jay Colton.

© Denise Milan.
Vista da mostra Viagem ao Centro da Terra, 2024. Foto: Carol Quintanilha. © Denise Milan.
Quartzoteka
Quartzoteka. Foto: Thomas Susemihl. © Denise Milan.
Vista da mostra Viagem ao Centro da Terra, 2024.
Foto: Carol Quintanilha.
© Denise Milan.

• 8/11/2024 A 9/2/2025

DENISE MILAN: VIAGEM AO CENTRO DA TERRA • FAROL SANTANDER • SÃO PAULO

Coluna do meio

,

Francisco Galeno

Galatea

São Paulo

Kille e Leandro Spett Kovak & Vieira

São Paulo

São

Sergio Scaff, Francisco Galeno e Miriam Scaff
Conrado Mesquita, Francisco Galeno, Antonia Bergamin e Tomas Toledo
Alessandro Aued
Edgar Pereira e Heloisa De La Torre
Renata Fonseca e Mônica Costa
Fernando Tajima e Imani Lima
Bruna Kherlakian
Gabriel Nehemy
Kille e Leandro Spett
Natasha Schlobach, Rosaria Bernardes e Iury Simões
Antonia Bergamin e Paulo Vicelli
Jay Boggo, Dorli Kamkhagi e Will de Carvalho
Sergio Free MITS Galeria
Paulo

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