Revista Dasartes 102

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MAX BECKMANN EDGAR DEGAS ALBERTO GIACOMETTI SARAH MOON LUCAS CRANACH THE ELDER FLAVIA JUNQUEIRA


Cai Guo Quiang


EM JANEIRO E FEVEREIRO DE 2021 A ESCOLA DASARTES APRESENTA NOVOS CURSOS DA SÉRIE 20 ARTISTAS:

20 ARTISTAS DO HEMISFÉRIO SUL E ORIENTE

20 ARTISTAS MODERNOS INTERNACIONAIS ● INSCREVA-SE EM DASARTES.COM.BR ● APENAS R$ 208 MENSAIS NO FORMATO ASSINATURA RECORRENTE

escola@dasartes.com.br


DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin EDIÇÃO . NEGÓCIOS André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA dasartes@dasartes.com

Capa: , Odysseus und Kalypso, 1943. © VG Bild-Kunst, Bonn 2020 .

DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br REVISÃO Angela Moraes PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SUGESTÕES E CONTATO info@dasartes.com VERSÃO IMPRESSA assinatura@dasartes.com Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou CMS/RJ

Contracapa: Lucas Cranach The Elder, Judith with the Head of Holofernes. © Compton Verney


MAX BECKMANN 10

SARAH MOON

6

Agenda

8

Notas de mercado

90

Alto Falante

94

Livros

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EDGAR DEGAS 36

ALBERTO GIACOMETTI 52

LUCAS CRANACH THE ELDER

FLAVIA JUNQUEIRA 78

64


Miguel Rio Branco, Homem na janela da parede rosa, 1979.

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AGEnda

Em sua carreira de mais de 50 anos, Miguel Rio Branco (1946) construiu uma obra singular, marcada pelas cores vibrantes e pelo cruzamento entre a fotografia, o cinema, a instalação e a pintura. Sua produção fotográfica é o foco da exposição inédita no IMS Paulista. Também será lançado um novo livro, com fotos e textos sobre o artista Intitulada s, a exposição é resultado de um mergulho de Rio Branco em seu próprio arquivo. Ao rever sua produção, o artista cria conexões e diálogos entre suas fotografias, atribuindo novos sentidos às imagens. A curadoria da 6

mostra é de Rio Branco e Thyago Nogueira. Organizada de forma cronológica, a seleção reúne mais de 200 trabalhos, produzidos desde os anos 1970, quando Rio Branco iniciava as experimentações com a fotografia, até os dias de hoje. As obras investigam temas caros ao artista, como a sexualidade, a violência, a dor e a solidão, além de evidenciar o caráter multidisciplinar de sua produção.

Miguel Rio Branco • IMS Paulista • 8/12/2020 a 16/5/2021



GARlimpo

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NOTAS do mercado

POR LIEGE JUNG

A grande notícia do mercado de arte é o leilão da obra , de Tarsila do Amaral, pela Bolsa de Arte, no dia 17 de dezembro as 20h. O lance inicial de R$47 milhões, se confirmado, fará desta obra a mais cara de um artista brasileiro vendida em leilão, mas espera-se que haja alguma disputa. O preço se explica: há muitos anos uma obra desta qualidade e raridade não é oferecida à venda e, provavelmente, outra oportunidade não aparecerá tão cedo. Tarsila do Amaral é um dos nomes do modernismo mais internacionalmente reconhecidos e a maior parte de suas obras-primas se encontra em coleções institucionais.

Duas feiras online aconteceram em novembro. A Artsoul Gravuras foi dedicada apenas a este suporte, com 26 expositores e em torno de 800 obras, com muitas opções a menos de R$2 mil. A tradicional SP-Foto este ano teve que levar sua feira para a web e reuniu 54 expositores. Um comunicado da SP-Foto indica que 78% dos visitantes eram novos usuários e 10% eram estrangeiros, mostrando o potencial para atingir novos clientes. Ainda assim, como relatado por expositores, o volume de vendas foi pequeno se comparado aos eventos presenciais, como vem acontecendo em quase todas as feiras on-line. 8


No cenário internacional, novembro era o mês da esperada temporada de leilões de outono, que este ano se estendeu para dezembro para acomodar novos leilões transnacionais e as vendas cada vez mais relevante de Hong Kong. Os resultados nas três grandes casas foram impressionantes. Phillips realizou US$135 milhões apenas em sua Contemporary Evening Sale, com recordes de preço para vários artistas, incluindo Kehinde Wiley e os queridinhos do momento Amoako Boafo e Matthew Wong. Ao final da temporada, Sotheby's anunciou resultados acumulados de US$2,75 bilhões em obras de arte vendidas no ano, com 12 leilões ainda por vir. Na Christie's, a temporada em Hong Kong surpreendeu, somando US$390 milhões em vendas, ainda muito abaixo dos US$573 milhões alcançados apenas com os leilões de arte do século 20 em Nova York.

RESULTADOS DE LEILÕES (VALORES COM COMISSÃO) Lucas Arruda, 2013, óleo sobre tela, 50 x 60 cm, inicial USD193.000, venda USD387.041 - Phillips Hong Kong - 03/12 Vassily Kandinsky, 1930, aquarela e tinta sobre papel, 29 x 21 cm, inicial USD120.000, venda US$125.000 - Christie's - 03/12 Wayne Thiebaud, 2009, OST, 30 x 40 cm, inicial USD1.800.000, venda USD2.900.000 - Christie's - 03/12 Camille Pissaro, c.1885, guache e lápis sobre papel, 8 x 13 cm, inicial USD30.000, venda USD81.900 - Sotheby's - 19/11 Barkley L. Hendricks, 1972, OST, 153 x 153 cm, inicial USD2.000.000, venda USD4.013.000 - Sotheby's - 8/12 David Hockney, 1980, acrílica sobre tela, 213 x 152, estimativa sob demanda, venda USD41.000.000 - Phillip's - 7/12 9


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MAX beckmann

Messingstadt, 1944. © VG Bild-Kunst, Bonn 2020.

ALTO relevo



O PRINCIPAL INTERESSE PARA O PINTOR ALEMÃO MAX BECKMANN ERA O SER HUMANO. FEMININO-MASCULINO É A PRIMEIRA EXPOSIÇÃO A EXAMINAR EM DETALHE OS PAPÉIS MUITAS VEZES CONTRADITÓRIOS DESEMPENHADOS POR MULHERES E HOMENS NAS OBRAS DE MAX BECKMANN, UM DOS GRANDES ARTISTAS DO MODERNISMO E UM POTENTE INTÉRPRETE DE SUA ÉPOCA

POR NICHOLAS ANDUEZA

A mostra virtual e presencial , com curadoria de Karin Schick, fica em exposição no Hamburger Kunsthalle, em Hamburgo, até 24 de janeiro de 2021. Constituída por pinturas, esculturas e desenhos, a exposição conta com aproximadamente 140 obras daquele que é um dos mais importantes nomes da arte moderna alemã. E o que nos atrai aqui, para além da evidente estatura do artista, é a abordagem original concebida pela curadora: a contemplação de um possível dinamismo entre elementos ditos “femininos” e “masculinos” nas obras de Beckmann. A proposta é de particular interesse por três motivos principais. Primeiro, porque, segundo a própria curadora, o artista em questão sempre tendeu a uma postura “masculinizada” diante do mundo, moldando a forma com que a arte dele costuma ser olhada. Segundo, porque se trata de uma leitura criativa, isto é, imprevista e até descolada de possíveis “intenções” do artista – mesmo que ele conhecesse discussões de Jung e de Weininger sobre cruzamentos entre 12

Das Bad, 1930. © VG Bild-Kunst, Bonn 2020 © Foto: Saint Louis Art Museum

FEMININO, MASCULINO (E ALÉM)



Selbstbildnis Florenz, 1907. © VG Bild-Kunst, Bonn 2020. Foto: Elke Walford

“feminino” e “masculino” na formação das subjetividades. Terceiro, porque aborda uma questão altamente complexa e estrutural em nossas sociedades: a diferenciação binária dos sexos e as de gênero. Nesse sentido, é, antes de tudo, um risco. E, enquanto gesto curatorial propositivo, é um risco bem-vindo. A coragem desse gesto reside no fato de que somos capazes de testar e questionar o argumento da curadoria a cada nova obra que olhamos. Assistimos a uma leitura curatorial proposta não de cima para baixo, mas de modo horizontalizado, quase de espectador para espectador. Além disso, o caráter imprevisível (e, no limite, anacrônico) desse argumento o vincula mais ao nosso “Agora”, às discussões de gênero e representação, liberando a mostra do perigo de se limitar ao “Então” do artista, apesar dos contextos das obras jamais serem ignorados. Como defende Georges Didi-Huberman em , a história da arte precisa de certos anacronismos, porque, fundamentalmente, as próprias obras de arte são anacrônicas, isto é: elas tendem a ser complexas demais, vivas demais para se restringirem ao espaço e ao tempo em que foram concebidas. Prova disso é o magnetismo que até hoje nos puxa quando olhamos para uma (1503), de Da Vinci, ou para uma (1440-1445), de Fra Angelico, por exemplo. 14


Selbstbildnis im Smoking, 1927. © VG Bild-Kunst, Bonn 2020.

(1927), de Max Ou, a propósito, quando olhamos para um Beckmann. O próprio Beckmann produziu um difícil de ser encaixado em um único contexto ou grupo artístico, tendo passado pelo Expressionismo e, posteriormente, pela Nova Objetividade alemã, movimento que bebe do Expressionismo mas se distancia dele ao propor uma interpretação mais pragmática e menos subjetivista da sociedade. O artista ganhou notoriedade durante o período de Weimar. Entretanto, em 1937, quando os nazistas o classificaram como artista “degenerado”, Beckmann se viu obrigado a fugir. Primeiro para a Holanda, onde permaneceu por dez anos, depois para os Estados Unidos, onde viveu por mais três anos, falecendo em 1950. O elemento humano – o corpo, seus afetos e suas relações – aparece como o assunto central da obra de Beckmann, que, não por acaso, desenvolveu um importante trabalho como retratista (incluindo numerosos autorretratos). Seu interesse pela figura humana se estende ainda à representação de temas religiosos e mitológicos, também presentes na mostra. E a curadoria de Karin Schick retoma esse interesse de Beckmann pelo humano, mas sob outra lente – a do gênero. 15


Bildnis Ludwig Berger, 1945. © VG Bild-Kunst, Bonn 2020 © Foto: Saint Louis Art Museum

Para tanto, o esforço curatorial se concentra em relações arredias entre as obras. Por exemplo, quando são postos lado a lado, na mesma parede, a (1940-1942) e o (1945). Nos dois casos, uma figura humana segura flores de modo tranquilo e relaxado, posando para um retrato; mas, em um deles, está uma mulher e, no outro, um homem. Evidentemente, não se trata somente da presença da flor, mas também, acompanhando-a, da gentil e desinteressada postura das mãos, particularmente realçada pelos contornos e pelos tons mais claros no retrato de Berger. Eis o deslocamento. Se no retrato da mulher, devido às convenções ocidentais de gênero (que associam a flor a um suposto “feminino”), mal chegamos a reparar nas flores; o contrário ocorre no quadro com a figura “masculina” (devido às mesmas convenções). De repente, percebemo-nos ir e voltar entre os dois retratos, comparando mãos, flores – e corpos. Eis o efeito construtivo do anacronismo: abre caminhos naquilo que supúnhamos quando uma leitura inventiva já ter visto e entendido. É quando redescobrimos uma flor a partir de outra.

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Ruhende Frau mit Nelken, Bildnis Quappi, 1940/42. © VG Bild-Kunst, Bonn 2020

Algo semelhante acontece com a representação de (1943), posta bem em frente a (1947-1948). Se neste é uma figura “masculina” animalesca (vampiro com asas) que ameaça voluptuosamente uma figura “feminina”, naquele é a figura “feminina” de Calipso, munida de suas feras (e, portanto, de uma animalidade), que ameaça e conquista Ulisses, cuja virilidade se anuncia impotente. Assim, pelos corredores da mostra, passamos por várias salas que trabalham essas instigantes simetrias entre “masculino” e “feminino” – seja por encontros ou desencontros (vide a simetria invertida de (1930)). É como se as pinturas de Beckmann mais uma vez se renovassem diante de nossos olhos. No entanto, vale notar que, neste jogo, há dois perigos: o primeiro é viciar a leitura das obras sob uma perspectiva comparativista que atenue a singularidade de cada peça; o segundo é limitar as reflexões de gênero aos polos binários e heteronormativos do “masculino” e do “feminino”. O primeiro perigo é o mais brando. Basta que nos lembremos de que as comparações são uma proposta da curadoria e não necessariamente do artista, e esse jogo curatorial não pretende monopolizar o sentido das obras, mas acrescentar uma rica camada de leitura a todas as outras já existentes. Assim, depois das 17


Asphalt Air and Hair, 2017, ARoS Triennial THE GARDEN, Dänemark © Katharina Grosse und VG Bild-Kunst, Bonn, 2019. Foto: Nic Tenwiggenhorn.


À Esquerda: Odysseus und Kalypso, 1943. Abaixo: Vampir, 1948. © VG Bild-Kunst, Bonn 2020

comparações feitas, é interessante retornar à singularidade de cada quadro. Notar as pinceladas, os tons, a força dos contornos, as expressões, os mistérios. Tudo isso ganhará, anacronicamente, um novo brilho, pois já teremos descoberto insólitas complexidades de gênero em cada figura. O segundo perigo é um pouco mais difícil, porque, advindo de uma discussão mais fundamental, que não teremos tempo de elaborar, precisa ser ao menos sinalizada. O que é produtivo nas descobertas de uma fluidez de elementos ditos “masculinos” e “femininos” nas figuras de Beckmann é precisamente a possibilidade de fazer cair por terra tais polos de identificação, de ir além deles. Ou seja, quando descobrimos Ludwig Berger mexendo em flores, já não podemos simplesmente classificar esse gesto como “feminino”, pelo menos não sem problematizar o que significa esse adjetivo (e os corpos que o carregam). Pensar nisso é cuidar para evitar uma fabulação dualista dos corpos e dos gestos, é vislumbrar uma transformação muito mais radical no entendimento das identidades – a mesma transformação que é anunciada pela teoria queer. 19



Frühe Menschen – Urlandschaft, 1939.


“ ”

não dá esse passo além, porque isso seria abandonar o artista para instrumentalizá-lo; mesmo assim, a mostra pode servir como ponte para dar esse passo. E, dentre tantas obras, uma que parece acenar nesse sentido está justamente na sala (1940). As mulheres são Passagem: retratadas enquanto entram em um estabelecimento: uma está cortada pela porta, a outra está atrás de um quadriculado; à esquerda, naquilo que não se sabe se é janela ou espelho, vemos uma silhueta evanescente que pode ser alguém lá fora ou o próprio artista refletido. Trata-se de um quadro sobre o dinamismo de corpos e identidades no cotidiano, o movimento, enfim, de existir – mesmo durante a guerra (a obra é de 1940). É um estranho e indeciso autorretrato para um artista que tanto se pintou: o eu se mantém obscuro, silhuetado, à margem, quase sem ser (mais: podendo ser outro). Ainda assim, quando descobrimos aquela sombra, é ela que nos puxa a vista. E, de relance, em um jogo de antiperspectiva, as três figuras parecem produzir um alinhamento corporal, condensando uma mística da identidade. Assim, nesse brevíssimo momento de reflexos e passagens, tais figuras precipitam em nós a pergunta fundamental de todo grande retratista: não se é macho ou fêmea, mas, muito mais profundamente: o que seria, afinal, um “corpo”? E como esse “corpo” seria capaz de inventar aquela multidão metamorfoseante a que chamamos “pessoa”? pandêmico. Os lares, por sua vez, surgem como ilhas utópicas: os últimos lugares onde as máscaras ainda não são obrigatórias. Talvez as cores expansivas de Katharina Grosse, ao Nicholas Andueza é MAX BECKMANN • WEIBLICHdoutorando bolsista em devassarem certas fronteiras, MÄNNLICH • HAMBURGER Comunicação e Cultura na sussurrem-nos que repensar os UFRJ, é professor de cinema KUNSTHALLE • ALEMANHA • espaços é também ressonhá-los. em cursos em Nova Friburgo 25/9/20 A 24/01/21 e trabalha como editor. 22



A Bouche Perdue, 2000. © Sarah Moon

SARAH DEStaque


moon ,


ATUANTE NA FRANÇA E NO EXTERIOR DESDE O FINAL DOS ANOS 1960, SARAH MOON É RECONHECIDA COMO UMA GRANDE FOTÓGRAFA DE MODA; MAS ELA ESTÁ LONGE DE SE LIMITAR A ESTE ÚNICO CAMPO, E O OBJETIVO DA NOVA EXPOSIÇÃO NO MAM PARIS É REVELAR A SINGULARIDADE DE UMA OBRA FOTOGRÁFICA E CINEMATOGRÁFICA OSCILANDO ENTRE REFLEXOS E TRANSPARÊNCIAS, MIRAGENS E OBSCURIDADE

On Fire at 80. © Judy Chicago

A exposição , dedicada à fotógrafa francesa Sarah Moon, ficará aberta até 10 de janeiro de 2021, no Musée d’Art Moderne de Paris. Sob a curadoria de Fanny Schulmann, o público poderá contemplar o trabalho de Moon para além de sua trajetória como fotógrafa de moda. Além de fotos icônicas que a artista produziu para o mundo da moda, há outras imagens menos conhecidas nessa exposição, como fotos de animais, grandes construções e paisagens na cidade. Por meio de um recorte não cronológico proposto pela própria artista, a obra fotográfica (e cinematográfica) de Sarah Moon flutua em diferentes épocas, categorias e temas. Essa apresentação atemporal de sua obra carrega em si certo caráter de retrospectiva ao mesmo tempo que propõe diversas formas de ressignificar suas imagens. Entre o preto e branco e o colorido, o reflexo e a transparência, o desfoque sutil e o ponto focal certeiro, essas imagens parecem estar muito além do passado e do presente. No entanto, há um fio condutor fundamental nessa exposição: a artista entrelaça o tempo apresentando fotos do início de sua carreira como fotógrafa de moda na década de 1960 a trabalhos mais recentes, como os mais de dez filmes dirigidos por ela a partir da 26

Pour Yohji Yamamoto, 1996. © Sarah Moon.

POR DRIKA DE OLIVEIRA



La robe à pois, 1996. À direita: Le bain, 1997. © Sarah Moon


década de 1990. É como um jogo de memória. Ela (re)monta, por exemplo, uma série com três imagens, entre elas (1989), e atribui a essa série o título de um de seus filmes, (2005); e, como subtítulo, o (2010). A famosa nome de outro filme, fotografia , de 1996, aparece sob o título , um filme de 2002. Sarah Moon apresenta suas imagens como um meio para a própria libertação: “foi ao mesmo tempo para me aproximar e me libertar da realidade que instintivamente eu olhei através da objetiva de um aparelho fotográfico”. Essa frase de Sarah Moon está logo na entrada da exposição, na primeira parede branca preenchida por algumas de suas imagens. Como em uma constelação de fotografias em preto e branco, (1997) se encontra no centro e é a única fotografia colorida: vemos ali o tempo representado pela cor. Já a última parte da exposição acontece na sala da coleção permanente de Robert Delpire, falecido em 2017. O artista foi companheiro de Sarah Moon por quase 50 anos. A própria Moon selecionou obras e objetos que lembram as diversas atividades de Delpire, grande figura do mundo das artes na França. Ele trabalhou como editor, galerista, produtor de cinema, publicitário e curador, além de ser fundador do Centro Nacional de Fotografia da França. 29


Acima: La lobe rouge, 2010. À direita: Le pavot, 1997. © Sarah Moon


Rainbow Pickett, 1965. © Judy Chicago


Fashion 4 Yohji Yamamoto, 1999. © Sarah Moon

La statue, 1995. © Sarah Moon

Sasha Robertson, 1989. © Sarah Moon

Les roses, 1998. © Sarah Moon

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Nascida Marielle Warin, em 1939, em Vichy (França), Moon e a família judia fugiram da França ocupada para a Inglaterra quando ainda era adolescente. Ela estudou e se tornou modelo na dos anos 1960. Como modelo em Londres e em Paris, Moon trabalhou com a estilista Barbara Hulanicki, fundadora da famosa marca de roupas Biba. Ela também criou publicitários para outras marcas renomadas como Cacharel (para a qual trabalhou por cerca de 20 anos), Chanel, Vogue, Comme des Garçons e Dior, e foi procurada por muitos ao redor do mundo. Mas, para além de seu trabalho com a moda, Sarah Moon era também fotógrafa autodidata. Já no fim dos anos 1960, suas fotografias foram notadas em um cenário da moda internacional intensamente dominado por homens. Apesar disso, suas campanhas publicitárias e o trabalho em revistas foram marcados por um estilo bastante reconhecível em toda a obra dela, uma espécie de identificação gráfica. Assim, é possível também notar, na obra de Sarah Moon, , um cruzamento entre a pintura ( 1999), a escultura ( , 1995) e a fotografia ( , 1989). Entre essas obras, há pontos em comum: os ângulos e enquadramentos particulares das modelos que Moon fotografava naquele universo que ela conhecia tão profundamente; as composições pictóricas, que , parecem ensaios sobre a própria cor (como em 1998); o desfoque produzido pelo processo de longa exposição à luz ou pelo movimento dos corpos fotografados. Esse efeito, aliás, conjugado com todos os outros, produz um movimento da própria fotografia: uma dança das imagens. Foi no fim dos anos 1960 que Moon, ainda Marielle Warin, decidiu deixar a carreira de modelo e aprofundar seu trabalho com a fotografia. Como parte de um olhar que ela criou – um olhar muito distante da moda convencional – a artista escolheu seu novo nome, agora, Sarah Moon. O feminino e a solidão, a infância e a morte são temas bastante presentes em suas imagens. As mulheres desfocadas – e são elas que habitam a maior parte de suas fotos – as enormes batas, as roupas elegantes , os vestidos esvoaçantes, os detalhes minuciosos de cada canto da fotografia encenada. Há algo de onírico, fantasioso e até mesmo fantasmagórico nas fotografias de Moon; imagens que se aproximam do real ao mesmo tempo em que dele se distanciam. 33


Nu, 1980. À direita: Anatomie, 1997. © Sarah Moon

Sarah Moon ganhou prêmios importantes, como o Clio Award de Nova York, em 1984, e o Grand Prix National de la Photographie da França, em 1995. Ela também foi a primeira mulher a publicar fotos no famoso Calendário Pirelli. A partir de meados da década de 1980, Sarah Moon concentrou mais seu trabalho em galerias de arte e filmes e segue trabalhando nesse caminho até hoje, aos 79 anos. Certamente, a ideia da mostra não é propor uma simples análise do passado e do presente na obra de Sarah Moon. Ao contrário, a exposição mira no ponto exato em que esses dois tempos se encostam e coabitam o mesmo espaço – algo já anunciado no . O que se evidencia é que o agora, próprio título: a realidade que vivemos e acessamos, está preenchido pelo ontem. E, ao mesmo tempo, que o ontem só pode existir a partir das fabulações feitas no presente por meio das sinapses, ou dos , da memória.

Drika de Oliveira é diretora de conteúdos audiovisuais na Redes da Maré. Atua como fotógrafa e preservadora audiovisual na Cinemateca do MAM-Rio. É graduada em Comunicação Social-Cinema pela PUC-Rio. Membra da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA).

SARAH MOON: PASTPRESENT • MAM • PARIS • FRANÇA • 18/9/2020 A 10/01/2021 34


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FLASHback


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EDGAR degas O Recital, 1874.


O PONTO DE PARTIDA DA NOVA MOSTRA DE EDGARD DEGAS, NO MASP, SERÁ A ESCULTURA BAILARINA DE CATORZE ANOS (1880), A OBRA MAIS ICÔNICA DO ARTISTA E UMA DAS MAIS EMBLEMÁTICAS DA HISTÓRIA DA ARTE OCIDENTAL DO SÉCULO 20. A EXPOSIÇÃO APRESENTA 76 OBRAS DO PINTOR E ESCULTOR FRANCÊS EM DIÁLOGO COM FOTOGRAFIAS INÉDITAS DE SOFIA BORGES

POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA

“ Edgar Degas (1834-1917).

A célebre frase sobre o ofício do artista pode ser vista como chave para a leitura da mostra , com curadoria de Adriano Pedrosa e Fernando Oliva, no MASP. Inserida no Ciclo das Histórias da Dança, eixo temático adotado pelo Museu nesse ano de 2020, a mostra conta com 76 obras de Degas, pertencentes à coleção do Museu e, ainda, traz fotografias de Sofia Borges, que, a convite do MASP, jogou seu olhar contemporâneo sobre essas peças. Assim, o exercício “do que você faz os outros verem” se apresenta em diversas camadas sobrepostas nessa exposição. Revelemos as primeiras camadas. O que Edgar Degas mostra? Diferente dos amigos impressionistas Monet, Renoir e Pisarro, Degas não saía pelos campos com 38


A aula de dança, © RMN-Grand Palais (Musée d'Orsay).


Depois do banho , 1899. © RMN-Grand Palais (Musée d'Orsay). À direita: Nu Masculino, 1856. Dominio Público.

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cavaletes e lonas em armação portátil. Ele trabalhava com o desenho de memória, retratando figuras e animais – especialmente cavalos na paisagem – o corpo humano de uma forma ousada e libertadora e, por fim, a vida moderna. Não é à toa que seu amigo, o poeta Stéphane Mallarmé, chamava alguns dos seus trabalhos de “estranha nova beleza” – abrindo parênteses: esse título foi atribuído à última exposição do artista, realizada, na primavera nova-iorquina de 2016, no MoMA. Degas não se reconhecia como impressionista, apesar de ser presente no círculo desses pintores e ter sua produção classificada pela crítica generalista como tal. Ele se dizia um “realista”. De fato, a busca pelos efeitos da luz ao ar livre – um marco definidor do impressionismo – não era o ideal dele na arte. Degas era uma exceção incômoda aos críticos e até hoje fruto de polêmicas entre os historiadores da arte. Ele fez pinturas, gravuras, esculturas, fotografias e escreveu poesias. Seus trabalhos revelam memórias secretas. Neles, paira no ar uma percepção de passagem do tempo: as bailarinas parecem se mover; a fumaça sobe aos céus, o trem segue por seus trilhos, e das últimas monotipias emergem sombras que flertam com a abstração. E o “pintor das bailarinas”, o que nos mostra? O apelido foi dado pelo amigo Édouard Manet e, com o tempo, tornou-se o adjetivo mais conhecido de sua obra. As bailarinas foram a verdadeira obsessão de Degas. Estima-se que o tema esteja presente em mais de 1.500 obras, entre óleos, pastéis, monotipias, desenhos e esculturas. 41


E essa fixação pode ser explicada, ao menos, por três fatores. No primeiro, coloca-se a praticidade: o ateliê de Degas era muito próximo à Ópera de Paris – no século 19, um lugar para “ver e ser visto”. Os espetáculos atraíam aristocratas, artistas, mecenas, enfim, “todos aqueles que interessavam”. As bailarinas no palco eram encantadoras, mas as conversas privadas nos bastidores movimentavam a cena artística parisiense. Um segundo fator está relacionado justamente ao fascínio despertado pelas bailarinas. Elas eram “objeto de desejo” do mundo burguês: os coques, os figurinos, as poses, a disciplina, tudo que se remetia às jovens era sucesso de público – então, as telas de Degas eram igualmente requisitadas. Deixamos por último o fator mais assinalado na crítica sobre Degas: o interesse dele pelo corpo humano em atividade e em repouso – o senso de vida e movimento está no foco de suas atenções.

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No palco e nos bastidores, as bailarinas deram a Degas a chance do registro de acontecimentos “reais” – alguns deles sem qualquer . Eram poses inusitadas, expressões aborrecidas, vistas das coxias, os olhares dos espectadores e a intimidade das meninas em cenas informais. O “aprisionamento do instante” é sensação adjacente. Apaixonado pela fotografia, à época, ele não hesitou em usar esse inovador recurso. Suas bailarinas tinham feições tão “reais” que eram reconhecidas pelo público. Famoso por sua falta de traquejo social – o que lhe deu a alcunha de “urso” –, Degas fotografou amigos, bailarinas e mulheres nuas. Essas fotos foram referências para as pinturas, desenhos e esculturas que ele fez.

Quatro bailarinas em cena, 1885-90. Acervo MASP. Foto: João Musa. À esquerda: A Orquestra da Ópera, 1870. © RMN-Grand Palais (Musée d'Orsay)

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Retrato de Henri Michel-Lévy, 1878.

Agora, o que a exposição quer mostrar? Em um primeiro golpe de vista, tem-se a evidente relação do artista com o universo da dança – mote da programação deste ano. A última exibição do artista , no MASP foi realizada em 2006. Naquele período, o Museu passava por momentos difíceis e reformas – algumas manchetes, como as da , anunciavam: “Exposição de Degas ilustra o tempo de crise vivido no MASP”. Eram comemorações de 60 anos do Museu ofuscadas pela instabilidade. Porém, a crise já vinha desde, ao menos, 1998, quando outra , com curadoria de exposição, Luiz Marques, foi destacada pelo esgotamento institucional, com a manchete na mesma , “Bailarinas de Degas dão fôlego ao MASP.” Passados 14 anos, os tempos são outros. A adoção de eixos temáticos, como a história da sexualidade, histórias afro-atlânticas, histórias indígenas, histórias feministas, entre outros, têm despertado grande interesse para a programação do Museu. E sobre a escolha das obras? Das 76 peças, 73 são bronzes, dois desenhos e uma pintura – todas integrantes do acervo do MASP. Sobre a coleção dos bronzes, três outros museus no mundo (D’Orsay, em Paris, Metropolitan, em Nova York e a Carlberg Gliptotek, em Copenhague) têm a coleção completa, como o MASP. Em 1921, quatro anos após a morte do artista, foram fundidas 22 coleções. Mais tarde, elas foram desmembradas entre acervos particulares e públicos. Em vida, Degas não exibiu publicamente esses trabalhos. O conjunto foi adquirido em Londres por Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi, pela 44


Cleopatra, 1633-5. © Private Collection / Photo Giorgio Benni.

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Bailarina de catorze anos, 1880. Acervo MASP. Foto: João Musa.

“ ”

bagatela de 20 mil libras esterlinas (cerca de 140 mil reais) – hoje, estimam-se valores astronômicos para a coleção. A peça-chave é declaradamente a (1880). Vestida com saiote e um pouco maior do que as demais, essa escultura foi exceção ao ineditismo dos bronzes, sendo a única a ser exibida ao público pelo artista, na sexta exposição impressionista em 1881. Na ocasião, o bronze causou debate entre os críticos que o julgaram feio e primitivo – semelhante à espécime usada em medicina. A modelo era a estudante de dança Marie van Goethem, jovem pobre, da qual se tem exíguas informações biográficas. Ela nos lança para uma nova camada de entendimento da obra de Degas: o seu aspecto crítico, político e social. O fascínio pelas bailarinas e a abordagem estilística e formal, muitas vezes, encobrem a predileção do artista em retratar as mulheres trabalhadoras da vida moderna parisiense. Em suas obras surgem lavadeiras, passadeiras, modistas e as bailarinas – vindas de famílias operárias, eram jovens que buscavam ascensão social por meio da dança. O caráter político-social da obra de Degas promete ser aprofundado pelo catálogo , organizado pelo MASP. 46


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Sofia Borges, La Petite Danseuse #14, da série Ensaio para uma Escultura, 2020.

De propósito deixamos o exercício “do que você faz os outros verem”, de Sofia e a curadoria em Borges. A artista tem empregado a fotografia, a uma densa investigação sobre representação, linguagem e significado. Não deixa de ser curioso que a fotografia, outrora recurso frequente no fazer artístico de Degas, retorne à exibição contemporânea de suas obras. Borges fez fotografias em preto e branco dos bronzes em grandes dimensões. O intenso registro fotográfico ocorreu durante o ano de 2020, no acervo e na reserva técnica do Museu. O resultado final é algo transformador: um novo olhar sobre peças clássicas da coleção – algo revigorante que nos faz “ver”, de modo atual e imersivo, a obra de Degas. Por fim, todos os pontos que levantamos sobre o artista, sua produção, suas preocupações e, sobretudo, alguns aspectos da exposição em cartaz no MASP formam camadas interpretativas sedutoras e, ainda sendo muitas, não representam as possibilidades do que pode ser visto. Fica aqui a certeza de que, como palimpsestos, suas obras abrem perspectivas para novos “modos de ver” – algo que o artista já previa quando ressaltou que a arte necessita de um pouco de mistério, imprecisão e fantasia. Fiquemos, então, com suas palavras: “quando você deixa o seu significado perfeitamente claro, você acaba entediando as pessoas”.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela ECA USP (2008). Professora do CELACC ECA USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: crítica e criação (EDUSP, 2011). 48


Sofia Borges, Dança Escultórica #3, da série Ensaio para Degas, 2020.


DEGAS • MASP • SÃO PAULO • 4/12/20 A 01/8/21


Sofia Borges, Dança Escultórica #2 da série Ensaio para Degas, 2020.


CApa

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ALBERTO giacometti


Hombre andando II, 1960 (4/6) . © Alberto Giacometti Estate / VEGAP, Madrid, 2019.


ALBERTO GIACOMETTI TRILHOU UM CAMINHO SINGULAR DENTRO DO MODERNISMO EUROPEU, BUSCANDO INCESSANTEMENTE UMA NOVA LINGUAGEM PARA A ESCULTURA COMO "DUPLA REALIDADE". A NOVA EXPOSIÇÃO GIACOMETTI - FACE TO FACE MOSTRA A EVOLUÇÃO DA OBRA DO ESCULTOR DO PÓS-CUBISMO AO SURREALISMO E AO REALISMO DO PÓS-GUERRA

POR IASMINE SOUZA

“Como fazer um homem de pedra sem petrificá-lo?” Esculpir é trazer à vida, e, ao contrário do que se possa imaginar, não há nada mais cheio dela do que as esquálidas esculturas de Alberto Giacometti. A experiência de estar diante do trabalho dele é inesquecível e curiosamente perturbadora. É sentir solidão em conjunto. É habitar um mundo fantástico de gente frágil, mas potente em toda a sua corrosão. É sentir-se ao mesmo tempo próximo e distante do outro, tentar alcançar o inalcançável. As figuras do suíço são ásperas, finas, corroídas. Longilíneas ou minúsculas. Parecem querer ir a algum lugar, movidas a uma energia que tenciona, no espaço, os corpos desprovidos de massa e vigor físico (vide 1961). Um breve descuido no olhar pode causar a impressão de que, em pouquíssimos segundos, tudo mudou na forma de enxergá-las. Em resumo, é algo diferente de tudo que você já viu. Nenhum admirador ou crítico jamais pretenderá a audácia de esgotar um sentido para a obra dele. Aliás, certamente, o próprio Giacometti não ficaria animado com essa possibilidade. Nesse ponto, inclusive, nomes que dispensam apresentações, como os franceses Jean Genet e o filósofo Jean-Paul Sartre, já dedicaram impecáveis (e emocionantes!) relatos sobre o trabalho dele, sem qualquer pretensão de esgotá-lo. Ainda assim, muito do que se sabe hoje sobre o 54


Tête de Diego, enfant, ca 1914–15. © Estate of Alberto Giacometti / Bildupphovsrätt 2020.


Femme cuillère, 1927. © Estate of Alberto Giacometti / Bildupphovsrätt 2020.

artista é fruto das cuidadosas observações dos amigos. Então, se você acredita ser possível traduzir em palavras a experiência Giacometti, eles já o fizeram, o que deixa o nosso caminho mais transparente, mas não menos árduo. Filho de pintor impressionista, Alberto Giacometti foi também um grande pintor e desenhista, mas as esculturas nunca foram preteridas pelos pincéis. Entre uma pincelada e outra, lá estava ele novamente moldando seus personagens extraordinários com as mãos, atraído como que por um campo de força magnética. Nasceu na Suíça e estudou em Paris, na Académie de la Grande Chaumière, onde frequentou as aulas de Émile-Antoine Bourdelle, discípulo e assistente de Rodin. Nessa cidade trabalhou por toda a vida, cercado de poucos amigos e familiares em seu modesto estúdio no Montparnasse. Isolado não do mundo exterior, como somos tentados a imaginar – quando o assunto é arte, é sempre bom desconfiar do mito do gênio solitário –, mas na busca do sentido para o trabalho dele. E nem sempre foi assim. Ele, que caiu nas graças de André Breton e Dalí, teve o início da sua jornada artística parisiense compartilhado junto à vanguarda surrealista, em pleno ambiente de efervescência das revoluções estéticas do século 20. Chegou 56


La bola suspendida, 1931. © Estate of Alberto Giacometti / Bildupphovsrätt 2020.

a expor com o grupo (algumas de suas primeiras obras primas são dessa época, , 1931), mas não demorou a ser expulso por excesso inclusive; vide de realismo. E é bem verdade que as investigações de Giacometti, que o levaram à construção da identidade dele, acabariam seguindo um novo rumo, único e distinto. Giacometti tinha fixação por cabeças, rostos, e, especialmente, olhos, de onde buscava captar a essência do homem. Até mesmo nos desenhos, que, de certa forma apresentam maior nível de robustez do que as tão aclamadas esculturas, é na cabeça que ele concentrava a energia das pinceladas. Na verdade, atraído pelos mais sofisticados debates existenciais e filosóficos, o que pretendeu Giacometti foi olhar a figura humana como se a estivesse vendo pela primeira vez. Um primeiro encontro com o mundo ao seu redor. E é assim que, obstinado, passou a se ocupar da diferença entre o que via e o que conseguia mostrar, levando-o à perseguição incansável de um projeto sem fim: a tentativa de representar com realismo a essência do ser.

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Giacometti gostava de produzir com modelos vivos, normalmente pessoas próximas, do convívio dele, dentre eles o irmão Diego, a esposa Annette e Caroline, amante de toda a vida. Trabalhava com afinco e, para ele, nunca foi um problema desfazer e recomeçar, quantas vezes fosse preciso. O custo era uma boa dose de estresse e impaciência, claro. Não é preciso mencionar que foi assim, mergulhado em uma espécie de eterna insatisfação e inquietação existencial, que destruiu muitas de suas obras. E, certamente, irritou os modelos dele também! O erro é uma constante na sua trajetória. Não era um artista de resultados. E por isso não é de surpreender que esse complexo processo de construção e desconstrução resultaria em uma linguagem estética inovadora e icônica para o modernismo europeu, como de fato ocorreu. As noções de espaço e distância também inovam a história da escultura. Em 2018, tive a oportunidade de visitar uma enorme retrospectiva da sua carreira no Museu Guggenheim e medir a força da presença desses conceitos. O que Giacometti nos impõe é um limite de aproximação. Está aí a razão pela qual algumas de suas esculturas repousam em bases ou dentro de gaiolas (vide , 1950, e , 19471949). Há um espaço vazio que as rodeia e, ao mesmo tempo, nos separa. Como ele esculpiu o ser a distância, é preciso se afastar para vê-lo nitidamente e por inteiro. Um passo a mais e toda a magia pode ir por água abaixo. Ao contrário de um escultor clássico, que, para materializar uma ideia, trabalha blocos de pedra até encontrar a silhueta da figura desejada, Giacometti as fazia surgir no espaço, a partir de um fio-esqueleto de arame, em volta do qual manuseava o material, aproveitando-se da sua maleabilidade. O resultado é alguém que parece morto, mas que se sabe e sente vivo. Há quem questione: um retrato da humanidade

Le Nez, 1947–1949. Collection Fondation Giacometti, Paris © Estate of Alberto Giacometti / Bildupphovsrätt 2020. 58



Mujer grande IV, 1960. © Alberto Giacometti Estate / VEGAP, Madrid, 2019.


Mujer de Venecia VI, 1956. © Alberto Giacometti Estate / VEGAP, Madrid, 2019.


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Kobayakawa Kiyoshi, Rouge, no: 6 1936.


Tête sur tige, 1947. À esquerda: El carro, 1950. © Estate of Alberto Giacometti / Bildupphovsrätt 2020.

da época, talvez? De fato, é difícil não associar a deformidade da figura humana, na obra de Giacometti, do contexto do mundo pós-Segunda Guerra, completamente enrijecido pelo nazismo. Afinal, a tristeza e a solidão que dissolveram e escancararam o horror da nossa condição estavam logo ali, dentro e fora do ateliê. Com o apoio da Fundação Giacometti, o Moderna Museet sedia a exposição , que abriga uma excepcional retrospectiva do trabalho do artista, a primeira da Suécia. Um passeio repleto de múltiplas referências e experimentações, desde a arte tribal, o cubismo e o surrealismo, que tiveram um papel significativo em sua obra, até a festejada investigação pessoal acerca da verdadeira face da existência, de que aqui tanto falamos, estampada em suas obras do pós-guerra, e que lhe rendeu alguns dos mais famosos trabalhos, arquétipos de seu estilo.

Iasmine Souza Encarnação Novais é Procuradora do Município de São Paulo, entusiasta da história da arte e autora do perfil @minutodearte.

GIACOMETTI • FACE TO FACE • MODERNA MUSEET • ESTOCOLMO • 10/10/20 A 17/01/21 63


FLASHback

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LUCAS cranach


Der Jungbrunnen, 1546.


POR AMY ORROCK CRANACH: ARTISTA E INOVADOR O legado do pintor Renascentista Lucas Cranach (14721553), o Velho, se estende por 500 anos e permanece vivo hoje. Nascido por volta de 1472 em Kronach, a pequena cidade alemã de onde ele tirou seu nome, Cranach era um pintor leal dos regentes do Eleitorado da Saxônia. Muito mais do que um artista da corte, Cranach também era um gravador e político. Independente e altamente empreendedor, ele era amigo íntimo do pensador radical Martinho Luther (1483-1546) e desempenhou um papel ativo nas mudanças religiosas sísmicas que ocorreram em sua cidade natal, Wittenberg. Navegando habilmente em tempos turbulentos, Cranach sobreviveu até os 80 anos e deixou para trás uma oficina próspera, que continuou por meio de seu filho e discípulo mais próximo, Lucas Cranach, o Jovem (1515-1586). 66

Portrait of Electress and her Son, 1510-40, Royal Collection Trust © Her Majesty Queen Elizabeth II 2019.

ARQUETÍPICO HOMEM RENASCENTISTA, LUCAS CRANACH, O VELHO, FOI UM DOS ARTISTAS ALEMÃES DE MAIOR SUCESSO DE TODOS OS TEMPOS. AS PINTURAS DA NOBREZA ALEMÃ DE CRANACH E OS LÍDERES DA REFORMA PROTESTANTE FIZERAM DELE UM RETRATISTA MUITO PROCURADO NO SÉCULO 16, EMBORA HOJE ELE SEJA MAIS CONHECIDO POR SEUS SEDUTORES NUS FEMININOS, QUE EXPRESSAM A TENTAÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS. CRANACH TAMBÉM ERA UM EMPREENDEDOR TALENTOSO, FUNDANDO UM BEMSUCEDIDO NEGÓCIO EDITORIAL E PRODUZINDO ILUSTRAÇÕES PODEROSAS EM XILOGRAVURA PARA A TRADUÇÃO DA BÍBLIA POR LUTERO



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PINTOR DO GOVERNO SAXÃO

Portrait of Johann the Steadfast, 1509. Portrait of Johann Friedrich the Magnanimous, 1509. National Gallery, London

Cranach era filho de um pintor e, provavelmente, foi ensinado pelo próprio pai. Depois de passar vários anos em Viena, e possivelmente visitar Albrecht Dürer, em Nuremberg, Cranach foi nomeado pintor da corte de Frederico, o Sábio, governante da Saxônia, em 1505. Isso marcou o início de um longo e respeitado serviço: Cranach trabalhou continuamente para os regentes saxões por quase cinquenta anos. Como pintor da corte, Cranach recebeu conselhos, roupas e alojamentos no palácio em Wittenberg, além de um alto salário anual e dinheiro para materiais. Havia muito o que fazer, e os relatos do palácio revelam que a oficina de Cranach incluía quatro “pintores viajantes”. Os artistas foram responsáveis ​ por gravar viagens de caça e torneios; projetar moedas, medalhas e decorações temporárias; e produzir imagens e retratos religiosos dos governantes e de suas famílias.

Um díptico (retrato duplo) era normalmente usado para mostrar um casal, mas aqui o menino ocupa o lugar de sua mãe, Sophie de Mecklenburg, que havia morrido no parto. À esquerda, John, o firme, está vestido de preto contra um fundo verde. O esquema de cores é invertido na imagem de seu filho, John Frederick. Ambos eram regentes da Saxônia, e o deles era demonstrado por suas roupas, ricamente decoradas com elegantes penas multicoloridas, pequenas pérolas e fios de ouro. 69


Portrait of a Woman, 1525-27.

CIDADÃO DE WITTENBERG Por volta de 1512, Cranach se casou e se mudou para o coração da movimentada cidade de Wittenberg. Lá permaneceu até 1550, supervisionando um ateliê promissor de mais de dez assistentes, conhecido por sua produção rápida. Além da oficina de pintura, Cranach desenvolveu outros interesses comerciais lucrativos, incluindo propriedades, controle dos apotecários do Estado, uma licença para vender vinho, e o estabelecimento de um negócio editorial com Christian Döring. Cranach se tornou um dos cidadãos mais respeitados de Wittenberg, servindo três vezes como prefeito, e uma declaração de imposto de renda de 1528 afirma que ele era um dos dois homens mais ricos da cidade. Passeava por círculos intelectuais e formou uma estreita amizade com o teólogo da universidade, Martin Luther, cada um atuando como padrinho dos filhos do outro. As 95 teses de Lutero, supostamente pregadas na porta da igreja em Wittenberg, em 1517, representaram um chamado à ação. Condenando os excessos da Igreja Católica Romana, Lutero lançou a Reforma Protestante. A imprensa CranachDöring teve um papel fundamental, com Cranach imprimindo muitos dos textos de Lutero e adicionando ilustrações vibrantes em xilogravura, que enriqueceram seu significado e prestígio.

O fundo normalmente liso e escuro de Cranach serviu para destacar a roupa suntuosa dessa mulher. Seu vestido de veludo vermelho tem uma saia plissada e mangas cortadas e tufadas. Suas luvas brancas também estão desfiadas nos nós dos dedos, revelando que suas mãos estão totalmente ornamentadas, com anéis debaixo e sobre as luvas. Embora essa mulher não tenha sido identificada e suas características faciais sejam genéricas, uma pista para sua identidade pode ser a letra “M”, repetida em seu corpete estampado em diamante. 70


Acima: Young Woman Sewing, 1655 e The Account Keeper, 1656. © St. Louis Art Museum.


Portrait of Sigmund Kingsfelt, 1530. À direita: Venus and Cupid, 1525 © Compton Verney

A variedade de tons de pele vermelha e rosa usados ​no rosto deste homem torna esse retrato particularmente vibrante e realista. A inscrição dourada no topo da pintura nos diz que seu nome é Sigmund Kingsfelt, enquanto a palavra “RITER” se traduz em “cavaleiro”. Talvez esse seja um título honorário, no entanto, as roupas simples, a corrente pesada e a falta de chapéu sugerem que ele é um nobre de nível mais baixo ou um administrador cívico. A FORMA HUMANA Os temas mitológicos se tornaram cada vez mais populares entre os ricos durante as décadas de 1520 e 1530. Para Cranach, que já era elogiado por sua habilidade em renderizar o mundo natural, essas cenas ofereciam uma oportunidade de retratar seres humanos em harmonia com a natureza, em um cenário selvagem. Rejeitando as proporções clássicas adotadas por outros artistas renascentistas, Cranach desenvolveu uma maneira distinta de retratar a forma humana, que era consistentemente replicada em seu ateliê. Todos os nus de Cranach têm corpos esbeltos, quase sem ossos, pele pálida e cabelos longos e ondulados. Seus corpos são frequentemente posicionados contra fundos escuros e, de pé, parecem esculturais. Frequentemente, as pinturas de Cranach se envolvem com a tradição do século 16 das narrativas da Weibermacht (“poder das mulheres”). Concentrando-se em figuras atraentes e sedutoras, como Eva e Vênus, essas obras alertam seus espectadores, na maioria homens, sobre os perigos de mulheres bonitas e astutas. Por esse motivo, o tratamento de Cranach da forma feminina é deliberadamente erótico: suas figuras femininas olham conscientemente para o espectador através de olhos amendoados e sua nudez é ornamentada pela adição de joias da moda, chapéus e véus transparentes. 72


Olhando diretamente para nós, Vênus, a deusa do amor, é intransigentemente erótica. O fundo preto lança sua figura esbelta e pele pálida em relevo, enquanto a nudez é ainda mais destacada por seu véu translúcido e pela flecha indicadora de Cupido. Vênus foi originalmente mostrada usando um chapéu vermelho, mas este foi coberto no século 19 por uma cortina verde escura. A pequena escala da pintura sugere que ela foi feita para exibição particular. Sua fórmula de sucesso foi usada muitas vezes no ateliê de Cranach.

Cleopatra, 1633-5. © Private Collection / Photo Giorgio Benni.

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À esquerda: Cupid complaining to Venus, 1526-27. À direita: Apollo and Diana, 1526. Royal Collection Trust © Her Majesty Queen Elizabeth II 2019.

Quando foi comprada pelo príncipe Albert para a rainha Vitória, pensava-se que era uma pintura de Adão e Eva. Na verdade, mostra as figuras mitológicas de Apolo e Diana – irmãos considerados fisicamente e moralmente perfeitos. A bela paisagem arborizada em que são colocados compete por nossa atenção, com as árvores ecoando as formas de seus corpos e cisnes refletidos no lago.

Nesta pintura magistral, Cupido, filho de Vênus, roubou um favo de mel e está sendo atacado por abelhas. No canto superior direito, a inscrição em latim alerta que: “o prazer breve e passageiro que buscamos se mistura com tristeza e dor e nos prejudica”. Essa sabedoria é testada pela figura sedutora e nua de Vênus, que alcança uma macieira. Posando timidamente, ela teria lembrado ainda mais aos observadores que a tentação está em toda parte e que a escolha entre o bem e o mal é pessoal. 75


Hercules and Antaeus © Compton Verney.

O gigante Antaeus desafiou todos a lutar até a morte, confiante de que venceria enquanto permanecesse em contato com a terra, fonte de sua força eterna. Compreendendo o segredo do gigante, o deus romano Hércules levantou Antaeus do chão e o esmagou até a morte – indicado aqui por seu tom azulado e expressão angustiada. CRANACH NO FUTURO Sempre inovador, Cranach concebeu uma linguagem visual altamente estilizada de paisagens verdejantes povoadas por figuras lânguidas e sinuosas. Seus nus permanecem distintos e contenciosos hoje e, talvez mais do que qualquer outro pintor renascentista, ele continua a exercer influência sobre artistas modernos e contemporâneos. Como um dos mais antigos Grandes Mestres, a estética de Cranach permeia nossa cultura popular e pode ser encontrada em uma ampla variedade de obras de arte. Alguns artistas são atraídos pelas narrativas de Cranach, enquanto outros respondem à sua representação de figuras, figurinos ou paisagens. Os trabalhos mostram ruptura e continuidade com a estética distinta de Cranach, à medida que novos artistas sobrepõem e atualizam esses ícones familiares com suas histórias e perspectivas pessoais.

Amy Orrock é curadora sênior do museu Compton Verney Art Gallery & Park, no Reino Unido.

CRANACH: ARTIST & INNOVATOR • COMPTON VERNEY • INGLATERRA • ESTENDIDO PARA 2021



REFLexo

FLAVIA


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junqueira


AS INGÊNUAS BEXIGAS DE ENCHER DA ARTISTA FLAVIA JUNQUEIRA POVOAM O BRASIL DE NORTE A SUL. INSEREM CONOTAÇÕES POLÍTICAS, FILOSÓFICAS, LINGUÍSTICAS E PSICOLÓGICAS. AGORA A ARTISTA ELEVA NOSSO OLHAR PARA ENCONTRARMOS BALÕES FLUTUANTES OU REVOADAS DE FORMAS E CORES NO FAROL SANTANDER, EM SÃO PAULO. AQUI, FLAVIA FALA À DASARTES O PROCESSO DE INSPIRAÇÃO E CRIAÇÃO DE SUAS OBRAS

POR FLAVIA JUNQUEIRA

NA COMPANHIA DOS OBJETOS “ (2008): Série que apresentei em minha conclusão de curso na faculdade de Artes da FAAP. Composta por oito imagens em grande formato, sugeria autorretratos meus encenados para a câmera fotográfica. Eu me fotografei junto a todos os objetos que caracterizavam os diferentes espaços da casa dos meus pais, onde na época eu ainda morava, e aparecia acumulada em meio aos montes de objetos. No entanto, meu rosto se encontrava melancólico, indiferente e com um olhar vazio, como se estivesse sozinha. A junção de objetos reais de um cotidiano da casa, porém empilhados excessivamente de modo incomum, trazia para o trabalho um estranhamento que fugia a foto meramente documental, pois, ainda que fiéis aos objetos per¬tencentes em sua realidade espacial, a imagem se tornava bastante ficcional e mágica. Esse trabalho é muito importante para mim, pois foi nessa ocasião que usei pela primeira vez o gênero da fotografia encenada como instrumento da pesquisa em artes e percebi que esse tipo de foto construída poderia me permitir criar histórias através da imagem, que é o que faço até hoje.” 80


Todas fotos: Cortesia da artista.


O CAMINHO QUE PERCORRI ATÉ TE ENCONTRAR

“ (2011): Uma Instalação realizada durante o período em que participei da Residência Artística “Cité international Des Arts”, na cidade de Paris. A instalação era composta por 25 quadros que apresentavam, em cada um deles, uma fotografia polaroide da imagem de um carrossel encontrado em Paris, um mapa da cidade e suas informações. A instalação representava uma tentativa de criar uma cartografia da cidade de Paris usando como parâmetros de localização e fronteira, elementos que estivessem completamente fora dos critérios convencionais de classificação e orientação. Desse 82


modo, eu consegui gerar um percurso sob um olhar voltado para referências de uma memória pessoal dentro de um mapa e ao mesmo tempo estabelecer novas marcos em um espaço exaustivamente delimitado. Esse trabalho foi importante, na medida em que o carrossel, como elemento da memória da infância/brinquedo da criança, em Paris, estava presente em meio à realidade do cotidiano diário das pessoas e eu apenas o encontrava imersos ao sistema comum da cidade. Esse foi um processo novo para mim, pois até então eu criava as encenações pela foto encenada, mas não as encontrava e as documentava como fiz nessa ocasião.” 83


“ (2013): Engloba a instalação de um carrossel em tamanho real (com diâmetros de 12 metros) dentro de um amplo galpão. Nesta instalação, eu faço uma intervenção no motor e altero o movimento de forma que os 24 cavalos que compõem a totalidade do brinquedo passam a andar para trás. A amplitude do carrossel dentro do espaço interno do cubo branco, o alto ruído de seu motor e seu movimento modificado provocam a inversão da ideia que entendemos como diversão. O carrossel traz um desejo de reativar memórias da infância. Entretanto, girado ao contrário, desperta a memória de uma representação ou, ainda, recorda-nos de 84


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ESTUDO PARA INVERSÃO

vivências que nunca existiram. Com essa ação, tentei materializar no espaço questões sabre a ficcionalização do imaginário infantil e sobre os rituais do lazer. Mexer com a utopia da construção de cenários que são feitos para garantir a demanda da felicidade das crianças e ressaltar uma melancolia nesse objeto que sempre foi idealizado, trouxe-me uma experiência muito importante; no sentido de trabalhar com essa energia do brinquedo girando para trás, que me gerou muitos impactos emocionais na época e trabalhar com a escala monumental pela primeira vez em um trabalho de artes.“ 85


THEATRO AMAZONAS E BENAL DE SÃO PAULO

“ (2019) e (2019): Representam a primeira série de trabalhos em que os balões passam a ser o protagonista da imagem. Essa é uma catalogação de Teatros históricos, que ainda está aberta em processo, e começou há dois anos. O critério nesse caso é encontrar os Teatros mais relevantes do nosso país, cuja época em que foi construído, na maioria datados do século 19, na qual a arquitetura e a conservação apresentavam verdadeiras fábulas visuais e conceituais sobre um período determinado da história do país. Independentemente dos Teatros, grande parte dos espaços escolhidos (museus, edifícios, salões, igrejas, monumentos) tem características marcadas por serem, na maioria das vezes, símbolos culturais, históricos, tombados ou de grande relevância para uma cultura específica. A relação que busco estabelecer vem principalmente em duas mãos; em um primeiro momento, desejo me apropriar desses espaços em que a memória do passado e a magia da teatralidade estão fortemente presentes e reafirmá-los como potência, pois muitos desses locais estão abandonados ou a grande maioria das pessoas nem sabe que eles existem. Por outro lado, ao inserir objetos como balões ou elementos lúdicos da infância, reitero uma desconstrução e crio um deslocamento do que se espera comumente encontrar ali, abrindo a criação de novas camadas de realidades, mais próximas da fabulação, sonho e fantasia. É uma maneira de olhar para nosso passado e ao mesmo tempo reinventá-lo.” 86


“ ”


“ , exposição no Farol Santander (2020): Exposição que atualmente está em cartaz no Farol Santander, assume o balão como o elemento principado da mostra. Ela é composta por dois espaços, o de entrada do Banco, onde interajo diretamente com um lustre de Cristal de 13 m, em que apresento uma instalação com balões de vidro cristal, o que se tornou algo muito importante para mim, pois é a primeira que realizei uma intervenção dessa escala e com materiais tão delicados. Sempre tive vontade de trabalhar com cristal. 88


REVOADA

FLAVIA JUNQUEIRA: REVOADA • FAROL SANTANDER • SÃO PAULO • 1/5 A 19/7/2020

O espaço do 24º andar, chamado de sala de espelhos, consiste na criação de um local em que o público pode interagir com a obra, entrando em um espaço totalmente cenográfico, divertido e infantil e, ao mesmo tempo, caótico, invertido e excessivo. Ambos os trabalhos colocam o público diretamente dentro do espaço. Os espaços foram criados a partir de conversas com o curador Paulo Herkenhoff, que me ajudou a fazer uma verdadeira análise histórica sobre o balão. Foi a primeira vez que tive a oportunidade de trabalhar com o Paulo, ainda estamos trabalhos juntos para a próxima exposição que será no Farol Santander de Porto Alegre, e isso é o que torna mais especial esse projeto.” 89


GARlimpo

ALTO falante

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POR GUY AMADO

A MALHAÇÃO DE BRITTO

No passado mês de agosto, uma polêmica mobilizou as chamadas redes sociais no limbo de silício. Um episódio que trouxe à tona novamente um incômodo e onipresente personagem no imaginário coletivo da dita elite cultural (pessoas como eu e você, que se interessam por uma revista de arte, encaram um “filme alternativo” com alguma regularidade ou gosta de comer aquele caldo de mocotó “chique-de-raiz”): Romero Britto. Apesar de irrelevante, o fato em questão chama atenção exatamente por explicitar alguns aspectos recorrentes quando o nome deste indivíduo (artista? artesão em escala industrial? voraz empreendedor de sucesso? rei do mau-gosto? adulador de autoridades? um pouco de cada, talvez) está envolvido. É este aspecto que me interessa, mais que os fatos que fomentaram a polêmica em si. A querela da vez envolvendo o nome dele repercutiu a partir de uma ação mais ou menos performática que viralizou, ainda que tardiamente – o vídeo que a difundiu é de 2017. A ação era protagonizada por uma moçoila que, indignada por suposto maus-tratos de Romero aos funcionários de seu restaurante em Miami, foi à galeria dele (onde Britto comercializa diretamente seus produtos, de canecas e chaveiros a retratos e murais de encomenda) e, em frente ao próprio e a uma audiência considerável, destruiu uma peça de autoria dele. Ali, em bom espanhol – presumindo, como usual, que é a língua falada por um brasileiro – e carregando uma grande e colorida maçã em porcelana de Britto que ganhara de presente do marido (avaliada em U$ 4.800, como alguns gostam de lembrar), identificou-se como gerente do dito estabelecimento e fez um rápido discurso contextualizador da ação que se seguiria, quando atirou a peça do artista ao chão, que se despedaçou. O gesto de protesto dizia respeito à conduta que o artistaempreendedor teria adotado quando da ida dele ao dito restaurante, teria e só pedido um café com reservado uma mesa para 20 pessoas para um leite. Além disso, teria pedido desconto sobre a conta de U$ 8, queixado-se da música ambiente e destratado (ou mesmo humilhado) alguns funcionários, ameaçando não voltar lá. A moça então bradou que perdeu o respeito que já tivera por ele, que ele mostrasse mais dignidade e não voltasse a pisar no estabelecimento; então vira as costas e vai-se embora. O texto está no condicional porque ainda não houve provas efetivas da alegada demonstração do esnobismo e comportamento ofensivo além das palavras da moça revoltada e alguns depoimentos esparsos de funcionários confirmando. Por outro lado, Britto, que já foi instado a se manifestar a respeito, apesar de repudiar o e se dizer injustiçado, não contestou essa versão – sobre o episódio que teria detonado a 90


celeuma –, o que é significativo. Em depoimento a um programa de tevê, apenas se apresenta sendo atacado injustamente, mas não toca no ponto mais candente, que é o que se passou no restaurante. Seja como for, o que interessa aqui é comentar as nuances da movimentação que o dito episódio despertou. A despeito de ter ocorrido há três anos, incitou aguerridas reações extemporâneas, tanto por parte de habituais e novos detratores como de seus defensores. A onda mais desse eterno dominante (e previsível) atacava o artista e celebrava quase histericamente a ação da dona do restaurante, por vezes saudando-a como “heroína”; entusiasmo que não deixa de ser curioso e revela um aspecto de destaque, traduzido pela adesão massiva e a virulência do ataque à figura de Britto. Um ataque, contudo, no mais das vezes amparado na qualidade questionável de seu trabalho, sempre classificado genericamente como brega, cafona, simplório, esquemático, “meramente decorativo” e qualificativos afins, que justificariam essa espécie de pulsão celebratória catártica em grande escala dentre os “mais esclarecidos”, ao ver no vídeo vazado a peça despedaçada em frente ao próprio autor, desmoralizado pela já viralizada ação da mulher. Ok, a produção do sujeito de fato preenche todos esses requisitos sem dificuldades. Mas meu ponto é: o que diabos o trabalho de Britto teria a ver com a coisa toda? Do outro lado, havia os que se posicionavam em favor do “ex-brasileiro”, com argumentos na linha de que se tratava de uma malhação oportunista e desmedida a sujeito que pertenceria ao segmento das “minorias”: pobre de origem, brasileiro e nordestino que, a despeito das adversidades (alguns chegam a lhe atribuir também a condição de negro, o que não me parece o caso) logrou atingir sucesso nos EUA unicamente por seus esforços e méritos. E que “se fosse o George nenhum”. Seu êxito como fruto do próprio esforço Clooney, não teria havido é inegável e ponto pacífico, não há do que discordar desse quesito. Mas o que exatamente há nesse perfil “guerreiro” que o isente de levar aquela reprimenda, caso ela proceda (e é o que tudo indica)? O fato é que, a meu ver, nem uns nem outros miram na questão que efetivamente estaria em jogo, basicamente restrita à dimensão, digamos, moral, por trás da coisa. Não me parece caber aqui, de maneira alguma, qualquer juízo de valor que leve em conta os predicados da produção de Britto. Não faz qualquer sentido argumentar pró ou contra o, digamos, artista mantendo essa premissa. Chega a ser quase surreal. Vibrou-se com o constrangimento público a que Britto foi 91


submetido porque não gosta de suas peças, entende-se, mas...novamente, não faz sentido. Como também não faz sentido defendê-lo baseado em sua condição de origem quando a situação não comporta esse tipo de discurso. Afinal, trata-se, em síntese, de um caso de suposto comportamento inadequado do cliente-artista (esnobismo e humilhação de funcionários) em um restaurante, que, por sua vez, teria gerado uma retaliação por parte da proprietária do estabelecimento. O registro em vídeo de seu protesto performático, a viralização da ação e o fato de o cliente inconveniente ser a celebridade em questão, fizeram o resto. E ponto. Como a própria protagonista – Madeleine Sánchez – afirma em alguns vídeos, foi uma situação que a indignou naquele momento, frente à qual sentiu que devia se posicionar, e já ficou no passado (novamente, o episódio ocorreu em 2017). Ela ainda se disse surpresa com a retomada do caso a partir da circulação do vídeo, que jura não saber como ou quem decidiu trazer à tona agora. Seja como for, o grau da malhação de Britto se deu em geral fora de lugar. Se ele agiu da forma de que lhe acusam, é razoável que leve um esculacho. Se não foi assim e há exagero ou exploração leviana em cima do suposto ocorrido, que ele ajudasse a esclarecer e evitar “cancelamentos”. Mas o mais impressionante é ver como tem gente que, mal contendo a saliva e não raro com pouca informação sobre o caso, investe sobre o sujeito no piloto automático, referindo sua sempre atacada produção (e eventuais idiossincrasias comportamentais) em vez de se cobrar uma atitude compatível com a narrativa que gerou a querela. Como classificar esse tipo de reação? “Ressentimento cultural”? E, supondo que fosse pertinente entrar nessa questão, eu insistiria em lembrar que o problema não é a dita “qualidade” ou não da obra de Britto: afinal, ele atua em com o da “grande arte”, ou da “arte um nicho restrito, que contemporânea oficial” em que seus detratores (“nós”) em geral se balizam. Sua produção não circula, nem aspira a circular (até onde se sabe), nesse circuito. Tem outra vocação, outras demandas. São universos em princípio incompatíveis. O problema seria se Britto aspirasse a tal inserção. Aí talvez fizesse sentido haver debates sobre o trabalho dele. Até lá, problema maior para mim são casos como o da Joana Vasconcelos, artista portuguesa de maior visibilidade e nome de destaque na cena da arte contemporânea internacional, tendo exposto em duas Bienais de Veneza e, não obstante, tem apresentado em sua fatura e seu (uma verdadeira máquina de em escala industrial e comissionamentos chapa-branca) características cada vez mais próximas de perfis como o de Britto. E ela não estaria só. Mas isso é assunto para outra coluna. Que, aliás, já escrevi aqui há uns anos.

Alexandre Sá é artista-pesquisador. Atual diretor do Instituto de Artes da UERJ. Pós-doutor em Filosofia pelo PPGF/UFRJ. Pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e Doutor em Artes Visuais pela EBAUFRJ. E-mail: alexandresabarretto@gmail.com 92



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