LAURIE SIMMONS ARTUR LESCHER CRISTIANO MASCARO THIAGO MARTINS MELO O CONTO DE GENJI ROBERTA CARVALHO
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com DESIGNER Moiré Art
Capa: Laurie Simmons, Blonde/Pink Dress/Standing Corner, 2014. Foto: © Laurie Simmons, cortesia da artista e Salon 94, New York.
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Artur Lescher, RIO Máquina, 2009 (Detalhe) Foto: Ruy Teixeira.
Contracapa: Kyo-Kano School, The Safflower (Suetsumuhana). Japão, período Edo (1615– 1868). Foto: The New York Public Library.
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ARTUR LESCHER
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THIAGO MARTINS DE MELO
6 De Arte a Z 82 Resenhas 84
Livros
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Coluna do meio
LAURIE SIMMONS
CRISTIANO MASCARO
O CONTO DE GENJI
ROBERTA CARVALHO
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DE ARTE A Z Notas do circuito de arte
"FALSO" BOTICELLI É ORIGINAL Uma pequena versão de , de Sandro Boticelli, antes considerada uma cópia de um artista desconhecido, agora está sendo atribuída ao mestre do Renascimento do século 15. Depois de raspar um verniz amarelo e realizar testes, os especialistas da preservação do Patrimônio Inglês agora estão convencidos de que é a versão mais próxima da pintura de 1487 de Botticelli. A tela recém-autenticada será exibida em Londres na Ranger's House, a partir de 1º de abril.
OS VASOS DE BREXIT
O GRITO DO PAPA DE FRANCIS BACON
PRIMEIRO MUSEU BUDISTA
Comprados pela V&A
À venda
Em Hong Kong
O Museu Victoria and Albert escolheu o conjunto de cerâmicas com o tema Brexit do artista Grayson Perry. Os dois potes, chamados , foram criados em 2017 e retratam questões em torno das campanhas “ ”e “ ”, e foram reveladas no dia 29 de março, data em que a Grã-Bretanha deveria deixar a União Europeia antes do prazo ser adiado.
Uma pintura histórica de Francis Bacon, mostrada em público apenas uma vez, estará disponível em leilão na temporada de primavera, com uma estimativa de US$ 20-30 milhões. A Sotheby's anunciou que a pintura (1952), da renomada série , será destaque da venda de obras da estimada coleção dos filantropos de Seattle Richard E. Lang e Jane Lang Davis.
O cidadão mais rico de Hong Kong, Li Ka-shing, agora um bilionário de 90 anos, concebeu o mosteiro em 2003. Foi inaugurado esta semana após mais de 15 anos de construção, aninhado nas verdejantes colinas do norte da cidade sob o vigilante olho de uma enorme estátua de bronze de 75 metros de altura de Guanyin, deusa da misericórdia. O museu de 24 mil m2 custou quase US$ 400 milhões para ser construído.
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NOVOS ESPAÇOS PRÊMIO ALIANÇA FRANCESA Inscrições abertas até 31/5 Estão abertas as inscrições para o Prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea 2019. Em sua terceira edição, a premiação busca estimular a produção das artes visuais contemporâneas no Rio Grande do Sul, com a missão de dar apoio e incentivo para artistas em início de carreira. Os três melhores trabalhos serão premiados com residências artísticas em Porto Alegre e o primeiro lugar, dois meses no Centre Intermondes, em La Rochelle, na França, com passagem e alojamento incluídos e mais um prêmio em dinheiro. Inscreva-se em www.afpoa.com.br.
Galeria Roberto Camasmie São Paulo ganhou mais um espaço de cultura: a Galeria Roberto Camasmie. E para a abertura da galeria, a exposição com curadoria de Fernando Durão traz o encontro de gerações e estilos reunindo 25 obras de doze escultores como Victor Brecheret, Bruno Giorgi e Aldemir Martins. RUA BELA CINTRA, 1992 CERQUEIRA CÉSAR, SÃO PAULO Visitação até 30/3/2019
Para participar “Mulheres de todas as idades, de todos os países do mundo enviem um testamento de dano feito para você por ser mulher e uma fotografia, apenas de seus olhos.” Comunicado de Yoko Ono para o projeto Arising, uma instalação que vai viajar do Museu de Belas Artes de Leipzig para o redor do mundo.
Pena Cal Galeria de Arte Com projeto de arquitetura de interiores de Flávio Moura, a Pena Cal Galeria de Arte inaugura em São Paulo em um charmoso prédio no coração dos Jardins. A galeria tem em seu acervo obras de artistas contemporâneos brasileiros , entre eles, Christian Cravo; Edineusa Bezerril; Florian Raiss; Mestre Didi; Paulo de Tarsoe e Zanini de Zanine. RUA OSCAR FREIRE, 1453 JARDIM PAULISTA, SÃO PAULO
GIRO NA CENA
As reais cores de Van Gogh Como parte da pesquisa para uma exposição na Tate Britain que destaca os anos do artista em Londres, os conservadores descobriram que o céu sombrio da aquarela de 1890 foi pintado de rosa vivo. O pigmento brilhante se tornou marrom ao longo dos anos porque o artista usava pigmentos baratos de tinta rosa.
Túmulo de Man Ray é vandalizado A polícia francesa prendeu um homem depois que a lápide do artista surrealista foi derrubada no cemitério de Montparnasse. O motivo do ataque não foi esclarecido. Man Ray, que nasceu Emmanuel Radnitzky na Filadélfia e cujos pais eram imigrantes judeus russos, foi enterrado com a dançarina Juliet Browner. Uma pedra com a inscrição “Juntos de novo” também foi derrubada. Nenhuma outra sepultura foi atacada.
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E-MAILS DE HILLARY CLINTON SERÃO EXPOSTOS COMO ARTE Você já se perguntou o que realmente havia nos e-mails de Hillary Clinton que ajudaram a Donald Trump garantir a eleição presidencial de 2016? Na Bienal de Veneza, em maio, o artista e poeta Kenneth Goldsmith exibirá todos os 60 mil e-mails vazados de Hillary Clinton. Para a exposição , Goldsmith imprimiu os e-mails polêmicos e os exibirá em uma instalação com réplicas de alguns dos móveis do Salão Oval da Casa Branca. A mostra, organizado pela equipe de curadores Francesco Urbano Ragazzi, estreia em 9 de maio em um antigo prédio de cinema.
VISTO POR AÍ O artista Cosimo Cavallaro está ajudando Donald Trump a construir seu controverso muro fronteiriço entre os EUA e o México - mas sua barreira é construída não de aço e concreto, mas de blocos de queijo cotija. “Esta é uma parede com a qual estou disposto a viver. Porque esse muro é perecível - não vai durar", disse o artista.
TASWIR
A FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA ÁRABE A mostra reúne um importante recorte do acervo de fotografia do Institut du Monde Arabe - IMA, de Paris, com uma seleção de artistas e obras que integraram a 2ª Bienal de Fotografia do Mundo Árabe e a exposição Cristãos do Oriente - 2.000 anos de história (IMA), ambas realizadas na capital francesa em 2017 e 2018 respectivamente. O conjunto das imagens expostas e a diversidade dos artistas, ao invés de reforçarem estereótipos culturais ou se encerrarem em um único tipo de produção, exploram o “ " (ato de fotografar) a partir de vasta gama de assuntos e temáticas, desde questões 10 AGENDA
formais e documentais até temas latentes do mundo contemporâneo, como feminismo e identidade de gênero. "Os artistas recuam, no tempo e no espaço, dos tumultos atuais. Eles se distanciam, às vezes fingem que ignoram, mas os fragmentos da realidade - seja social, histórica ou cultural - transpiram em suas imagens”, define Gabriel Bauret, curador da 2ª Bienal.
Taswir, a fotografia árabe contemporânea • Instituto Tomie Ohtake • São Paulo • 28/3 a 28/4/2019
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ARTUR LESCHER
SUSPENSÃO
RETROSPECTIVA DE ARTUR LESCHER NA PINACOTECA PONTUA OS MOMENTOS MAIS IMPORTANTES DA TRAJETÓRIA DO ARTISTA E PROPÕE EVIDENCIAR COMO, DESDE O INÍCIO DA CARREIRA, ELE VEM TESTANDO A APLICAÇÃO DAS NOÇÕES DE GRAVIDADE, A PARTIR DA ENGENHARIA E DA MATEMÁTICA, NA CONSTRUÇÃO DE UMA POÉTICA PARTICULAR
POR CAMILA BECHELANY
Ziggurat, 2012. Foto: Everton Ballardin
Hikoboshi, 2016. Foto: Everton Ballardin.
Para Artur Lescher, quando alguma coisa é imaginada, ou projetada, no sentido primeiro da palavra, ela já existe. O campo do pensamento é sempre potencialmente parte do real, e a arte, para ele, está no território da ficção, é “ter uma visão, imaginar algo como possibilidade e, depois, todo um trabalho para construir e refazer a imagem inicial”. Sua obra dialoga com a história da escultura, mas igualmente com outros campos de conhecimento. Seus interesses vão do modelismo à astrologia, passando pela matemática, arquitetura e mitologia. Seus projetos são muitas vezes saídos de sonhos ou ideias relacionadas à literatura, à metafísica e à filosofia. Para realizar o na Pinacoteca em 2012, uma de suas principais obras instalativas, Lescher
tomou como ponto de partida o projeto arquitetônico do prédio. Após um estranhamento com o espaço do Octógono, o artista buscou a planta original do edifício, que foi construído em 1897 para abrigar o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Havia, naquele desenho de inspiração neorrenascentista e alinhado ao estilo das escolas de artes de Paris, a previsão central, coroado com uma de um cúpula de oito lados, alta o suficiente para ser vista a distância mas jamais realizada. O que é hoje o Octógono, um espaço integrado aos espaços expositivos do museu, era pensado como um grande átrio central da escola. Um lugar de passagem que também fosse lugar de reflexão, imbuído de um ideal de educação bastante platônico, em que o estudante, através da cúpula DESTAQUE 15
Abaixo: Inabsência, 2012. À direita: Vista da exposição.
arredondada, pudesse se sentir próximo do céu e tocado pela virtude no seu processo de se tornar artista. Ao revisitar o projeto, Lescher realiza a cúpula, ou melhor, sua estrutura em madeira, porém fixando-a invertida no teto, com seu mastro central apontando para baixo. Invertendo a cúpula, o artista sugere a existência de outra escola, de inspiração aristotélica, que se dê no espaço real, rente ao chão, e no contato entre as pessoas, 16 DESTAQUE
através do debate. A obra não só reagia à arquitetura imaginada no passado, à memória do lugar, mas trazia à tona ideias sobre o lugar da arte na sociedade. O lugar da arte aqui, neste museu-escola, é o lugar de encontro com a vida e com o outro. é definidora de uma poética e tenta responder a uma das inquietações constantes no trabalho de Lescher: como se dão as relações entre as ideias e as formas? Em busca
dessas relações, Lescher, mobiliza a memória e a história. Seja no interesse pela arquitetura, seja nas investigações sobre o comportamento dos materiais, seu trabalho é pautado por relações e deslocamentos entre a memória das formas e das ideias. Em (1998), videoinstalação com sete monitores, a palavra “memória” é escrita sobre o óleo e desaparece em seguida: o próprio material apaga a escrita e, com ela, a ideia de memória. Em outros casos, o trabalho é motivado pela memória de um lugar, como na série , em que a arquitetura do espaço onde a obra é instalada serve de base para o próprio trabalho. No inicial, as dimensões do espaço são transferidas para um perfil metálico vermelho que marca a extensão do espaço, desenhando nele seus próprios contornos. Já na série de esculturas que se baseiam no movimento de rios e cachoeiras, como (2009) e (2006), é a memória da
À esquerda: Prumo, 2011. Foto: Benoit Fougeirol.
paisagem que serve como princípio de orientação para a criação do trabalho. Lescher iniciou sua carreira em meados dos anos 1980. Após um contato inicial com o desenho e a pintura, o artista logo passou a se dedicar ao tridimensional, testando o desenho no espaço com obras que respondem às particularidades da arquitetura. , instalação realizada em 1987 na XIX Bienal de São Paulo, é exemplar desse processo de trabalho em que a memória de uma forma, muito conhecida ou banalizada, é revisitada. Na ocasião, Lescher criou duas estruturas de volumes e dimensões iguais que eram como dois grandes balões suspensos (11 x 3 x 3 metros). Feitos em lona de alumínio e inflados com gás hélio, eles foram colocados cada um de um lado da parede de vidro do segundo andar do pavilhão da Bienal, criando um espelhamento. Os balões pareciam idênticos, mas suas superfícies eram diferentes: uma era facetada e a outra lisa, sendo a primeira uma abstração matemática da segunda. Separados pelo vidro transparente, provocavam estranhamento, pois um parecia ser o reflexo do outro. A relação da obra com a arquitetura modernista do prédio alterava não apenas a percepção visual, por meio do espelhamento no vidro, mas também a sensação de peso, uma vez que o aerólito de fora parecia leve, flutuando no parque, e o de dentro parecia pesado, já que ocupava quase ARTUR LESCHER 19
Acima: Casa se movente, 2003. Foto: Everton Ballardin. À direita: Sem título, da série Afluentes, 2015. Foto: Pat Kilgore.
todo o pé-direito da sala. Essa foi a primeira vez que o artista colocou em prática o desafio experimental da gravidade, que se tornou uma das características mais marcantes de seu trabalho. Em Se realizada para o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) em 1989, Lescher amplia sua pesquisa sobre a relação da arquitetura com o lugar do espectador. A obra era uma estrutura em madeira de 32 metros de comprimento, instalada por detrás da fachada de vidro criada por Lina Bo Bardi, em 1982, durante a reforma do prédio que ocupara a marquise originalmente projetada por Oscar Niemeyer, em 1954. A comprida escultura de Lescher preenchia quase 20 DESTAQUE
toda a extensão do espaço expositivo e foi pensada como uma arquitetura dentro de uma arquitetura (a de Bo Bardi), por sua vez dentro de outra (a de Niemeyer). Como aconteceu com dois anos antes, a obra podia ser vista de fora, através da parede de vidro, e de dentro do espaço expositivo, com uma experiência diferente a cada vez. A posição adotada pelo espectador em relação à obra modificava sua percepção do espaço e da própria obra. Visto pelo vidro, do lado de fora, parecia uma cidade suspensa sobre palafitas, em que os volumes – estruturas cúbicas de diferentes materiais como madeira e ferro – se equilibravam e remetiam a arquiteturas de casas. Sua forma
retilínea também fazia pensar em um trem, com vagões levando matériasprimas. A relação com a cidade é muito presente nos primeiros trabalhos de Lescher, e o modelo da casa aparece e em muitas esculturas em dessa época, entre elas (1991). quanto nos Tanto nesses trabalhos posteriores, chamados de “pêndulos”, à primeira vista, as obras parecem ser fruto de uma equação matemática rigorosa, que faz com que se movimentem em torno do seu eixo, permaneçam suspensas a uma distância precisa do chão ou se encontrem milimetricamente assentadas contra a parede. Mas, na obra de Lescher, são o empirismo e a percepção que comandam e justificam
as proporções e escalas nas quais as obras são desenhadas e por meio das quais desenham o espaço. A fabricação das esculturas começa com o desenho à mão livre ou com a maquete. Em seguida, vem a escolha do material, na qual aparecem tanto questões ligadas à sua tangibilidade, ao seu coeficiente de resiliência, ao seu peso e à densidade quanto a sua relação com a história da ciência, a filosofia, a cosmologia e a mitologia. Na sequência, o processo de fabricação propriamente empírico da escultura, que é feito em procedimentos semiindustriais como solda, polimento, galvanização... Até a instalação da obra no espaço, a operação final que deflagra as tensões do trabalho e que é essencial, uma vez que o trabalho é
Rio Máquina, 2009. Foto: Ruy Teixeira.
Sua preocupação com o entorno e com o espectador encontra eco também no neoconcretismo brasileiro.
sempre pensado em uma lógica de relação com o espaço e com o espectador. O trabalho de Lescher se insere em uma tradição herdeira da arte construtivista dos anos 1950 e 1960 e sua experimentação com a estrutura e a construção de caráter industrial, principalmente a partir de Max Bill e Piet Mondrian. No entanto, sua preocupação com o entorno e com o espectador encontra eco também no neoconcretismo brasileiro, que pensava as relações de convivência do espectador com o espaço de maneira radical nas décadas de 1960 e 1970 e que influenciou muitos artistas das gerações seguintes, modificando a maneira de pensar e fazer arte no Brasil. Lescher, aliás, cita as aulas do filósofo Celso Favaretto sobre a obra de Hélio Oiticica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como matéria-prima formadora de seu pensamento. Por seus objetos de formas limpas e precisas, o trabalho de Lescher também poderia ser aproximado ao minimalismo. No entanto, suas esculturas e instalações têm sempre uma estória, uma narrativa ou surpresa que as motivam. Elas são alegóricas, no sentido de emanarem múltiplos sentidos, não se circunscrevendo à materialidade, como é o caso da arte minimal. Diante de suas formas, o espectador vive uma experiência de significação e ressignificação. A grande série de “rios” é exemplar desse efeito. As obras 22 ARTUR LESCHER
Acima: Os Castelos do pensamento, 1988. Foto: Rubens Chiri.
Mixirica, 2016.
,
(2013) e (2018) são feitas de materiais sólidos como metal, feltro e papel, mas sua engenharia de montagem e a articulação de suas formas criam a imagem de águas que se movimentam, que se derramam e escorrem. Esse efeito alegórico somado às formas limpas, por sua vez, também distancia Lescher de escultores brasileiros da geração anterior à sua, como José Resende e Carlos Fajardo, que têm no processo de elaboração das obras e na materialidade o foco de suas pesquisas. Assim, Lescher desenvolveu, desde o fim dos anos 1980, um vocabulário formal próprio, no qual o interesse pelo comportamento dos materiais e a investigação da forma tridimensional marcada por uma base geométrica convivem com a presença da questão alegórica. É válido pontuar que também a filosofia foi fundamental para a consolidação desse projeto estético, principalmente a fenomenologia heideggeriana e a ideia de 24 DESTAQUE
Zu 2, 2012.
que é preciso suspender, cessar o fluxo de ideias e noções preconcebidas para que a experiência da realidade aflore totalmente. É essa realidade da experiência como forma de apreensão do mundo que a obra de Lescher parece querer nos revelar constantemente. A mostra tem caráter retrospectivo e foi organizada em torno de três eixos que delineiam interesses e temas de pesquisa específicos. O primeiro deles, , centra-se nas potencialidades e nos desafios dos materiais empregados por Lescher, na transformação de materiais como aço, cobre, alumínio e madeira em elementos naturais como , rios e lagoas. O segundo, detém-se no tema da verticalidade na escultura, exemplar no trabalho do artista com os pêndulos. E o terceiro, , segue a investigação do artista na direção de uma reescrita da memória do espaço 25
Caderno de desenho. Foto: Isabella Matheus.
e uma construção imaginária da cidade, que fica evidente na instalação (2014/2019) e na série de esculturas (2017). Ainda estão presentes na exposição maquetes de projetos e cadernos de estudo de Lescher, exibidos pela primeira vez. A seleção de mais de 50 itens foi feita a partir dos arquivos pessoais do artista, visando constituir uma leitura aprofundada e inédita do seu processo de trabalho. Uma característica reconhecida da obra de Lescher é o apuro da forma acabada, realizada por meio de métodos industriais, e aqui, nos cadernos e maquetes, revela-se o processo criativo, os momentos de investigação e procura, em que a liberdade do inconsciente é privilegiada e onde a forma responde ao impulso das mãos. Como diz o artista, “é preciso duvidar das formas”, sempre.
Camila Bechelany é curadora e pesquisadora. Atualmente, é curadora e editora de publicações no Pivô Art Center e membro do grupo de crítica de arte do CCSP. Foi curadoraassistente do MASP entre 2016 e 2018.
Artur Lescher: Suspensão • Pinacoteca • São Paulo • 23/3 a 24/6/2019
A chegada de Ogum e Iansรฃ pรณs-Eckhout, 2019. Foto: Pedro Freitas
THIAGO
MARTINS DE MELO
EM MOMENTO DE ALTA PRODUÇÃO, THIAGO MARTINS DE MELO GANHA INDIVIDUAIS SIMULTÂNEAS NO RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO E, COM OBRAS INÉDITAS, CONSTRÓI PANORAMAS INTRICADOS E SIMBÓLICOS DA AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEA
POR ULISSES CASTRO Filho de artista plástico, o maranhense Thiago Martins de Melo convive com arte desde a infância. Durante a adolescência, ele próprio passou a estudar pintura e arte contemporânea, chegando a ingressar mais tarde na faculdade de Educação Artística. Abandonou o curso para se formar em Psicologia, área na qual também possui o título de mestre. Apesar de se dedicar a uma variada gama de meios expressivos – entre eles a instalação, o vídeo e a escultura –, é a pintura que tem trazido ao artista maior projeção e reconhecimento. Melo é dono de uma pincelada vigorosa, que deixa na tela não apenas o rastro do pincel, mas também a própria massa da tinta em relevo, às vezes saída diretamente do tubo, estratégia empregada para imprimir tridimensionalidade tátil à pintura. Independentemente da mídia adotada, o trabalho do artista é capaz de arrebatar o espectador através de diversas instâncias – seja pelas cores, pelas dimensões, pela temática ou pela complexidade compositiva. Tradicionalmente, Melo traz para sua obra temáticas sociais do contexto no qual está inserido, desde o mais restrito, a cidade de São Luís, do Maranhão, até o mais amplo, a América Latina. Interessa-lhe especialmente a opressão praticada sobre as minorias – índios, negros, homossexuais, favelados, artistas ou qualquer grupo de pessoas que não se encaixe na noção de Estado-nação pasteurizado que tem se anunciado no país nos últimos tempos. Apesar de não sentir na pele os desatinos sofridos por essa população tratada como marginal, não abre mão de ser um observador e, mais do que isso, um porta-voz. Nesse sentido, Melo se apresenta como um artista que utiliza seu trabalho para denunciar aspectos da sociedade que considera cruéis, injustos, absurdos. 30 ALTO RELEVO
Tempo e sol de Luzia, 2019. Foto: Pedro Freitas.
Sem tĂtulo, 2019.
Cada símbolo do universo criado por Melo é instigante e recompensador.
Na visão de Thiago, esse tipo de temática exige uma urgência que dificulta a lida com questões formais e acadêmicas. É preciso ação imediata para que a obra reflita os acontecimentos da vida real. Apesar disso, o artista possui processo executivo que passa pelo estudo minucioso da composição, definido por ele mesmo como “barroquismo compositivo”. Ainda assim, Melo se permite tomar decisões durante a fatura das obras. Nada é engessado. A composição é flexível e aceita que determinados aspectos sejam resolvidos ou alterados durante a execução do trabalho. Para o espectador atento, isso se torna perceptível na obra e se constitui como uma característica plástica importante no trabalho do artista. Aliás, estar atento é uma condição para o espectador das obras de Thiago Martins de Melo. Muito embora ele trabalhe com telas de grandes formatos, geralmente justapostas em grupos de dois, três ou quatro unidades formando verdadeiros painéis, o artista transita muito bem entre diversas escalas compositivas. Isso exige do espectador diferentes níveis de aproximação com a obra, desde os mais íntimos até os mais distanciados, a fim de que os episódios narrados por Melo em sua pintura sejam apreendidos em sua completude. Investir tempo decifrando cada detalhe, cada ícone, cada símbolo do universo criado por Melo é instigante e recompensador. 33
Necrobrasiliana, 2019. Foto: Filipe Berndt.
Abaixo: Sem título, 2019. À esquerda: Rasga Mortalha, 2019 (Frames de vídeo).
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O expressivo currículo de Thiago Martins de Melo conta com participações em importantes exposições mundo afora, além de obras incluídas em coleções particulares e institucionais ao redor do globo. Agora, a Galeria Cavalo organiza a primeira individual do artista no Rio de Janeiro. Intitulada ,a exposição apresenta trabalhos inéditos de escultura, pintura e filme de animação. O título faz menção à lenda da coruja Suindara, folclore muito comum nas regiões Norte e Nordeste. Acredita-se que seu vulto branco e seu canto selvagem, que lembra o som de um pano sendo rasgado, sejam prenúncio de morte para aqueles que os presenciam. Essa é apenas uma das referências buscadas por Melo para . Elas incluem ainda a poesia de Gonçalves Dias, a elaboração de o messianismo de Glauber Rocha, o conceito de necropolitica cunhado pelo pensador camaronês Achilles Mbembe, a mitologia Tupinambá, a atual luta do povo Gamela no Maranhão, a literatura de cordel e as guerrilhas armadas nas selvas latino-americanas. É inevitável que tamanha multiplicidade de temas reflita plasticamente na obra do artista, revelando sua habilidade em organizar as complexas narrativas visuais que se propõe a fazer.
Ulisses Castro é arquiteto e urbanista pela UFMG e pós graduando em História da Arte e da Cultura Visual.
Rasga Mortalha • Galeria Cavalo • 28/3 a 15/6/2019 Necrobrasiliana • Galeria Leme AD • 30/3 a 4/5/2019
Cabelo Laranja/Neve/De perto, 2014.
LAURIE
MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE CHICAGO APRESENTA UMA PESQUISA IMPORTANTE SOBRE O TRABALHO DE LAURIE SIMMONS. ABRANGE A EXPLORAÇÃO DE LONGA DATA DA ARTISTA DE COMO A CULTURA DE IMAGEM CRIA E PERPETUA OS MITOS DA NOSSA SOCIEDADE E ACABA COM AS IDEIAS TRADICIONAIS SOBRE FOTOGRAFIA
POR ELISA MAIA Há mais de quatro décadas, a artista americana Laurie Simmons vem construindo imagens que exploram diversas estratégias pelas quais nós humanizamos os objetos e reificamos os corpos humanos. , que inaugurou em 2018 no Museu de Arte Moderna de Fort Worth, no Texas, e agora ocupa o quarto andar do Museu de Arte Contemporânea de Chicago, é uma extensa retrospectiva de sua obra, onde estão expostas desde suas primeiras fotografias, tiradas na década de 1970, até imagens produzidas em 2018. Com curadoria de Andrea Karnes, a mostra reúne 130 trabalhos, entre fotografias, esculturas e filmes escritos e dirigidos pela artista. Um dos temas que estiveram presentes ao longo de sua trajetória é o processo de construção de estereótipos de gênero que dominaram o imaginário americano no meio do século 20 e que, de certa maneira, ainda encontram ecos na contemporaneidade. Entre eles, destaca-se aquele que confina a mulher em uma posição de objeto de consumo, troféu do casamento burguês, ídolo inerte do (1976) e ambiente doméstico, materializado nas séries (1978). Em 1976, Simmons começou a fotografar bonecas em cenários construídos com papelão e mobiliados com pequenos objetos de plástico. A ideia era, através do uso da iluminação, da perspectiva e da escala, provocar uma confusão conceitual entre o artifício e a realidade, entre ambientes e objetos reais e os ficcionais. Embora esses trabalhos não tenham uma conotação expressamente autobiográfica, a atmosfera nostálgica das imagens fazia uma vaga alusão à casa em que Simmons passou sua própria infância nos anos 1950 e ao papel que viu sua mãe desempenhar naquele espaço. Nascida em 1949, em Nova York, a artista foi criada na era da televisão e da propaganda, em uma casa típica dos subúrbios americanos que ilustravam a cultura mítica característica da América de Eisenhower. A respeito de seus primeiros trabalhos, Simmons declara que estava tentando “recriar a sensação da época em que cresci: o clima dos anos 1950 que eu sabia que era belo, mas ao mesmo tempo letal”. Seus cenários meticulosamente construídos a um só tempo espelham e estranham o sonho 40 CAPA
Abaixo: First Bathroom/ Woman Standing, 1978 (SĂŠrie Early color interiors, 1978 e Woman/ Purple Dress/ Kitchen, 1976 (SĂŠrie Early black and whites, 1976)
americano de prosperidade e um ideal de feminino muito marcado pela esfera doméstica. A perfeição e a ordem são enfatizadas ao ponto de se tornarem opressoras, e as imagens passam a sugerir justamente o contrário do que o estilo de vida americano se propõe a vender. A sala de jantar perfeitamente em ordem onde a boneca assiste à televisão sentada no sofá, o banheiro que ela limpa, onde os azulejos combinam com o papel de parede, e a cozinha povoada por utensílios e mercadorias saídas dos comerciais se tornam ambientes macabros, marcados pela austeridade e, sobretudo, por uma solidão que costuma evocar analogias com as pinturas de Edward Hopper. Ao estilo do (1975), as bonecas clássico de Simmons habitam uma versão bizarra do sonho americano, cuja melancolia sufocante contrasta com a felicidade artificialmente forjada pelos anúncios e propagandas. A aura de rigidez e tédio das bonecas que habitam suas imagens apontam para o vazio que a euforia das aparências criadas pela sociedade de consumo tanto se esforça para encobrir. A série dialoga também com uma longa tradição da pintura ocidental de associar o feminino aos ambientes domésticos e aos espaços fechados, tradição que encontra na pintura holandesa do século 17 algumas de suas manifestações mais memoráveis. Alguns anos mais tarde, Simmons (1979), na apresenta a série qual explora outra figura emblemática da cultura americana, arquétipo de virilidade e heroísmo. Em oposição à ideia do confinamento feminino sugerido pelos ambientes domésticos, os brinquedos que reproduzem a figura do caubói são fotografados ao ar livre, cavalgando no gramado a céu aberto. Os cenários de plástico são deixados de lado, o ambiente é expandido e a artificialidade dos bonecos contrasta com a realidade do espaço. 54 LAURIE SIMMONS
A artificialidade dos bonecos contrasta com a realidade do espaço.
Brothers/Horizon, 1979 (SĂŠrie Cowboys).
Big camera, little camera, 1976.
Em (1984-1985), Simmons se apropria dos códigos estéticos das imagens dos editoriais de moda que tornaram célebres fotógrafos como Richard Avedon e Helmut Newton. Embora agora as modelos sejam mulheres de verdade, os corpos esguios e esculturais, contorcidos em poses afetadas e improváveis, acompanhados de rostos sem expressão, dão-nos a impressão de estarmos diante de corpos inorgânicos e não de pessoas de carne e osso. As modelos, cujas roupas e acessórios se tornam uma extensão de seus corpos objetificados, não são apenas belas. São também imóveis, intocáveis e impassíveis. Por isso podem formar uma unidade com as mercadorias que vendem. Este corpo inerte, que é também o corpo da boneca, do manequim, da estátua é, via de regra, um corpo feminino, e, justamente por isso mesmo, em seu silêncio, ele pode se tornar tão eloquente a respeito dos mitos de gênero presentes em nossa cultura. Outra característica crucial e um dos recursos mais interessantes no trabalho de Simmons é manipulação da escala. A fotografia que dá título à – mostra duas exposição – câmeras fotográficas muito similares, mas de proporções discrepantes: uma real, que pertenceu ao seu pai, e uma miniatura de brinquedo que a 44 CAPA
Country Road: Kentucky, 1984 (Série Fake Fashion).
Pushing lipstick, 1979.
artista ganhou na infância. Na série (1979), a pequena boneca, que poderia ser uma dona de casa em uma propaganda de sabão, é fotografada embaixo de um foco de luz, em um ambiente marcado por um papel de parede florido, abraçando um batom vermelho. A forma fálica do acessório tipicamente feminino tem quase a mesma altura da boneca e funciona na cena como se fosse o parceiro de uma dança. Em 46 LAURIE SIMMONS
A crítica por trás da construção de arquétipos de gênero persiste.
As três irmãs, 1955.
(1987-1991), Simmons deixa de lado as miniaturas das casas de boneca e lança mão de objetos gigantes antropomorfizados, no estilo dos comerciais de televisão em que os produtos anunciados (um maço de cigarros, uma caixa de cereal) se tornam fantasias vestidas por atores que cantam e dançam para a câmera. Os objetos de Simmons – uma ampulheta, uma máquina fotográfica, um relógio, um bolo de aniversário –
Walking & lying objects (1987-1991)
são animados por pernas humanas e as fotos são impressas em tamanhos enormes. Nessa série, o tom melancólico das casas de boneca da década de 1970 é substituído pelo humor, mas a crítica por trás da construção de arquétipos de gênero persiste, em especial na fotografia (1989), na qual o torso e o rosto de uma mulher de pernas longilíneas são substituídos por uma casa típica da década de 1950.
Para a série (2009-2011), Simmons encomendou uma boneca sexual japonesa e registrou o primeiro mês dela em sua casa, desde o “dia 1”, quando chega em uma caixa vestida com uma camisola de seda e uma aliança, até o “dia 30”, quando uma segunda boneca passa a integrar as imagens. Marcadas pela perfeição e por uma semelhança aflitiva com mulheres reais, esses objetos se tornam um dispositivo poderoso na construção da tensão entre ficção e realidade. Uma nova mudança é provocada na escala do trabalho. Não é mais preciso construir reproduções
48 CAPA
em miniatura de objetos humanos, não se trata mais do mundo de plástico de suas primeiras fotografias, mas do mundo real, da escala humana. Simmons transforma sua própria casa em uma casa de bonecas, onde sua hóspede pode ler, tomar banho, andar na neve e brincar com o cachorro. A série atualiza de forma contundente uma discussão que já se encontrava presente desde o início de sua carreira, sobre os ideais femininos de perfeição fantasiados em uma cultura patriarcal. A boneca sexual confere uma concretude poderosa aos arquétipos da mulher passiva, dócil e
À esquerda: The love doll/Day 27/Day 1 (New in Box), 2010. Acima: Brunette/Red Dress/Standing Corner, 2014 e Yellow Hair/Red Coat/Umbrella/Snow, 2014 (Série Dollers).
obediente. Tanto que a proliferação de bordéis de bonecas na Europa nos últimos anos se tornou alvo de grandes polêmicas. Em 2017, foi inaugurado em Barcelona o primeiro bordel europeu onde apenas bonecas hiper-realistas são encontradas no lugar das tradicionais prostitutas. O espaço, que funciona como uma casa de prostituição à moda antiga, oferece um catálogo com diferentes tipos de bonecas e cobra cerca de € 120 por hora dos clientes dispostos a manter relações sexuais com esses corpos inertes que se assemelham a pessoas, mas que na realidade são coisas. Anunciadas como flexíveis, submissas, silenciosas, vulneráveis e permissivas, elas atendem aos padrões dominantes de beleza, são invariavelmente magras e jovens e, em geral, brancas, de cabelos lisos e seios enormes. E o mais importante, sempre idênticas a si mesmas, não engordam nem envelhecem, são imunes à passagem das horas, impassíveis às contingências do tempo.
À esquerda: How We See/Ajak (Violet), 2015. Acima: How We See/Liz (Blue), 2015.
Em (2015), Simmons continua a explorar a indeterminação entre humano e artificial. Mas Simmons enquanto em tenta humanizar a boneca, dotá-la de sensibilidade e de uma vida interior, em ela percorre o sentido inverso dessa estratégia. Para este trabalho, a artista contratou maquiadores profissionais que pintaram olhos abertos nas pálpebras fechadas de dez modelos. Cada fotografia é o retrato de uma dessas mulheres que, embora reais, de tão perfeitas mais se parecem com bonecas. O título da série chama atenção para algo importante: como vemos essas mulheres? Nós espectadores podemos olhá-las, sua presença escultural, sem dúvida,
atesta sua visibilidade. Mas elas, de olhos fechados, não nos devolvem o olhar. Comparecem na cena como objeto do olhar do outro, mas não como um sujeito que vê também. O resultado de é visualmente impactante e particularmente perturbador, uma vez que Simmons consegue levar ao ápice a sensação de estranhamento que sentimos diante da indefinição suscitada pelas imagens. Somos a um só tempo seduzidos pela beleza das fotografias e repelidos por sua estranheza. São mulheres ou bonecas? Estão vivas ou são criaturas inanimadas? Orgânicas ou artificiais? Nesse sentido, a reificação aparece como uma espécie de avesso da antropomorfização – ao passo que 51
Tourism: Parthenon, 1984.
tentamos dotar as bonecas de subjetividade, ampliam-se de forma vertiginosa, através de uma indústria de cirurgias e intervenções estéticas, as possibilidades de fabricação e modificação do corpo humano. Em 1935, em seu pequeno texto, “Paris, capital do século 19”, Walter Benjamin usou a expressão do inorgânico para se referir a um novo tipo de fetichismo capaz de eliminar as barreiras que separam o mundo orgânico do mundo inorgânico. Mais recentemente, o filósofo italiano Mario Perniola afirmou que, “se por um lado a sensibilidade humana se reifica, por outro as coisas parecem dotadas de sensibilidade própria”. O que a obra de Laurie Simmons parece evidenciar é que a relação entre sujeito e objeto
não pode mais ser pensada em termos de oposição, como foi por muito tempo, mas como um sistema bem mais complexo de aproximações e distanciamentos.
Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.
Laurie Simmons • Big camera, little camera • MCA Chicago • EUA • 23/2 a 5/5/2019
POR ELE MESMO
M A S C A R CRISTIAN O
“Foi a partir desta fotografia de dois rapazes que descarregavam sacos de farinha de um caminhão estacionado em uma rua do bairro do Brás que descobri a emoção de retratar pessoas. Caminhando pela região em torno do Mercado Municipal, reparei na movimentação de trabalhadores no árduo ofício de carregar nas costas pesados sacos de farinha de um caminhão para o interior de um depósito. Instantaneamente, veio-me à cabeça a ideia de retratar aquelas pessoas. Um pouco intimidado naquele ambiente estranho para mim e já me sentindo observado com curiosidade, avancei e me dirigi aos dois dizendo de chofre: “Vocês são figuras maravilhosas e eu gostaria de fotografá-los”. Não sei como eles entenderam a minha frase, pois, imediatamente, iniciou-se aquela algazarra dos outros trabalhadores ao nosso redor (“Vão sair na ”, etc). No entanto, aquele clima perturbador, a partir do momento em que os dois concordaram em posar para mim, transformou-se em uma atmosfera mágica. Como se estivéssemos protegidos por uma redoma de vidro, isolados daquela barulheira, pude fazer o retrato. Recostados na parede de entrada do depósito, um deles colocou seu cotovelo nos ombros do outro e com os corpos cobertos de farinha, aproximaram-se, naquele instante, das formas de estátuas gregas.” 54 REFLEXO
CARREGADORES DE SACOS DE FARINHA BAIRRO DO BRÁS – SÃO PAULO – 1977
“Em 2013, surgiu uma encomenda de trabalho entusiasmante: realizar a documentação fotográfica do Hospital Matarazzo um edifício abandonado por mais de 20 anos. Esse tipo de tarefa sempre me interessou desde a época em que comecei a fotografar o patrimônio arquitetônico brasileiro no início da década de 2000, quando desenvolvi um “método” para não me perder no meio do caminho. Passo a dar voltas no edifício para ter noção mais exata de sua dimensão; vasculho os interiores, observo as luzes internas que penetram pelas portas e janelas. Tento também gravar o caminho do sol para anotar os melhores momentos para fotografar as fachadas. Feito isso, até parece que iniciarei o trabalho de forma planejada e metódica. Aquele estudo preliminar, no entanto, serve apenas para me dar segurança de onde estou, mas não para onde vou. Inicio o trabalho normalmente pelo interior, não digo de forma aleatória, mas guiado pelas surpresas com que me deparo caminhando pelos corredores, pelas luzes que penetram pelas janelas, pelos desafios de entrar em salões na penumbra que algumas vezes provocam temores. Dessa maneira errante, encontrei-me neste salão negro que confirma a regra de que somos movidos por espantos.”
SALA NEGRA NO HOSPITAL MATARAZZO – SÃO PAULO – 2014
CRISTIANO MASCARO 57
BASÍLICA DE SÃO PETRÔNIO – BOLONHA – ITÁLIA – 2016
58 58 REFLEXO REFLEXO
“A fotografia da Basílica de São Petrônio, em Bolonha, faz parte de uma série de registros de obras de arquitetura a que venho me dedicando nos últimos anos. Durante muito tempo, meu trabalho esteve voltado à observação de aspectos mais amplos da paisagem urbana. Procurava registrar o cenário das cidades a certa distância, normalmente do alto de edifícios ou de elevações proporcionadas pelo relevo de certa região. Buscava também retratar as ruas do ponto de vista das calçadas, as fachadas das casas e, sobretudo, seus interiores. Com o passar do tempo, percebi que a permissão para subir na laje dos prédios não dependia mais da camaradagem dos zeladores; entrar nas casas para fotografar suas salas de visitas se tornou impossível e, o que representa uma perda enorme do lado humano da fotografia, as pessoas hoje em dia têm pavor de serem retratadas. Tendo em vista essa mudança no comportamento da vida urbana, voltei-me para a documentação de obras de arquitetura em um gesto de reverência a esses monumentos que, espalhados pelo mundo, representam marcos nítidos da evolução, ao longo dos séculos, do conhecimento humano.”
“Sempre estou à busca de imagens surpreendentes que a arquitetura pode oferecer. Seja em observações a certa distância, ou em seus detalhes, como aconteceu nesta fotografia realizada no Chichu Art Museum, em Naoshima, no Japão. Lugar também conhecido como “ilha dos Museus”, quase todos projetados por Tadao Ando, sabia que boas surpresas me aguardavam. O Chichu Art Museum era meu principal interesse não só por sua arquitetura, como também porque abriga em uma grande sala iluminada zenitalmente, três grandes pinturas de Manet. Sabiamente, Tadao Ando projetou esse museu de forma que não cheguemos às obras de Manet de forma rápida e óbvia. O arquiteto o fez a fim de que caminhemos por um suave e nada opressivo labirinto antes de chegarmos à sala mágica de Manet. Nesse percurso, pequenas frestas, escadas que nos levam de um patamar a outro, espaços a céu aberto, corredores e rampas onde fendas no concreto permitem a entrada de rasgos de luz, aos poucos vamos percebendo que a hora do encontro com o gênio de Manet está próxima. Foi nesse caminhar preparatório para se chegar à obra do artista, que percebi que estava diante de mais uma imagem surpreendente que a arquitetura nos oferece.” 60 REFLEXO
CHICHU ART MUSEUM - NAOSHIMA - JAPÃO - 2017 ARQUITETO TADAO ANDO
Sempre estou à busca de imagens surpreendentes que a arquitetura pode oferecer.
O CANTEIRO DE OBRAS - CIDADE MATARAZZO SÃO PAULO - 2018
“Fotografar o cenário das obras em andamento do projeto da Cidade Matarazzo para uma exposição nos espaços ainda em estado de abandono do Hospital Matarazzo, tornou-se um desafio duplo. Não só o de obter imagens características de uma obra sem que fossem literais, como também expô-las em um ambiente “poluído” e caótico de um edifício abandonado. Quanto às fotografias, tentei criar imagens praticamente abstratas, mas que, por pequenos detalhes ou texturas, sugerissem aspectos de uma obra de construção civil. Dessa forma, entre algumas imagens que obtive pensando em uma exposição, selecionei esta na qual se destacam os reflexos da luz do sol nas placas de madeira das formas que irão moldar uma laje. Sempre penso que imagens que surpreendem são aquelas que à primeira vista não se revelam imediatamente, mas somente após alguns segundos de reflexão do observador. Quanto ao desafio de enfrentar o espaço pouco convencional para uma exposição, imaginei que as fotografias devessem ter grandes dimensões e serem colocadas em perspectivas estudadas para se confundirem com as próprias paredes e espaços do lugar em uma espécie de metalinguagem.”
Cristiano Mascaro • O que olhos alcançam • SESC Pinheiros • São Paulo • 29/3 a 23/6/2019 Cristiano Mascaro • Alma • Cidade Matarazzo • São Paulo • 2/4 a 29/4/2019 • Visitas sob agendamento pelo e-mail: recepcao@cidadematarazzo.com.br
CandomblĂŠ (Estudo de mural), 1967. Foto: Jamie Acioli.
O Conto de Genji
UM CLÁSSICO JAPONÊS ILUMINADO
Tosa Mitsuoki, Murasaki Shikibu compondo o conto de Genji. Japão, período Edo (1615–1868), século 17. Foto: Ishiyamadera.
OBRA CLÁSSICA DA LITERATURA MUNDIAL, É TEMA DE EXPOSIÇÃO NO MUSEU METROPOLITAN, QUE REÚNE PÉROLAS DA ARTE JAPONESA AO LONGO DE VÁRIOS SÉCULOS
POR JOHN T. CARPENTER
ou é considerado por muitos o primeiro grande romance da literatura mundial. Escrito no início do século 11 pela fidalga e dama de companhia da corte Murasaki Shikibu, centra sua narrativa principal na vida do “radiante Genji” ( Genji), filho de um imperador. O romance acompanha sua ascensão e queda política, após ser rebaixado 66 FLASHBACK
ao de cidadão comum, e seu lento galgar de volta à corte, entremeado com inúmeros romances em vários contextos e regiões do país. Após a morte de Genji, o conto segue sua saga através de dois de seus descendentes. Dividido em 54 capítulos, é não apenas um relato divertido das relações românticas de Genji e um
deslumbrante retrato do esplendor da corte do período Heian (794-1185). É também uma crônica social e política, um tratado que versa sobre teoria estética e filosofia budista, um guia comportamental e uma fonte de sobre a natureza humana. Oferecendo muito mais do que romance conheceu sucesso em sua época, não apenas entre homens e mulheres da aristocracia, mas também para instituições budistas e seu adeptos, líderes militares e suas famílias, comerciantes e burgueses. Sua importância para a cultura japonesa é reconhecida nas inúmeras versões ilustradas e adaptações para o teatro, cinema e ópera, além de sua influência sobre a literatura e arte contemporâneas. A exposição do Metropolitan reúne um amplo espectro de pinturas e gravuras relacionadas a Genji, criadas para diversos patronos pelos artistas japoneses mais bem sucedidos do milênio passado, além de obras de arte atuais que seguem bebendo do tema. Também lança nova luz sobre a autora do conto e suas personagens femininas, e sobre as mulheres leitoras, artistas, calígrafas e comentaristas que desempenharam um papel crucial para garantir a relevância continuada deste texto clássico.
À esquerda: Sata Yoshiro, Ukifune Screen, Japão, período Showa (1926-1989), 1966. À direita:Matsuoka Eikyu, As princesas em Uji. Japão, período Taisho (1912-26). Foto: Himeji City Museum of Art.
Artista não identificado, Ichiji reandai Hokekyo, Fugen Bosatsu kanbotsuhon Japão, final do período Heian (794–1185), século 12. Foto: Yamato Bunkakan.
O CONTO À MÃO: CALIGRAFIA E GENJI Através dos séculos, versões manuscritas iluminadas do conto em formato de pergaminho, livreto e álbum foram apreciadas por suas pinturas meticulosas e transcrições elegantes dos textos, especialmente da poesia, por calígrafos famosos. De fato, a caligrafia era considerada uma das artes supremas na Ásia Oriental pré-moderna, e esperava-se que toda pessoa educada escrevesse fluentemente com um pincel de ponta flexível. A aparência da caligrafia era um sinal de boa educação e refinamento estético. Durante o período Heian (794-1185), surgiram estilos caligráficos corteses para , ou caracteres chineses, e a forma japonesa distinta de escrita fonética chamada , ou , a “mão das mulheres”. A caligrafia da corte Heian é tipificada por vertentes graciosas e suavemente fluidas de caracteres japoneses. foi escrito em caligrafia , uma vez que pertencia ao gênero de ficção chamado (literalmente, “falando de coisas”), enraizado em uma tradição narrativa oral e firmemente associado à escrita feminina.
Kyo-Kano School, Anteriormente atribuído a Tosa Mitsunari, 1648–1710. Detalhe de cena do conto de Genji (Genji monogatari e-maki). Japão, período Edo (1615–1868), meados do século 17.
VENERAÇÃO DE MURASAKI SHIKIBU Uma bela lenda descreve como a nobre Murasaki Shikibu começou a escrever durante uma visita a Ishiyamadera, um templo budista a sudeste de Kyoto, onde ela foi inspirada pelo reflexo brilhante da lua cheia no lago Biwa e pelos poderes divinos do iluminado Kannon. Pinturas da autora por artistas de praticamente todas as escolas reinventaram esse momento crucial na gênese do conto. O templo da montanha continua a ser um local popular de peregrinação budista até hoje. No século 14, o salão principal do templo apresentava a chamada Sala Genji. A relação do conto com o budismo aparece em seu conteúdo narrativo, mas também em rituais destinados a santificar o conto, orações pela salvação de Murasaki Shikibu e até mesmo a adoração dela como uma manifestação de Kannon.
O CONTO DE GENJI 69
PREVENDO A HISTÓRIA: A ARTE NARRATIVA DE GENJI Artistas começaram a ilustrar logo depois de ter sido escrito no início do século 11. Para representar o complexo, longo conto e seus numerosos poemas , muitos artistas e seus patronos adotaram uma abordagem modular, criando conjuntos de pinturas que incluíam uma imagem e um texto como emblemáticos de cada um dos 54 capítulos do conto. Uma iconografia foi logo estabelecida, permitindo que os espectadores reconhecessem cenas importantes. Estas ilustrações incluem o primeiro vislumbre do protagonista Genji e da personagem Murasaki, que se torna sua companheira para toda a vida, ou a
impressionante performance de dança de Genji com seu cunhado e rival, Tō no Chūjō, sob as folhas de outono, ou, perto do final do conto, a jovem Ukifune cruzando o rio Uji de barco com seu amante, o príncipe Niou, neto de Genji. Apesar dessa linguagem visual comum, no entanto, as pinturas Genji demonstraram uma enorme variedade ao longo do último milênio, encantando os espectadores com variações inesperadas que refletem a variedade de visões artísticas, funções e mudanças em como o conto foi lido durante diferentes épocas. GENJI NO COTIDIANO moldou o modo como membros de classes de elite se
Acima e à direita (detalhe): Matsuoka Eikyu, As princesas em Uji. Japão, período Taisho (1912-26). Foto: Himeji City Museum of Art.
eram encomendadas para transformar aposentos de suas residências em salas . Tais obras ofereciam vistas panorâmicas, retratando apenas uma ou duas cenas em todos os 12 painéis de uma tela dobrável, para criar um ambiente imersivo. As cenas eram selecionadas com muito cuidado pelos patronos, com frequência refletindo suas condições ou momentos de suas vidas. Visões de harmonia doméstica eram encomendadas para enxoval de noiva e cenas de Genji no exílio da costa de Suma eram as preferidas por homens com experiências de exílio político em seus próprios passados.
engajaram com o mundo e conduziram suas vidas. O período Edo (1615-1868) é considerado a idade de ouro para objetos laqueados, tecidos e trabalhos em metal com a decoração de Genji, refletindo o importante papel que o conto desempenhou nos enxovais de noiva dos casamentos e os significados auspiciosos associados às suas cenas. Temas de Genji apareceram em roupas para aristocratas e mulheres de classes mais abastadas, em figurinos para o teatro Noh e utensílios do cotidiano como jogos e instrumentos musicais. GRANDES TELAS Pinturas em tela de grande formato retratando cenas de
Kyo-Kano School, Detalhe de vassoura Cypress (Hahakigi) do conto de Genji. Japão, período Edo (1615–1868), meados do século 17. Foto: The New York Public Library.
PINTURAS MONOCROMÁTICAS Ainda que as pinturas de Genji estejam associadas a cores vivas e ouro reluzente, pinturas em tinta monocromática representam algumas das obras mais atraentes. As pinturas narrativas no modo linha de tinta ( ō) evitam a cor em favor de composições lineares que destacam a qualidade rítmica da linha à medida que esta se dilui e espessa, pontuada por manchas de tinta escura, e que
usam o fundo branco não pintado do papel como um elemento positivo da composição. Esse modo de representação foi associado desde cedo a artistas amadores e salões para mulheres. Muitas dessas pinturas sobreviveram desde o século 16 em pequenos pergaminhos que se encaixam confortavelmente na mão. Provavelmente executadas por e para mulheres, representam cenas e
motivos únicos que oferecem uma visão sobre como os leitores medievais entendiam e compartilhavam a história. GENJI SE MODERNIZA A linguagem arcaica em que foi originalmente escrita se tornou cada vez mais inacessível para os leitores no final do século 19 e início do século 20, que passaram a confiar nas traduções para as línguas modernas japonesas e ocidentais. No
entanto, os artistas continuaram a usar a imagística tradicional do conto como tema de novas interpretações pictóricas. Na década de 1880 e início da década de 1890, Tsukioka Yoshitoshi traduziu a iconografia antiga para um estilo (“imagens do mundo flutuante” em tradução literal, estilo tradicional de gravura e pintura que se tornou conhecido pelas obras de mestres como Hokusai e Hiroshige). No início do século 20, Tanaka Shinbi criou cópias
Tawaraya Sotatsu, Miotsukushi e Sekiya. Japão, período Edo (1615-1868), 1631. Foto: Seikado Bunko Art Museum
Yamato Waki, Genji se aproxima da morte, da série "O Conto de Genji: Sonhos ao Amanhecer" Japão, ca. 1989. Foto: ©Yamato Waki
notavelmente fiéis de pinturas e seções de texto de um pergaminho de do século 12, com desejo de inspirar artistas contemporâneos a olhar a arte antiga através de novos olhos. Artistas que trabalham no idioma da pintura em estilo japonês moderno, ou , recriaram cenas icônicas usando uma surpreendente nova paleta e escala para atender às tendências de cada época. continuou a funcionar como um critério na era moderna para artistas que combinavam técnicas e assuntos tradicionais com abordagens da arte ocidental, ao mesmo tempo em que refletia as novas formas de leitura e politização do conto no século 20. GENJI EM MANGÁ Um dos mais notáveis desenna volvimentos da imagem de contemporaneidade é o surgimento de numerosas versões de mangá do conto. , uma interpretação de múltiplos volumes da artista feminina Yamato Waki, superou os demais na arte e atenção aos detalhes históricos e características literárias do original. A tradução do mangá de Yamato tornou o conto antigo acessível a uma nova geração de leitores. A artista usou o idioma visual das histórias em quadrinhos de
John T. Carpenter é curador da Fundação Mary Griggs Burke Curadoria da Arte Japonesa e trabalha no MET desde 2011.
), com figuras garotas ( ō caracterizadas por corpos esbeltos, feições agudas e olhos grandes, bem como toda a gama de estratégias narrativas de forma cômica. Em termos de conteúdo narrativo, ō enfatiza relacionamentos românticos e intensifica emoções em histórias contadas a partir da perspectiva de uma mulher.
O conto de Genji • MET Museum • Nova York • 5/3/2019 a 16/6/2019
Traje de Noh (Karaori) com padrão de Cypress fans e flores de Yugao. Japão, período Edo (1615–1868).
ROBERTA CARVALHO POR THIAGO FERNANDES Nascida em Belém do Pará, Roberta Carvalho é uma artista que transita entre videoarte, intervenção urbana, projeção e , diferentes meios que apresentam em comum o interesse da artista pela imagem técnica. A imagem é um desdobramento de sua atração pela poesia visual que, por sua vez, originouse de sua paixão pela literatura. Conhecer tal percurso nos auxilia a compreender o trabalho da artista como um constante trânsito e interligação entre linguagens. Roberta Carvalho integra a exposição Passeata, em cartaz na galeria Simone Cadinelli, com curadoria Isabel Sanson 78 GARIMPO
Portela. Na abertura da mostra – que reúne trabalhos de 15 mulheres presentes no cenário da arte contemporânea brasileira –, Roberta no jardim realizou um da vila que abriga a galeria e o recéminaugurado anexo, com imagens que remetem à floresta amazônica. Já no interior da galeria, a artista apresenta um desdobramento do mesmo trabalho projetado sobre uma garrafa de vidro – tão inusitada quanto as superfícies comumente exploradas pela artista – e o registro de uma projeção realizada em espaço público. As projeções apresentadas na galeria Simone Cadinelli fazem parte do
projeto
, realizado por Roberta Carvalho desde meados de 2007. consiste em uma série de ações envolvendo projeções digitais videográficas ou fotográficas em ambientes inesperados, cujo conteúdo possui referências regionais do Norte do país, região onde a artista nasceu, e desenvolve seu trabalho. Em algumas ocasiões, Roberta projetou em árvores e vegetações rostos de pessoas – geralmente relacionadas ao entorno onde acontece a exibição –, revelando um ambiente onírico. Marcado pelo caráter experimental, tem sua visualidade mediada pela ação da natureza, como o balançar das folhas provocado pelo vento, que garante à imagem movimentos que não são previstos pela artista. Dessa maneira, o trabalho propõe uma simbiose entre imagem, corpo e natureza. A imagem, que de forma simbólica torna presente um corpo ausente, se apropria da natureza para ganhar forma e vida. O ser humano,
A imagem é um desdobramento de sua atração pela poesia visual.
Acima: Cinema Líquido, 2015. À esquerda: Submersos, Projeto Symbiosis, 2007-2019.
acostumado a adaptar a natureza para si, vê o movimento reverso: seu corpo sendo adequado pela natureza. A simbiose entre arte e natureza já era proposta desde a década de 1960 pelos artistas da , que realizavam intervenções em paisagens remotas, como desertos, florestas e praias, utilizando os próprios elementos da paisagem como matériaprima. Devido à localização de seus trabalhos, os artistas da faziam
Thiago Fernandes é crítico e historiador da arte. Mestrando em Artes Visuais pela UFRJ.
uso de registros imagéticos para tornálos acessíveis ao público. Roberta Carvalho herda algumas características desse movimento, mas possui uma característica singular que é a relação intrínseca entre imagem, natureza e trabalho artístico. A imagem depende da natureza, como mídia, para ser projetada, e dela recebe influxos que modificam sua visualidade. A natureza transforma e se deixa transformar pela imagem.
Passeata • Simone Cadinelli Arte Contemporânea • Rio de Janeiro • 19/3 a 29/5/2019
Abaixo: Projeto Symbiosis, 2007-2019. À direita: Vista da exposição.
RESENHAS exposições
Carla Guagliardi: Conversa com a parede • Galeria Kajetan - Raum für Kunst • Berlim • 9/2 a 13/4/2019 POR SYLVIA CAROLINNE Em sua primeira exposição na recéminaugurada galeria Kajetan Berlin, a artista expõe três obras onde a temporalidade e a vulnerabilidade se encontram constantemente presentes por meio da precariedade de equilíbrios e interdependência dos objetos. Pela própria materialidade e contraste dos componentes escolhidos para participarem de suas obras, a questão da iminência do esgotamento físico acaba por ser mais um item a acrescer, no que pertence aos elementos usados por Guagliardi, para desenvolver sua linha de pensamento e experimentos de materiais. Na instalação , que dá nome à exposição, a elasticidade e a rigidez contrastantes dos materiais compõem a obra através de um único fio elástico, tensionado em ao longo de uma parede de oito metros. Sustentados por pressão, pedaços de madeira e papelão vivem uma harmonia interdependente precária, à qual o tempo ditará as mudanças e os futuros reajustes para a manutenção do do conjunto.
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Na escultura , segunda obra exposta, sete bolas de espuma rígida em diferentes tamanhos intercaladas por sete pranchas de madeira continuam a apresentar o pensamento da artista na questão da vulnerabilidade do equilíbrio. Expõem uma questão cujo conceito pode ser aplicado em nosso dia a dia, em uma constante tensão, união e colaboração das partes do sistema, onde o espaço contribui como elemento de visibilidade macro desse equilíbrio. Finalizando, a obra completa por esclarecer, sem deixar qualquer dúvida, a existência do invisível. A materialidade do ar, percebido mas não visto, dentro do balão de látex vermelho e dos tubos de vidro que integram a última peça, ajuda-nos a ativar a percepção do nosso entorno para além do que pode ser visto. O suave e o bruto, o leve e o pesado, o frágil e o resistente. Todos os elementos em dualidade, presentes nas obras, que se completam com a apropriação do espaço como parte fundamental de sua pesquisa escultórica. Esta é uma exposição que somente conseguimos entender e, com ela, ter a dimensão real do pensamento da artista. Vale a visita!
Sylvia Carolinne é artista visual, graduada em ngenharia civil e moda e correspondente internacinal da Dasartes.
Fotos: Marcus Schneider.
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LIVROS lançamentos
Hans Ulrich Obrist – Entrevistas brasileiras vol. 1 Autor: Hans Ulrich Obrist Editora Cobogó • 576 pg • R$ 76,00 Curador e diretor da Serpentine Gallery, em Londres, Hans Ulrich Obrist viaja pelo mundo há 30 anos gravando suas conversas com artistas e pensadores sobre temas que extrapolam as artes visuais e alimentam discussões sobre a criatividade, a inventividade e a construção do futuro, da cultura e da sociedade. Neste primeiro volume, o curador apresenta uma seleção de 36 entrevistas com artistas e intelectuais pioneiros de diferentes áreas do conhecimento que nasceram no Brasil ou adotaram o país como lugar de produção de seu trabalho ao longo da vida. “É um livro que pode ser interpretado como um protesto contra o esquecimento”, afirma Obrist.
Francisca Aninat: Avenida Las Palomas 50 exemplares numerados e assinados, com cianotipias originais Editora Ikrek • Preço sob consulta O livro é composto por dez cianotipias únicas (5 folhas frente e verso) inseridas em bolsos de papel manteiga com transcrições de entrevistas realizadas pelo artista nas cozinhas que cercam a Plaza de Armas, no centro de Santiago de Chile. Nessas conversas, a artista coleciona imagens e textos sobre os locais de origem de seus entrevistados. A partir dos relatos das cozinheiras, a maioria imigrante, Francisca cria desenhos que vão desde o aeroporto, passando pelo centro da cidade, até as casas destas pessoas. Os relatos são transcritos de forma a serem quase ilegíveis, mas algumas palavras são destacadas, formando um poema ao longo da fruição da obra. 84
Iole de Freitas: corpo/espaço Textos de Paola Fabres, Steven Matjicio e Josué Mattos Editora Cobogó • 269 pg • R$ 80,00 Iole de Freitas – corpo/espaço apresenta um panorama da obra e da linguagem da artista, ao longo de 40 anos, em imagens, textos e outros materiais que antecedem ou acompanham o processo da criação de suas obras. São eles estudos, esquemas, esboços, anotações e desenhos. Para a construção do livro, Iole mergulhou em seu acervo pessoal, hoje depositado no arquivo do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), em São Paulo. Dentre os materiais, mais de dez mil peças produzidas entre 1972 e 2018, em que estão presentes o interesse primordial pelo corpo e a reinvenção do espaço.
Marina Klink: Contravento - Além da Convergência Antártica Fotografias: Marina Klink Editora Brasileira • 132 pg • R$ 59,90 Em uma viagem para a Antártica aconteceu o encontro inesperado de Marina Klink com uma baleia Jubarte. Esse acontecimento impactou tanto a vida da fotógrafa que ela passou a percorrer o mundo em busca de experiências inusitadas na natureza. A procura por lugares inóspitos e a aproximação de animais icônicos passaram a fazer parte da sua vida. Além de fotografar, ela compartilha suas experiências em palestras para os mais diversos públicos. Marina, que tem a Antártica como destino frequente, registra o continente há 15 temporadas. Sua mais recente viagem a levou aos pinguins Imperadores.
COLUNA DO MEIO Fotos: Briefcom
Quem e onde no meio da arte
Agrippina Manhattan, Simone Cadinelli e Anna Bella Geiger
Leandra Espirito Santo e Roberta Carvalho
Passeata Simone Cadinelli Arte Contemporânea Rio de Janeiro Raul Leal e Patrizia D'Angello
Amanda Baroni, Simone Cadinelli e Sani Guerra
Bia Sampaio e Osvaldo Gaia
Fotos: Divulgação.
Isabel Portella e Fernanda Sattamini
Gabriel Fernandes, Bete Coelho, Danilo Miranda, Flavia Carvalho e Rosana Cunha
Ricardo Frayha, Bruno Girello, Rodrigo Bolzan, Erom Cordeiro e Camila Márdila
William Forsythe SESC Pompeia São Paulo Nuno Ramos e Sofia Carvalhosa
Paula Weiss e Julian Richter
Ricardo Muniz e Juliana Braga
Lia Rodrigues
Fotos: Paulo Jabur. Bruno Miguel, Marcelo Solá e Alexandre Mazza
Paulo Herkenhoff, Luciana Caravello e Marcelo Solá
Mabu + Tomie Cassia Bomeny Galeria Rio de Janeiro Cristina Alho e Antonio Bernardo
Ana Linnemann e Ronaldo Simões
Roberto Rodrigues, Fernando Mendes de Almeida e Renata Aragão
Fotos: Divulgação.
Thomaz Velho e Andrea Brito
Grasi Fernasky, Marciah Rommes, Lia do Rio e Rosi Baetas
Laura Freitas, Sara Figueiredo, Miro PS e Clautenes Aquino
Miro PS Espaço Cultural Correios Niterói Sara Figueiredo, Denise Anne e Laura Freitas
Miro PS, Denise Anne e Lia do Rio
Miro PS e Lia do Rio
Susi Cantarino e Carlos Alcantarino
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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