Revista Dasartes 89

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ZANELE MUHOLI LUCIAN FREUD WILLIAM BLAKE DANIEL SENISE MANO PENALVA




DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SOCIAL MEDIA Thiago Fernandes

Capa: Zanele Muholi, Bester I, Mayotte, 2015. © Zanele Muholi. Cortesia de Stevenson, Cape Town/Johannesburg and Yancey Richardson, New York.

DESIGNER Moiré Art REVISÃO Angela Moraes SUGESTÕES E CONTATO dasartes@dasartes.com APOIE A DASARTES Seja um amigo Dasartes em recorrente.benfeito ria.com/dasartesdigital Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ

Zanele Muholi, Kwanele, Parktown, 2016. © Zanele Muholi. Stevenson, Cape Town/Johannesburg e Yancey Richardson, New York.

Contracapa: Lucian Freud, Sleeping by the Lion Carpet also known as Sue Tilley. © The Lucian Freud Archive / Bridgeman.


ZANELE MUHOLI

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LUCIAN FREUD

8 De arte a Z 68 Livros 70 Coluna do meio

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WILLIAM BLAKE

DANIEL SENISE

MANO PENALVA

66

54

50



11 anos

Seja um Amigo Dasartes Receba a versĂŁo IMPRESSA assinatura@dasartes.com


DE ARTE A Z Notas do circuito de arte CHIHARU SHIOTA NO BRASIL Conhecida principalmente por seus em grande escala, trabalhos frequentemente compostos por emaranhados de linhas, Shiota é autora de uma obra multidisciplinar, desdobrada em suportes diversos: são instalações, performances, fotografias e pinturas. A artista terá sua extensa obra celebrada na mostra retrospectiva , no Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo (CCBB SP). A partir de 13/11/2019.

ARTE ABSTRATA DO MACACO CONGO

VIZINHO DO LOUVRE E POMPIDOU

LOUVRE LANÇA RELÓGIO DE MONA LISA

Em exposição

Em Paris

Parceria com a Swatch

Congo, o chimpanzé pintor falecido cujas obras foram vendidas para milhares de pessoas, terá um solo em respeitada galeria de Londres. A mostra, a maior já dedicada ao macaco, contará com 55 pinturas. Congo, produziu arte abstrata por três anos no final da década de 1950.

O colecionador francês François Pinault anunciou que seu museu de US$ 170 milhões em Paris será inaugurado em junho próximo. Os destaques de sua coleção de arte contemporânea estarão alojados na antiga bolsa de valores de Paris, que está sendo convertida pelo arquiteto do bilionário Tadao Ando. O museu será chamado de Bolsa de Comércio Coleção Pinault.

A instituição francesa está ampliando suas parcerias nos dias de hoje (outras incluem o Airbnb). A empresa de relógios Swatch lançará quatro novos relógios inspirados em obras-primas das coleções do museu, como o cupido de Guido, , da década de 1620, em um mostrador e outro com a própria Mona Lisa no bracelete.

estará em exibição na Mayor Gallery, de 3 a 19/12/2019.

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GIRO NA CENA IV PRÊMIO REYNALDO ROELS JR. Inscreva-se entre 28 a 30/10

A Escola de Artes Visuais do Parque Lage lança a 4ª edição do Prêmio Reynaldo Roels Jr. em homenagem ao crítico de arte que dirigiu a instituição entre 2002 e 2006. O prêmio é anual e destinado a pessoas que queiram desenvolver um projeto de instalação a ser realizado em espaço público. O autor do projeto vencedor receberá R$ 20 mil para a produção de uma peça com as características de uma instalação em local aberto à visitação pública.

Léon Ferrari: A exposição reúne cinquenta obras pertencentes a Pinacoteca, de autoria do artista argentino. A mostra ocupa a sala C, contígua à exposição do acervo da produção artística brasileira do século 19 do museu, e enfatiza o aspecto político que marcou a produção de Ferrari, carregada por uma crítica contundente às instituições de arte, aos sistemas políticos e à moral vigente nas décadas de 1960 e 1970. De 26/10/2019 a 16/2/2020.

Para investigar “A segurança de nossos visitantes é nossa principal prioridade. Estamos profundamente tristes com este trágico acidente, e nossos pensamentos sinceros estão com a família e os amigos do Sr. Dawson”

Comunicado do Museu do Brooklyn, após um homem deslizar sobre o parapeito da escada do terceiro andar e cair no térreo. Kirkland Dawson, um advogado de 34 anos de Nova York, morreu no dia seguinte.

Regina Silveira inquebrável Pela primeira vez na trajetória de Regina Silveira são apresentadas em conjunto obras em porcelana e vidro criadas pela artista nas últimas são apresendécadas. Em tadas mais de 30 obras, produzidas entre a década de 1990 e 2018: peças de uso doméstico, de que a artista se apropria e sobre as quais intervém, deslocando seu significado. Galeria Luciana Brito, São Paulo. A partir de 11/11/2019.


GIRO NA CENA

MORRE JOHN GIORNO, AMADO ARTISTA DE NY

Ana Mazzei no Sesc Pompeia A artista é a segunda convidada do projeto , que explora a prática da marcenaria na produção artística contemporânea. Neste trabalho inédito, criado em diálogo com a arquitetura do espaço - projetado por Lina Bo Bardi -, a artista propõe a realidade e a ficção como uma jornada imaginativa para compreender o uso das coisas, os espaços e as pessoas. Sesc Pompeia, São Paulo 16/10/2019 a 2/2/2020

O poeta e artista de texto John Giorno, que foi o protagonista silencioso do épico "anticinema" de Andy Warhol, sempre foi a estrela de seu próprio programa. Seja através de um serviço de poesia discada no final da década de 1960 ou nas bravas performances de seus próprios poemas, o lendário de Giorno no mundo da arte de Nova York é garantido. Giorno morreu em 11 de outubro aos 82 anos de idade

Krajcberg e Nazareth Pacheco juntos Com curadoria de Ricardo Resende a mostra reúne trabalhos da paulista Nazareth Pacheco e do polonês Frans Krajcberg (19212017).

reúne obras emblemáticas dos artistas, criações que seduzem pela beleza da matéria e forma de expressar realidades duras. Galeria Kogan Amaro-Zurique 1/11 a 21/12/2019

10 DE ARTE A Z

VISTO POR AÍ

Um cabelo branco comprido e ondulado ficou preso entre a tinta na tela e o vidro que protege de Vincent van Gogh. A descoberta aconteceu na reinauguração do MoMA, em Nova York, que estava fechado há meses para uma reforma e expansão avaliada em US$ 400 milhões.



Bayephi III, Constitution Hill, Johannesburg, 2017 Š Zanele Muholi. Cortesia de Autograph ABP, London


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SÉRIE DE FOTOGRAFIAS DA ARTISTA SUL-AFRICANA ZANELE MUHOLI, CLICADAS AO REDOR DO MUNDO, CONFRONTA AS COMPLEXAS POLÍTICAS GLOBAIS DE RAÇA, GÊNERO E REPRESENTAÇÃO

POR REDAÇÃO

Zanele Muholi (1972) é ativista visual e fotógrafa e mora em Joanesburgo. Segundo a artista, sua autoproclamada missão é “para re-escrever um negro, , e a história transvisual do Sul da África para o mundo saber de nossa resistência e existência nesse auge de crimes de ódio na Africa e além.” Muholi cofundou o Fórum para o Empoderamento das Mulheres (FEW) em 2002 e o Inkanyiso (www.inkanyiso.org), um e visuais (ativistas), fórum para mídias em 2009. Muholi estudou Fotografia Avançada na Oficina Foto Mercado, em Newtown, Joanesburgo, e em 2009 completou em MFA: Documentário Mídia na Ryerson University, em Toronto. Em 2013, ela se tornou Professora Honorária na Universidade do Artes / Hochschule für Künste Bremen. Mais recentemente, Muholi foi agraciada na França como a mais alta honra cultural, o . Sua obra foi incluída no pavilhão sul-africano na 55ª Bienal de Veneza (2013) e foi destaque

À esquerda: Sibusiso, Cagliari, Sardinia, Italy, 2015 © Zanele Muholi. Courtesy of Stevenson, Cape Town/Johannesburg and Yancey Richardson, NY 15


Uma desconfortável jornada de autodefinição, a repensar a cultura de autorrepresentação e autoexpressão.

na Bienal de São Paulo (2010) e Documenta 13, Kassel (2013). Exposições individuais recentes incluem o Museu do Brooklyn, Nova York (2015); Rencontres d’Arles (2016); e Museu Stedelijk, Amsterdã (2017). Suas fotografias são representadas nas coleções de Centro Georges Pompidou (Paris), o Guggenheim (Nova Iorque), Museu de Fotografia Contemporânea (Chicago), Tate Modern (Londres), National Gallery Sul Africano (Cidade do Cabo), e outros. Para a série fotográfica nas palavras da artista, as fotografias convidam o espectador em “uma desconfortável jornada de autodefinição, a repensar a cultura de autorrepresentação e autoexpressão”. Clicados na Europa, Ásia, Norte da América e África, entre 2014 e 2017, cada retrato é distinto e coloca perguntas críticas sobre injustiças sociais, direitos 16 CAPA


À esquerda: Vive la France!, 1975. Acima: Los Suicidas del Sisga n.2, 1965.




Acima: MaID II, Atlanta, 2017. À direita: Sebenzile, Parktown, 2016. © Zanele Muholi. Cortesia de Stevenson, Cape Town/Johannesburg and Yancey Richardson, NY.

humanos e contestadas representações do corpo negro. Muholi habilmente emprega convenções de retratos clássicos e fotografia de moda e mistura tropos de imagens etnográficas para estabelecer diferentes arquétipos e personas. Um nome significativo de cada um dos 76 retratos é dada em , a primeira língua da artista que agora vive em Joanesburgo. Os retratos geralmente contam com materiais encontrados, que se tornam culturalmente adereços carregados. Esfregões e luvas de látex abordam 20 ZANELE MUHOLI

temas de servidão doméstica. Pneus de borracha, cabos elétricos e abraçadeiras referenciam formas de brutalidade social e exploração capitalista. Coletivamente, os retratos evocam a situação dos trabalhadores: empregadas domésticas, mineiros, e membros das comunidades marginalizadas. Da mesma forma, plásticos chamam a atenção para as urgentes questões ambientais e resíduos tóxicos, enquanto conchas e pulseiras de miçangas destacam representações clichês e exotizadas do povo africano. O contraste da pele de Muholi é



Hlonipha, Cassilhaus, Chapel Hill, North Carolina, 2016 e Bona, Charlottesville, 2015. © Zanele Muholi. Cortesia de Stevenson, Cape Town/Johannesburg and Yancey Richardson, NY.

reforçado em pós-produção para se tornar um ponto focal para questionar beleza, orgulho e as interligadas fobias e -ismos de homofobia, transfobia, xenofobia, racismo e sexismo que são navegados diariamente. Nas memórias pessoais e visuais de Muholi – um arquivo do eu –, a artista muitas vezes olha desafiadoramente

para a câmera, instigando os espectadores enquanto afirma firmemente sua identidade cultural em seus próprios termos. Esses retratos autorreflexivos e psicologicamente carregados são, sem remorso, a exploração das restrições de história, ideologias e das realidades contemporâneas.

Zanele Muholi: Somnyama Ngonyama , Zulu para Hail the Dark Lioness • Seattle Art Museum • EUA • 10/7 a 3/11/2019



os autorretratos de

LUCIAN FREU


UD

Reflection with Two Children (Self-portrait), 1965. Fotos: Š The Lucian Freud Archive / Bridgeman Images.


Naked Portrait with Reflection, 1980. Foto: © The Lucian Freud Archive / Bridgeman.

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UM DOS RETRATISTAS MAIS FAMOSOS DO NOSSO TEMPO, LUCIAN FREUD TAMBÉM É UM DOS POUCOS ARTISTAS DO SÉCULO 20 QUE SE RETRATOU COM CONSISTÊNCIA. A ROYAL ACADEMY OF ARTS REÚNE 50 PINTURAS, GRAVURAS E DESENHOS NOS QUAIS ESSE MESTRE MODERNO DA ARTE BRITÂNICA OLHA FIRMEMENTE PARA SI MESMO

POR JASPER SHARP

Em 8 de dezembro de 1992, Lucian Freud completou 70 anos. Considerado então o maior pintor vivo da Grã-Bretanha, após a morte de seu amigo Francis Bacon, no início daquele ano, ele havia deixado James Kirkman, seu galerista de longa data, para trabalhar com o nova-iorquino William Acquavella. Ao concordar com a representação, Acquavella também assumiu as dívidas consideráveis ​de Freud, concedendo a ele tempo e espaço para se concentrar em sua pintura. Freud usou esse tempo para trabalhar em um de seus projetos mais desafiadores até o momento: um autorretrato nu, completo. Nos sete meses seguintes, Freud trabalhou para concluir a tela a tempo da abertura de uma grande exposição na Whitechapel Art Gallery, em Londres.


À direita: Painter Working, Reflection, 1994.

Ele estava curioso para examinar seu próprio corpo, expressão e condição psicológica.

Quando foi revelado, (1994) foi imediatamente reconhecido como um dos grandes autorretratos da arte do pós-guerra e uma das realizações mais profundamente comoventes de Freud. Este ensaio examinará a produção dessa pintura notável e seu lugar na obra de Freud. Freud vinha pintando e desenhando sua própria imagem há mais de meio século, desde a adolescência. Pouquíssimos artistas na história da arte produziram autorretratos durante um período tão longo de tempo. Como Rembrandt, de quem Freud era um grande admirador, ele produziu pelo menos um autorretrato em cada período-chave de sua vida. Eles fornecem um registro fascinante de seu estado de espírito em certos momentos, das mudanças em sua técnica ao longo do tempo e dos riscos que ele estava disposto a assumir, tanto na vida quanto na arte, em prol dessa obra. Talvez haja duas razões principais pelas quais Freud continuaria a perseguir essa narrativa em primeira pessoa ao longo de tantos anos. Por um lado, ele estava interessado em entender e experimentar o escrutínio, o tédio e o rigoroso processo físico ao qual seus modelos eram rotineiramente sujeitos. Por outro, ele estava curioso para examinar seu próprio corpo, expressão e condição psicológica. Freud admitiu ter lutado com o autorretrato ao longo de sua carreira. Perguntado uma vez se ele era um bom modelo para si, Freud respondeu: “Não aceito as informações que recebo quando me olho e é aí que o problema começa”.

28 LUCIAN FREUD



Abaixo: Startled Man: Self-portrait, 1948. À direita: Man with a Feather, 1943. Lucian Freud and © The Lucian Freud Archive / Bridgeman Images

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Freud pintou seu primeiro autorretrato importante em 1943, quando tinha apenas é o maior 21 anos. e mais ambicioso trabalho que ele produziu durante os anos de guerra e representa um momento decisivo em sua maturidade artística inicial. Desde o início, Freud trabalhou o , com a ajuda de um espelho, e não de fotografias. “A informação coletada do espelho é um tipo de informação muito diferente”, disse ao biógrafo e pintor Lawrence Gowing. Mais tarde, ele atribuiu essa diferença à qualidade da luz. Em seu recente estudo da história do autorretrato, James Hall examinou o papel do espelho no desenvolvimento do gênero. Embora espelhos de algum tipo já existissem na antiguidade, eles se tornaram mais comuns durante o Renascimento. Hall vincula o verdadeiro florescimento do autorretrato, por volta de 1500, à invenção de espelhos de vidro planos, com espaldar laminado, produzidos e distribuídos em Veneza: “É como se, de repente, os artistas da Europa Ocidental pudessem se ver.” Os espelhos de vidro só foram produzidos na França por volta de 1700; dizem que custavam seu peso em ouro. Provavelmente, é esse tipo de espelho que Freud usaria para capturar sua figura de três quartos em , e anos depois para . Ele costumava deixar espelhos espalhados pelo estúdio, na tentativa de encontrar ângulos e perspectivas inesperados. Um grupo de desenhos do final da década de 1940 – entre eles (1947-1948), 1947-1948), 1948) e (1949) – mostram-no experimentando exatamente dessa maneira. O espelho ajudou Freud a alcançar certa distância de sua própria aparência e a



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Hotel Bedroom, 1954.

evitar pintar uma imagem mental de si mesmo, mesmo que isso tornasse a jornada para chegar lá mais cansativa. “Você precisa tentar se pintar como outra pessoa. Olhar no espelho é tenso de uma forma que olhar para as outras pessoas”, disse ele. O uso de um espelho também traz, inevitavelmente, uma sensação de confronto. Enquanto muitos dos modelos de Freud desviam o olhar do espectador e parecem perdidos em seus próprios pensamentos, o modelo de seus autorretratos sempre olha diretamente para o espelho e, por extensão, diretamente para o espectador. Em (1952), pintado a bordo de um a caminho da Jamaica, Freud olha para o espelho no banheiro de sua cabine, mordendo um dedo. Dois anos depois, em 1954, ele pintou seu primeiro autorretrato de corpo inteiro. é um retrato duplo do artista e sua segunda esposa, Lady Caroline Blackwood, no Hôtel La Louisianeem Saint-Germain, Paris. Freud fica de pé contra a luz da janela, olhando para o espectador, enquanto Caroline está deitada na cama embaixo dele. O casal se casara no ano anterior, mas a tensão que acompanhava o relacionamento era óbvia. A pintura, carregada de melancolia, foi considerada por muitos na época chocante e cruel. Após uma pausa de vários anos, Freud produziu vários autorretratos em rápida sucessão em 1963 e posteriormente, em 1965, pintou , criado a partir de um espelho no chão. Ao longo dos anos 1960, alguns de seus autorretratos mostram as molduras dos espelhos usados, deixando claro que o tema das pinturas é seu reflexo. Em (1968-1972), Freud aparece segurando sua paleta e um pincel, em uma referência à longa história de autorretratos de ateliê, que se estendeu até , de Velasquez, e de Vermeer. Entre as obras mais recentes, Freud tinha particular atração por , de Gustave Courbet, tendo inclusive recriado seu cenário para uma fotografia em 1992. 33


Reflection (Self-portrait), 1985.



O artista continuou executando autorretratos em papel nos anos 1970, e em pintura nos anos 1980. Para um deles, (1981-1982), Freud usou três espelhos, criando um jogo de reflexos que dava a impressão de que o modelo parecia não saber estar sendo retratado. Ao longo dos próximos anos, mais abandonaria composições espaciais complicadas em favor de intensos de sua cabeça e ombros que trazem à tona, pela primeira vez, o tema da passagem do tempo. Assim, chegou-se ao autorretrato mais importante de sua carreira, (1994), que reúne sua experiência anterior e o reconhecimento impiedoso de seu corpo e da passagem do tempo sobre ele. O que o torna radicalmente diferente é a nudez do corpo inteiro do pintor, que aparece pela primeira vez. Autorretratos nus são raríssimos antes de 1900 e, mesmo nos séculos seguintes, poucos pintores ousaram fazê-los. Freud sempre se interessou pelo autorretrato nu e esse foi o desafio proposto a seus alunos no Norwich College of Art, em 1964. Muitos acharam ofensivo, mas Freud se defendeu: “Quando alguém está nu, não há o que esconder. Nem todos querem ser tão honestos sobre si mesmos”. Iniciada pouco antes de o pintor completar 70 anos, a pintura foi abandonada e retocada inúmeras vezes antes de ser considerada pronta. Freud a via como um ritual de passagem. O resultado é uma obra profundamente humana, ao mesmo tempo um desafio e uma admissão de fragilidade. Como os autorretratos tardios de Pierre Bonnard, ele faz perguntas sem fornecer muitas respostas.

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À esquerda: Reflection, 2002. Abaixo: Painter Surprised by Naked Admirer, 2004-05.

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A tinta permanece pesada neste corpo, respingando e parecendo rachar em alguns lugares. O artista olha com resignação o que vê no espelho: um homem de 71 anos, veias salientes, pele caída nos lugares que invariavelmente acontece em certa idade. É pura autoconsciência e uma imagem magnificamente confessional; um pintor despido de certas dignidades, mas, mesmo assim, continuando a fazer o que faz de melhor – observe com muito cuidado a condição humana, incluindo a condição do artista. A pintura é honesta e implacavelmente não sentimental e demonstra a disposição de Freud de assumir riscos e seu total compromisso com esses riscos. A idade de Freud lança uma sombra cada vez maior sobre o trabalho: “É sempre um pensamento estimulante que essa possa ser a última imagem (...) Não quero me aposentar, quero me pintar até a morte”, disse o artista.

Jaspers Sharp é curador e historiador de arte britânica. Trabalha no museu Museu Kunsthistorisches desde 2011.

Lucian Freud: The Self-portraits • Royal Academy of Arts • Londres • 27/10/2019 a 26/1/2020


Benefits Supervisor Sleeping, 1995.

Naked Man on Bed, 1993 e And the Bridegroom, 1993. Fotos: Š The Lucian Freud Archive / Bridgeman.



WILLIAM

BLAKE Pity c.1795. Todas fotos: Tate Britain.


PINTOR VISIONÁRIO, GRAVADOR E POETA, WILLIAM BLAKE CRIOU IMAGENS ICÔNICAS DA HISTÓRIA DA ARTE BRITÂNICA E CONTINUA SENDO UMA INSPIRAÇÃO PARA ARTISTAS, MÚSICOS, ESCRITORES E INTÉRPRETES HÁ MAIS DE DOIS SÉCULOS. AMBICIOSA EXPOSIÇÃO, NO TATE BRITAIN, REÚNE MAIS DE 300 OBRAS NOTÁVEIS E RARAMENTE VISTAS E REDESCOBRE BLAKE COMO ARTISTA VISUAL DO SÉCULO 21

POR ELISA MAIA William Blake (1757-1827) repousa, certamente, entre os maiores artistas da Inglaterra. Trabalhou como poeta, pintor e gravurista, deixando uma obra considerada profundamente imaginativa para os padrões da época. Escreveu poemas que se impõem até os dias atuais por sua expressividade e eloquência, produziu livros que se destacam pela inovação da técnica e pintou aquarelas que se caracterizam tanto por uma qualidade etérea e mística quanto por uma atmosfera de fantasia e estranhamento que convoca analogias com o gótico. Algumas de suas imagens se tornaram icônicas na cultura britânica, entre elas, (1793), a figura de um jovem resplandecente, cujo corpo nu de pernas e braços abertos dialoga com o homem vitruviano de Leonardo da Vinci. Mas em vez de celebrar a 42 FLASHBACK

proporção e a simetria da anatomia humana que o mestre renascentista retrata inserida ao mesmo tempo em um círculo e em um quadrado, Blake se livra das formas geométricas substituindo-as por um espectro de cores vibrantes que parece anunciar a chegada de um novo tempo. Albion se tornou um personagem central na poesia tardia de Blake, concebido como a personificação da GrãBretanha, e sua imagem, que já foi reproduzida em livros, pôsteres, bolsas e capas de discos se tornou um emblema dos valores de resistência, criatividade e liberdade de todos os tipos, seja política, artística ou sexual. É ela que abre a exposição em cartaz na Tate Britain, em Londres, a maior retrospectiva do artista em quase 20 anos.


Pintou aquarelas que se caracterizam tanto por uma qualidade etĂŠrea e mĂ­stica quanto por uma atmosfera de fantasia e estranhamento.

Albion Rose c. 1793.


No Tate Britain, reduto da arte britânica, William Blake figura ao lado de William Turner e John Constable como um dos três maiores expoentes românticos da arte inglesa. Contudo, tem sido considerado pela crítica um artista que, embora tenha “bebido na fonte” do gótico e vivido o auge do Romantismo inglês, dialogou com essas influências de forma livre e pouco convencional, imprimindo em sua produção uma interpretação muito própria dos elementos que caracterizavam esses estilos. Isso não significa dizer, contudo, que não haja afinidades importantes entre Blake e 44 WILLIAM BLAKE

Consideraram-no excêntrico, na melhor das hipóteses, e lunático, na pior.


outros poetas ingleses de seu tempo, como Lord Byron, John Keats, William Wordsworth, Samuel Coleridge e Percy Shelley. Insuflados por uma sensibilidade revolucionária, eles também estavam, assim como Blake, rebelando-se contra os antigos modelos de autoridade não só política, mas também artística, privilegiando a potência emotiva em detrimento da correção formal e defendendo a importância da imaginação e da sensibilidade individual frente às convenções da tradição. A história de William Blake já foi contada repetidas vezes, não apenas na tentativa de se explicar seu trabalho, mas como uma espécie de narrativa mitológica do artista incompreendido por seus pares que, incapazes de perceber sua genialidade, consideraram-no excêntrico, na melhor das hipóteses, e lunático, na pior. Atormentado desde a infância por visões de anjos e demônios que entravam por sua janela ou o abordavam nos corredores de casa, Blake passou anos escrevendo profecias enigmáticas que poucas pessoas liam e pintando aquarelas que quase ninguém queria comprar. Após anos de um trabalho intenso – trabalhava dez horas por dia –, conseguiu organizar a primeira mostra individual de sua obra que foi, segundo consta dos relatos da época, um grande desastre. O fato de ter nascido em um meio sem privilégios, algo incomum entre os artistas que obtiveram reconhecimento em sua época, e, ainda assim, não ter feito grandes esforços para transcendê-lo, deu impulso para a construção romanciada de Blake como uma espécie de herói da resistência, um

À esquerda: Capaneus the Blasphemer, 1824-1827. Abaixo: Retrato de William Blake, 1802.


artista visionário, oriundo da classe trabalhadora e comprometido com os ideais de justiça e liberdade – “a mesma lei para o boi e o leão é opressão”, afirmou em um de seus provérbios. O quanto disso é real e o quanto é fabulado é difícil afirmar e talvez seja pouco importante diante da potência arrebatadora das imagens e dos poemas que ele criou. Conta-se que na infância foi educado unicamente por sua mãe Catherine – “graças a Deus nunca fui à escola” – e a Bíblia era um dos únicos livros, senão o único, que tinha em casa. Aprendeu a desenhar copiando reproduções de obras de pintores renascentistas como Rafael e Michelangelo e daquele que Blake considerou o maior dos artistas alemães, Albrecht Durer. Foi criado em uma família de “não conformistas”, termo usado na Inglaterra para se referir a protestantes que não se “conformavam” com os ritos e práticas da igreja e defendiam, em maior ou menor grau, a liberdade religiosa e a anarquia eclesiástica. Dada a relação entre a Igreja e o Estado na Inglaterra pós Revolução Anglicana, a conformidade com os costumes religiosos era um dever oficial dos ingleses e aqueles que desafiavam essa autoridade não raro se tornavam objeto de severa perseguição por parte do Estado. Há quem defenda que esse elemento pautou toda a vida e a obra de William Blake e, mesmo que haja nessa tese certo exagero, é inegável que essa posição ideológica se manifesta de forma acentuada em sua obra. Em 1779, foi admitido na prestigiosa , em Londres, mas deixou a instituição depois de apenas um ano, descontente com seu programa. A academia havia sido fundada pelo pintor Joshua Reynolds, conhecido na Inglaterra como um dos maiores

46 FLASHBACK


‘Europe’ Plate i: Frontispiece, 'The Ancient of Days', 1827.


retratistas da Europa e um dos representantes da era de ouro da arte inglesa. Reynolds, célebre na época por pintar o retrato das figuras mais importantes da aristocracia londrina, era considerado por Blake um diletante raso, um bajulador da corte, alguém a quem faltava vigor na prática e seriedade nos princípios artísticos. “Generalizar é uma idiotice”, afirmava Blake, referindo-se a Reynolds e sua insistência de que um pintor deveria se esforçar para representar o ideal subjacente às formas e não suas particularidades – opinião que se refletia na prática do retratista de encobrir ou atenuar as imperfeiçoes de seus clientes. Entre os admiradores de Blake, é comum o lamento de que seu legado como poeta seja muito mais reconhecido do que as obras visuais que produziu como pintor e gravurista. Isso se explica em parte pelo fato de que o prestígio de que goza o nome de William Blake atualmente muito se deve à academia, mais especificamente à disciplina de literatura inglesa que há muito lhe concedeu o título de membro honorário do time de escritores que compõem o chamado “cânone ocidental”. Dentro dos departamentos de Letras, os poemas que Blake

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À esquerda: The Spiritual Form of Nelson Guiding Leviathan, c.1805. À direita: The Spiritual Form of Pitt Guiding the Behemoth, 1805.

publicou em seus belíssimos livros iluminados tendem a ser apresentados apenas em sua dimensão textual, como se assim a linguagem escrita pudesse ser examinada em sua forma mais “pura”. Isso porque, para o crítico empenhado em “decifrar” todo o simbolismo e as alegorias dos poemas, as imagens seriam consideradas uma espécie de distração que os afastaria do “verdadeiro conteúdo” do texto. Com esse gesto de fetichização das palavras na página branca, os estudos literários acabaram por conferir às iluminuras de Blake a posição secundária de meras ilustrações, o que, sabe-se, nunca foi sua intenção. Essa distinção que persiste entre o poeta e o pintor, embora produtiva para fins de categorização, torna-se debilitante, uma vez que ignora um dos aspectos mais originais de sua produção: a maneira astuciosa como explorou as interfaces entre a poesia e a pintura, desafiando a pretensa dicotomia entre palavra e imagem. (1789) e Em alguns de seus trabalhos mais ambiciosos, como (1793), os escritos não são apenas ricamente ilustrados, como acontece em (1789), mas investidos de um cuidado visual que os aproxima dos manuscritos medievais. A atenção dirigida à materialidade e à visualidade da palavra escrita resulta em uma linguagem na qual os contornos entre o que é lido e o que é visto são tensionados e essas contaminações recíprocas entre o texto e a imagem implodem a ideia tradicional de ilustração, transformando a leitura em uma experiência sensorial que extrapola em muito a dimensão dos significados do texto. 49



Ao explorar com engenhosidade o aspecto gráfico da palavra escrita, Blake passa a valorizar não apenas o sentido “por trás das palavras”, mas também as próprias palavras enquanto objetos autônomos, que se impõem no espaço da página em toda a sua dimensão material e imagética. Esse gesto aponta para um movimento que seria colocado em discussão de forma programática anos mais tarde pelos poetas concretos, para quem a forma espacial do corpo da escrita não poderia mais ser pensada como um traço acessório ao texto.

Newton 1795-c. 1805.


Jerusalem, plate 28, proof impression, top design only, 1820.

Em que pese o quase de que goza a figura de William Blake atualmente, muitos aspectos de sua vida e de seu trabalho permanecem obscuros ou ambíguos. Sabe-se que foi um grande entusiasta da Revolução Francesa e de algumas de suas bandeiras, como a luta pela liberdade. Comprometido com a causa abolicionista, Blake ilustrou a (1796), do soldado anglo-holandês John Stedman, um trabalho que teve grande impacto político na Inglaterra. Mas sua obra abordou de forma depreciativa e crítica outras bandeiras do pensamento iluminista, como o entusiasmo analítico e a busca fervorosa por um racionalismo , que Blake considerava vazio, frio e redutor. Essa posição é manifesta em uma representação potente do cientista mais famoso da Inglaterra pintada pelo artista em 1795. Na imagem, Isaac Newton aparece nu e curvado, no fundo do oceano, medindo atentamente algo com seu compasso. Se por um lado a silhueta musculosa e escultural do cientista evidencia a influência de Michelangelo, por outro, a posição de perfil em que foi retratado remete à bidimensionalidade das 52 FLASHBACK


figuras de um painel egípcio. O compasso usado pelo cientista para medir a realidade já havia aparecido em outra de suas imagens mais conhecidas. , de 1793, retrata uma divindade intimidadora suspensa em uma esfera (talvez o sol) e cercada de nuvens escuras. Em um gesto que simboliza a criação da terra, a entidade segura um enorme compasso aberto, como se calculasse a medida de seu objeto. O personagem demiurgo de barbas e cabelos longos foi ironicamente batizado por Blake de Urizen ( ), uma referência pejorativa ao que poderia ser considerado o “mito” da razão – a ideia de que só teria validade aquele conhecimento capaz de ser formalizado ou expresso quantitativamente. O poeta que quis “ver todo um mundo em um grão de areia”, longe de querer explicar ou descrever o mundo empírico, ofereceu, através de suas criações fantásticas, uma espécie de fuga da maçante realidade mundana. E o fez prestando enorme reverência ao mistério – a “tudo que é grandioso é necessariamente obscuro aos olhos de homens fracos”. O acadêmico inglês Jonathan Wordsworth, ecoando uma opinião que não é incomum entre críticos de arte, afirmou uma vez que o “problema de Blake é que ele não sabia desenhar”. Mas isso não o impediu de se tornar um caso singular de artista que se impôs pela imaginação em detrimento da convenção e pela profundidade em detrimento da proficiência. Nos quase dois séculos que se passaram desde a morte dele, seu trabalho parece ter conseguido superar cada uma das limitações que lhe foram impostas por seus contemporâneos, ao ponto de William Blake ter se tornado, nas palavras do curador da exposição Martin Myrone, o “protótipo do visionário solitário e do gênio independente.”

Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.

William Blake • Tate Britain • Reino Unido • 11/9/2019 a 2/2/2020


DANIEL

SENISE POR ELE MESMO

DANIEL SENISE REÚNE PELA PRIMEIRA VEZ, NO INSTITUTO TOMIE OHTAKE, UM CONJUNTO SIGNIFICATIVO DE TRABALHOS POUCO VISTOS OU INÉDITOS QUE APRESENTAM INTERVENÇÕES SOBRE AMPLIAÇÕES FOTOGRÁFICAS. EM EXCLUSIVA PARA A DASARTES O ARTISTA ESCOLHEU CINCO OBRAS DA SUA TRAJETÓRIA PARA DESCREVER SEU PROCESSO DE INSPIRAÇÃO E CRIAÇÃO

“Entre 1991 e 1992, fiz duas telas aparentemente bem distintas que desde então me parecem sintetizar o momento de prospecção que vivi nesse período. Eu trabalhava no meu ateliê durante o dia e às vezes pintava à noite no quartinho dos fundos de minha casa. Em casa, pintei uma tela com uma figuração beirando o surrealismo, dois crânios de pássaro encaixados pelos bicos. Na minha experimentação mais estruturada no ateliê, realizei um trabalho com uma imagem construída com o óxido que se desprendeu de pregos em um processo de oxidação induzido. Quando essa tela ficou pronta dei o título de pela composição. A tela produzida em casa ficou alguns meses na parede como um não trabalho até o dia em que encontrei um título para ela, .” 54 REFLEXO


E

55


“Durante quatro meses, entre 2008 e 2009, montei uma fábrica de tijolos no Centro Cultural São Paulo. Eles foram produzidos com os impressos de arte do próprio CCSP. Todas as semanas, à medida em que os tijolos secavam, fui levantando paredes em torno da , de Victor escultura Brecheret. Ao final da exposição, a escultura estava completamente oculta, mas ainda era possível ver pelas frestas entre os tijolos.”

56 DANIEL SENISE


, 2008-2009


46


, 2010

“Em 1996, em uma viagem de carro, eu tentava definir a essência do meu trabalho e a partir daí realizar uma obra sem usar as mãos. Quando voltei ao Rio, fiz contato com o Instituto Nacional do Câncer na Lapa e combinei uma doação de lençóis para o hospital. A proposta era que eles fossem devolvidos ao final de suas vidas úteis. Com a ajuda da minha assistente Daniela Labra, fiz a mesma proposta para um motel que ficava no bairro de Laranjeiras. O proprietário, que se chamava Jesus, não entendeu muito bem, mas concordou em colaborar. Alguns meses depois, eu tinha uma boa quantidade de lençóis usados na UTI do hospital do câncer e nas camas do Hotel Serrano. Pareceu-me que, apenas pelo fato de ter feito esses escambos, eu tinha apaziguado um desejo e daí guardei os lençóis. Com passar do tempo, os lençóis cada vez mais pareciam fazer parte do meu trabalho e, em 2010, quando fui convidado para expor na Casa França Brasil, finalmente o montei. Consistia no confronto entre dois brancos, os lençóis do INCA e os lençóis se refere ao público do Serrano. O número do título estimado de pessoas que passaram por essas duas superfícies e o texto da exposição foi da Daniela Labra, que havia se tornado curadora.”

REFLEXO 59


“Em 2011, fui convidado pela Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro para fazer um painel para o teatro Villa-Lobos que, depois de alguns anos fechado, estava passando por uma renovação completa. No final desse ano, quando estava quase pronto, o teatro sofreu um incêndio que destruiu praticamente tudo. Logo na sequência, fui aos escombros e recolhi uma boa parte dos carpetes incinerados que tinham sido instalados pouco antes do incêndio. Agora em 2019 montei no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, o trabalho , composto pelos carpetes incinerados em um painel de alumínio polido. O teatro Villa-Lobos continua fechado e sem previsão de reabertura.”

Daniel Senise: Todos os Santos • Instituto Tomie Ohtake • São Paulo • 27/8 a 27/10/2019 60


, 2019


MANO PENALVA POR THIAGO FERNANDES Nascido em Salvador, Mano Penalva vive e trabalha em São Paulo e atualmente realiza a exposição individual , na Portas Vilaseca Galeria (Rio de Janeiro), com curadoria de Pollyana Quintella. Um dos principais interesses do artista é a cultura material. Penalva propõe a subversão do valor de objetos do cotidiano, sobretudo aqueles ligados a ambientes domésticos. Tal dado é realçado pelo título de sua mostra individual, expressão utilizada na Bahia para denominar as casas com mais de um andar, os sobrados.

, o artista utiliza Na série de materiais como palhinha, muxarabi e peneiras para compor novas peças em escala arquitetônica adotando a lógica da arte construtiva. O que esses objetos de natureza tão distinta têm em comum é o vazio provocado por seus diferentes padrões de trançados, que produzem um jogo de velar e revelar. Esses agrupamentos de materiais encontrados se distanciam do sentido do duchampiano, caracterizado pelo desinteresse visual, e produzem uma lógica própria a partir de sua


ordenação visual deliberadamente executada pelo artista, como pode ser constatado ao observar a tonalidade dos objetos reunidos e o cuidadoso arranjo de sobreposição e justaposição produzido por Penalva. Novas possibilidades estruturais e mesmo funcionais são sugeridas a partir dessas estranhas conjugações de elementos tão distantes em seu caráter utilitário, mas com certas proximidades em sua visualidade. Dessa maneira, o artista evidencia como o olhar superficial pode ser traiçoeiro e tende a embaçar as diferenças, ao mesmo tempo em que indica a harmonia que pode ser alcançada pela união de elementos heterogêneos.

O que esses objetos de natureza tão distinta têm em comum é o vazio provocado por seus diferentes padrões de trançados, que produzem um jogo de velar e revelar.

À esquerda: Sem título, 2019. Abaixo: Tribeira, Casa de Andar, 2019.


À direita: Kitnet, 2019.

Não apenas objetos de uso ordinário, mas também utensílios provenientes de cultos religiosos são apropriados pelo artista. É o caso de , trabalho em que Penalva aproxima quartinhas brancas – utilizadas em cultos afro-brasileiros – e moringas de barro – que servem como reservatórios de água fresca. O título ambíguo remete tanto a espaços de repouso quanto às frações matemáticas observadas na divisão dos objetos sobre três superfícies de madeira (1 quartinha com 3 moringas, 2 quartinhas com 2 moringas e 3 quartinhas com 1 moringa). Como nas , o artista adota uma referência arquitetônica do ambiente doméstico e produz um jogo de semelhança e diferença, dessa vez a partir da aproximação entre o sagrado e o comum. Algo semelhante ocorre em , que consiste na fixação de duas quartinhas apertadas em um suporte vertical de madeira, que evocam as moradias urbanas de pequenas proporções. Os dois objetos são estrangulados pelo suporte estreito, ocupando toda sua largura sem deixar zonas de respiro. Ao mesmo tempo, a composição vertical distancia as duas quartinhas, produzindo um grande vazio entre as peças, ressaltando o dado da privacidade e o cerceamento dos encontros e das afetividades. A intimidade é também um dos pontos de trabalho em que o artista se apropria de um biombo – objeto de decoração interna ou de uso prático, que produz paredes falsas para fins de privacidade. O título do trabalho faz referência à arquitetura do período



colonial. Enquanto as casas de famílias mais abastadas eram cobertas por três camadas de telha – eira, beira e tribeira –, as casas mais pobres recebiam apenas um acabamento: a tribeira (daí surge o ditado “sem eira, nem beira”). conjuga um biombo com ornamentos delicados, em estilo rococó, com cacos de vidro que contornam suas laterais. A elegância e a graciosidade do rococó, estilo decorativo proveniente dos palácios franceses e adotado pelas igrejas do Brasil colonial, contrasta com a agressividade dos vidros pontiagudos, comumente utilizados como gambiarra em muros de moradias populares, não como elementos decorativos, mas com a função de impedir invasões e delimitar limites entre público e privado. Ao agregá-los ao biombo, o artista aproxima e contrasta distintas faces da proteção, da privacidade e da ordenação dos corpos, evidenciando diferenças de classe e refluxos do passado. Mais do que rearranjos visuais, o trabalho de Mano Penalva desperta novos sentidos e funcionalidades em objetos do cotidiano. A aproximação de materiais de diferentes origens e utilidades direciona nosso olhar para detalhes que não são percebidos nos objetos isoladamente e, ainda, aponta para além deles, para aquilo que faz parte do amplo horizonte das culturas onde estão inseridos.

1 quarto, 2 quartos, 3 quartos, 2019.

Thiago Fernandes é crítico, historiador da arte e doutorando em Artes Visuais pela UFRJ.

Mano Penalva: Casa de andar • Portas Vilaseca Galeria • Rio de Janeiro • 13/9 a 19/10/2019



LIVROS lançamentos Thiago Martins de Melo Organização: Samantha Moreira Editora Capivara e Galeria Leme AD - 304 p. - R$ 110,00 O maranhense Thiago Martins de Melo é autor de uma obra potente, carregada de signos e questões póscoloniais. Organizado por Samantha Moreira, com coordenação editorial de Ana Carolina Ramos e design de Flávia Castanheira, a publicação abrange o percurso e o universo de produção dos últimos oito anos do artista, cuja produção se desenvolve no campo da pintura e na expansão dessa linguagem com outras mídias. A publicação traz também uma seleção de cinco artigos inéditos, análise assinadas por autores de diferentes gerações como Josué Mattos, Moacir dos Anjos e Viviane Vazzi Pedro.

Carmela Gross: Roda Gigante Organização: André Severo e Paulo Miyada 4 Art Produções Culturais - 159 p. - Gratuito Com uma obra de caráter multimídia, que lida diretamente com a tensão entre a expressão popular e o rigor erudito, Carmela Gross é certamente uma das artistas mais inquietas e provocadoras do país. Para a exposição que inaugurou o Farol Santander Porto Alegre, Carmela Gross apresentou uma obra inédita. Intitulada Roda Gigante, a instalação – de dimensões monumentais – lidou com a ideia de peso, contrapeso e ancoragem para propor uma reflexão sobre a precariedade da vida nas grandes cidades. Tendo como interlocutor convidado o curador Paulo Miyada, a exposição apresentou, ainda, um panorama com obras dos últimos anos de produção da artista.



COLUNA DO MEIO Fotos: Cristina Granato

Quem e onde no meio da arte

André Piva, Carlos Tufvesson, Simone Cadinelli e Eduardo Braule-Wanderley

Lyz Parayzo, Simone Cadinelli e Gabriela Noujaim

Fotos: Adriana Braga

Galeria Simone Cadinelli ArtRio Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Cadinelli e Marcelo D2 eSimone Gina Elimelek

Tobinaga e Narciza Tamborindeguy

Dudu Garcia, Ursula Tautz e Marcos Chaves

Robson Outeiro e Ludimila Oliveira

Gabriel Giucci, Ana Elisa Cohen, Gabriela Davies, Alvaro Seixas e Felipe Pena

Sérgio Alevatto, Carolina Texeira, Alexandre Mazza, Ronaldo Simões

Bruno Miguel Galeria Luciana Caravello Rio de Janeiro Luciana Caravello e Delson Uchoa

Bruno Miguel, Bruno Ryfer e Jaime Acioli

Raphael Adorjan e Antonio Bokel

Pedro Sekiguchi, Julio Ferrreira Sekiguchi e Rafael Alonso


Fotos: Paulo Jabur

Ismélia Nascimento, Roma Drumond e Luiz Dolino

Patrícia e Waltercio Caldas e Roma Drumond (centro)

Roma Drumond Galeria Patrícia Costa Rio de Janeiro Eduardo Oliveira, Cesar Fraga Patrícia Costa e Luiz Aquila e Gina Elimelek

Leôncio e Anita Schwartz

Mônica Corteletti e Laura Burnier

Xico Chaves e Sônia Matos

Fotos: Gisele Rocha

Eliza Caiaffa, Susi Cantarino e Miriam Daulselnberg

Cristiano Braun, Krica Braunarnaldo Michelinchristiane Michelin

Sua Majestade Casa Princesa Isabel Petrópolis Marzio Fiorini, Monica Vianna e Renato Vianna

Cris Moura, Marzio Fiorini e Cristina Chimelli

Marzio Fiorini, Patrícia Alvim e Pedro de Orleans e Bragança

Mikush Sapieha, Paola de Orleans e Bragança e Marzio Fiorini


Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente em seu aplicativo para tablets e celulares e no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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