Revista do Brasil nº 040

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PAZ, AMOR & LIBERDADE

nº 40

outubro/2009

Nossas viagens baseadas em Woodstock

www.redebrasilatual.com.br

ENFIM INDEPENDÊNCIA? Começa o debate que vai definir o destino das riquezas do pré-sal

Lúcia de Souza, promotora social no Amazonas

BASTA DE COVARDIA Como mulheres, juristas, comunidades, e homens se organizam para fazer valer a Lei Maria da Penha

Exemplar de associado. Não pode ser vendido.

REFORMA AGRÁRIA Ruralistas barram mudanças que podem desconcentrar assentamentos e proteger a Amazônia

R$ 5,00

VIDA SEM PATRÃO Economia solidária, sustentável, com gestão coletiva e trabalho decente


caixa.gov.br

nada. le a v o ã n e u q V T a el u q Tire da sua vida a a nova. m u r a pr m co a r pa a ix Ca Use o Crédito

As melhore s taxas do mercado p ara você re alizar os se us sonhos.

SAC CAIXA 0800 726 0101 (informações, reclamações, sugestões e elogios) 0800 726 2492 (para pessoas com deficiência auditiva) Ouvidoria 0800 725 7474

O banco que acredita nas pessoas


Índice

Editorial

RICARDO STUCKERT/PR

Mídia 12 Bernardo Kucinski: uma santa na política. Ela conseguiria governar? Trabalho 14 A economia solidária gera ocupação e renda para 1,5 milhão de pessoas Cidadania 18 Cursos levam direito e proteção a mulheres vítimas de violência Economia 22 Interesses políticos, econômicos, e o futuro do petróleo do pré-sal Brasil 28 Concentração de assentamentos na Amazônia causa degradação Entrevista 32 Bola da vez de Raí é a inclusão de 800 mil aprendizes no mercado Atitude 36 Voluntários que ajudam pessoas a encontrar novo sentido para a vida Cultura 38 Paz, amor e rock’n’roll. Os dias de Woodstock em pleno interior de SP

Lula: sem vontade política não se pode enfrentar situações que conspiram contra a paz

O parto do futuro

A

JOÃO CORREIA

Turista registra parte do muro que resistiu

Viagem 44 A transformação da vida em Berlim, do fim do muro aos engarrafamentos SEÇÕES Cartas 6 Na Rede Em Transe

8 10

Retrato 31 Curta Essa Dica

48

Crônica 50

Revista do Brasil chega à sua quadragésima edição mensal inteirona, bonita, elegante e cheia de energia. É o que temos notado nas mensagens dos leitores.Alguns cumprimentam a revista e agradecem pela edição. Outros pedem para mudar o endereço de remessa (e ao mesmo tempo atualizam seu cadastro na entidade sindical da qual recebem a publicação). Há ainda comentários de reportagens ou sugestões de matérias. E, claro – não nas mesmas proporções, mas sempre contundentes –, críticas. Todas, enfim, muito bem-vindas como retorno de “audiência”. A RdB chegou a 40 edições assumidamente como um serviço de parte do movimento sindical (eram 23 entidades no início, hoje são mais de 60) para a sociedade. Endereçada a pessoas que não têm acesso a publicações impressas e às que têm acesso, porém se aborrecem com elas. O que nos difere é que ocupamos nosso escasso espaço com outras agendas, que não sãonecessariamente as mesmas de Veja, IstoÉ etc. Por exemplo, aparentemente radical, a campanha “fora, Sarney” em nada educou jovens da militância política. Preferível entender as mazelas do sistema bicameral e lutar pela extinção do Senado. Melhor tratar dos gargalos da reforma agrária, da lentidão do BC em baixar os juros em plena crise, da ausência de Poder Judiciário para as populações pobres e dar voz a quem critica a política de esportes, tocar em temas que ninguém toca. Há uma nova ordem mundial sendo construída e o Brasil ocupa espaço destacado nesseprocesso, que a mídia tradicional e partidária insiste em esconder. Basta revisitar o discurso de Lula, em 23 de setembro, na Assembleia Geral da ONU, diante de 120 atônitos chefes de Estado. Na oportunidade anterior, em 2007, ainda na era Bush, o presidente brasileiro limitou-se a dissertar sobre o protecionismo comercial entre os ricos, apontou os ganhos do etanol para o meio ambiente e pediu uma vaga no Comitê de Segurança da ONU. Desta vez, apoiado em números consistentes de que 32 milhões de pessoas mudaram de classe, do crescimento g­ ra­­du­al­­ do PIB brasileiro e de que a crise mundial representou apenas uma breve recessão no Brasil, Lula cobrou com veemência maior responsabilidade dos países mais ricos. “Não basta remover os escombros do modelo que fracassou, é preciso completar o parto do futuro. É a única forma de reparar tantas injustiças e de prevenir novas tragédias coletivas.” OUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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A Petrobras desenvolveu tecnologia para chegar aonde nenhuma outra empresa chegou: 6 mil metros de profundidade, na camada do pré-sal. Lá, a Petrobras descobriu uma quantidade gigantesca de petróleo. Em alguns anos, a produção no Brasil vai dobrar. É um novo país que vai nascer do fundo do mar. Com mais riquezas, mais desenvolvimento, mais indústrias, mais empregos, mais capacitação profissional

Pré-sal.

e um futuro melhor.

Futuro que vem

E é nesse Brasil

do fundo do mar.

que você vai viver.

www.petrobras.com.br/presal


Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Bernardo Kucinski, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jessica Santos, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Thiago Domenici, João Peres e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Alberto Araújo Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Nominal (11) 3063-5740 Poranduba (61) 3328-8046 Adesão ao projeto (11) 3241-0008 Atendimento: Claudia Aranda Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Admirson Medeiros Ferro Jr., Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Alberto Grana, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Edílson de Paula Oliveira, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sebastião Geraldo Cardozo, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Vinicius de Assumpção Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Luiz Cláudio Marcolino Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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Banda larga Parabéns à equipe por tocar em um assunto tão importante e neglicenciado (“Lenta, falha e cara”, ed. 39). Moro na periferia e, por estar na capital, não tenho opção de escolha. Fui obrigado a cancelar a linha telefônica da GVT, que não estava mais permitindo acesso à internet. Agora, porque só a Oi tem o serviço, tenho de usar uma lan house lenta e que às vezes cai, e cara. Miguel Boeira Vianna, Porto Alegre (RS) mihaelo@bol.com.br Bichos Como leitora assídua da Revista do Brasil, parabenizo a excelência da reportagem sobre os animais abandonados (“Agô, o predestinado”, ed. 39). Terezinha Maria Conceição, Itpec. da Serra (SP) teka_macon@hotmail.com Fiquei feliz pelo espaço cedido pela revista a esse tema, pois acompanho de perto a luta das pessoas que cuidam da proteção de animais por conta própria, sem ajuda, unindo recursos escassos, pelo respeito à vida. Exemplo de amor e cidadania. A reportagem retratou muito bem o trabalho realizado pelos protetores, assim como o problema ocorrido no Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo e a luta de pessoas para mudar essa situação. Ornela Francani D’Amico, São Paulo (SP) ornela.francani@gmail.com Mesmo saco Veja, Época, IstoÉ e Revista do Brasil são todas farinha do mesmo saco quando moldam a informação de acordo com o viés político de suas linhas editoriais, haja vista o editorial da edição de setembro de 2009, “Aos problemas, soluções”. A omissão e a tentativa de simplificar a vergonhosa relação promíscua entre Executivo e Legislativo desacreditam a revista, que poderia ser uma alternativa às publicações de linha conservadora que encontramos nas bancas. José Carlos Vaz Pezeta, São Paulo (SP) pezeta.jc@hotmail.com

Angola Li a reportagem sobre o trabalho dos médicos brasileiros em Angola (“Cooperação em bom português”, ed. 39) e achei muito interessante. Sou enfermeira e tenho muito interesse em trabalhar naquele país. Porém, é difícil achar informações pertinentes quanto ao que fazer para conseguir ir para lá. Roberta Paiva, São Paulo (SP) robi_paiva@hotmail.com Terceirizados Muito oportuna a reportagem “A casta inferior” (ed. 38), sobre empresas terceirizadas. Trabalho para uma empresa do setor de segurança e cada vez mais vejo meus colegas insatisfeitos. A má-fé é tanta que já tive descontados no pagamento aparelhos que ela tem a obrigação de bancar. As pessoas e o sindicato dizem: “Quando sair bota no pau, que você recebe”. Ora, quero trabalhar satisfeito hoje, e não ruminando mágoas que me levarão ao médico. Lamentável. J.S. Gomes Defensoria Sou advogado e professor de História do Direito na Faculdade de Direito da Universidade Candido Mendes. Li, sem muito espanto, a reportagem “Justiça para quem precisa” (ed. 38). Desejo usá-la nas minhas aulas, mostrar aos meus alunos que um bom advogado é também um grande contador de histórias que, muitas vezes, contradiz as histórias e versões oficiais supostamente verdadeiras (incontestáveis). Parabéns pela reportagem. Espero que outras surjam. É raro no Brasil os jornais convencionais e eletrônicos dedicarem espaço a notícias sobre a (in)justiça brasileira. Fábio F. Barbosa, Rio de Janeiro (RJ) felicianobarbosa@hotmail.com revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.



NaRede

www.redebrasilatual.com.br

A governadora Yeda Crusius (PSDB-RS), depois de ser acusada de fazer parte de uma quadrilha instalada no Estado para desviar recursos públicos, enfrenta pedido de impeachment. Pela CPI da Corrupção aberta na Assembleia Legislativa foram divulgadas conversas entre políticos ligados a Yeda. Setembro também marcou a intensificação dos protestos de entidade sindicais e estudantes. O mês poderia ter terminado pior para a governadora, que se livrou a tempo de se queimar ao acender a Chama Crioula, no início da Semana Farroupilha. http://migre.me/7DMt – http://migre.me/7DMF – http://migre.me/7DMQ

Twitter Senado e Câmara aprovaram a reforma eleitoral. A pressa se justifica, pois qualquer modificação válida para 2010 deveria passar pelo Congresso até 3 de outubro. A principal discussão era a liberação ou não da internet durante o processo eleitoral. Senadores queriam proibir, mas acabaram voltando atrás após intensa mobilização. A Rede Brasil Atual fez a cobertura das discussões do dia no Senado em tempo real, pelo Twitter www.twitter.com/redebrasilatual. Esse canal, mais Orkut e Facebook são constantemente atualizados com informações do dia, discussões e notícias especiais. http://migre.me/7DNm

Além do alcance

Pequenos frascos, grandes ameaças

Pesquisadores da área de saúde do trabalhador estão preocupados com os impactos que a nanotecnologia pode gerar sobre a saúde humana e ambiental. O tema deve ser olhado de perto, pois, de todos os recursos investidos em pesquisas, menos de 10% são usados para avaliar seus efeitos nocivos. http://migre.me/7DNx

Teatro quer continuar livre A Escola Livre de Teatro de Santo André (SP) enfrenta ameaça a sua autonomia. Em decisão tomada pela comunidade que adotou a ELT como patrimônio cultural da cidade, e não da prefeitura, as oficinas teatrais foram suspensas desde a demissão do coordenador pedagógico Edgar Castro. Os alunos não concordam com a indicação da atual coordenadora administrativa, Eliana Gonçalves, pela administração do prefeito Aidan Ravin (PTB). Personalidades do meio artístico manifestaram apoio ao grupo, que tem 19 anos e sempre se pautou pela liberdade, inclusive de escolher seus gestores. http://migre.me/7DN8

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Zelaya

EDGARD GARRIDO/REUTERS

Desde o início do golpe em Honduras, em junho, aqui a cobertura é diferenciada, com entrevistas de especialistas em América Central, direito internacional e de cidadãos hondurenhos. A Rede Brasil Atual transmitiu ao vivo a primeira tentativa de retorno do presidente deposto Manuel Zelaya, com imagens geradas pela Telesur. Até o final de setembro, Zelaya tentava organizar seu retorno, depois de exilar-se em seu próprio país, no interior da embaixada brasileira na capital Tegucigalpa. http://migre.me/7DPO

LUCAS DUARTE DE SOUZA

Para o jurista Dalmo Dallari, o momento é adequado para discutir mudanças em instituições como o Senado e o STF. Além de considerar o Senado desnecessário para a democracia, o jurista avalia que a corte máxima do país guarda mal a Constituição. Suas propostas estão detalhadas em entrevista exclusiva à Rede. http://migre.me/7DNW

Honduras

CLARO CORTES/REUTERS

JAILTON GARCIA

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br. Todos os dias e também no Twitter e no Facebook. Por Ricardo Negrão, Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jéssica Santos, João Peres, Suzana Vier e Thiago Domenici

Dallari, o STF e o Senado

Dallari

Ôpa, essa foi perto

ZERO HORA

Yeda e as chamas

A atriz Leona Cavalli e a moçada: pressão no secretário


Possuídos pelo trabalho A cientista social Ana Claudia Moreira Cardoso, secretária de Formação Sindical do Dieese, recebeu o Prêmio Capes de melhor tese na área de Sociologia de 2008 com a discussão apresentada pelo livro Tempos de Trabalho, Tempos de Não Trabalho – Disputas em Torno da Jornada do Trabalhador. A acadêmica mostra como o trabalho e a vida fora dele tornam-se partes que se completam. A proposta era acompanhar como os sujeitos vivenciam as 24 horas de seu dia, dentro ou fora do local de trabalho. A pesquisa de campo foi feita durante um ano e meio com funcionários da Volkswagen, em São Bernardo do Campo. “A ideia era ver como o tempo de trabalho influencia o tempo de não trabalho, porque não existe essa separação”, contou Ana Claudia, em entrevista ao Jornal Brasil Atual. Ela vê a luta pela redução da jornada para 40 horas semanais como uma forma de ampliar uma conquista já alcançada por alguns setores mais organizados. O Dieese tem estudo que mostra a possibilidade de geração de 2 milhões de empregos com a redução da jornada para 40 horas. Segundo a pesquisadora, essa combinação do quanto se trabalha e a forma como se trabalha precisa ser entendida. “Estamos voltando ao período pré-revolução

industrial, quando as pessoas não separavam o tempo de trabalhar do de não trabalhar. Há o grupo dos que levam celular e notebook para casa, os que levam trabalho para fazer em casa e os que ficam pensando em como sugerir melhoras à empresa... tudo isso em seu tempo de não trabalho”, relata. A pesquisa constatou que os funcionários, como lazer, limitam-se à passividade diante da televisão e raramente ao churrasco do domingo. “O esporte só aparece na qualidade de exercício para recuperar algum problema físico causado pelo trabalho”, observa. E quando se aposentam as pessoas estão tão condicionadas que não sabem o que fazer com o tempo livre, porque a vida toda foi dedicada ao trabalho. “As mulheres até reclamam do marido. É insano, deveria ser um momento rico, mas as pessoas já não sabem o que fazer com seu tempo.” A entrevista ao apresentador Osvaldo Colibri Vitta pode ser ouvida na íntegra em http://migre.me/7ERv. O programa é sintonizado de segunda a sexta, das 7h às 8h, nos 98,1 FM (para Grande São Paulo) ou a qualquer momento na internet, em www.redebrasilatual.com.br/radio. O livro de Ana Claudia já está nas livrarias (Editora Annablume, R$ 47).


EmTranse

Por Rodrigo Savazoni (emtranse@revistadobrasil.net)

CONVIVÊNCIA No computador maior, o blog oficial, no menor, seu clone

O clone é do jogo A Presidência da República lançou no mês passado o Blog do Planalto. Na página, o cidadão pode ter acesso a textos, áudios, vídeos, infográficos, entre outros conteúdos multimídia. Também pode acompanhar a agenda do presidente de perto. Se você ainda não acessou, vá lá: http://blog.planalto.gov.br. A experiência é inspirada em Barack Obama, cujo envolvimento com a internet foi fundamental para sua vitória. Todo o conteúdo produzido pela equipe de gabaritados profissionais contratados para a tarefa é regulado pelo Creative Commons, uma licença de direitos autorais flexível, que permite ao leitor copiar, distribuir, fazer uso comercial e alterar o conteúdo original desde que a fonte seja citada. Aliás, a equipe é um dos diferenciais do projeto, formada pelos ciberativistas Daniel Pádua (que saiu logo depois do lançamento por divergências sobre seus rumos) e Daniel “Duende” Carvalho e pelo ex-coordenador de comunicação da ONG Greenpeace Jorge Cordeiro, entre outros, sob o comando do experiente jornalista Nelson Breve, secretário de Imprensa da Presidência da República.

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Depois de lançar Blog do Planalto sem espaço para comentários dos internautas, a Presidência da República vê – sem contestação – a rede reagir e criar clone para poder interagir

Assisti ao anúncio do blog no Festival Internacional de Software Livre, em Porto Alegre, no mês de junho. Na ocasião, Breve e Pádua falaram com ativistas e militantes da comunicação livre e distribuída. Duas questões centrais apareceram. Seria um blog do Lula, com textos em primeira pessoa, ou um blog institucional? A opção foi pelo segundo formato. O cidadão poderia postar comentários? A resposta: não. “Vamos experimentar. Toda a minha defe-

sa, dentro do governo, foi baseada no que a Casa Branca está fazendo, e seu blog não tem comentários”, afirmou Breve. “Pode ser que a gente abra, mas vamos ver se a equipe poderá dar conta, dar respostas na velocidade que a internet demanda.” Assim, o blog entrou no ar sem comentários – e começou a reação da rede. Blog é a contração das palavras em inglês web e log. Lá atrás, por volta de 1997, eram apenas diários virtuais, mas rapidamente se transformaram no principal fenômeno de comunicação do século 21. Aliás, não seria exagero dizer que a mídia do século 21 começa com os blogs. Ou seria? O Technorati, empresa pioneira em estudos sobre a blogosfera, já indexou mais de 133 milhões de blogs, desde 2002. Uma das principais características dessa mídia é a disposição das informações em ordem cronológica, de forma “empilhada”. A outra é permitir conversação, por meio de comentários. Blog sem conversa fica perneta e parecido com as velhas mídias, em que um falava para muitos. Com as novas mídias, muitos falam com muitos. Para compensar a falta de comentários, a equipe do Planalto criou outras formas de


interação, como escolher entre três diferentes home pages, poder mandar críticas e sugestões e, caso o internauta faça em seu blog pessoal citação de um conteúdo do Blog do Planalto, ter sua postagem referenciada na página da Presidência. Mas essas medidas não bastaram para amenizar as críticas.

O clone

Dois dias depois que o Blog do Planalto foi ao ar, a empresa Esfera, de Dani Bezerra da Silva e Pedro Markun, clonou o blog da Presidência da República. No endereço www.planalto.blog.br, republica todos os conteúdos do blog “oficial”, mas permite comentários. A ação virou notícia e fortaleceu os debates sobre a relação entre internet e política. No primeiro dia, muita gente ficou em dúvida. Ninguém sabia qual era o verda-

deiro. O blog clone reuniu mais de 1.600 comentários nas primeiras horas de vida. Uma demonstração da demanda reprimida por voz ativa. “O momento mais sensacional de toda essa história não foi quando a mídia tradicional começou a nos procurar nem quando passaram a retwittar loucamente”, conta Markun. “O ponto de virada foi quando o Planalto se manifestou e disse que estávamos dentro do regulamento, portanto dentro do jogo.” Em nota, a Presidência da República informou que não faria nada contra o clone por considerar a internet um território livre e a cópia dos textos dentro das regras estabelecidas (a licença Creative Commons). Parte da blogosfera viu no clone uma tentativa de enfraquecer o original. A principal crítica de alguns desses blogs, cuja missão é fiscalizar o que chamam de PIG (Partido da Imprensa Golpista), baseava-se no fato de ter sido realizado por Pedro Markun, filho do atual presidente da Fundação Padre Anchieta, Paulo Markun. Isso demonstraria que a ação desobediente era uma encomenda. O que se viu foi um fla-flu entre lulistas e antilulistas. Markun, o filho, é um ativista da comunicação livre, considerado por seus pares um dos grandes talentos de sua geração. O clone, uma ação de evidente caráter político, não pode ser visto – menos ainda interpretado – com os óculos do partidarismo. Não foi uma encomenda. Juliano Spyer, autor do livro Conectado,

que trabalhou na assessoria da campanha do prefeito Gilberto Kassab, postou em sua página, Não Zero, um texto comparando o Blog do Planalto e o twitter do governador José Serra: “O Blog do Planalto é a regra, é o que se espera do blog de uma grande organização, sujeita a ataques e administrada tendo como referência o paradigma do controle da informação”, escreveu. “O que não tem recebido a devida importância é um governador cara a cara com sua audiência, twittando com a desenvoltura de um nerd.” Serra tem mais de 90 mil seguidores. Comenta futebol, cinema, e seu governo. Dialoga com usuários diretamente, mas as críticas passam em branco.

A comunicação da Presidência

O Blog do Planalto é o capítulo recente de uma novela que teve início em 2003. De lá para cá, diversos profissionais procuraram consolidar um modelo mais dialógico de comunicação na Presidência da República. O início do trabalho foi coordenado pelo jornalista Ricardo Kotscho e pelo cientista político Fabio Kerche, hoje no BNDES. Kotscho derrubou divisórias do segundo andar do prédio e transformou a assessoria do Planalto em uma redação. Além da mudança física, lançou uma página dedicada à relação com a imprensa. Essa interface frágil e com funcionalidades elementares permanece no ar, www.info.planalto.gov.br. Também a partir de 2003 a TV NBr especializou-se em acompanhar os atos oficiais do presidente. Ganhou o apelido de TV Marisa, pois o presidente poderia ser monitorado quase 24 horas quando estivesse longe de casa. Nesse mesmo ano, Lula passou a ter um programa de rádio quinzenal, o Café com o Presidente, veiculado em rede aberta de rádios às segundas-feiras pela manhã. Por meio dele, o presidente pode acessar diretamente a sociedade, inclusive em momentos delicados, como na crise de 2005. Na reta final do primeiro mandato, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) foi coordenada, sem grandes mudanças de rota, pelo jornalista e cientista político André Singer. No segundo, iniciado em 2007, o jornalista Franklin Martins assumiu o cargo, com status de ministro. Aprofundou algumas ações, trabalhou pela criação da TV Brasil e agora lança o Blog do Planalto. O tempo dirá se a iniciativa rolará para a vala do fracasso ou flutuará para a glória.


MÍDIA

Sua santidade a candidata

MARCELLO CASAL JR./ABR

Surge a pré-candidata à Presidência da República capaz de encantar os mais céticos e desiludidos com a política Por Bernardo Kucinski

SENSO DE OPORTUNIDADE Marina Silva: de volta à tribuna do Senado

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ais de uma vez, em meio às brigas entre ambientalistas e desenvolvimentistas do governo, Lula quis demitir Marina Silva. Mas, quando ela chegava de mansinho, inclinando-se humilde de mãos juntinhas, o presidente desistia. No fim, ela é que pediu demissão. E agora surge para os eleitores, saudada pela mídia como a única pura num mundo político prostituído. Uma história de vida parecida com a de Lula que poderia se projetar no governo e no imaginário popular como uma extensão da experiência do operário pobre na Presidência. Marina logo recebeu o apoio de ativistas católicos e da Comissão Pastoral da Terra, apesar de evangélica. Uma pré-candidata ecumênica, capaz de unir apoios de duas instituições que hoje disputam almas e dízimos dos brasileiros. Mas é possível um santo na política? E, se é possível, teria alguma chance de vitória? E, se vencer, alguma chance de governar sem perder a pureza? Analistas argutos observaram que Marina Silva

demonstrou grande senso de oportunidade ao sair do PT no mesmo dia em que o partido ajudou o PMDB a enterrar as ações contra Sarney. Capitalizou assim meses e meses de desgaste ético do PT, dando a seu gesto uma dimensão que transcendia a esfera individual. E o PV, para avaliar a primeira aparição de Marina em seu programa político, aderiu aos mais modernos instrumentos de marketing político. Contratou pesquisas qualitativas em que as pessoas giram um dial num sentido se gostam do que estão vendo ou no outro, se não gostam. A maioria gostou muito da fala de Marina, mas quando apareceu o presidente do partido, Zeca Sarney, girou ao contrário. O mesmo quando apareceu Gabeira. Ou seja, antes mesmo de ser candidata, entrou no esquema tradicional dos políticos profissionais, que auscultam o que o eleitor pensa para depois dizer na campanha exatamente o que ele quer ouvir. A consequência do marketing político é a mesmice na política: todos dizem as mesmas coisas e fazem as mesmas promessas, porque o povo é um só. Depois, as promessas não precisam ser cumpridas, porque não foram feitas para governar, e sim para disputar votos. Barack Obama, que nem é tão santo, já é torpedeado apenas por querer cumprir sua principal proposta eleitoral, de universalizar o atendimento à saúde nos Estados Unidos. A pior consequência desses métodos é que eles custam caro, forçando o candidato a pedir, e aceitar, dinheiro por todo lado. O uso de caixa dois de empresas para fi-


nanciar campanhas está estreitamente liga- “reserva extrativa sustentada” e “socioamdo aos mecanismos do marketing político bientalismo” surgiu a partir do lançamento numa democracia de massa de um país de em Rio Branco, em 1977, do jornal altergrande extensão territorial como o nosso. nativo Varadouro, dirigido pelo jornalista Isso acontece em todo lugar – Alemanha, Silvio Martinelli e apoiado financeiramenInglaterra, Argentina, Israel, para citar paí- te pelo bispo de Rio Branco, dom Moacyr, ses em que alguma coisa deu errado e virou e por alguns ex-ativistas da Aliança Libercaso de polícia. No Brasil, todos os grandes tadora Nacional. O jornal diagnosticou o e médios partidos fazem isso, embora a mí- declínio da antiga burguesia mercantil de dia atire apenas no PT. beira-rio, baseada na economia da borraMarina só gozará da simpatia da mídia cha, e sua não substituição por uma nova enquanto solapar a candidatura Dilma e a burguesia industrial (o que ocorreria no estratégia de Lula de uma campanha ple- Amazonas com a criação da Zona Franca). biscitária. Se sua ida ao seSurgiram os pecuaristas do gundo turno se tornar uma A consequência Sul e, para resistir a eles, os possibilidade, será maltra- do marketing seguidores de Chico Mendes tada impiedosamente pela político é a organizaram o povo pobre, mesma mídia que hoje a in- mesmice na índios, seringalistas e poscensa. E Marina já disse ao seiros – os “povos da florespolítica: todos jornal espanhol El País que ta”. Assim nasceu essa lidesó vai concorrer se for para os candidatos rança política nova, popular, acabam chegar ao segundo turno. ligada à Teologia da LibertaOutra dificuldade será dizendo as ção e ao PT. a adaptação de seu discur- mesmas coisas Tudo isso é história. O seso ambientalista para uma e fazendo ringal em que Marina nascampanha de massa num ceu já não extrai borracha as mesmas país de carências em massa. há dez anos. Reserva exAté sua saída do governo, promessas, trativa natural reduziu-se Marina representava uma porque o povo a um detalhe regional ante força de compensação in- é um só os problemas ambientais de terna, que tinha como fundimensão global. O aquecição impor padrões ambientais a um pro- mento da nossa atmosfera virou todos os jeto de desenvolvimento, em grande parte problemas do avesso, até o “perigo do desconvencional, voltado ao atendimento de matamento da Amazônia”. Hoje é o aquenecessidades elementares que outros países cimento global que põe a Amazônia em europeus e da OCDE já superaram há dé- perigo, e não a Amazônia que põe o muncadas, como moradia, água encanada, saú- do em perigo. de, educação. O grande mérito de Marina foi trazer Numa campanha à Presidência ela terá para o primeiro plano um debate que já de assumir essa responsabilidade, que é o não pertence apenas ao PV ou aos amque o povo precisa e quer. Pode enfeitar bientalistas, e sim a toda a sociedade. Mas tudo com a proteção a espécies ameaçadas, Marina ainda terá de demonstrar como mas o principal vão ser as casas, as rodovias, tirar 40 milhões de brasileiros do subemas hidrelétricas. Marina já mudou o discur- prego, da submoradia e da exposição à so sobre a preservação da Amazônia. Ao criminalidade com um tipo de desenvolEl País, afirmou que a Amazônia não pode vimento diferente do de Lula. Desenvolvirar um santuário. Tem de se desenvolver. vimento sustentado é garantir todas as Dizem, inclusive, que ela corria o risco de necessidades básicas das populações prenão conseguir se reeleger em seu próprio sentes sem pôr em risco o atendimento território político, o Acre, por essa obsti- dessas necessidades para as gerações funação ambientalista. E que esse teria sido turas. Isto é desenvolvimento sustentado: um dos motivos de sua opção pela disputa começa em prover as necessidades básià Presidência. cas de moradia, bem-estar e segurança alimentar, sem exaurir os recursos da naSustentabilidade tureza. Não é sacrificar uma hidrelétrica O grupo em torno de Chico Mendes e de por causa de uma espécie de perereca em Jorge Viana e seus conceitos inovadores de extinção.


TRABALHO

O poder da economia solidária

Empreendimentos coletivos autogestionários ainda penam para conseguir crédito e vender sua produção. Mas já dão lições de desenvolvimento sustentável e geram trabalho e renda para 1,5 milhão de brasileiros Por Solange do Espírito Santo

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– formais e informais –, que movimentam R$ 8 bilhões ao ano e mantêm ocupadas 1,5 milhão de pessoas, segundo a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) do Ministério do Trabalho. De acordo com a Senaes, embora as cooperativas sejam as organizações mais conhecidas, há apenas cerca de mil estruturadas no país. A maioria dos empreendimentos ainda atua na informalidade, mas já embasada de fato nos princípios da economia solidária e criada para garantir a inclusão social a partir da vocação econômica local – como no caso das comunidades formadas por indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos – ou de

LIBERDADE Para Vicente, de Picos (PI), a autogestão permitiu driblar os atravessadores

PAULO PEPE

E

lione é artesã. Antonio é jornalista. Izabel, costureira. Ariane, socióloga. Vicente, produtor rural. Eles atuam em regiões distintas e têm em comum a opção pelo cooperativismo como alternativa de gestão e de geração de trabalho e renda. O conceito de economia solidária engloba vários tipos de organização, como associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, que realizam de atividades industriais a rurais, de produção de bens a prestação de serviços, finanças solidárias e comércio justo. O Brasil tem 22 mil empreendimentos


Fontes solidárias Senaes A Secretaria Nacional de Economia Solidária faz o mapeamento das organizações e elabora políticas e ações interministeriais para o setor. O site do Ministério do Trabalho tem orientações e endereços das Superintendências Regionais do Trabalho (SRTs, antigas DRTs) em todo o país, que fazem a ponte entre as organizações e o poder público. www.mte.gov.br Fundação Banco do Brasil Desenvolve ações voltadas para educação, capacitação, identificação e ligação de cadeias produtivas, obtenção de crédito e integração de tecnologias sociais. www.fbb.org.br Fórum Brasileiro de Economia Solidária Reúne movimentos sociais e tem histórico de articulação no empreendedorismo solidário. www.fbes.org.br

ROBERTO PARIZOTTI

ADS A Agência de Desenvolvimento Solidário/ CUT articula movimentos autogestionários e atua para seu fortalecimento num processo de desenvolvimento sustentável e solidário. www.ads.org.br

empresas recuperadas pelos trabalhadores. “Você sabe quantas quebradeiras de coco existem no Brasil?”, indaga o professor Paul Singer, secretário Nacional de Economia Solidária. “Quatrocentas mil!” As organizações autogestionárias ainda enfrentam dificuldades em duas pontas do processo: na obtenção de crédito para incrementar a produção e na comercialização de seus produtos. As exigências dos bancos são o principal impeditivo para o crédito. “O sistema bancário não foi feito para pobre”, diz Singer. E a inexperiência em comércio e gestão dificulta o escoamento da produção. Apesar disso, as cooperati-

vas mudam vidas, resgatam culturas e dão dinâmica diferente à economia das regiões onde estão instaladas. A pouco mais de 200 quilômetros de Salvador, um grupo de 122 mulheres de Valente, Araci e São Domingos – cidades castigadas pela seca – ganhou nova perspectiva ao resgatar a cultura do artesanato com fibras de sisal e caroá, plantas típicas da região. Elas organizaram, em 2001, a Cooperativa Fibras do Sertão (Cooperafis), numa

região onde as mulheres são as mais prejudicadas pela falta de trabalho. Com a produção de bolsas, chapéus, colares, tapetes e cestos as cooperadas mudaram seu destino. “Ganhamos autonomia financeira e sabemos que estamos no caminho certo”, destaca a presidente, Elione Alves de Souza. A retirada média mensal é de R$ 250. A maior parte do artesanato é vendida no Sul e Sudeste. “Nosso desafio é conquistar mais mercados.” Essa é também a meta da Coopergema, em Quaraí (RS), vizinha a Artigas, no Uruguai, maior exportadora mundial de pedra bruta de ametista. A Coopergema tem 36 associados. Depois de passar por curso de lapidação e joalheria no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), eles se uniram para fabricar joias a partir de pedras como ametista, cornalina e quartzo montadas em folhados de ouro e prata. Segundo Rogério Dalle, assessor da cooperativa, a produção é vendida na Grande Porto Alegre e no sul de Santa Catarina.

Unindo potenciais

O estado do Piauí tem a segunda maior produção de castanha-de-caju no país, boa parte vinda de agricultura familiar. Vicente Rufino Cortez passou a cultivar caju quando se aposentou. Aos 61 anos, ele está entre as 480 famílias de nove municípios na região de Picos organizadas em torno de minifábricas de castanhas, uma em cada cidade e todas ligadas à Central de Cooperativas de Cajucultores do Piauí (Cocajupi­), que cuida da classificação, embalagem e comercialização. As castanhas são vendidas para dez estados e a Cocajupi, com sede em Picos, já prospecta o mercado externo.

JOIA Coopergema: 36 associados e vendas para a Região Sul

DIVULGAÇÃO

COMPETÊNCIA Arildo, da Uniforja: “O mercado não acredita que o trabalhador consiga administrar”

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Esse pool de empreendimentos gera trabalho para 230 pessoas quando opera com sua capacidade máxima e já tem conquistas a comemorar. “Não há mais atravessadores e temos garantias de que nossa produção será vendida”, diz o cajucultor. “O comércio local também melhorou, porque há mais pessoas ocupadas e dinheiro circulando”, ensina seu Vicente, ligado à minifábrica do município de Ipiranga e diretor comercial da Cocajupi. O “inverno” prolongado e as chuvas atrasaram a safra de caju deste ano. De acordo com o gerente de produção da Central, Luiz Eduardo Rodrigues, apenas três minifábricas estão em operação. As demais aguardam matéria-prima nas próximas semanas. Luiz Eduardo herdou do pai o ofício de cajucultor no município de Francisco Santos e estuda Agronomia. Ele vê grande potencial de expansão da Cocajupi, mas admite: “Os empreendimentos ainda precisam do apoio de organismos como a Fundação Banco do Brasil”. Também foi a convicção no cooperativismo que uniu há uma década profissionais de nível superior de várias áreas – agronomia, sociologia, economia, biologia, geologia, comunicação social, direito, administração e pedagogia – na Plural Cooperativa de Consultoria, Pesquisa e Serviços. Com sede em São Paulo, a Plural atua em todo o país, especialmente em projetos de desenvolvimento sustentável focados na agricultura familiar, a partir de convênios com instituições públicas. “Os profissionais executavam trabalhos individuais e caminhavam para a prestação de serviços como pessoas jurídicas. A cooperativa uniu experiências e conciliou trabalho e capital de forma autogestionária”, afirma a advogada Ana Maria de Andrade.

Mercado de preconceito

Segundo o coordenador de Comércio Justo e Crédito da Senaes, Antonio Haroldo Pinheiro Mendonça, um dos grandes gargalos dos empreendimentos solidários é a baixa escolaridade. “Dificulta a administração e coloca os trabalhadores em posição subalterna na comercialização de seus produtos”, explica. Além disso, há desconfiança e preconceito no mercado. A socióloga Ariane Favareto diz que os projetos coletivos representam a maioria dos trabalhos prestados pela Plural, mas assinala que o fato de estar estruturada como

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Central Para dar visibilidade aos empreendimentos solidários e viabilizar rodadas de negócios, a ADS inaugura a Conexão Solidária – 1ª Mostra Nacional de Comercialização dos Produtos e Serviços da Economia Solidária. O evento ocorrerá de 28 a 31 de outubro, no Centro de Exposições Imigrantes, em São Paulo. O objetivo é reunir mais de 300 organizações de todo o país. “Queremos que empresas e empreendedores solidários façam negócios. O evento é a porta de entrada para juntar as pontas do processo”, ressalta Ari Aloraldo do Nascimento, coordenador geral da ADS. Além da mostra de produtos, a Conexão Solidária promoverá debates e conferências com governos, empresários, instituições bancárias e organizações civis. “Queremos despertar a atenção do mercado para produtos oriundos do trabalho decente e da preocupação com o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável”, afirma Ari. Uma central permanente de comercialização de produtos deverá ser inaugurada pela ADS em breve, também em São Paulo.

cooperativa “espantou” oportunidades de trabalho. A desconfiança é maior quando cooperativas são formadas a partir de empresas que faliram e foram assumidas por trabalhadores. É o que a Cooperativa de Jornalistas e Gráficos de Alagoas vem experimentando desde que trabalhadores das duas categorias assumiram, há pouco mais de dois anos, as instalações da antiga Tribuna de Alagoas­, em Maceió, depois que a empresa fechou as portas devendo R$ 5 milhões em salários e direitos a mais de cem funcionários. “Ficamos acampados quatro meses em frente ao jornal. Um dia percebemos que não havia mais nenhum diretor lá. Entramos e colocamos o jornal em circulação”, recorda o jornalista Antonio Pereira Filho, presidente da cooperativa, que tem 63 membros. Durante algum tempo, o jornal teve circulação semanal. Em agosto de 2007 passou a diá­rio, rebatizado Tribuna Independente, hoje tem 32 páginas e é o segundo maior no estado. “Sentimos na pele a desconfiança de anunciantes e fornecedores, vítimas de calote dos antigos proprietários. A principal matéria-prima, o papel, temos

de comprar à vista”, relata Pereira Filho. Quando assumiram a antiga Conforja, metalúrgica de Diadema (SP), os trabalhadores também vivenciaram preconceito de clientes e fornecedores. Os metalúrgicos haviam experimentado, em 1996, o modelo de cogestão, mas não deu certo. No ano seguinte, arrendaram o parque fabril e fundaram a primeira cooperativa. A empresa estava em concordata e, com a produção retomada, outras três cooperativas foram criadas. Em 2002, quando adquiriram a fábrica em leilão – com financiamento do BNDES –, uniram as quatro na nova Uniforja. “Foi um processo desgastante”, recorda Arildo Mota Lopes, diretor e um dos sócios-cooperados. “O mercado não acredita que o trabalhador consiga administrar.” Hoje a Uniforja está consolidada, produz anéis, flanges, conexões tubulares e outros itens. É fornecedora da Petrobras e do setor sucroalcooleiro. De seus 510 trabalhadores, 335 são cooperados. Em 2008, faturou R$ 244 milhões. Cada cooperado recebe de acordo com a função exercida e a retirada obedece a um sistema chamado de um por oito. “Se a me-


RESISTÊNCIA Izabel, da Mãos Amigas: retirada de R$ 500

nor retirada for de R$ 2.000, a maior não passa de R$ 16.000”, explica Arildo. O lucro tem destino certo: 15% são distribuídos entre os sócios; 23% são reservados para a aposentadoria; 40% para investimento; 7% para ajudar outras cooperativas; e o restante custeia cursos de graduação e pósgradu­ação. Funcionários podem se tornar

DIVULGAÇÃO

ARTESANATO Fibras do Sertão: com autonomia financeira, desafio é conquistar mais mercados

ANDRÉA GRAIZ

Superar dificuldades

cooperados depois de três anos passando por assembleias e cursos sobre cooperativismo, gestão, código civil, contabilidade. Lopes lembra que a valorização do ser humano é princípio do cooperativismo e a solidariedade rege as relações na fábrica. “Mas da porta para fora é a competitividade do mercado que conta.”

A manutenção de empreendimentos também é dificultada quando uma parcela dos participantes os vê como iniciativa passageira, enquanto segue em busca de emprego formal. A Cooperativa Mãos Amigas, de Porto Alegre, passa por um período desses. Teve 20 cooperadas unidas em 2002 na confecção de uniformes, camisetas e jalecos, e hoje só quatro. “As demais arrumaram emprego e saíram”, afirma Izabel Algares, presidente da cooperativa, dizendo que a média mensal de retirada atual é de R$ 500. “Ainda predomina a lógica de preferir ser empregado a empreendedor”, avalia Gilmar Carneiro dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, um dos fundadores do Sistema Nacional de Cooperativas de Economia e Crédito Solidário (Ecosol) e coordenador de Crédito da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS) da Central Única dos Trabalhadores. “O capitalismo continua impregnado. O trabalhador ainda quer carteira assinada”, completa Antonio Carlos Spis, coordenador administrativo e financeiro da ADS. A inexperiência em gestão de negócios também é ponto sensível para a manutenção dos empreendimentos. “As escolas não ensinam as pessoas a ser empreendedoras”, destaca Gilmar. Por isso, desde que foi criada, há dez anos, a ADS dá apoio técnico e político a cooperativas. “Era uma dívida da CUT com essa parcela dos trabalhadores”, destaca Spis. A partir da ADS foram fundadas a Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Unisol), que tem 453 empreendimentos filiados em 23 estados, e a Ecosol, que representa cooperativas de crédito na área rural. Além de parcerias com o governo federal, ambas contam com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Fundação Banco do Brasil, Pe­tro­bras­, Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (Unitrabalho) e Dieese. Juntas, ADS, Unisol e Ecosol conseguiram no BNDES linhas de financiamento de R$ 200 milhões para empreendimentos solidários, segundo Arildo, da Uniforja e presidente da Unisol. www.redebrasilatual.com.br Leia no site entrevista exclusiva com Paul Singer, secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho

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CIDADANIA

Educação contra a violência

A

o longo de um ano, nas manhãs de sábado, Lúcia de Souza, 35 anos, dois filhos, tomava a condução no centro de Manacapuru, onde mora, próximo do rio Solimões. Viajava por hora e meia à beira dos igarapés até chegar ao porto do Cacau, já nas margens do Negro. Dali saem as balsas que cruzam o rio e vão atracar no porto de São Raimundo, em Manaus. Durante esses meses Lúcia fez parte do primeiro grupo de formação de Promotoras Legais Populares, as PLPs, com 40 mulheres de Manaus e das regiões ribeirinhas. Um segundo curso terminou em agosto e quase não há vagas para o próximo. No primeiro, realizado na Faculdade de Pedagogia Tahirih, enquanto as mães tinham aulas sobre direitos humanos e organização do Estado, com professores e especialistas do Direito, seus filhos eram iniciados no bê-á-bá de pequenos cuidados ecológicos e em aprendizados sobre a região amazônica. A 80 quilômetros de Manaus, Manacapuru é visitada por seus prédios históricos dos tempos da borracha, pelas praias do Solimões e pelas festas de ciranda. Conhecida como Princesinha do Solimões, tem 90 mil habitantes e mais de 500 prostitutas cadas18

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tradas num projeto que leva o mesmo nome e trabalha com prevenção às DSTs/Aids. Lúcia era sua coordenadora quando foi convidada a participar do curso de Promotoras Populares. “As meninas de programa formam o grupo mais vulnerável”, diz ela. “Muitas relatam a violência sofrida dos clientes. Quando voltam para casa em dia de movimento fraco, aí apanham do companheiro.” O número de “meninas de programa” é maior do que as 500 cadastradas, porque muitas trabalham às escondidas ou chegam nos fins de semana dos vilarejos ribeirinhos onde moram, segundo Lúcia. “Descobri a violência convivendo com essas meninas, porque todo dia a gente estava com elas, choravam para desabafar”, relata. “No curso aprendi sobre o direito de todos nós, seja prostituta ou dona de casa. Antes as mulheres iam na delegacia e ninguém dava atenção; agora já não é assim, a gente sabe os direitos que tem. Mas a maioria ainda prefere ficar quieta. Se vai denunciar na delegacia, apanha quando volta para casa. Elas têm mais medo por causa dos filhos, porque não têm para onde ir.” Lúcia acha que o cenário vem mudando com a Lei Maria da Penha, que completou três anos. “Os delegados sabem da lei,

ALBERTO ARAÚJO

A formação de Promotoras Legais Populares fortalece as mulheres na batalha pela aplicação da Lei Maria da Penha. Informadas e destemidas, elas conseguem impor respeito a autoridades que não levam denúncias a sério Por Aureliano Biancarelli

as mulheres sabem que se denunciarem o marido ele pode ir preso. Nas ruas, quando se ouve uma discussão de marido e mulher, alguém sempre diz: ‘Olha a Lei Maria da Penha...’ Mas as pessoas preferem não se envolver.” Quando alguma mulher vítima de agressão a procura, ela informa a quem deve recorrer, sobre o processo, as testemunhas, o boletim na delegacia. “Aprendi tudo isso no curso, mas a gente fica meio de fora, porque aí o marido e a mulher fazem as pazes e fica ruim para quem denunciou.”

Sem dentes

O curso de PLPs de Manaus começou em 2006, depois de contatos com a União


de Mulheres de São Paulo, que formara sua primeira turma ainda em 1994. Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, presidente da União de Mulheres e coordenadora do curso em São Paulo, fez a ponte que depois se abriu em parcerias com o curso de Direito da Universidade Federal do Amazonas, o Judiciário local e algumas secretarias de Estado do Amazonas, como a de Justiça e Direitos Humanos e a de Assistência Social. Hoje é coordenado em Manaus pelo Instituto Pro Hominus, uma ONG que já trabalhava com o tema na universidade. Alichelly Carina Macedo Ventura, 23 anos, bacharel em Direito, preside a entidade.

Silvia perdeu a irmã A professora de História Silvia Regina Fracasso, 41 anos, participou da turma de 2007 das PLPs de São Paulo. Alguns meses depois do início do curso, sua irmã foi assassinada pelo marido, que não concordava com a separação. Silvia tem certeza que, se tivesse feito o curso um ano antes, teria conseguido salvar a irmã – que morava com os dois filhos e o marido, tratorista, em Guaíra, no interior do estado. “O delegado não registrou as denúncias que ela fazia nem determinou as medidas protetivas, como exige a Lei Maria da Penha. Só agora sei disso”, conta Silvia. A filha menor do casal hoje vive com Silvia, que passou a incluir em suas aulas debates sobre as relações de poder entre homens e mulheres. “Os alunos e muitas mães me procuram nos corredores, querem saber qual a razão de tanta violência. Outros relatam brigas em casa e falam do medo que sentem.”

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MAURICIO MORAIS

IGUALDADE Lúcia: “No curso aprendi sobre o direito de todos nós. Antes as mulheres iam na delegacia e ninguém dava atenção”

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“Aqui sobra violência e faltam informa- tanto apanhar do marido”, relata Alichelly. ção e serviços. As ribeirinhas, isoladas, “Depois, mesmo com sete filhos, consenão têm a quem recorrer”, conta Alichelly. guiu pôr o marido alcoólatra para fora de “Com o curso, elas podem se defender e casa, voltou a estudar, e hoje está engajada se tornar disseminadoras dos nos movimentos sociais. Ela seus direitos.” diz que reconquistou a autoDe acordo com a Secretaestima.” ria de Segurança Pública, só casos de Agora a intenção é capacitar em 2008 foram 13 mil casos violência mulheres de diferentes regiões de violência doméstica regis- doméstica para que possam organizar trados na única Delegacia Es- foram cursos em sua cidade. Muitos pecializada da Mulher em Ma- registrados dos professores viajarão para naus. “O número é bem maior, essas regiões aos sábados, faem 2008 porque há muita dificuldade cilitando a participação de na aplicação da lei, por falta na única mulheres de diversas localidade informação da comunida- Delegacia des. Em Manacapuru, Lúcia já de e pelo medo das mulheres. Especializada está iniciando os contatos. Ela A Vara Maria da Penha está da Mulher voltou a estudar e cursa Gesabarrotada. Em abril, quando em Manaus tão Ambiental. “Além de aceslevantamos os dados, havia auso à Justiça, as mulheres estão diência marcada para dezembro. Na maio- sendo informadas e educadas, mudando a ria das cidades, não há nem delegacia, mui- própria vida”, diz Alichelly. to menos vara especializada.” Outra realidade pouco conhecida, mas Quase todas as mulheres participantes muito presente na região, é o tráfico de mudo curso conhecem casos de violência, den- lheres. São comuns relatos de meninas detro e fora de casa. “Na primeira turma, uma saparecidas, porque as saídas não são condelas não tinha quase dentes na boca, de troladas, os espaços são enormes e há muita

13 mil

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pobreza. “Como não há dados sobre esse tráfico, não há como convencer as autoridades de que esse é um problema extremamente sério na região”, lamenta.

Só a lei não basta

O braço das Promotoras Legais Populares que se estende pelos igarapés do Solimões e do rio Negro, e por dezenas de cidades brasileiras, tem sua origem no Grupo Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre, que iniciou em 1992 um projeto inspirado em ações semelhantes de paí­ ses da América Latina. Cursos populares de acesso ao Direito, inclusive com a participação de homens, já existem em países da Ásia e da África. São conhecidos como orientadores jurídicos paralegais. Em todos os países, especialmente no Brasil, constata-se que, mesmo quando há uma legislação bem estabelecida e democrática, o desconhecimento da população leva ao não cumprimento das leis. Dessa forma, embora a violência seja o pano de fundo dos cursos de PLPs, elas recebem uma extensa formação em direito das minorias, idosos, deficientes, diversi-

ALBERTO ARAÚJO

EDUCANDO PARA A VIDA Alichelly: “As ribeirinhas, isoladas, não têm a quem recorrer”


dade sexual. E discutem temas como violência urbana, questões agrárias, direito do consumidor e, o principal deles, o direito à saúde. O curso coordenado pela União de Mulheres de São Paulo já formou 15 turmas e foi realizado em 20 cidades paulistas. Fora do estado, o mais distante vem sendo feito em Manaus, voltado para as mulheres ribeirinhas. Outra instituição, o Geledés, Instituto da Mulher Negra, está iniciando sua nona turma em São Paulo. Além do trabalho em bairros, escolas ou fábricas, conseguiu um espaço no Hospital Municipal de São Mateus, zona leste de São Paulo, onde funcionárias que fizeram o curso ficam de plantão para atender mulheres vítimas de violência. “Os médicos plantonistas chamam de

poliqueixosas essas pacientes que reclamam de dores em todos os lugares e voltam sempre com as mesmas dores”, diz a advogada Sonia Nascimento, do Instituto Geledés e coordenadora de formação das PLPs. “Se os médicos ouvissem essas mulheres, descobririam que a maioria é vítima da violência doméstica, muitas vezes psicológica, que não deixa marcas.” A promotora de Justiça Eliana Faleiros Vendramini é coordenadora do programa de PLPs dentro do Ministério Público e uma de suas professoras. “As Promotoras Populares estão preparadas para questões mais amplas que as da violência contra a mulher, assumem a defesa dos direitos dos cidadãos de forma surpreendente, falam na cara da autoridade, porque, ao mesmo tempo em que não são reconhecidas nem pa-

gas, a força da ideologia é tão grande que elas não têm medo de nada. O delegado pode fazer o que fizer, que elas não saem dali.” Segundo Eliana, as Promotoras Legais Populares estão provocando mudanças nas delegacias de polícia e no Judiciário. Os cursos em São Paulo e nas diversas cidades do país são sempre realizados em parceria com alguma ONG feminista, o Ministério Público, as associações de magistrados, as secretarias de Justiça, Direitos Humanos, Assistência Social e professores de universidades locais.

Saiba mais

www.uniaodemulheres.org.br www.themis.org.br www.geledes.org.br www.promotoraslegaispopulares.org.br

Reflexão reduz reincidência Previstos na Lei Maria da Penha, os grupos de reflexão para homens que agridem a própria mulher apresentam resultados surpreendentes, mas ainda são poucos e encontram resistência na sociedade e no Judiciário. Menos de 5% dos homens que deles participam, por determinação da Justiça, voltam a agredir a companheira. Em São Gonçalo (RJ), o Juizado Especial Criminal da Violência Doméstica registra reincidência de 2%. Lá, há dez anos, o juiz Marcelo Anátocles propõe a participação em grupos reflexivos como alternativa para a suspensão temporária do processo ou mesmo como cumprimento da pena. Em Nova Iguaçu, também no Rio, um projetopiloto de grupos que já soma 474 homens apresenta taxa de 5% de reincidência. Em São Caetano do Sul, no ABC paulista, em grupos realizados ao longo de dois anos e meio, um único participante voltou a agredir a companheira. Pesquisa feita na Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de São Luís, no Maranhão, onde não há grupos

para homens, revelou que 75% dos agressores são reincidentes. Em Belo Horizonte, o Projeto Andros, do Instituto Albam, que também tem grupos reflexivos para homens, ainda não tem estatísticas sobre reincidência. “Não sou tão otimista, porque o impacto do grupo é muito variado para cada homem”, diz a psicóloga Claudia Natividade, que desde 2005 coordena o trabalho. “A proposta que estamos levando, que é a mudança das relações de poder, não é simples e precisará ser galgada por muitas gerações.” O número de delegacias de polícia para mulheres, embora tenha dobrado nos últimos anos, não chega a 450. Os serviços para homens agressores são em número menor ainda e sua criação e manutenção sofrem com a resistência da sociedade e das entidades do Judiciário. Pesquisas feitas com a população em geral, com participação de institutos como Ibope, Avon e Patrícia Galvão, mostram que mais de 50% das pessoas acham que a prisão é a sanção mais indicada para agressores.

SAMAN PAHLEVAN

Grupo de reflexão em Belo Horizonte: menos de 5% de reincidência

“A prisão nunca foi uma solução para a violência doméstica e as mulheres sempre souberam disso”, diz Karla Bugarib, promotora de Justiça criminal de São Caetano. “O grande avanço da Lei Maria da Penha foi reconhecer que a violência doméstica não é como briga de bar, por isso demanda atenção e tratamento multidisciplinar, tanto para o agressor quanto para a vítima.” O filósofo Sergio Barbosa, especialista no tema, afirma que ainda há resistência. Segundo ele, a titular do recém-criado Juizado Especial da capital paulista ainda encaminha homens agressores para grupos alternativos, como alcoólatras anônimos, instituições religiosas e outros de autoajuda, de acordo com o perfil do agressor: “Ela não vê a Maria da Penha como uma lei de isonomia dos direitos humanos”. Para Barbosa, a intenção é mostrar que o homem aprende uma nova perspectiva de gênero. Ele acredita que quando os juízes começarem a adotar a Lei Maria da Penha não haverá grupos suficientes para receber os agressores, a menos que os governos se mobilizem. Como solução de urgência, propõe uma triagem para analisar cada processo e casos em que as mulheres correm maior risco. “Não podemos seguir a fila sob o risco de as agressões continuarem. Agindo assim, estaremos fazendo da participação no grupo também uma medida protetiva para a mulher.” O cabeleireiro Edvaldo César Alves tem 42 anos, dois filhos do primeiro casamento e três do atual. No ano passado, participou do Projeto Andros, encaminhado pelo Judiciário. Ficou revoltado nos primeiros encontros, mas hoje faz um balanço positivo. “Aprendi muito sobre a vida, o que é importante, o que não é. Caiu a ignorância de eu achar que o homem pode tudo.” OUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

Para onde va Governo quer controle da União sobre novas reservas, criação de fundo para áreas sociais e ambientais e deixa em aberto cotas dos estados e municípios. Petroleiros defendem empresa 100% estatal. E oposição fica na moita Por Maurício Thuswohl

G

igantescos interesses econômicos, políticos, geopolíticos e sociais. Qualquer que seja o ponto de vista, o potencial das reservas de petróleo encontradas na camada de pré-sal do mar brasileiro traz sempre uma perspectiva impactante. Trata-se da maior reserva descoberta no planeta, em quase três décadas, de uma fonte energética que caminha para uma fase de escassez. “A tendência é que em 20 ou 30 anos a produção mundial comece a se reduzir. O Brasil faz uma descoberta magnífica, e deve tratá-la como uma questão

de soberania nacional e de estratégia econômica da nação”, diz o coordenador nacional da Federação Única dos Petroleiros (FUP), João Antônio de Moraes. Para ele, só existe uma maneira de esse assunto ser conduzido com responsabilidade socioambiental: “A sociedade controlar essa riqueza através do Estado é fundamental”. Porém, com um pé em 2010, a discussão em torno do pré-sal mistura aspectos técnicos e políticos. Demandou do governo federal a elaboração de quatro projetos de lei para definir o chamado marco regulatório do pré-sal. O mais polêmico é o que

MG

SP

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RJ Área do pré-sal

PR

Campo de Tupi

SC Bacia de Santos

RS

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Bacia do Espírito Santo

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Bacia de Campos


ai o pré-sal prevê a mudança do atual regime de exploração de petróleo e gás no Brasil, conhecido como sistema de concessão, para o sistema de partilha, que, segundo afirmou o presidente Lula, “permitirá que as riquezas do pré-sal fiquem sob o controle do povo brasileiro”. O modelo atualmente em vigor foi implantado em 1997. Alimentado pela onda neoliberal que então varria o país, o sistema de concessão se seguiu à quebra do monopólio do petróleo e estabelece que, após a licitação de uma área de exploração, qualquer empresa, inclusive estrangeira, é dona de toda a riqueza dali extraída. Basta que pague ao governo brasileiro, antes de iniciar suas operações, uma taxa conhecida como Bônus de Assinatura. Segundo esse sistema de concessão criado no governo FHC, a empresa vencedora tem ainda de pagar 10% de royalties sobre a produção da área explorada, além de outra taxa, chamada Participação Especial (PE). Esta varia de zero a 40% e é distribuída entre estados e municípios produtores a partir de um processo gerenciado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Ao sugerir a troca para o sistema de partilha, o atual governo defende a primazia da União sobre as reservas localizadas no pré-sal e o direito de escolher a Petrobras para a exploração dos poços. Pela proposta, a estatal teria participação mínima de 30% em todas as áreas de exploração, fator determinante para que a União exerça o controle sobre o ritmo de produção. As empresas responsáveis pela exploração do pré-sal, por sua vez, repassariam em matéria-prima, e não mais em dinheiro, a parte que cabe à União. Isso possibilitaria um maior gerenciamento sobre os estoques de petróleo e gás.

SOBERANIA Ao sugerir a troca para o sistema de partilha, o atual governo defende a primazia da União sobre as reservas localizadas no pré-sal

WILTON JUNIOR/AE

Oposição amoitada

Somente nas áreas onde já foram concluí­ das estimativas de produção – campos de Tupi, Iara e Parque das Baleias – espera-se algo em torno de 14 bilhões de barris de petróleo, o dobro da atual reserva do Brasil. OUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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WILTON JUNI0R/AE

Em setembro, a Petrobras informou uma nova descoberta no pré-sal, no campo de Guará, com reserva estimada em até 2 bilhões de barris. E estudos geológicos para o restante da camada de pré-sal na Bacia de Santos apontam para 100 bilhões de barris. Segundo a proposta do governo, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), por intermédio da ANP, realizaria leilões nos moldes atuais nas áreas que julgasse convenientes e determinaria vencedora a empresa que oferecesse à União o maior percentual de produção. A Petrobras também poderá entrar nesses leilões e aumentar, assim, sua participação de 30% nas novas áreas de exploração. O aumento do controle da União sobre as riquezas do pré-sal passa por uma maior participação na Petrobras, como prevê outro projeto que está no Congresso. O governo propõe uma capitalização da empresa, com um aporte equivalente à futura produção de 5 bilhões de barris do pré-sal – em

FERTILIDADE Petroleiro retira amostra do Campo de Jubarte, litoral do Espírito Santo

‘Não se enganem os reacionários’ Ocupar a Diretoria de Exploração e Produção da Petrobras não é tarefa para qualquer um. Responsável por quase dois terços do faturamento da empresa, a “diretoria que fura poço” – como ficou imortalizada nas palavras do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti – é sempre objeto de cobiça. No cargo desde 2003, o geólogo Guilherme Estrella é funcionário de carreira da empresa e tem história como militante do PT e da CUT, razão pela qual a imprensa mal-humorada o identificava como membro da “república de sindicalistas”. Resistente a pressões, o diretor é um dos artífices do planejamento que possibilitará o início da exploração do pré-sal. Pela defesa de maior participação da Petrobras na exploração e do controle estatal sobre o ritmo de produção, Estrella segue causando mau humor a uma parcela dos editores. São cada vez mais raras entrevistas exclusivas como esta, concedida à Revista do Brasil. Qual a importância de a Petrobras estar presente em todos os consórcios de operação da camada pré-sal? A empresa detém tecnologia para operar nas áreas ultraprofundas? A Petrobras é a maior operadora (perfuração e produção) em águas profundas e ultraprofundas entre todas as empresas petrolíferas mundiais. Detém o mais avançado conhecimento científico sobre as bacias sedimentares brasileiras. Está entre as que mais investem em pesquisa, desenvolvimento e engenharia de exploração e produção de óleo e gás natural. Certamente é a que mais aplica

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recursos em treinamento, aperfeiçoamento e formação de pessoal próprio, assim como em universidades brasileiras. É a petroleira que mais cresceu em reservas e produção no último quinquênio. Para qualquer país, a capacitação nacional para explorar as próprias riquezas naturais é produto de um processo permanente de fazer, aprender fazendo, investir e reinvestir os recursos daí provenientes em capacitação, treinamento, formação, desenvolvimento tecnológico e de engenharia industrial dentro do país. Com isso, completa-se o virtuoso círculo de desenvolvimento sustentável, em taxas crescentes. Nos últimos anos, no setor petrolífero, a Petrobras foi a única empresa que exibiu esse comportamento. Sua presença como operadora isolada do pré-sal assegura que os benefícios oriundos da produção dessa riqueza serão revertidos em favor do nosso país. A tecnologia necessária é totalmente dominada pela Petrobras. A participação mínima de 30% nas operações foi criticada por setores empresariais. Movimentos sociais, por sua vez, defendem que seja garantido o máximo controle da União. O percentual mínimo de 30% em qualquer consórcio de E&P (exploração e produção) é um parâmetro que a indústria petrolífera mundial estabelece, aceita para a empresa que detém as operações de E&P dos campos de óleo e gás natural. É o percentual que a própria ANP considera em suas normas para uma operadora nas atuais concessões exploratórias e/ou

de produção em todo o território brasileiro. Se o percentual for menor, e isso se observa na indústria petrolífera mundial, a operadora tende a desviar o foco de seus interesses para áreas em que tem participações maiores e, naturalmente, mais rentáveis. Há quem afirme que a exclusividade da Petrobras no pré-sal prejudicará a cadeia de fornecedores e comprometerá sua competitividade. Acontecerá exatamente o oposto. A operação única pela Petrobras dará escala para que se desenvolvam os fornecedores brasileiros em toda a cadeia de E&P. Pela grande abrangência que o conjunto de materiais e equipamentos dessa cadeia produtiva e de engenharia terá, todo o espectro industrial brasileiro, todo o parque de engenharia de projetos e construtiva nacional será concretamente beneficiado. As bases tecnocientíficas e a geração de novos conhecimentos a partir das encomendas que a Petrobras, mesmo antes do pré-sal, colocou no mercado nacional já estão contribuindo muito para que a empresa brasileira tenha musculatura para elevar sua competitividade no mercado interno e para inserir-se vantajosamente no conjunto de supridores internacionais da indústria petrolífera. Matéria publicada em agosto n’O Globo afirma que será preciso formar 285 mil trabalhadores para atuar no pré-sal. Como a Petrobras pretende agir para garantir essa mão de obra qualificada?


torno de R$ 100 bilhões. E pretende ainda ampliar sua participação acionária, atualmente de 35% do capital e de 55% das ações ordinárias (com direito a voto). Os principais partidos que fazem oposição a Lula hoje estão na moita e pouco se expõem à opinião pública com críticas diretas aos projetos do governo. O serviço antipático tem sido assumido por parte do empresariado e da mídia. Em audiência pública realizada pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, diversos empresários reunidos no Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) bateram nas propostas enviadas ao Congresso. “O excesso de presença estatal pode afugentar investimentos privados”, disse Ivan Simões Filho, do comitê de Exploração e Produção do IBP e vice-presidente no Brasil da britânica British Petroil. Além dos ingleses, juntaram-se às críticas representantes de outras transnacionais, como Devon Energy e Exxon. Apesar do lobby para mudar as propostas do governo, a maioria das grandes empresas inter-

nacionais do setor já manifestou interesse em participar da exploração do pré-sal. Na outra ponta, os setores nacionalistas acompanham de perto a discussão e também formulam seus projetos. Um deles, da FUP, prevê que a Petrobras volte a ter 100% de seu capital sob controle do Estado e sejam suspensos os leilões de blocos de exploração para grupos privados estrangeiros realizados após a promulgação da Lei nº 9.478, de 1997. “A questão é econômica, técnica e de soberania nacional. O Brasil não poderá projetar seu futuro se não controlar sua produção de energia”, afirma João Antônio de Moraes. O projeto de lei baseado nas propostas dos petroleiros (5.891/09) foi protocolado na Câmara por um grupo de 21 deputados do PT e do PCdoB. O terceiro projeto do governo enviado ao Congresso trata da criação de uma nova estatal para administrar a exploração, a Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural, por enquanto batizada de Petro-Sal; e o quarto determina a criação de

um fundo social destinado a dirigir recursos para educação, cultura, meio ambiente, erradicação da pobreza e inovação tecnológica. “É preciso garantir um fundo que controle os impactos ambientais e desenvolva energias limpas capazes de substituir o petróleo no futuro. Queremos um grande fundo social soberano, controlado pela sociedade, para que os recursos do petróleo não sejam usados mera e simplesmente para o lucro de alguns poucos, mas sim para o bem do Brasil”, diz Moraes, da FUP. A disputa em torno dos quatro projetos promete ser quente. Lula já retirou o pedido de regime de urgência, que daria 90 dias para que Câmara e Senado (45 dias cada um) os analisassem. Em contrapartida, foi costurado um acordo entre as bancadas de oposição e governista para que as votações na Câmara comecem em 10 de novembro. Vencida a questão do regime de urgência, restou no cenário político a disputa real de interesses pelo conteúdo das propostas. O único partido a assumir a linha de frente

As atividades do pré-sal, como está nos projetos de lei enviados pelo governo ao Congresso Nacional, serão desenvolvidas em consonância com o processo de capacitação do parque industrial brasileiro – repito, já em curso a partir da histórica decisão do presidente Lula de construir as plataformas da Petrobras no Brasil. Essa decisão permitirá ao governo planejar estrategicamente o desenvolvimento industrial dentro de uma política de incentivos e apoio à empresa nacional. Afirmar que necessitaremos de 300 mil novos trabalhadores formados é uma total irracionalidade; é afastar-se dos reais interesses nacionais de elevar o emprego, a capacitação e a renda do trabalhador, mola mestra do desenvolvimento e do crescimento do país. Não há nação neste presente momento mundial que conte com essa imprescindível base social e econômica para crescer e desenvolver-se. Quanto à formação dos trabalhadores, de todos os tipos e qualificações, essa é uma tarefa magna cuja concretização já está em curso através do Prominp e de muitas outras instituições de ensino, formação e especialização brasileiras, públicas e privadas, por todo o território nacional. Não se enganem os reacionários, os negativistas, aqueles que não acreditam na competência e na vontade de fazer dos brasileiros. O Brasil já está dando conta desse recado e vencendo todos esses desafios.

Muito se especula sobre poços secos e uma eventual baixa taxa de sucesso nas prospecções do pré-sal. O que há de verdade nisso? O que deu motivo ao governo brasileiro para decidir pelo encaminhamento ao Congresso Nacional dos projetos de lei que modificam a atual lei do petróleo, do regime de concessão para o de partilha de produção, foi a concreta perspectiva de que numa certa área do mar leste-meridional brasileiro existem gigantescas reservas de óleo e gás natural

cuja exploração apresentou, desde o início das agressivas e custosas iniciativas da Petrobras, a partir de 2004, elevado índice de sucesso em descobertas. Um índice de sucesso que chegou a 90%, enquanto a média mundial gira em torno de 30%. A continuidade das atividades de perfuração da Petrobras, com poços especificamente projetados para testar a presença de hidrocarbonetos na camada pré-sal, tem confirmado amplamente esse histórico e suportado totalmente a decisão do governo brasileiro de modificar o regime de concessão – que tem como pilar básico de racionalidade o risco exploratório – na chamada área de ocorrência do pré-sal.

AGÊNCIA PETROBRAS

SEGURANÇA Estrella: ”A Petrobras como operadora isolada do pré-sal assegura que os benefícios dessa riqueza serão revertidos em favor do nosso país”

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JAMIL BITTAR / REUTERS

DIANTEIRA No oceano de oportunidades, até agora só o governo tem posição concreta

contra a troca do sistema de concessão pelo de partilha foi o DEM. O PSDB, apesar do estudo do Instituto Teotônio Vilela, ligado ao partido, que recomenda a manutenção do atual regime de concessão, resiste em assumir essa posição, certamente de olho em 2010. Seus potenciais candidatos à sucessão de Lula, os governadores José Serra (SP) e Aécio Neves (MG), têm se manifestado favoravelmente à proposta do regime de partilha, elaborada pela Casa Civil, da ministra Dilma Rousseff. Segundo o governador mineiro, o partido “não pode cair na armadilha de adotar uma posição privatista”. Serra mantém silêncio, mas já tornou público, através de notinhas na grande imprensa, que “concorda com os fundamentos” da proposta do governo. A posição de Serra e Aécio, assim como a falta de ação das bancadas tucanas no Congresso, incomodou o aliado DEM a ponto de provocar uma visita do senador Agripi26

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no Maia (DEM-RN) ao colega Sérgio Guerra (PE), presidente do PSDB. Na reunião, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) teria reclamado que seu partido está assumindo sozinho o ônus de combater as propostas do governo Lula. Guerra, meio brincando, meio sério, tem repetido nas últimas semanas: “Eu sou estatista!”

Batalha dos royalties

Na única batalha política realmente travada até aqui, a que trata da divisão dos royalties e das Participações Especiais entre a União, os estados e os municípios produtores e não produtores, os governadores Sérgio Cabral (RJ) e Paulo Hartung (ES) convenceram Lula a não enviar nenhum projeto especificamente sobre essa questão, que ficará para o Congresso decidir sem pressa. Pelas regras em vigor, a distribuição dos royalties e PEs provenientes da exploração de petróleo se concentra nos estados e municípios produtores.

“Após a apresentação técnica e a argumentação dos governadores, o presidente decidiu modificar o texto enviado ao Congresso e manter as compensações atuais. Consideramos esse um ponto positivo importante”, afirma Júlio Bueno, secretário de Desenvolvimento Econômico do Rio de Janeiro. Bueno reconhece que “cabe aos congressistas legislar sobre o tema”, mas avisa que a bancada fluminense vai lutar pela manutenção das compensações atuais: “Estamos propondo o aumento da alíquota de royalties de 10% para 16% e aceitamos a extinção das PEs”. Esse acréscimo, segundo o secretário, seria distribuído de forma a permitir que os estados e municípios produtores ficassem, respectivamente, com 44% e 11% das compensações. Da parte cabível à União (45%) sairia, segundo essa proposta, a compensação para estados e municípios não produtores: “Isso possibilitaria que os estados e municípios produtores mantivessem o nível de recursos recebidos hoje e, ao mesmo tempo, daria aos não produtores o mesmo volume de riqueza proposto pelo governo federal”, diz Bueno. O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, tem se destacado na defesa veemente de que a discussão do pré-sal não se restrinja a interesses locais. Na cerimônia de apresentação do projeto do governo, alertou para a necessidade de que o debate se amplie: “Esses royalties não podem ficar concentrados numa parte do país. Eles vêm de uma riqueza que pertence à nação brasileira, e não a um estado da Federação ou a um município. Ele deve ser entendido e aplicado como um instrumento de redução de desigualdades”. Nessa linha, é seguido pelo deputado Delfim Netto (PP-SP), habituado a não se assumir como governista nem como oposicionista. Em sua coluna na revista Carta Capital, afirma que o petróleo do pré-sal tanto “nos dá oportunidade efetiva de libertar o Brasil das restrições externas de uma vez por todas” como pode “nos levar à armadilha do empobrecimento”, caso o país cometa erros. “Antes de qualquer outra consideração, é necessário que prevaleça o federalismo. Significa que nenhum estado pode ser ignorado no momento da distribuição desse bônus submarino que a natureza depositou em frente à costa brasileira”, defende.



BRASIL NO MEIO DO NADA Casa em Tuerê, o maior assentamento da América Latina, no sudeste do Pará

O valor da terra

Concentração de assentamentos na Amazônia expõe o ambiente à degradação e seus moradores ao abandono. Mudança nos índices de produtividade rural poderia corrigir distorções da reforma agrária Por Verena Glass (texto e fotos)

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o dia 18 de agosto, uma notícia mexeu com os ânimos do campo brasileiro: em reunião com dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Brasília, os ministros do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, e da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Dulci, anunciaram a atualização, em 15 dias, dos índices de produtividade rural. Estes, fixados em 1980 com base no Censo Agropecuário de 1975, são a medida utilizada na verificação do grau de produtividade de uma área – e instrumento importante para destinação de terras improdutivas para fins de reforma agrária. A perspectiva da atualização dos critérios foi comemorada pelo MST e por demais entidades dos trabalhadores rurais, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf). O setor ruralista, liderado pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e apoiado pelo ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, reagiu violentamente ao que consi28

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derou uma medida descabida em tempos de crise e um duro golpe contra o agronegócio. A pressão do setor, prestigiado pelo governo Lula, fez com que, passado o prazo anunciado, a questão permanecesse travada. Ainda dentro da guerra ideológica entre ruralistas e movimentos sociais, personagens íntimos do agronegócio, como a senadora Kátia Abreu (DEM-TO) e o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), lideram a criação de uma CPI contra o MST. Longe do epicentro do poder, Maria Aparecida e Nivaldo Alves de Araújo não sabem dos acalorados embates entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o da Agricultura. Em sua pequena casa de tábuas, não tem rádio nem televisão, porque não há energia. Nem vizinhos. Para chegar aonde moram, só de moto, lombo de burro ou uma caminhada de quase duas horas por um resto de estradinha cheio de buracos e lamaçais. As visitas são raras. Quando acontecem, seu Nivaldo quase não pode de contente e se atropela numa enxurrada de conversa e sorrisos, alegria que só se esvai quando não consegue mais adiar a partida do visitante.


Nascidos no Tocantins, há cinco anos Nivaldo e Aparecida compraram um pequeno lote de terra num dos pontos mais isolados do assentamento Tuerê, o maior da América Latina, com cerca de 290 mil hectares, no município de Novo Repartimento, sudeste do Pará. São “assentados de segunda mão”, como muitos ali, já que grande parte dos assentados originais abandonou seu lote em função da falta de estrutura. O Tuerê é um dos exemplos dos problemas enfrentados pela política de reforma agrária, que tem priorizado a Amazônia na criação de novos assentamentos.

R$ 200 por ano

A Amazônia foi foco de um intenso processo de colonização desde a década de 1970, quando os governos militares jogaram milhares de camponeses em uma região que queriam ver ocupada e aberta para a expansão da fronteira agrícola. Nas últimas gestões, a abundância de terras públicas levou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a apostar na região, tanto em função do custo mais baixo da terra quanto para rechear as estatísticas do atendimento das metas, diante da paralisação do processo nas Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, dominadas pelo agronegócio. Ao contrário de Nivaldo, dona Aparecida não contém a tristeza. Solidão e abandono transbordam em suas palavras: “No Tocantins, ao menos tinha luz, amigos, a estrada na porta de casa”. O pequeno lote que possuíam foi vendido porque a terra não dava mais nada. Mas no Tuerê, a despeito da fertilidade do solo, da abundância de água e da disposição de Nivaldo para o trabalho, a produção de arroz, mandioca, feijão e milho encalha. “Para levar meu arroz no mercado, tenho que colocar no lombo do burro e andar 10 quilômetros até a estrada. E depois a produção não pega preço”, conta Nivaldo. “Tiro mais ou menos R$ 200 por ano. Quase não compensa plantar.”

Grande parte dos assentados originais do Tuerê eram agricultores despejados pela Usina de Tucuruí. Não bastasse o fato de que esse gigante hidrelétrico causou um dos maiores passivos sociais da Amazônia, apenas 180 famílias têm energia elétrica no assentamento, segundo o superintendente do Incra em Marabá, Raimundo de Oliveira. Sem luz, televisão, rádio e geladeira, sem vizinhos para conversar (o mais próximo fica a quilômetros), só resta dormir quando o sol se põe, mesmo porque “muitas vezes não tem óleo para a lamparina”, conta dona Aparecida. E há ainda o medo. Medo da violência, que ano a ano vem aumentando no Tuerê, medo quando as filhas andam por picadas no mato para ir à escola, muito longe, porque estupro é comum no assentamento. A deterioração das estradas e vicinais de Novo Repartimento é um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento da agricultura. No primeiro semestre, com as enchentes recordes na Amazônia, a locomoção no Tuerê e no assentamento vizinho do Rio Gelado (com cerca de 260 mil hectares) foi praticamente impossibilitada. No início de junho, quando a reportagem esteve no local, só motos ou picapes potentes conseguiam vencer os atoleiros e as pontes caídas. Assentado no Rio Gelado, Goiano tem uma moto para fazer compras na agrovila Vitória da Conquista, distante 10 quilômetros de seu lote. Mas seus três filhos ficaram sem poder ir à escola nos meses de março, abril e maio. Na comunidade de Nova Descoberta, outra agrovila do assentamento, as lideranças locais Gilson Motta e Maria Aparecida da Silva explicam que o Incra só fez 30 quilômetros de estrada e, no “inverno”, o isolamento é completo. Único meio de transporte (privado e caro), os caminhões gaiola vivem encalhados ou quebrados, segundo Maria Aparecida. Com a gasolina a R$ 8 o litro, uma “carona” de moto para Novo Repartimento sai R$ 50 a perna. Escola? Está pronta, mas não inaugurada. Energia? Muitos moradores têm geradores, mas a rede elétrica ainda não chegou lá. Saúde? O postinho, gerenciado por Gilson, foi construído com recursos dos moradores.

Ônus ambiental

ISOLAMENTO Gilson e Maria Aparecida, de Nova Descoberta: sem escola, saúde, energia elétrica ou estrada

A precariedade extrema do Tuerê e do Rio Gelado levaram a um outro problema: a degradação ambiental. Em setembro de 2008, um levantamento do Ministério do Meio Ambiente colocou o Incra e os assentamentos de reforma agrária no topo da lista dos cem maiores desmatadores da Amazônia, responsabilizando-os pela devastação de 220 mil hectares. Em 2007, os assentamentos foram responsabilizados por 15% dos desmatamentos na região. Em outubro de 2008, o Ibama destruiu 19 fornos clandestinos e fechou três serrarias que funcionavam ilegalmente no Rio Gelado. Também foram apreendidos 300 metros cúbicos de madeira e seis agricultores foram multados em R$180 mil por crime ambiental. No sudeste do Pará, estado que ficou em segundo lugar no ranking nacional dos desmatadores (Mato Grosso é o campeão), a degradação ambiental é sinônimo de boi. Em maio deste ano o Ministério Público Federal (MPF) autuou 21 das maiores fazendas de gado do estado por crimes ambientais. Mas o boi não é exclusividade das grandes agropecuárias. Em função da dificuldade de escoamento da produção agrícola dos assentamentos da região, até este ano a pecuá­ ria foi a atividade priorizada pelo Pronaf A, linha de financiamento para assentados da reforma agrária. A justificativa dada pelos órgãos financiadores, como BB e Banco da Amazônia, é que “ao contrário da mandioca, o boi anda quando não tem estrada”. OUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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com programas de incentivo ao manejo sustentado dos recursos florestais. Voltado a comunidades tradicionais, esse modelo poderia ser uma solução, mas a falta de investimentos tem permitido uma crescente degradação e alienação ilegal também dessas áreas, na avaliação do procurador.

De volta aos índices

A Amazônia Legal tem 3.166 áreas ocupadas por clientes da reforma agrária, divididas em Projetos de Assentamento (PAS), Projetos Agroextrativistas, Projetos de Assentamento Florestal, Projetos de Desenvolvimento Sustentável, Florestas Nacionais (Flonas), projetos de assentamentos estaduais e municipais, Reservas Extrativistas (Resex), entre outras modalidades. Segundo estimativas do MST, a região recebeu 68% dos assentamentos criados entre 2003 e 2007. O Pará, com 947 assentamentos, é o campeão absoluto no país. Rio Grande do Sul, Paraná e Pernambuco, berços dos movimentos de luta pela reforma agrária (MST no Sul e Ligas Camponesas no Nordeste), têm 328, 240 e 241, respectivamente. A MATA VIRA PASTO A concentração dos novos projetos de reforma agrária na AmaO boi não é exclusividade do zônia tem como base uma maior facilidade de aquisição (ou titulaagronegócio, na reforma agrária ele também ganha espaço ção) de terras, em sua maioria públicas. Nas outras regiões, a força política do agronegócio reduziu a atuação do Incra à compra de áreas a um custo alto, uma vez que a desapropriação por improEssa opção deixou marcas visíveis. Por quilômetros a fio, a pai- dutividade, prevista pela Constituição, é dificultada pelos defasasagem é composta de enormes esqueletos de castanheiras carbo- dos índices de avaliação. A alteração desse quadro poderá aumentar a oferta de terras em nizadas, troncos decapitados e pastagens malcuidadas, salpicadas de palmeiras de babaçu – um dos principais indicadores de degra- outras regiões e trazer mudanças também para a Amazônia. A nova dação ambiental ali. E a pecuária também não é uma boa opção de proposta de atualização dos índices, baseada em dados do IBGE a renda, de acordo com Maria Aparecida da Silva, porque a maioria partir da média de produtividade entre 1996 e 2007, ainda não foi dos assentados apenas faz a primeira engorda dos novilhos, ven- divulgada. Mas, tomando-se como base a versão anterior, de 2005, didos posteriormente aos grandes fazendeiros. “E, do jeito que es- a produtividade da soja, por exemplo, uma das principais culturas tão as estradas, até boi tem dificuldade. Meu marido perdeu oito em expansão na Amazônia, poderá ter de aumentar em 142% na região para atingir os novos patamares exigidos. cabeças quando uma ponte quebrou. Um homem tamO mesmo deve ocorrer com a pecuária, na previsão de bém morreu no acidente”, conta. Segundo Raimundo Ulisses Manaças, membro da direção nacional do MST Oliveira, o financiamento de gado e currais pelo Pronaf áreas da no Pará. “Hoje, a média no estado é de um boi a cada dois A deve diminuir a partir de negociações feitas com o MPF em função dos problemas ambientais. Mas o supe- Amazônia hectares. Isso tem de mudar, e grandes áreas de pecuária rintendente do Incra em Marabá reconhece que, apesar Legal estão poderão ser destinadas à reforma agrária.” Segundo ele, dos investimentos em estradas visando à facilitação da ocupadas os movimentos sociais têm especial interesse por essas produção agrícola, “o passivo é enorme”. por clientes áreas, uma vez que estão próximas a estradas – o que faEm 2007, o MPF ajuizou uma ação civil pública con- da reforma cilita o escoamento da produção – como a Belém-Brasítra o Incra, solicitando à Justiça Federal anulação de tolia, a PA-150, a BR-163 e a Transamazônica. Atualmente, agrária das as portarias de criação de assentamentos emitidas ao menos três grandes fazendas de gado estão ocupadas no oeste do estado (região de Santarém) nos dois anos anteriores. pelo movimento nas regiões sul e sudeste do estado. Foram suspensos 107 assentamentos por não terem licença amDe acordo com Manaças, que admite que o abandono das áre­as­ biental e apresentarem irregularidades como invadir terras desti- preju­dica agricultores e causa danos ambientais, assentamentos ornadas a populações tradicionais e a unidades de conservação. Se- ganizados pelos movimentos sociais têm alcançado êxitos admirágundo o MPF, boa parte dos projetos foi criada em áreas de floresta veis. “O Palmares, em Parauapebas, criado em 1995, tem 517 famílias para possibilitar a retirada criminosa de madeira, a partir de um que, em 2009, produziram 34,8% de toda a mandioca, 98% da tapioacordo entre madeireiros e pretensas associações de agricultores. ca, 97% da farinha, 37,3% da banana e 18% do milho verde do muPara o procurador federal Ubiratan Cazetta, ao jogar os traba- nicípio. Temos uma das melhores escolas rurais do país, com 3.362 lhadores rurais em áreas isoladas, sem acesso aos mercados nem alunos, 20 salas de aula, biblioteca e laboratório de informática, na infraestrutura, o Incra estimula o abandono e a degradação. “Sem qual 20 dos 42 professores são integrantes do movimento formados alternativa, o caminho mais fácil é derrubar e vender madeira.” Se- em pedagogia. Temos luz, ruas pavimentadas, praça. Tudo isso fruto gundo ele, o governo avançou quando criou na Amazônia forma- da organização política. Toda semana a coordenação se reúne e detos alternativos de assentamento, como os Projetos de Desenvolvi- bate as principais questões. É uma prova da eficácia de um projeto mento Sustentável, que, na verdade, são regularizações fundiárias quando existe controle social”, conclui.

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Retrato

Por Thiago Domenici. Foto de Lucas Mamede

Mirna, 14, joia rara

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ntonio, soldador, e Dilce, confeiteira, moram em Sertãozinho, interior de São Paulo. Há dois anos o casal reside com mais de cem famílias no assentamento sem-teto que ocupa um antigo galpão do INSS e vai virar moradia popular. Desempregados, vivem de “bicos”. “Ou a gente voltava pra nossa terra no Maranhão, ou ficava aqui”, explica Dilce, que apesar do sufoco está animada com tempos melhores. Um dos motivos é Mirna, 14 anos, uma das filhas, de voz doce e fala articulada, que levanta às 5h30 da manhã para tomar o ônibus às 6h20 até a escola estadual onde cursa a 8ª série. “Sempre foi muito estudiosa e esforçada. Quer ser engenheira mecatrônica”, diz a mãe, que ficou surpresa com o desejo da filha. Mirna representou São Paulo na III Conferência Nacional Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente em Brasília, em 2008. Antes

foi preciso vencer centenas de adolescentes na seleção regional e estadual com dois projetos: a horta comunitária e a casa de caixas de leite. A horta reverte parte da produção para a merenda escolar e outra para a comercialização na comunidade. Já a casa abriga uma sala de jogos de ciências e matemática. “São dois projetos coletivos, mas fui a selecionada para representar e fiquei muito feliz”, revela. Em 2006, recebeu menção honrosa na Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas do Estado de São Paulo, comemorada ao som de violino e trompete, que também toca com desenvoltura. No computador que ganhou para os estudos falta o acesso à internet. “Faço os trabalhos na lan house e não dá pra ir sempre. Não importa de onde você veio, tem que fazer para merecer. Vou ser engenheira.” OUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Em campo pela inclusão Para o craque Raí, não se pode pensar em política de esporte sem pensar no esporte na escola, em educação Por Thiago Domenici e Xandra Stefanel

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Não há política integrada nos estados e municípios. Na França, o esporte está em clubes e associações, nos Estados Unidos na escola, na universidade. E no Brasil? Não tem 32

aí Souza Vieira de Oliveira deixou os gramados em 2000 depois de ser tetracampeão do mundo (1994) com a camisa da seleção e campeão mundial de clubes (1992) com a do São Paulo. Ainda nos campos, em 1998, criou, com o colega Leonardo, a Fundação Gol de Letra, organização não governamental que desenvolve programas de educação integral. Há três anos lidera a Atletas pela Cidadania, entidade de mobilização em prol de causas sociais que reúne personalidades da comunidade esportiva – como Ana Moser, Lars Grael, Fernando Meligeni, Magic Paula, Sócrates, Fernando Scherer, Zetti, Fernanda Keller. A bola da vez é a divulgação da Lei de Aprendizagem, para incluir no mercado de trabalho 800 mil jovens, meta adotada pelo presidente da República. A vontade de mudar a realidade brasileira vem de família: o pai, Raimundo, era pobre, nordestino (e fã dos filósofos gregos) e fazia os filhos Sócrates, Sófocles, Sóstenes e Raí conhecerem outras realidades. Ele sente falta de jogar bola, mas não do futebol profissional. E confessa que quase desistiu da carreira por causa das comparações que faziam com o irmão Sócrates. Mas o constrangimento virou motivação para brilhar no Botafogo de Ribeirão Preto, no São Paulo, no Paris Saint-Germain. Aproveitando o Ano da França no Brasil, esta conversa traz um pouco da batalha de Raí para que os sonhos de Primeiro Mundo que viveu naquele país sejam possíveis de realizar aqui mesmo, em sua terra. Você criou a Fundação Gol de Letra em 1998 e a Atletas pela Cidadania em 2006. Por que enveredou pelo terceiro setor?

Quando decidi, nem sabia que se chamava terceiro setor. Primeiro de tudo foi uma inquietude de ver um país tão injusto, realidades cruéis. Acho que tem um pouco também de influência familiar. Meu pai é nordestino de Fortaleza, veio de um meio muito po-

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bre e sempre nos fez valorizar as oportunidades que tínhamos, conhecer outras realidades. Isso influenciou a mim, meus irmãos, o Sócrates, que tem uma história de participação também. Já tinha um pouco presente essa vontade de participar de algo mais concreto para mudar essa realidade. E o fato de ter tido sucesso profissional num esporte tão popular, com a importância que tem para o país, dava mais vontade, mais responsabilidade. Você continua na Gol de Letra?

Sim. A Gol de Letra é um projeto social de ação direta com comunidades, famílias, crianças e jovens. É uma ação educativa. A Atletas pela Cidadania é um movimento de mobilização, mais político, que a gente chama de advocacy: você vê como pode mobilizar e articular em prol da causa. Fazemos articulação por políticas para a juventude.

E como estão essas articulações?

Pelo pouco tempo, avançamos muito mais do que eu imaginava. Nem fez três anos ainda. Começou com alguns atletas, foi crescendo e acho que tem uma coisa que foi muito feliz: uma equipe competente. Ela usa nosso nome, articula, sem, necessariamente, termos de estar presentes, porque muitos ainda estão jogando; eu e outros, com pouco tempo. Em dois anos conseguimos que o presidente da República assinasse uma meta que nós lançamos. E o presidente do BB, o da Caixa... Isso mostra o poder mobilizador que têm os atletas, além do esporte.

Você parece ser precursor na criação de ONGs e projetos sociais. O período vivido na França teve influência nessa concepção social?

Viver numa realidade que para nós parece utopia, numa sociedade que chegou a um modelo próximo do que para a gente é o ideal, é motivador. Não foi o que me levou a fazer a coisa, mas me estimulou. No período dos


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JAILTON GARCIA

Muitos críticos dizem: ‘Pô, que ridículo! O cara fez o gol e tirou a camisa, ficou balançando...’ Quem diz isso nunca fez um gol com 50 mil pessoas gritando. Você pira

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maiores contratos da minha carreira (em Paris), eu tinha uma empregada doméstica, brasileira também, que ganhava um salário infinitamente menor que o meu, mas sua filhinha frequentava a mesma escola e o mesmo médico que minha filha. Para mim, isso é justiça social. As oportunidades dos filhos são as mesmas; depois, cada um tem seu talento e toma suas decisões. Estamos longe de viver isso, mas vi que é possível. Como foi sair dos gramados e frequentar gabinetes políticos?

No começo, a pressão da comparação, ser ‘o irmão do Sócrates’, me fez pensar em parar de jogar. Depois, não. Isso virou uma briga interior para me motivar

É uma coisa muito rica, um aprendizado. Ao tomar a iniciativa de ter um projeto, você começa a conhecer de perto muita gente de movimentos sociais, uma outra realidade. E a entender por que existem essas realidades diferentes. Para mim não é um sacrifício. Ter de conviver em grupo, lidar com dirigente, com torcida, com imprensa – tenho de estar sempre domando, não deixa de ser uma articulação.

A Lei do Aprendiz é o principal foco de mobilização hoje? Vocês têm outros focos depois desse?

Temos uma causa que é transversal – a educação, a melhoria da qualidade da educação como um todo. Se você vai falar da aprendizagem, está falando em ensino e qualificação. Não queremos participar de causas com campanhas apenas, mas com estratégias e metas. Agora, no início, não queremos dividir muito os esforços; vamos pensar em outra causa mais à frente. Mas a associação nasceu para lutar por causas nacionais. A partir do momento em que estivermos mais sólidos, poderemos apoiar outras causas. O problema ambiental está cada vez mais grave, uma hora vai ser inevitável. Tem um grupo de trabalho que está com o tema esporte, política esportiva, mas isso vai ser mais para a frente. Queremos deixar claro, porém, que não tratamos só de esporte.

Como o presidente Lula recebeu a meta dos Atletas pela Cidadania?

Ele gostou da ideia, porque também foi um aprendiz, mas acho que ainda não teve tempo de se aprofundar, de saber mais. Mas foi muito simpático. Conforme formos conquistando coisas, pessoas de todos os níveis vão passar a respeitar mais ainda.

O que você faria se fosse ministro dos Esportes?

Eu criaria uma política de esportes, porque não existe, é preciso uma política nacional. Colocaria os maiores experts do país – que foram atletas ou não –, estudiosos, para pensarem uma política esportiva de longo prazo. Não se pode pensar em política de esporte sem pensar no esporte na escola, em educação. Não existe uma política integrada para depois ir crescendo nos estados e municípios. Temos profissionais para isso. Na França, o esporte está mais em clubes e associações; nos Estados Unidos, na escola e na universidade. E no Brasil? Não tem.

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A que você atribui a falta de política pública?

Acho que é muito parecida com outras questões do país. O problema é a falta de continuidade. E em relação ao esporte tem uma coisa mais grave: não se dá a devida importância, isso falando da administração pública, de política, orçamento... Na cidade (de São Paulo), acho que é 0,7% do orçamento. E no governo federal a escolha dos ministros é política, pessoas que não têm histórico na área, não conhecem. O esporte sempre foi meio relegado, nunca foi levado a sério pelas administrações, sempre com orçamentos baixos. Se existisse uma política esportiva, teríamos benefícios na área de saúde, educação, economia orçamentária até. Estes são os motivos: não pensar o esporte como algo importante para o país, não dar recursos nem colocar pessoas que entendam disso.

Você acha coerente o país não ter uma política pública esportiva e bancar uma Copa do Mundo?

Eu tenho receio. Depois do que aconteceu no Pan, a gente não merecia a Copa do Mundo. Mas, se for pensar o que o Brasil representa no futebol mundial, é inevitável, mais cedo ou mais tarde a Copa ia voltar para o Brasil. Tenho os meus receios quanto a corrupção, abuso do dinheiro público para interesses não públicos. O Pan pode servir como exemplo para a opinião pública pressionar para que isso não aconteça. Agora, eu acredito também que se o país soubesse usar esse evento esportivo de uma maneira bem pensada, mais ampla do que um simples evento, com certeza traria benefícios para o esporte. Poderia ser um start se tivesse interesse. Mas não há. Acho que o Brasil precisa mostrar mais em termos de política esportiva para merecer.

Houve alguma injustiça com você na Copa de 1994?

Na Copa, ter saído de titular, de capitão, para a reserva foi consequência das Eliminatórias. Havia muita crítica e eu era o capitão, quem representava aquele time, como o Dunga em 1990. Foi o primeiro jogo que o Brasil perdeu numa eliminatória (Bolívia 2 x 0 Brasil) e a seleção não ganhava uma Copa desde 1970, então tinha uma pressão muito grande. Fui para a França, tive um período de adaptação, não estava jogando o melhor. Quando começou a Copa, joguei três partidas como titular. Na primeira (Brasil 2 x 0 Rússia) fui considerado o melhor em campo; na segunda ganhamos de 3 x 0 (de Camarões); na terceira (1 x 1 com a Suécia), todo mundo jogou mal e eu também – daí saí. Mas não achei injustiça. Na imprensa, estavam querendo tanto que eu saísse que, quando tiraram, “bom, o que a gente vai falar agora?” Aliviou.

Mas no grupo havia algum...

Não, nada, zero. Ao contrário, tinha apoio. Eu não tive nenhuma reação negativa por respeito ao Mazinho e ao grupo. A Copa do Mundo é um marco e eu fui capitão dessa equipe durante quase quatro anos, era um


líder. Se eu reagisse mal, poderia minar o grupo. Quando as pessoas viram que eu saí, mesmo sendo capitão, mas continuei ali participando, entrei em outros jogos, como contra a Holanda, isso contou para a gente manter o ambiente legal e ganhar.

Você tem saudade de jogar?

Como você avalia o futebol brasileiro hoje, da qualidade em campo à atuação dos empresários – que assediam, controlam e oferecem ao exterior jogadores ainda adolescentes?

Foi sábado passado, minha filha era goleira e eu a encobri (risos). O último gol foi contra o Palmeiras, um gol de letra no Parque Antártica, acho que semifinal da Copa do Brasil, 2 x 0 ou 3 x 1, não me lembro exatamente (Palmeiras 2 x 3 São Paulo, quartas-de-final da Copa do Brasil, 27 de junho de 2000).

O que você acha da proposta de adequar o calendário do futebol brasileiro ao europeu?

Acho interessante. A gente tem de se render ao fato de que é o continente europeu que dita as regras, até pelo poder econômico. Cada vez mais as pessoas daqui estão assistindo ao futebol europeu. Acho que vale a pena um estudo. Não é o que vai resolver a debandada de jogadores, isso tem de vir atrelado à reestruturação, mas já é uma tentativa de pensar soluções.

Como você analisa a dança dos técnicos?

Isso virou uma certa cultura. Nesse aspecto os europeus têm grandes exemplos, mas também estão demitindo com mais rapidez do que antigamente – muito menos que no Brasil, claro. Acho que o futebol envolve muito o lado latino, paixão, querer resolver quando o time não está ganhando. É paixão aliada a uma visão curta, imediatista. A tendência é cair a qualidade. Se você tem um time arrumadinho, tem um treinador há muito tempo, ele vai jogar melhor.

Quem é mais ídolo do torcedor são-paulino, você ou o Rogério Ceni?

Acho que temos importância igual. Se for medir em títulos, ele ganha. Já estava na minha época e continua ganhando títulos, mais um Mundial. Então, me passou. Não somos íntimos, mas somos amigos. Ele participa de todos os eventos que a gente faz desde o começo da Gol de Letra, de todos os Torneios Gol de Letra.

Lembra do último gol que fez?

E da sensação de fazer um gol, torcida vibrando?

Nossa... Tem algumas coisas que me emocionam no estádio: primeiro é ver o público chegando, aquele movimento, aquele barulho; a entrada do time; e o gol, a vibração dele. A sensação do gol é um êxtase que você não sabe nem o que faz. Estava vendo umas fitas antigas, as primeiras vezes (que fez gol) eu não tinha uma comemoração. Cada hora fazia uma coisa, uma loucura, saía correndo, pulava, rolava, não sabia o que fazer. Era legal. Muitos críticos dizem: “Pô, que ridículo! O cara fez o gol e tirou a camisa, ficou balançando...” Quem fala isso nunca fez um gol com 50 mil pessoas gritando. Você fica louco, pira, não pensa.

Você se incomoda com a constante comparação com o seu irmão Sócrates?

Muito no começo de carreira me incomodava. Cheguei a pensar em parar de jogar por causa disso, achei que não conseguiria vencer essa pressão. Perguntava muito para os meus amigos, e eles: “Você está louco!” Mas logo venci isso, até porque me casei muito cedo, então o futebol virou sobrevivência, não era mais escolha. Consegui transformar numa motivação, num objetivo: “Agora as pessoas vão ter de reconhecer que eu posso jogar por mim mesmo”. Virou uma briga interior para me motivar.

FOTOS JAILTON GARCIA

Essa geração tem muita qualidade técnica, mas infelizmente não está jogando aqui, e sim fora. O Brasil continua o melhor do mundo. Aonde o brasileiro vai vira líder, todo time campeão da Europa tem um monte de jogadores nossos. Virou unanimidade: brasileiro é um bom negócio, faz a diferença. Os problemas são as instituições – federações, confederação – e clubes. O Brasil faliu e os jogadores vão embora cada vez mais cedo, não tem como segurar. O desafio é econômico: como pensar o futebol. Todos os países hoje bem estruturados no futebol passaram por momentos de quebra do modelo existente. E o Brasil está chegando num momento que isso vai ter de acontecer. Chegamos a um limite perigoso, mas bom, porque as grandes revoluções vêm do caos. A paixão e as torcidas continuam aí... Quer dizer, potencial tem. Acho que essa falência faz chegar um momento em que as pessoas vão dizer “opa, não dá mais”.

Tenho saudade de jogar bola, mas não do futebol profissional. Queria jogar mais. Sinto falta de brincar com a bola, às vezes. É uma coisa em que sou viciado.

Em Paris, eu tinha uma empregada com um salário muito menor que o meu, sua filhinha frequentava a mesma escola e o mesmo médico que a minha. Para mim, isso é justiça social. E é possível

Você sofreu algum preconceito enquanto jogava?

Eu, pessoalmente, não. Mas já vi. Na França, o Paris Saint-Germain tinha uma torcida pequena, uma minoria, que era radical, meio nazista. Quando cheguei, eles começaram a gritar “Rái, Rái, Raí” (estica o braço como o gesto nazista). Eu disse: “Acabou minha carreira aqui, virei ídolo de nazistas”. Para minha sorte, essa torcida acabou e o restante não acompanhou o gesto. Mas extremistas tem bastante. Já vi jogarem banana em um goleiro nosso, na França, imitarem macaco.

Como você lidava com o assédio das mulheres quando jogava e como lida hoje?

Eu me dou bem? (pergunta à assessora) Brinco que, quando estou com problema de baixa autoestima, saio na rua (risos). No mínimo, faz bem para o ego... OUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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ATITUDE

Ouvidos solidários

A

pessoa não consegue dormir. Pode estar abatida por uma depressão crônica. Uma tristeza causada por algo que mudou sua vida. Pressionada por um momento de desespero, de desalento ou de angústia. São 3 da madrugada, não é hora de incomodar ninguém. “Se ela não consegue vencer um momento difícil e nos liga, depois de uma conversa começa

a organizar melhor seus pensamentos, embora o problema não tenha sido resolvido. Se não existíssemos para prestar esse atendimento, talvez as pessoas não conseguissem suportar o sofrimento”, resume a funcionária pública aposentada Mayse Gama, de 65 anos. Mayse é um dos 2.500 voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), programa de apoio emocional criado em 1962 para atender gratuitamente quem procura um espaço discreto e seguro para desabafar. Esse “não conseguir suportar o sofrimento” a que se refere a voluntária tem um impacto mais sério do que se imagina. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam o suicídio como uma das principais causas de morte em todo o mundo, a terceira maior entre os óbitos ocorridos na faixa etária de 15 a 35 anos. Só no Brasil, 8.600 pessoas tiraram a própria vida em 2006, de acordo com o Ministério da Saúde. Mayse acredita que seu gesto é efetivo para diminuir os casos de suicídio. O engenheiro paulistano Antônio (ele prefere não dizer o sobrenome), de 57 anos, concorda: “Quando a pessoa liga, tem a oportunidade de falar sobre aquela angústia, é

GERARDO LAZZARI

Quando atende ao telefone, o voluntário sabe que não tem poder sobre a vida das pessoas. Mas quem o procura quase sempre encontra a força que faltava para reagir e mudar o rumo de sua história Por Xandra Stefanel

RESPONSABILIDADE Antônio: “Nós conversamos, ouvimos com acolhimento, respeito e sem preconceito. É um exercício de compreensão”


Sem espera

No posto da Vila Carrão, o terreno é amplo e a construção, simples. Há uma grande sala para realização de cursos e palestras, uma pequena cozinha, um escritório com um sofá-cama, para quem faz plantão de madrugada e prefere dormir na sede, e duas salas de atendimento, uma com sofás para quem procura ajuda diretamente no posto, e outra, um tanto escura, com três baias com telefones. Apenas uma delas está ocupada. Para receber a reportagem, César tira o telefone do gancho apenas por alguns minutos. Ele é vi-

gilante noturno e fazia seu segundo plantão Devido ao baixo número de voluntários no início de agosto. “Trabalho de madru- no serviço pela internet, apenas 22, o chat gada e venho à tarde, uma vez por semana. funciona segunda, quarta e sexta-feira, das A sensação de ajudar os outros é indescri- 19h às 23h. O atendimento não deixou a detível. Auxilia quem nos procura e também sejar em relação ao telefônico. Aliás, o intera nós, que atendemos”, diz. Logo a reporta- locutor parece se sentir mais anônimo e segem tem de sair da sala para que guro para desabafar por escrito. “O número de pessoas que ‘fala’ ele volte ao telefone. “Ninguém claramente no desejo de morrer que liga deixa de ser atendido. brasileiros é muito maior do que pelo teleSomos responsáveis pelo nosso fone”, constatou Arthur. plantão e não podemos deixar tiraram a própria vida Mas quem ouve as aflições o telefone tocando.” No chat do CVVNet o aten- em 2006, de dos voluntários? Não é incomum eles serem tocados pelo dimento tem os mesmos prin- acordo com sofrimento alheio. Por isso há cípios. Ideia do advogado apo- o Ministério treinamento e aperfeiçoamensentado Arthur, de 71 anos, da Saúde to constantes. “Falo com ouvoluntário desde 1978, essa ferramenta foi implementada para alcan- tros voluntários sobre o que está me incoçar os jovens, faixa que tem baixa procura modando. Nas reuniões de grupo a gente pelo telefone, mas na qual o nível de suicí- se fortalece”, diz Antônio. E nem sempre dios é elevado. De 1999 a 2006 o número eles conseguem se blindar. “Se eu disser que de mortes na faixa etária de 20 a 24 anos não fico triste com algumas coisas que escusubiu de 838 para 1.049; de 25 a 29, passou to, estarei mentindo”, admite Mayse. “Embora eu esteja voltada completamente para de 748 para 988. aquela pessoa, que é a mais importante para mim naquele momento, tenho humildade para entender que não posso mudar sua vida, só ela pode.” Para funcionar, o CVV depende completamente dos voluntários. Quem pode ajuda também nos gastos com água, energia, apostilas. “Cada um estabelece uma contribuição e quem não pode pagar não precisa. Mas em geral é assim que nos mantemos”, conta Mayse. Tanto esforço e dedicação explicam por que muitos voluntários permanecem tanto tempo. Pelo chat que ajudou a criar, Arthur escreve sobre suas convicções: “Esse trabalho tem o mérito de preservar um valor fundamental, que é a solidariedade. Isso tem um alcance imenso: a valorização da vida em todos os sentidos é algo básico para que possamos pensar em um planeta mais acolhedor, que forneça aos nossos descendentes condições mais adequadas para viver”.

8.600

Saiba mais LUCIANA WHITAKER

como se ela pudesse esvaziar o copo que ia transbordar”. Ambos atuam na entidade há mais de dez anos, Mayse no posto em Copacabana, no Rio de Janeiro, e Antônio na Vila Carrão, em São Paulo. O CVV tem 48 unidades e está presente em 18 estados. Atualmente há uma média de 35 atendentes por unidade – o ideal­ seria pelo menos 40. São donas de casa, médicos, vigilantes, engenheiros, psicólogos, aposentados, estudantes. Não importa a profissão: o requisito é ter aptidão para ouvir pessoas propensas ou determinadas a cometer suicídio. Os voluntários atuam quatro horas e meia por semana. O atendimento funciona 24 horas por dia, todos os dias, incluindo fins de semana e feriados. Eles passam por uma seleção e aqueles que têm perfil recebem treinamento durante oito semanas. Só em 2008, atenderam mais de 1,1 milhão de ligações. Antônio conta que quando fez o curso a identificação foi imediata. “Você percebe que não somos tão diferentes. A vida proporciona coisas parecidas para todos, angústias, tristezas, os sentimentos são semelhantes. Nós conversamos, ouvimos com acolhimento, respeito e sem preconceito. É um exercício de compreensão”, define. “Aprendemos mais sobre a vida, a ser mais tolerantes, e isso melhora até as relações na família, com as pessoas com quem convivemos.” Ele garante: ali não é permitido dar conselhos. Também não há discussão religiosa, política nem ideológica. Os voluntários podem se manter no anonimato e usar pseudônimos. “Não importam o nome, a profissão, se somos casados ou não. E não perguntamos nada sobre a vida daqueles que ligam”, diz o engenheiro, que uma vez por semana faz plantão de madrugada.

GESTO EFETIVO Mayse é voluntária do CVV no Rio de Janeiro. O atendimento é realizado numa sala emprestada pelo Corpo de Bombeiros de Copacabana

n Atendimento por telefone: 141 (gratuito, 24h) n Estados onde há postos: AP, BA, CE, DF, ES, GO,

MG, MT, MS, PA, PB, PE, PR, RJ, RN, RS, SC, SP. n Todo atendimento é anônimo e sigiloso, o

usuário não precisa se identificar e o número do telefone e a conversa não são gravados. n Visite www.cvv.org.br e saiba sobre telefones próprios e endereços dos postos; atendimento por correspondência, por e-mail e por chat; como ser voluntário e como colaborar OUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

PAZ AMOR

BOSSA NOVA E ROCK’N’ROLL Inspirada no ambiente de Woodstock, uma nostálgica legião de jovens se aventurou nos festivais de Águas Claras. Alguns hippies, outros nem tanto. E ouviu de Raul a João Gilberto, numa comunhão movida a música e liberdade Por Guilherme Bryan

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ROLANDO DE FREITAS/AE

WOODSTOCK BRASILEIRO Primeira versão do Festival de Águas Claras, em janeiro de 1975, na Fazenda Santa Virgínia, em Iacanga, interior de São Paulo

Com pouquíssima infraestrutura, Águas Claras entrou na década de 1980

ARQUIVO PESSOAL ANTÔNIO CHECCHIN JR

ARQUIVO PESSOAL ANTÔNIO CHECCHIN JR

PREFEITURA DE IACANGA

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que havia um anseio enorme de participação entre as pessoas e em que se provou que a causa de paz e amor bem que poderia ter dado certo”, diz o cantor e compositor Walter Franco, que também se apresentou ali e hoje é vice-presidente da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus). O produtor musical Pena Schmidt, responsável pela captação do áudio do evento para ser registrado em disco, ficou com a mesma impressão: “Foi absolutamente em paz, cada um se cuidando e, quando preciso, sendo solidário. No ambiente, lembro apenas da visita de policiais civis, que não foram agressivos. Não me lembro de ocorrências”. Um dos presentes na plateia era Celsão de La Mancha, então com 19 anos, que hoje se autodefine como “hippie cibernético” e prefere não aparecer com o nome da carteira de identidade. “Tinha um alambique ali perto e de vez em quando a gente saía na garupa de uma moto, ia até lá e trazia dois garrafões. Comida, batíamos nas casas para pedir. Fiquei uns quatro ou cinco dias acampado e fui uma das últimas pessoas a sair, por causa da paz.” Ele mora em

CHAPADO Ansiosamente aguardado, Raul Seixas deixou a galera furiosa tocando com playback

FOTOS ARQUIVO PESSOAL ANTÔNIO CHECCHIN JR

E

ntre 15 e 18 de agosto de 1969, 500 mil jovens se reuniram numa fazenda do estado de Nova York, nos Estados Unidos. O Festival de Woodstock­, uma década depois do surgimento do rock, simbolizava, mais que a adolescência de uma vertente musical contestadora por natureza, uma comunhão. Ainda que acompanhado de perto pelo olho gordo da indústria cultural – do disco, do cinema, da literatura, da moda, da arte e do comportamento –, aquele palco entrou para a história como uma grande celebração de “paz e amor”, ao juntar estilos de Joan Baez a Santana, Ravi Shankar a The Who, Credence a Janis Joplin, Neil Young a Jimi Hendrix. Woodstock não foi o primeiro, mas foi o maior, mais eclético e inspirador. Iniciativas semelhantes pelo mundo nos anos seguintes iriam, mesmo que não intencionalmente, remeter ao festival. O Festival de Águas Claras é um dos mais lembrados. Sua primeira versão, em 1975, ocorreu na Fazenda Santa Virgínia, no município de Iacanga (SP). “Eu havia escrito uma peça de teatro e juntei um grupo musi-

Tinha um alambique ali perto. De vez em quando íamos lá e tra cal para fazer a trilha sonora. Surgiu a ideia de encenar ao ar livre e começaram a aparecer algumas pessoas interessadas em tocar com a gente”, conta o organizador Antônio Checchin Júnior, o Leivinha. “Aí fizemos o Festival de Águas Claras, que nunca teve a intenção de ser parecido com Woodstock, mas haveria essa associação com qualquer evento que fosse feito daquele jeito.” Então com 22 anos, Leivinha utilizou a fazenda do pai como ponto de encontro de 30 mil jovens do Brasil e de outros países da América do Sul para ver grupos como O Terço, Som Nosso de Cada Dia, Mutantes, já sem Rita Lee, e Moto Perpétuo, do qual fez parte Guilherme Arantes. E por que a comparação era inevitável? “O público foi maravilhoso. Não tivemos uma briga nem nada que pudesse desprestigiar o festival”, lembra. “A história do nu do pessoal acontecia na hora do banho. Só um ou outro é que tiravam a roupa no meio do público, para aparecer. Apanhávamos laranja e milho, e o pessoal da fazenda fazia comida para distribuirmos.” “Foi uma catarse coletiva e um exercício muito bonito de liberdade, numa época em 40

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BICHO-GRILO O clima pesado da ditadura retardou o movimento hippie no Brasil


Bauru e continua colocando uma mochila nas costas e o pé na estrada.

INESQUECÍVEL João Gilberto foi o apogeu da edição de 1983. Fez o público cantar debaixo de chuva às 6 da manhã

Ideias subversivas

O ambiente de ditadura dificultava qualquer evento que promovesse grandes reuniões. “Durante um mês e meio, eu ia praticamente todos os dias à Secretaria de Segurança tentar liberar o festival. Só consegui quando o secretário, na época o Erasmo Dias, me mandou para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para assinar um termo de responsabilidade pelos atos de subversão que acontecessem”, lembra o organizador. “Depois me proibiram de fazê-lo novamente durante seis anos. Eles queriam nos prender de qualquer jeito, mas não tinham motivos, porque não era uma reunião política. Mesmo assim, levavam para o camburão quem estava andando pelado, mas a gente virava o camburão e todo mundo saía”, acrescenta Celsão. Um documento emitido pelo então ministro da Justiça, Armando Falcão, guardado por Leivinha até hoje, relata a visão do regime militar para a ocasião: “Durante a realização (do Festival de Iacanga), o

zíamos dois garrafões. Comida, batíamos nas casas para pedir

DOMICIO PINHEIRO/AE

CLIMA DE PAZ Walter Franco foi um dos pioneiros de 1975: “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”

uso de entorpecentes, bebidas alcoólicas e atos imorais foram abertamente praticados; aproveitando-se do ambiente próprio, propagadores de ideias subversivas vinculavam propagandas com as seguintes frases: ‘Viva a Mocidade Socialista’, ‘Viva Che Guevara’, ‘Viva a liberdade estudantil’ ”. Uma segunda edição do evento foi reali­ zada só em setembro de 1981, com estrutura mais profissional, cobertura de TV e ingressos vendidos nas agências do Unibanco. Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Alceu Valença, A Cor do Som, 14 Bis e Moraes Moreira estavam lá. “O show do Hermeto Pascoal varou a noite toda e o Egberto Gismonti tocou Palhaço, com grupo de palhaços que fazia a segurança dançando na frente do palco”, destaca Leivinha. “O festival realmente teve um impacto no meu comportamento. Posso falar em antes e depois dele. Lembro de algumas pessoas tocando violão em volta de fogueiras. Tinha uns shows a tarde, de música instrumental, bem legais, garrafas de cachaça passavam de mão em mão e garotas tomavam banho seminuas num rio cheio de barro e em duOUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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mantra até ser seguido por toda a multidão. Para Leivinha, o apogeu dessa edição foi a participação de João Gilberto: “Ele subindo num palco às 6 da manhã, com o sol nascendo, e 70 mil pessoas molhadas de chuva, na lama, cantando junto ‘isso aqui é um pouquinho de Brasil’ foi de arrepiar”. A hippie Rosa Cheixas, que adota o codinome Sétima Lua, tinha 21 anos e fazia artesanato em São Paulo quando tomou o trem em direção a Iacanga. “Meu namorado e eu chegamos lá 15 dias antes. Não havia ninguém ainda. Então pegamos uma lona preta e armamos uma tendinha”, lembra. “O festival foi muito legal, com pessoas­de cabeça bacana, que compartilhavam tudo. Era sexo, drogas e rock’n’roll, no melhor sentido. Gilberto Gil, Hermeto Pascoal­e Moraes Moreira eram nossos heróis, expressavam o que pensávamos. O Raul era um cara sem comentários, hiper­ esperado. Mas só interagiu com a gente rindo por estarmos na lama, porque, cantar, ele não cantou (risos).” Rosa gostou tanto de Iacanga que resolveu se mudar para lá em 1984. Teve três filhos e hoje, com 47 anos, dá aulas como voluntária, trabalha

FIEL AO ESTILO Celsão foi uma das últimas pessoas a sair do festival. Até hoje põe a mochila nas costas e o pé na estrada

CELSO MELANI

chas improvisadas. E tudo no clima de paz e amor, não me lembro de uma briga sequer”, recorda Celso Fonseca, um estudante de 18 anos na época, hoje jornalista e crítico musical. “O festival mantinha um espírito hippie tardio. O Brasil estava décadas atrás dos movimentos mais libertários e de contracultura europeus e americanos. Para se ter uma ideia, o romance On The Road, de Jack Kerouac, inspirador do ideário hippie, só chegou por aqui no início dos anos 80, com quase três décadas de atraso”, observa. O cinegrafista Adauto Nascimento prepara um documentário com material inédito registrado em 16 milímetros, 81 em Iacanga – há uma prévia disponível no YouTube­. “O festival reuniu grandes nomes da música brasileira e as pessoas iam para viver dias de harmonia e liberdade. A maioria se emociona ao falar dele. Todos querem ver essa história contada”, garante. Um projeto de documentário também está sendo tocado por Thiago Mattar, com apoio de Leivinha. “Tem muita gente que nunca ouviu falar desses festivais, queremos mostrar que foi possível termos um festival de música nos moldes de Woodstock em

A história do nu acontecia na hora do banho. Um ou outro plena ditadura militar”, diz o diretor, que espera finalizar o trabalho até 2012.

MATAR A SAUDADE O cinegrafista Adauto prepara o documentário 81 em Iacanga, com material inédito

Em junho de 1983 ocorreu a terceira edição, também muito eclética, com Armandinho, Dodô e Osmar, Arthur Moreira Lima, Egberto Gismonti, Fagner, Premê (ainda Premeditando o Breque), Sandra Sá (ainda sem o “de”), Paulinho da Viola, Sá & Guarabyra, Erasmo Carlos e Wanderléa. “O Erasmo Carlos queria um Landau para chegar à fazenda. Mas ele e a Wanderléa subiram atrás de um trator e foram assim até o palco. Anos depois ele me disse: ‘Guardei aquela lama milagrosa numa caixa de fósforos’ ”, conta Leivinha. A entrada de Raul Seixas, no segundo dia de show, foi uma grande frustração. Com ele chapado, seu show teve de ser em playback. Parte do público, irada, passou a gritar por “rock” o tempo todo e ofuscava outras apresentações. Quem pacificou o ambiente foi Walter Franco, entoando “tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo” como um

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ARQUIVO PESSOAL

Lama milagrosa


CELSO MELANI

PARA SEMPRE Rosa: “Era sexo, drogas e rock’n’roll, no melhor sentido”. Ela gostou tanto de Iacanga que se mudou para lá

estava anoitecendo e, por segurança, nos comunicaram em cima da hora que não haveria o nosso show. Já em 1984 fizemos meio show, porque começou a ventar tanto que duas colunas de som caíram no palco, e saímos correndo. Nosso guitarrista, Sérgio Gama, ficou feliz porque o Raul Seixas pediu a guitarra dele emprestada”, diz o vocalista Laerte Sarrumor. “No palco e nos bastidores, havia estrutura de um grande show para ser televisionado. Mas na plateia o clima era mesmo meio hippie, com pessoas acampadas e a sensação de liberdade. Só não sei se havia um embasamento filosófico ou se era pura curtição.” Da quarta edição, em pleno Carnaval de 1984, poucos têm saudade, a começar pelo próprio organizador. “Fui meio obrigado a fazer por questão de patrocínio. Eu sabia que aquela não era a época certa para esse tipo de coisa. Depois, achei melhor parar com tudo”, lamenta. O hoje advogado Leivinha toca flauta, pinta e planeja construir uma pousada na Chapada dos Guimarães (MT) – a fazenda Santa Virgínia foi vendida após a morte do seu pai. E ainda sonha em realizar na chapada um show com o músico grego Vangelis e

é que tiravam a roupa no meio do público, para aparecer com reciclagem de jornal e cuida da neta Sofia, de 3 anos. O conjunto paulista Língua de Trapo também devia tocar em 1983, mas não conseguiu: “Choveu muito e formou um lamaçal que impedia chegar ao palco. Alguns artistas foram levados de helicóptero, mas

uma orquestra sinfônica. “Não sei se aquilo se repetiria. Mas eu teria curiosidade em ir, caso acontecesse outro show”, diz Rosa Cheixas. Celso Fonseca também: “Eu estaria lá, como o tiozão de Iacanga. Tenho muitas saudade daqueles dias; mesmo sendo muito ingênuos, nossos sonhos voavam alto”.

IDEALIZADOR Leivinha usou a fazenda do pai para organizar os festivais: “Nunca tivemos a intenção de ser parecidos com Woodstock”

ARQUIVO PESSOAL

Filhos de Woodstock O Festival de Primavera, se não tivesse sido impedido pela Prefeitura de São Paulo, teria reunido Mutantes, Gal Costa, Tim Maia e o maestro Rogério Duprat no Ginásio do Ibirapuera, em novembro de 1969. O prefeito era Paulo Maluf. Dois meses depois de Woodstock, essa foi a primeira tentativa caseira. O jornalista e compositor Nelson Motta organizou vários eventos. Um deles, o 1º Concerto Pirata, no Estádio Remo da Lagoa, no Rio de Janeiro. Também foi ideia dele o primeiro Hollywood Rock, em 1975, no estádio do Botafogo, que reuniu 10 mil “bichosgrilo” para ver Rita Lee & Tutti Frutti, Mutantes, Celly Campello, Tim Maia, Erasmo Carlos e Vímana, banda de rock progressivo que tinha Lulu Santos, Lobão e Ritchie. No ano seguinte, as bandas Made In Brazil e Bixo da Seda, Raul Seixas, Rita Lee e a estreante Angela Ro Ro, cantando Janis Joplin, se apresentaram no Som, Sol & Surf, em Saquarema (RJ). “No Brasil, era a ditadura feroz do general Garrastazu Médici e todas as dificuldades eram impostas para fazer um evento que juntasse jovens. Por isso, foi heroico e muito pacífico”, diz Motta. Em 1972, o Festival Dia da Criação levou a Duque de Caxias (RJ) Sá, Rodrix & Guarabyra, Milton Nascimento & Som Imaginário e Jards Macalé, entre outros. Em 1975, no Banana Progressiva, em São Paulo, tocaram bandas de rock progressivo e Erasmo Carlos. No mesmo ano, em Noite Colorida do Som, no estádio do Morumbi, Leivinha reuniu Zimbo Trio, Mutantes e Gilberto Gil.

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VIAGEM

ASCENSÃO E QUEDA DO

MURO DE BERLIM Assim como a Primeira Guerra, o Muro de Berlim mudou o mapamúndi. Hoje, sabe-se que as aristocracias anteriores a 1918 desapareceram na história. Mas, se os ideais de uma sociedade igualitária ainda vão retornar renovados, é questão para o futuro Por Flávio Aguiar Fotos de João Correia

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té hoje ninguém sabe com absoluta certeza quem foi o pai da ideia, se o premiê soviético Nikita Krushev (1894-1971), o premiê da então Alemanha Oriental, Walter Ulbricht (1893-1973), ou se Erich Honecker (1912-1994), na época secretário de Segurança do Comitê Central do Partido Comunista Alemão. Dos três, o menos provável é Ulbricht, que nem sequer seria simpático à ideia, embora tenha assinado a ordem de fechar a fronteira. E o mais é Krushev, convicto de que a Guerra Fria seria decidida em Berlim. Honecker foi o encarregado de torná-la realidade. Ele assinou a ordem de fechar as fronteiras entre a Alemanha Oriental e Berlim Ocidental num sábado, 12 de agosto de 1961. No dia seguinte, cercas de arame começaram a ser reforçadas e a estabelecer a separação física em torno da parte ocidental da cidade. O muro envolveria, ao longo de 163 quilômetros, o lado então administrado pelas potências ocidentais, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. E faria de Berlim, no dizer do escritor Ignácio de Loyola

PROPAGANDA Misturados a restos do muro, cartazes e outdoors tomam a cidade


Brandão, que lá esteve naquela época, a última cidade medieval da Europa: cercada por um muro que de fato funcionava. Havia meios de comunicação com a Alemanha Ocidental. O mais importante era um corredor rodoviário que podia ser percorrido até a fronteira entre as duas Alemanhas. Os cidadãos do lado ocidental e turistas ocasionais podiam visitar o lado oriental mediante a concessão de vistos de entrada – os de 24 horas eram concedidos com alguma facilidade. Já as visitas do leste para o lado ocidental eram mais complicadas. De 1961 a 1964 foram totalmente interditadas; daí para diante a proibição foi parcialmente relaxada, até um ponto de equilíbrio em que cidadãos aposentados de mais de 65 anos, mais quem comprovasse

ras. Tudo isso custou na ocasião a bagatela de US$ 3,6 milhões. As justificativas para a construção do muro iam desde impedir o contrabando até dificultar a espionagem. Mas no centro da ideia estava a competição entre o regime capitalista e o comunista, a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética.

Frentes e símbolos

Havia a frente militar. O incidente mais grave ocorreu em 22 de outubro de 1961. Em Checkpoint Charlie, uma das passagens por onde estrangeiros podiam atravessar, armou-se uma discussão sobre se um diplomata norte-americano podia ser revistado ou se devia mostrar seu passaporte. A discussão degenerou tanto que em poucos

pedindo que os soviéticos dessem o primeiro passo no recuo. Assim foi. Mas a frente mais importante era a simbólica. Havia uma competição entre os dois lados para mostrar melhor padrão de vida. Do lado oriental para o ocidental havia – alegavam os comunistas – uma permanente evasão de cérebros e trabalhadores mais qualificados. E a proximidade entre familiares, amigos, conhecidos, de ambos os lados de Berlim, era um atrativo muito sedutor. Daí, dizem muitos, nasceu a “ideia” do muro, um dos maiores erros da Guerra Fria, símbolo palpável de opressão e restrição de movimentos. Os cercados eram os habitantes de Berlim Ocidental; mas os confinados eram os do leste. Se hoje se pode dizer que começou a cair

NASCIMENTO E MORTE Placa no chão serve de lápide. Em Checkpoint Charlie, ex-ponto nervoso entre leste e oeste, a foto custa € 1

uma necessidade familiar ou profissional relevante, podiam passar sem problemas. Os que tentassem cruzar a fronteira sem autorização podiam até ser alvejados. Assim mesmo, muitos iam em frente. Saltar era o meio mais comum, e o mais complicado. Houve fugas em balão, em ultraleve, em carros jogados contra as barreiras, em porta-malas de carro. Estima-se um total de 5 mil fugas bem-sucedidas. E em até duas centenas os mortos na tentativa. Oficialmente, são136, relembrados por cruzes dispostas nas imediações do local onde foram abatidos. No começo era um correr de arames. A partir de 1965 começou a parecer muro mesmo. E de 1975 em diante tomou sua forma definitiva: uma sucessão de placas de concreto de três metros de altura, encimadas por canos redondos para dificultar a escalação, num conjunto reforçado por muros suplementares, barreiras aquáticas, cercas de arame, cães de guarda, soldados, mais de uma centena de torres de observação equipadas com holofotes e metralhado-

dias dez tanques norte-americanos e dez soviéticos estavam frente a frente, a menos de 100 metros uns dos outros. Outros 30 tanques soviéticos tinham tomado posição de ataque em frente ao Portão de Brandemburgo, não muito longe. A coisa ferveu, e só terminou com um telefonema do presidente John Kennedy ao premiê Nikita Krushev,

a partir de sua construção, atitude política que se provou insustentável, não era essa a impressão de seus contemporâneos. No começo de 1989, Honecker, já premiê da Alemanha comunista no lugar de Ulbricht, deu uma declaração de que o muro poderia existir por mais um século. Era um sentimento geral. Naquele ano, em que se discutiam o fu-

A primeira jabuticaba Ane-Sofhie é berlinense e declara-se “oriental”. Passou pelo Chile e está hospedada em São Paulo desde o início de setembro, onde presta serviços voluntários numa associação que acompanha a vida de bolivianos do ramo de tecelagem no bairro do Bom Retiro. Tem 19 anos e estava na barriga da mãe quando o muro foi demolido. Seu avô paterno era membro da polícia secreta. O pai, funcionário do Estado, ainda mantém distância do lado ocidental. A mãe, professora de inglês e literatura, se encantou com a quantidade de livrarias a que teve acesso. Ane-Sofhie diz que seus amigos vivem debatendo vantagens e desvantagens, os colegas ocidentais ainda criticam a falta de liberdade no leste; e os orientais reclamam do nariz empinado do outro lado. “Apoiamos a derrubada porque somos jovens, queremos viajar. Mas as Alemanhas não estão reunificadas”, completa. (Paulo Salvador)

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turo e o século 21, falava-se de tudo, menos da queda. Foi a insolvência dos regimes comunistas que solapou os alicerces do Muro de Berlim. Além disso, o desejo de reunificação das Alemanhas tocava todos os setores do país que saíra dividido e devastado da loucura nazista: cultural, familiar, político, social e econômico, pois a reunificação, na época, era vista quase como sinônimo de “prosperidade” para o lado oriental, o que não se provou verdade, com o declínio do emprego e dos indicadores sociais. O muro começou a cair naquele ano com uma série de manifestações “pela liberdade”. Alguns dias antes da queda, 1 milhão de pessoas se concentraram na Alexanderplatz, perto do Portão de Brandemburgo, reivindicando a livre passagem. No dia 9 de novembro o governo da Alemanha Oriental autorizou a passagem de um lado para o outro mediante a facilitação da concessão de vistos no local. Mas o que era para ser um fluxo controlado logo se tornou uma torrente impetuosa. Na madrugada de 9 para 10 o muro foi abolido como fronteira; e os regimes comunistas do Leste Europeu, inclusive o da União Soviética, ruíram. Alguns de forma mais pacífica, como a hoje

CARICATURA A longínqua União Soviética se transformou em cenário para turistas

também extinta Tchecoslováquia; outros de forma sangrenta, como a Romênia. Assim como na Primeira Guerra Mundial, a ascensão e a queda do Muro de Berlim representou muito mais do que hoje se pode imaginar: o apogeu de um mundo (o da Guerra Fria) e a derrota e o desaparecimento dos regimes comunistas na Europa. Também como naquele conflito, o mapa-

múndi mudou de forma palpável. Ao fim de 1918, impérios como o Austro-Húngaro e o Otomano e a monarquia alemã passavam a ser parte da história pregressa. Todo um mundo remanescente das oligarquias aristocráticas seculares, seus valores, seus costumes, desapareciam. Mas com o Muro de Berlim o que soçobrava era uma forma de futuro, pois viam-se os regimes comunistas

O fim de uma fronteira Por Ute Hermanns Na noite de 9 de novembro de 1989, eu estava com muito sono e demorei para me dar conta do que acontecia. Na manhã seguinte eu tinha um compromisso com o escritor Rubem Fonseca, bolsista do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico. Encontraríamos o casal Engler em Berlim Oriental, em frente à estação de metrô Friedrichstrasse. Erhard Engler era uma instituição. Todos os escritores brasileiros que chegavam a Berlim queriam conhecê-lo. Tinha traduzido para o alemão Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e contos de vários autores. Editou um livro de ensino de língua portuguesa, tinha textos sobre Jorge Amado, Loyola Brandão, entre outros. Lecionava na Universidade Humboldt e era intérprete de conferências, até que sua primeira mulher fugiu para o lado ocidental. Então, Erhard Engler não mais recebeu a permissão para viajar. Felizmente encontrara Christina, simpaticíssima, também tradutora de português.

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Pelo barulho das buzinas, comecei a me dar conta de que algo extraordinário acontecia. Rubem Fonseca e eu fomos de metrô até a fronteira com Berlim Oriental. Vagões e estações estavam lotados. Passamos pelo controle e vimos o casal na multidão. Engler acenava. Rubem e eu tínhamos combinado convidá-los para um passeio no lado ocidental. Mas ambos temiam não poder voltar. Atravessar sem permissão era temerário. Não havia mais volta. Era exílio permanente, pois as pessoas achavam que o muro era eterno. Abordei um guarda da fronteira e ele afirmou que agora quem quisesse podia passar de um lado para o outro e voltar. Atravessamos. Compramos champanhe e brindamos no apê do Rubem Fonseca às possibilidades que se abriam. Engler e Christina quiseram conhecer a biblioteca do Instituto Ibero-Americano, uma das maiores do mundo para pesquisadores lusófonos e hispanofônicos.

Almoçamos num restaurante italiano. Vimos a igreja erguida em honra ao imperador Guilherme, um dos pontos mais conhecidos de Berlim, e seu ar de ruína da Segunda Guerra. Eles não queriam saber de compras. “Basta ter liberdade”, sussurrava Engler. A noite caía quando vimos o casal regressar a Berlim Oriental. No domingo, 12, estava prevista a abertura do muro na Potsdamer Platz. Quando chegamos, os guardas tinham acabado de abrir um pedaço do muro. Os carros do lado oriental entravam buzinando, com as pessoas alegres; as do lado ocidental aplaudiam, moças entregavam rosas, caminhões da empresa de biscoitos Bahlsen distribuíam confeitos. Também apareceram caminhões para presentear os recém-chegados com bananas, fruta exótica que conheciam apenas pela televisão ocidental. Conversávamos em português. Um jornalista se aproximou e perguntou: “Vocês são brasileiros?” Era Luiz Carlos

Azenha, da TV Manchete. Rubem Fonseca, famoso por nunca dar entrevistas, puxou o boné sobre o rosto e comentou: “Meu nome é José Rubem Fonseca, sou brasileiro. Estamos presenciando um evento histórico. Hoje não temos ideia de como vai mudar o futuro do mundo, mas será uma mudança severa. É com grande alegria que temos de encarar essa transformação histórica”. Menti: “Meu nome é Clara Maria da Silva, sou de Blumenau, Santa Catarina”. Estava aflita, pressentia uma profunda mudança para os alemães do ocidente e não sabia que rumo ia ter a vida no futuro. Mas admirei o comentário de Rubem e muito depois fui entender todo o significado das suas palavras. Minha mentira foi logo descoberta. Azenha perguntou se eu conhecia alguém disposto a acompanhar a equipe a locais interessantes e para traduzir entrevistas. Dei meu telefone. Rubem disse: “Bem, acho que você pode fazer esse trabalho. Só não pode falar que


ANIVERSÁRIO Exposição em praça pública conta em fotos a vida e a queda do muro: um país dividido agora compartilha a mesma história

– com desprezo e terror ou com admiração e esperança, conforme as opções ideológicas – como uma forma possível e provável de futuro da humanidade. Basta rever os filmes engajados de esquerda daquela época ou, do outro lado,

muitos dos filmes de ficção científica em que sociedades opressivas e controladoras, com tecnologia avançada mas hábitos medievais, eram confrontadas por sucessivos “punhados de bravos” dispostos a conquistar a liberdade. As velhas aristocracias não

têm volta. Mas, se os ideais de uma sociedade igualitária, como no começo se propunha a comunista, vão retornar renovados, essa é uma questão para o futuro. Esperemos que retornem, mas sem muros, como o de Berlim.

ETERNO ENQUANTO DUROU Ute: “Atravessar sem permissão era temerário. Não havia mais volta. Era exílio permanente, pois as pessoas achavam que o muro era eterno”

a gente se conhece. Diz que me conheceu por acaso na multidão”. No dia seguinte, o jornalista me ligou aflito: “Você sabe onde mora aquele homem que a gente entrevistou ontem?” O jornalista ficou em apuros por não ter reconhecido o peixe grande que lhe caíra na rede e se fora. Todos intuíamos que não voltaríamos mais ao passado, um

mundo ruía e outro surgia, de contornos indefinidos. O escritor brasileiro deu uma explicação que se revelou sábia sobre o momento histórico. A revista Veja de então relatou o episódio. Publicou uma foto do Rubem acompanhado por Clara Maria da Silva, numa página junto com a foto do Gorbatchev e sua esposa Raissa e a foto do George Bush, o pai, que perturbou

a vida dos mortos praticando jogging num cemitério. Hoje é bom não mais ter o muro separando a cidade. Convivemos, ex-orientais e exocidentais, e acho que ainda temos de trabalhar muito para nos compreendermos. Em todo caso, é maravilhoso. Ter acesso à natureza ao redor, coisa que os ex-ocidentais não tínhamos,

é um privilégio. Viver nessa nova cidade em constante processo de transformação vale a pena, apesar dos engarrafamentos, que também não tínhamos, e agora temos. Ute Hermanns é tradutora, professora do Instituto Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim OUTUBRO 2009 REVISTA DO BRASIL

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Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

CurtaEssaDica

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

Nunca vou te abandonar O sofrimento era imenso e a esperança, cada vez menor. Depois veio a humilhação. Não, isso não é um filme sobre o fim de um amor, mas sobre o momento mais difícil do Sport Club Corinthians Paulista e de sua torcida. Fiel é um documentário feito por, com e para corintianos, filmado entre 2007 e 2008, na pior fase do Timão: a queda para a Segunda Divisão. São depoimentos de jogadores e principalmente de torcedores, que não abandonaram o time e o empurraram de volta à primeira divisão. A direção é de Andrea Pasquini; o roteiro, de Serginho Groisman e Marcelo Rubens Paiva. Disponível em DVD.

Caetano deve ter gostado

Universal A história é bem conhecida: conversas

paralelas, desrespeito, falta de vontade de participar da aula. O filme francês Entre os Muros da Escola, de Laurent Cantet, é baseado no livro homônimo de François Bégaudeau (Martins Editora) e mostra as aulas de François Martin, um professor ginasial (interpretado pelo próprio autor) da periferia de Paris, suas dificuldades no trato com alunos de diferentes classes sociais e etnias. Como se fosse um documentário e com elenco de não atores, apresenta os intermináveis – e universais – conflitos dentro da sala de aula e o esforço de um professor para estimular os alunos a melhorar suas condições pela educação. Disponível em DVD.

www.redebrasilatual.com.br/multimidia/blogs 48

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Simples e sentimental, samba, pop e rock. O primeiro CD da baiana Marcela Bellas surpreende com sua musicalidade despreocupada. Será Que Caetano Vai Gostar? tem 12 músicas, tempero suave e letras despretensiosas. Alto do Coqueirinho é do tipo que se ergue o volume ao máximo para chacoalhar vagarosamente as cadeiras. Me Leve é romântica e a releitura de Bloco do Prazer, de Moraes Moreira, ela fez numa noite de Carnaval em 2008, com a tristeza de ver a folia acabar. O CD é vendido nos shows e está disponível para download gratuito no site www.marcelabellas.com.br Visite nosso blog e curta diariamente dicas e pitacos sobre o mundo da cultura


Foto de Gerardo Lazzari na exposição Olhar São Paulo

Multifacetada A exposição Olhar São Paulo, organizada pela Associação Profissional de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos (Arfoc-SP), reúne fotografias com diferentes olhares sobre a capital paulista, além de resgatar a história, os costumes e os tantos universos coexistentes da metrópole. A mostra traz locais desconhecidos e cartões-postais da cidade em 40 imagens de 35 fotojornalistas, entre eles Gerardo Lazzari, colaborador da Revista do Brasil. Até 10 de dezembro, no Bourbon Convention Ibirapuera, (11) 2161-2200. Grátis.

Um dos mais tradicionais bairros da capital paulista foi retratado pelo jornalista Mino Carta no livro Crônicas da Mooca – Com a Bênção de San Gennaro, da Coleção Pauliceia, Editora Boitempo (96 páginas, R$ 29). O futebol, o hipódromo, a culinária, as indústrias, o baile da saudade e a tradicional Festa de San Gennaro são narrados por personagens e por um texto muito envolvente. “É um livro de crônicas, sem maiores pretensões, ditadas, porém, pelo sentimento e ilustradas pela objetiva do velho companheiro de aventuras”, diz Mino. As fotografias são de Hélio Campos Mello.

Matisse inédito A Pinacoteca do Estado de São Paulo é a primeira do Brasil e da América do Sul a receber uma mostra individual do francês Henri Matisse. Matisse Hoje (Aujourd’hui) fica em cartaz até 1º de novembro e conta com 80 importantes obras do artista. Entre os destaques, Nature Morte au Magnolia (1941), os painéis serigrafados Océanie, le Ciel e Océanie, la Mer e as pranchas do livro Jazz. Há também um conjunto de desenhos, gravuras e livros do acervo do Museu Matisse e obras de coleções particulares. As fotos do cotidiano do artista feitas por Henri Cartier-Bresson e Man Ray são imperdíveis. De terça a domingo, das 10h às 18h. Praça da Luz, 2. (11) 3324-1000. R$ 6 e R$ 3, grátis aos sábados. JEUNE FEMME À LA PELISSE BLANCHE,1944/SUCESSION H. MATISSE

Crônicas de Mino

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Crônica

Por Mouzar Benedito

Que raloín, que nada! E

Mouzar Benedito, autor, em parceria com o cartunista Ohi, do Anuário da Mitologia Brasileira, misto de agenda e livro de história do Brasil, mitologia brasileira e humor, pela Ed. Publisher Brasil

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la é uma velha feia e malvada. Tem uma verruga peluda na ponta do nariz, encurvado que nem bico de gavião. No raloín, quer dizer, Halloween, como escrevem os gringos e os que os seguem, lembram-se dela e ameaçam: um suborno (em forma de doces) ou usam as maldades dela contra nós. Para “festejar” (isso é festa?) o seu dia, muitas fantasias compradas às vezes por altos preços. É o estilo capitalista de festa. Tudo muito comercial. Comprar fantasias, comprar doces pra subornar os pentelhinhos ameaçadores... Não é à toa que essa festa só perde para o Natal em termos de gastos nos Estados Unidos. Até o Dia das Mães, inventado pelos gringos, perde para o raloín. Aliás, o Natal, como é hoje, também é invenção deles. O Natal cristão pré-Papai Noel era comemorado com a Missa do Galo, iniciada à meia-noite do dia 24 de dezembro e um almoço festivo no dia seguinte. Presentes, só no dia 6 de janeiro, e só para as crianças. Coisinhas simples – um caminhãozinho para os meninos e uma bonequinha para as meninas – para simbolizar os presentes dados pelos Reis Magos a Jesus. Um dia inventaram o Papai Noel, em Nova York. Só que ele tinha roupa azul. A Coca-Cola “adotou” o dito cujo e fez dele seu velho-propaganda. E ele se espalhou pelo mundo todo, transformando uma data religiosa em festa do comércio. Mas estamos falando do raloín, detestado por uma conhecida minha, bruxa moradora da ilha de Santa Catarina (onde tem muitas como ela). Mas não é a festa das bruxas? Nada! É das bruxas caricaturadas inicialmente pela igreja – que durante a Inquisição queimou muitas delas porque tinham uma sabedoria que não se sub-

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metia à religiosidade forçada da época – e depois pelos capitalistas gringos que transformam tudo em grana. Minha amiga bruxa reclama, com razão. Bruxa não tem nada a ver com isso. Aliás, ela mesma é bonita, linda. E não faz maldades. Bruxarias não significam maldades. Então, no dia 31 de outubro ela vai comemorar o seu dia, mas não o raloín. “É o Dia do Saci e seus amigos.” Isso mesmo, ela também é amiga do Saci. O Saci não é antibruxas, gosta delas. E a festa delas, com brincadeiras também para o Saci, inclui uma abóbora, só que não para assustar pessoas: como boas catarinenses, elas apreciam abóbora com camarão. Mas nem só as bruxas catarinenses merecem comemoração junto com o Saci. No Acre, por que não comemorar o dia do Mapinguari e do Saci? No Ceará, a Caipora e o Saci? Em beiras de rios e lagos, Iara e Saci. No Rio Grande do Sul, Negrinho do Pastoreio e Saci. Enfim, todos os nossos mitos, inclusive alguns vindos da Península Ibérica, são amigos do Saci. Escolhemos o Saci como símbolo do dia 31 porque ele é o nosso mito mais conhecido em todo o Brasil, não há lugar onde não o reconheçam. Além disso, é o mais simbólico: no início era um índio, depois foi adotado pelos negros e virou negro também e, por fim, ganhou o gorrinho mágico dos europeus. É a síntese do brasileiro. E mais ainda porque é perneta, de uma cor vítima de preconceitos e tão pobre que vive pelado (o calçãozinho é por moralismo da TV), mas é alegre e gozador. Brasileiro paca! Não é à toa que a cada ano mais e mais brasileiros de mais e mais lugares comemoram em 31 de outubro o “Dia do Saci e seus amigos” com música, bailados, brincadeiras infantis, filmes, exposições e tudo o mais que a imaginação permite, sempre com muita alegria. Entre nessa também.




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