TELEFONIA Entenda por que o brasileiro paga tão caro por um serviço tão ruim
nº 39
setembro/2009
www.redebrasilatual.com.br
CIDADE CEGA São Paulo despreza os moradores de rua DUAS ÁFRICAS No Zimbábue, um povo em fuga. Em Angola, um país se reconstrói
Maria Lustig: duas vitórias contra a doença
PESQUISA E CORAGEM Avanços da ciência e atitude dos pacientes vencem batalhas contra o câncer
Exemplar de associado. Não pode ser vendido.
JAGUAR É CULTURA Se você preza o politicamente correto, não leia a entrevista
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VAI ENTENDER... Mundo de famintos e desnutridos ainda joga fora 1/3 da comida produzida
A Previdência Social se tornou mais rápida e eficiente. Tanto que já reconhece direitos como salário-maternidade e aposentadoria em até 30 minutos. E ainda tem outras melhorias: • agendamento por telefone • maior rede de agências • extrato previdenciário eletrônico • carta-aviso para quem atinge condições de aposentadoria por idade.*
previdÊnCia SoCial. um novo tempo para o BraSil e para voCÊ.
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Ministério da Previdência Social
* Mantenha seus dados cadastrais atualizados.
Salário-maternidade aprovado em 30 minutoS.
Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Bernardo Kucinski, Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Evelyn Pedrozo, Jessica Santos, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Thiago Domenici, João Peres e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Regina de Grammont Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Nominal (11) 3063-5740 Poranduba (61) 3328-8046 Adesão ao projeto (11) 3241-0008 Atendimento: Claudia Aranda Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
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Conselho diretivo Admirson Medeiros Ferro Jr., Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Alberto Grana, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Edílson de Paula Oliveira, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sebastião Geraldo Cardozo, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Vinicius de Assumpção Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Luiz Cláudio Marcolino Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa
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REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2009
Mercado interno A reportagem sobre a inclusão social da edição 37 (A inclusão como resposta) mostra que a revista tem dado espaço importante para que o Brasil conheça os problemas do povo, o que a elite da comunicação não faz. A revista veio para ficar. Gilberto Paulino, João Pessoa (PB) gilbertopaulino13@hotmail.com No córner Parabéns ao professor João José Forni pelo comentário “de tanto distorcer, acabaram com a boca torta”, em alusão aos nossos jornalistas, na edição 37 (Jornalismo na linha do córner). Também concordo que a mídia “recebeu o troco da empresa-símbolo da nossa nacionalidade”, em referência ao blog da Petrobras. Cacilda Monteiro Gomes, Macaé (RJ) dagagomes@terra.com.br Salmões corados Moro no Brasil há 32 anos e é a primeira vez que vejo uma reportagem sobre a condição de uma classe trabalhadora no Chile. Quem vai a Santiago acredita que os chilenos são muito bem remunerados pelas coisas materiais que ostentam, mas mal sabe quanto precisam trabalhar para conseguir o padrão de vida que mostram ter. Hector Luis, Brasília (DF) hectorluis@uol.com.br Muita propaganda É lamentável que uma revista interessante como esta, que pretende ajudar a romper o latifúndio midiático, traga publicidade da ANP (Adeus Nosso Petróleo), justamente quando nossas centrais, movimentos e outras organizações lutam para mudar o marco regulatório do petróleo, para pôr um fim na farra dos leilões e por um programa que coloque essa riqueza sob controle e a serviço do povo brasileiro. Em outra ocasião, foi a publicidade da Vale do Rio Doce, logo em seguida ao plebiscito popular sobre a anulação do leilão. Qual será a próxima? Gustavo Erwin Kuss, Paraná gerwin@bancariosdecuritiba.org.br
Pouca propaganda Há tempos procurava encontrar uma revista que tivesse conteúdo variado, com pouca propaganda e assuntos interessantes. Já fui assinante de Veja, mas ela mudou muito. Kazumi Kuroda Sette Silva, Águas Claras (DF) kazumikuroda@terra.com.br Em meio à mesmice Recebo mensalmente a Revista do Brasil, entro sempre no site (www.redebrasilatual.com.br) e ainda sigo notícias no Twitter. É muito bom ter essa luz no fim do túnel em meio a tanta mesmice da grande imprensa. Anderson Diniz Bernardo, São Paulo andersonbernardo@gmail.com E os outros? Muito boa a reportagem sobre o novo salário mínimo na edição 32, de fevereiro de 2009. Gostaria de ver outra: sobre o salário dos aposentados comparado com a evolução do mínimo. Será que o governo pensa em melhorar o salário do aposentado ou este continuará em queda? Américo da Silva, Ribeirão Pires (SP) cspetrilli@ig.com.br Pode mais Acho que a revista ainda pode ser mais instigante, pois me parece que dedica muitas páginas a reportagens que perdem importância dada a série de notícias que ocorrem no mês. A nota sobre a disputa entre Marina Silva e Kátia Abreu e o “Retrato” sobre Boal (ed. 36) poderiam ser muito mais aprofundados. Acho também que, se a revista pretende não apenas informar mas servir de caminho para conscientização política, deve-se criar um espaço para textos de formação política, com contribuição de intelectuais. Daniel Araújo Valença, Natal (RN) danielvalenca1@yahoo.com.br revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.
Índice
Editorial
JOSÉ CRUZ/ABR
Trabalho 12 Pressões e decisões cruéis são de enlouquecer servidores da Justiça Brasil 14 Telefonia sem concorrência deita e rola sobre os reféns usuários Ambiente 18 Produtor do oeste baiano começa a ver fronteira da sustentabilidade Entrevista 22 Medicina não conseguiu desvendar os mistérios do fígado de Jaguar África 26 Mesmo em crise, sul-africanos abrem portas aos refugiados do Zimbábue Capa 30 Cirurgias, exames e terapias mais precisas para enfrentar o câncer Cidadania 34 Gestão Kassab empurra morador de rua de São Paulo para baixo da lona Consumo 38 De cada R$ 300 que gasta com comida, você joga R$ 100 no lixo
O país exposto pela mídia na cobertura política partidarizada afasta e aliena o cidadão comum
Aos problemas, soluções
E VITOR TAVEIRA
Dança na Praça Funes, em Narino, na Colômbia
Viagem 44 Nos Andes, 40 dias de peregrinação em Tahuantinsuyu, o Império Inca SEÇÕES Cartas 4 Ponto de Vista
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Resumo 9 Retrato 37 Curta Essa Dica
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Crônica 50
xistem dois brasis. Um deles sorri com a retomada da economia e com a rápida saída da crise mundial. Esse ambiente positivo é estampado em números, pesquisas e entrevistas de personalidades de ponta do mundo empresarial – nem sempre nas manchetes. Veículos de comunicação, outrora apoiadores incondicionais do modelo FMI/neoliberalismo/privatizações/Estado mínimo, agora dão vivas à salvação da economia com recursos que poderiam pôr fim à fome no mundo. Até uma revista semanal que louva ao deus mercado e odeia o governo Lula fez o seguinte registro numa edição recente: “O aumento da participação pública é natural diante de uma crise severa como a atual”. Como se o acerto na condução do país fosse automático, e não fruto de decisões políticas de quem está no governo. Publicações especializadas em negócios rejubilam-se com a recuperação da Bolsa, a flutuação do câmbio, o crescimento dos empregos, das exportações, do crédito, do comércio. O Brasil vive um crescimento dentro de um marco capitalista, de inclusão social e de consumo de milhões de pessoas que estavam nas zonas de miséria. Para um olhar mais crítico, esse mesmo país vê centenas de novos cidadãos fazer com que seus investimentos virem o primeiro milhão. Mas há outro Brasil em guerra, principalmente entre os partidos e homens públicos. A cobertura da mídia sobre o Parlamento é tão partidarizada que é difícil distinguir o certo do errado. Os cidadãos são chamados diariamente pelo noticiário não a identificar problemas e construir soluções, mas a alimentar um ódio, parecido talvez com o que se lê nos livros sobre a década de 1950, cujo gesto mais dramático foi o suicídio de Getúlio Vargas. Fazer sangrar o adversário é a meta do PSDB e do DEM de olho nas eleições de 2010. Isso porque estiveram na condição de “situação” ou na chamada “base de apoio do governo no Congresso” desde sempre, até 2006. E quase tudo o que fizeram foi digno de esquecimento – por parte da mídia e de seus próprios anais. O resultado é o afastamento das novas gerações do campo parlamentar e do interesse público, gerando em muitos aquele velho sentimento exposto em o Analfabeto Político, de Bertold Brecht. Está na hora de construir um pacto a partir do qual situações divergentes sejam tratadas com respeito e cidadania. Para que o processo político estimule as pessoas comuns a participar dos destinos do país, da sua cidade, de seu condomínio. E não para que se desinteressem, como parecem desejar nossos comunicadores, deixando a política apenas para os “interessados”. SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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PontodeVista
Por Mauro Santayana
Amazônia Brasileira S.A. Uma grande empresa, de controle público, poderia promover o uso sustentável dos recursos naturais, exercer a soberania sobre a região e criar milhões de empregos, diretos e indiretos, em diversas áreas
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Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980
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ntes que Vargas comandasse a Aliança Li- visitam a região como se se tratasse de território interberal e a Revolução de 1930, os pobres e nacional semelhante à Antártica. Organizações que se as mulheres não tinham presença na so- dizem “não governamentais”, financiadas com dinheiciedade brasileira. No Império, só os ho- ro estrangeiro, ocupam extensas áreas amazônicas, nas mens de posses tinham direito ao voto. quais exercem soberania de fato, proibindo até mesNa Primeira República, o voto era aberto e os patrões mo a entrada de brasileiros. Os próprios norte-amerideterminavam quem eleger, e seus jagunços vigiavam canos nos podem servir de referência para resolver o os eleitores. O voto secreto, o sufrágio feminino e, de- problema, com a Tennessee Valley Authority, a grande pois, uma legislação trabalhista foram instituídos no empresa estatal criada por Roosevelt para desenvolver governo Vargas. Havia ali, ainda, o pensamento de a área de 106 mil quilômetros quadrados beneficiada que nenhum país pode combater a injustiça interna se pela bacia do grande rio. não for capaz de se defender contra a inNão pode ser uma nova repartição pújustiça internacional. Seria dever de um Estamos blica, como a Sudam, mas sim uma empovo estabelecer sua identidade política diante da presa de economia mista. Temos boa exno mundo, assegurar suas fronteiras his- invasão periência com as companhias estatais, tóricas e utilizar os recursos naturais em criadas por Vargas e Juscelino. Muitas deda cobiça seu próprio desenvolvimento. Vargas exlas foram privatizadas pelo governo paspôs seu projeto nacional fundado nessas estrangeira sado, outras continuam sendo exemplares em duas duas evidências. na geração de tecnologia e emprego e na O Brasil, a partir de então, abandonou a frentes vitais formação de capital, como Petrobras, Furpostura resignada de ser um pequeno país para o Brasil. nas, Chesf, Copel e Cemig. Dentro e fora em território imenso e se deu conta de que, Uma delas do governo há estudiosos que aconselham sem a integração dos trabalhadores nesa criação dessa companhia de desenvolvié o petróleo se projeto, não sairíamos da periferia do mento da Amazônia, nos moldes da TVA mundo. Para os ricos, que viviam princi- do pré-sal. de Roosevelt. Ela coordenaria e executaria palmente da exportação de café, açúcar e A outra, a os estudos ecológicos e promoveria a exminérios, não interessava que os trabalha- Amazônia ploração, ordenada e sustentável, de seus dores tivessem educação e, menos ainda, recursos florestais, minerais, da biodiverconsciência política, porque implicava menos lucros. sidade e da água. Esse parece ser o caminho para exerA grande falha das lutas operárias estava na ilusão de cer a plena soberania sobre a região, que já se encontra que se resumiam aos salários e às condições do traba- infestada de estrangeiros. lho. Até hoje é difícil ao trabalhador que já adquiriu níEntre as ideias para viabilizar o projeto, há a de que o vel de vida decente, com os filhos nas escolas, automó- governo federal se articule com os estados interessados vel, casa, compreender que só na medida em que todos na criação de uma Amazônia Brasileira S.A. (como a os outros trabalhadores tiverem salários justos e em- Petróleo Brasileiro S.A.), com a maioria acionária conprego sua própria situação estará garantida. Para isso é trolada pela União e pelos estados e o restante em ações preciso que haja desenvolvimento em todo o país e em preferenciais, distribuídas apenas a cidadãos brasileibenefício de todo o povo brasileiro. É papel do sindica- ros. A empresa criaria milhões de empregos, diretos e lismo do futuro atuar para que o trabalhador enxergue indiretos na área ambiental, na ciência, na tecnologia, a amplitude de sua importância no cenário nacional. na produção industrial. É uma grande causa, cuja viEstamos diante da invasão da cobiça estrangeira em tória depende da mobilização dos trabalhadores orgaduas frentes vitais para o Brasil. Uma delas é o petró- nizados. E será um meio para que as forças sindicais leo do pré-sal. A outra, a Amazônia. Políticos norte- aumentem a importância de sua presença na sociedaamericanos, ingleses, alemães, franceses, noruegueses de brasileira.
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Resumo
Por Paulo Donizetti de Souza (resumo@revistadobrasil.net)
Sujeitos e...
Os dois sujeitos que jornais e revistas do país elegeram para atingir Lula e Dilma Rousseff perderam força de expressão. O primeiro, José Sarney, ainda é sujeito indefinido. Mas ficou latente que, se o interesse comum fosse a ética no Senado, não sobraria pedra sobre pedra. E que, em vez da cabeça de Sarney, a opinião pública pode passar a querer as da Casa inteira. O outro sujeito, Lina Vieira, já é oculto – ainda que até os 45 minutos do segundo tempo jornais e revistas tenham escolhido morrer atirando a admitir o teatro armado. A propósito, até mesmo no dia seguinte ao depoimento de Lina no Senado – quando a trama veio abaixo –, a Folha de S.Paulo, que havia parido Mateus e decidiu continuar embalando-o, estampou em capa a manchete: “Lina vê ingerência descabida de Dilma e reafirma encontro”.
Luzes no ventilador FÁBIO RODRIGUES POZZEMBOM/ABR
Enquanto rola a briga no Senado, Serra planeja novos pedágios
A guerra Globo X Record escancarou um festival de “podres” de parte a parte. Em longas reportagens, a TV da dinastia Marinho destacou os processos por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e exploração religiosa que recaem sobre Edir Macedo e sua Igreja Universal. E no canal do bispo foram minuciosas as lembranças do envolvimento da Globo com: o golpe e a ditadura; as manipulações contra Brizola, as Diretas Já e o governo Lula; e em empréstimos com dinheiro público no governo FHC. Num tempo em que notícias comprovadas ou não são o grande combustível de um certo grupo de senadores e deputados para alimentar sua sede por CPIs, e em meio a tantas denúncias, fica aí a sugestão do jornalista Altamiro Borges: CPI nelas.
...pre(ju)dicados
Tsunami e marolinha
De 303 empresas da Bolsa que tiveram balanços comparados pela consultoria Economática, 21 delas, os bancos, ficaram com quase um quarto dos lucros do primeiro semestre. O setor financeiro abocanhou R$ 14,3 bilhões (23,5%) dos R$ 61 bilhões lucrados no total, acima da Petrobras (R$ 13,3 bilhões). O setor de energia, com 36 empresas, ficou em terceiro, com R$ 7,8 bi. Chamou a atenção no período o comportamento no crédito. Do estopim da crise, em setembro, até junho deste ano, os bancos privados responderam por apenas 20% dos novos empréstimos e financiamentos. Os 80% restantes, que mantiveram o caixa de pessoas físicas e jurídicas abastecido e a economia em movimento, saíram dos estatais. Ou seja, a depender dos privados, o tsunami de fora poderia ter virado mais que marolinha aqui dentro.
Sede do BB, em Brasília: setor público segurou o tsunami
VANDER FORNAZIERI
Na mesma edição, de 19 de agosto, a Folha esconde no rodapé da capa a chamada “SP planeja dez novos pedágios na rota do litoral”. No miolo, caderno Cotidiano, o texto informa: “O plano do governo Serra é lançar ainda neste semestre a concessão à iniciativa privada de novos lotes de rodovias. Mas a tendência é que a cobrança de pedágio seja iniciada apenas depois das eleições estaduais e presidenciais de 2010”. O plano envolve a instalação de praças de cobrança na rodovias Rio-Santo, em Ubatuba e São Sebastião, e em todos os acessos a ela, partindo de Taubaté (Oswaldo Cruz), São José dos Campos (Tamoios) e MogiBertioga. Embora o assunto possa afetar alguns milhões de pessoas – desde o turismo até o deslocamento curto entre as várias localidades afetadas –, ficou relegado ao rodapé da edição.
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TRABALHO
O lado doente da
Justiça Pesquisa investiga como funcionários do Judiciário adoecem e enlouquecem por causa de autoritarismo, jornadas extenuantes e decisões desumanas Por Bernardo Kucinski
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FOTOS VICTOR CARLSON/DIVULGAÇÃO
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Brasil tem mais de 400 mil pessoas presas sem sentença, todas elas pobres. Em Alagoas, mais de 70% dos presos nunca foram condenados em definitivo. No Espírito Santo, um lavrador pobre ficou detido por 11 anos sem julgamento. Foi solto no mês passado. Essa foi uma das descobertas escabrosas dos mutirões do Conselho Nacional de Justiça, que até o início de agosto conseguiram libertar quase 5 mil presos em condições anormais. O fenômeno acontece porque a maioria dos brasileiros não tem acesso à defesa, o que torna a Justiça leniente com os ricos e injusta para os pobres. O que pouca gente sabe é que a nossa Justiça é injusta também para os que nela trabalham. É o que revela o estudo Os Operários do Direito, do médico Herval Pina Ribeiro, feita para o Sindicato dos Servidores do Judiciário Estadual de Santa Catarina. Recém-publicada em dois volumes, a pesquisa revelou grande incidência de traumas
ESCRAVOS DO PAPEL Fotos mostram o dia a dia nos locais de trabalho dos funcionários do Judiciário catarinense: alerta a todas as vítimas das pressões, do estresse e do medo nas relações de trabalho
e males nesses servidores, decorrentes de relações de trabalho estressantes e autoritárias ou do cumprimento de ordens judiciais perversas. “O que era para ser um serviço de atendimento à população virou uma fonte de enlouquecimento do trabalhador do setor público”, diz Volnei Rosalin, presidente do sindicato. Os depoimentos da pesquisa são impres-
sionantes. Como o desse oficial de Justiça que precisou se internar depois de cumprir uma ordem de reintegração de posse de um abastado dono de um terreno: “A mulher foi tirada de dentro da casa com seus quatro filhos e suas coisas foram acomodadas embaixo de um eucalipto. No finalzinho da tarde voltei para casa. O tempo armou e veio aquela chuvarada. Lembrei da cama da mulher,
era daquelas caminhas turcas, tipo sofá, que não tem como tirar o colchão. Entrei em estado depressivo. Caí na choradeira, tive um chilique e, no outro dia, fui internado, maluquinho da silva. Fiquei internado 30 dias”. Quase metade dos 2.200 funcionários que responderam à pesquisa revelou ter ficado doente depois de ingressar no Judiciário – com Lesão por Esforço Repetitivo, transtornos psíquicos, cardiovasculares e digestivos. O autor não trabalha com o conceito de doença ocupacional, mas com o princípio mais geral das determinantes socioambientais da passagem de um estado de saúde para um estado de doença. No caso dos funcionários do Judiciário, são as humilhações sofridas, o autoritarismo dos juízes, horas de trabalho longuíssimas, especialmente dos oficiais de Justiça, e o caráter antissocial de muitas missões que têm de executar. Herval Pina Ribeiro concentrou-se nas relações de trabalho como a mais importante das determinantes socioambientais da doença, seguindo a teoria marxista da alienação do trabalho numa sociedade de classes. O trabalho aliena da pessoa não apenas parte do valor da produção, mas também parte de sua consciência, ao obrigá-la a produzir o desnecessário, o fútil e até o pernicioso, caso de armas, por exemplo. As relações de trabalho são tão relevantes que determinam a saúde ou a doença até mesmo dos que estão fora dele, como a família do trabalhador e o desempregado. São todos influenciados pela mesma situação na qual o trabalho, embora fundamental na construção do homem e de sua identidade perante a família e os amigos, não é apropriado nem definido por ele. Isso danifica a saúde, corrói os nervos. “Consome a pessoa”, define Pina Ribeiro, ainda mais numa era em que se cobra sempre maior produtividade, responsável pela introdução do estresse e do medo nas relações de trabalho.
Visão crítica
No Judiciário, que é o mais importante de todos os aparelhos de controle social do Estado, tudo é muito pior, quando fornece toda a legitimação legal e doutrinária para as injustiças da sociedade e ainda colabora estreitamente com a polícia e o sistema carcerário, os aparelhos coercitivos de submissão dos que ousam transgredir a ordem estabelecida. O Judiciário é ao mesmo tempo uma agência ideológica do Estado e uma
agência de repressão física. Constituiu-se historicamente no baluarte do reacionarismo e dos interesses dos grandes proprietários, e assim continua. Daí a elaboração de uma visão crítica do sistema durante a pesquisa, que mudou a ótica dos participantes sobre si mesmos. No lugar de “servidor público”, passaram a usar a expressão “trabalhador do setor público”, para designar um assalariado do Estado a serviço da população e dos seus direitos de cidadania. A lealdade é para com o cidadão, não para com o Estado. E os conflitos de lealdade têm de ser resolvidos em favor do cidadão. Como relata um entrevistado: “Essa discussão deu um nó na minha cabe-
ritário do aparelho de Estado. Uma melhora substancial nas condições de vida desses funcionários só poderia ser alcançada com a elevação do seu nível de consciência, e com mudanças na qualidade do próprio aparelho de Estado, a começar por relações internas de trabalho mais democráticas e vinculadas ao atendimento do interesse público. Eis o que a pesquisa almejou em Santa Catarina, usando um método que Herval Pina Ribeiro chamou de “pesquisa-ação”, em que há intensa participação dos funcionários por meio de seminários – nos quais os relatos de vida e seus respectivos debates enriqueceram as hipóteses de pesquisa e elevaram o nível de autoconhecimento e de
ça. Eu não atinava para a diferença porque entendia que servir ao Estado era servir ao público. Devemos, como trabalhadores do Judiciário, ficar antenados para essas contradições e com as necessidades da Justiça”. Essa mudança conceitual tem implicações amplas na vida sindical, já que hoje um terço dos trabalhadores formais brasileiros está nos serviços públicos, na burocracia do Estado, no ensino, na saúde, no Judiciário e nos bancos. Embora a maioria seja muito mal remunerada, suas greves, mais do que justas, acabam se esvaziando. Atingem antes a população, e não o Estado, que em geral está se lixando para seus efeitos. No serviço público não há produção material de valor e o conflito não é patrão-operário. A relação é outra, mediada pelo interesse público e pelo caráter mais ou menos auto-
consciência política de todos. Foram realizados oito seminários, abrangendo desde a origem do sindicato e a história do Judiciário catarinense até o debate do “Judiciário que queremos”, tendo sempre os servidores como sujeitos da história, e não apenas meros objetos de pesquisa. Tudo isso elevou substancialmente o nível de ativismo do sindicato, que tem hoje 3 mil filiados, quase 70% da categoria em Santa Catarina. A entidade planeja agora abrir uma escola de formação política e lançar uma revista para o grande público. Um bom exemplo e indicativo para os setores do movimento ainda presos a concepções burocráticas e corporativas. Não por acaso veio de Santa Catarina, estado que tem produzido lideranças políticas progressistas de grande expressão. SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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Lenta, falh
BRASIL
As operadoras de telefonia fazem dos consumidores reféns de um péssimo serviço de banda larga – item hoje essencial para o acesso à educação e à informação Por Henrique Costa e Thiago Domenici
O
estudante de economia Pedro Henrique, 23 anos, tinha 13 quando o governo Fernando Henrique Cardoso realizou o leilão que, em 1998, privatizou o Sistema Telebrás – responsável por mais de 95% dos serviços públicos de telecomunicações. Onze anos depois, Pedro não entende por que paga tão caro para ter banda larga em casa, em Teresina, se o que ouvia quando era adolescente é que “mais avanço, tecnologia e eficiência” estavam por vir. Para acessar a internet pelo Velox de 1 megabyte, da Oi/Brasil Telecom, paga R$ 170 por mês – R$ 100 mais caro que no Rio de Janeiro. “Sou refém, não tenho opção de mudar para outro fornecedor”, protesta. E poderia ser pior: se estivesse no Amazonas, pagaria R$ 430 por um pacote 40% mais lento. O Brasil tem 11 milhões de usuários de banda larga (fixa e móvel), 60% na Região Sudeste (40% apenas em SP). As tecnologias mais comuns são a que usa a rede de telefonia fixa (ADSL), a que pega carona na TV a cabo e a 3G, que usa a rede da 14
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lha e cara VELOCIDADE MÍNIMA Apesar de pagar R$ 170 pela banda larga, o que Pedro mais vê na tela é a barra de download quase parada
telefonia móvel. “Testei o 3G da Claro, mas Associação Brasileira de Prestadoras de o serviço é muito ruim, uso como estepe Serviços de Telecomunicações Compepara as horas problemáticas do Velox”, de- titivas (Telcomp). Estela Guerrini, advosabafa Pedro. gada do Instituto Brasileiro de Defesa do A Agência Nacional de Telecomunica- Consumidor (Idec), resume: “O consumições (Anatel) admite que a oferta do mes- dor sabe que o serviço é ruim e caro, mas, mo serviço a preços diferenciados conflita se não tem opção, é refém”. com os princípios da Lei Geral de TelecoEm Portugal, Sérgio Denicoli, especiamunicações (LGT). Mas pondera que ban- lista em mídias digitais e pesquisador da da larga é serviço privado e as operadoras Universidade do Minho, não tem probletêm liberdade de estabelecer preços e con- mas com banda larga. “Podemos escolher dições. As operadoras alegam que as tari- entre dez empresas que oferecem os servifas são proporcionais ao investimento que ços. Aqui a internet móvel tem uma velotêm de fazer e, quanto mais discidade de 21,6 megabytes, custante dos grandes centros, mais tando o equivalente a R$ 80 por complexo é proporcionar inframês”, diz. A União Internacioestrutura. Em 2008, o governo nal de Telecomunicações (UIT) federal revisou o Plano Geral de banda larga coneé o lucro que considera Metas para a Universalização do xões iguais ou acima de 2 meServiço Telefônico Fixo Comu- a Telefônica gabytes; a média da velocidade tado, estipulando às empresas conseguiu mundial é de 13 megabytes. Em de telefonia fixa o compromisso no Brasil Portugal, uma vasta rede de fide levar infraestrutura de ban- em apenas bras ópticas possibilita acessos da larga a todos os municípios dez anos de até 100 megabytes. Cidades brasileiros até o final de 2010. O como Tóquio, Madri, Paris e plano, no entanto, não inclui preços. Hong Kong dispõem hoje de serviço simiAté aqui, a lógica das operadoras é co- lar para o mercado residencial. brar mais onde não há concorrência, e o Aqui, menos de 10% dos usuários da alta poder aquisitivo é menor, compensando velocidade navegam acima de 2 megabytes os preços mais baixos (que ainda são al- e a maioria das operadoras não garante a tos para os padrões internacionais) nas conexão plena. Está nas letrinhas miúdas regiões em que há disputa. Assim, a estu- do contrato: a empresa se compromete a dante Rafaela Rodrigues Dantas, 23 anos, “entregar” pelo menos 10% da velocidade de Maceió, não consegue bancar a inter- contratada, já que o serviço está sujeito a net rápida. Ela ainda usa o acesso discado. ser limitado por “questões técnicas”. O téc“É mais barato, mas devagar, não consigo nico J.S.S., que por dez anos prestou serviço ver vídeos, baixar música, e o telefone fica terceirizado para a Telefônica, de consertos e manutenção de rede, comenta essas quesocupado”, reclama. É um dos nós de um serviço de inte- tões técnicas. “Imagine um cano de água: resse público, mas de exploração privada, quanto mais você o divide entre as pessoas, tratado como negócio visando ao lucro, e menos fluxo terá para cada uma. É preciso sem a bendita concorrência. “Se o cliente investir numa estrutura com cano maior e não pode escolher entre quatro ou cinco com maior vazão de água desde a origem operadoras, a empresa não tem pressão e para que ela chegue jorrando forte em tose acomoda”, diz Luiz Cuza, presidente da das as torneiras”, explica.
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BENONIAS CARDOSO/PIAUÍ IMAGENS
bilhões
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Telefônica hexacampeã
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não era suficiente. Era preciso fazer mais e melhor...” – promete duplicação da capacidade dos servidores de acesso à internet. O presidente da Telefônica, Antonio Carlos Valente, conhece bem as regras da telefonia brasileira, inclusive até onde pode ser incomodado pela agência reguladora, pois também já presidiu a Anatel. A principal concorrência com a Telefônica (e com a Oi/BrT no restante do país), as operadoras de TV paga, como a Net, é regida por outra legislação e não está presente em todos os cantos. Em São Paulo, menos de um terço da população vive em áreas servidas de cabo. E os preços de uma e de outra não chegam exatamente a competir.
Derrubava mesmo
Os serviços de relacionamento e reclamações dos clientes são feitos pela Atento, uma subsidiária espanhola da Telefónica que atua em 17 países, a maioria na América Latina. No Brasil desde abril de 1999, atualmente tem 73 mil empregados e 400 outros clientes. Exige dos admitidos ensino médio, fluência verbal, boa dicção, dinamismo, bom relacionamento interpessoal, conhecimentos de informática.
RICARDO LEDO
Em São Paulo, por R$ 5,7 bilhões, a estatal paulista Telesp foi para as mãos do grupo espanhol Telefónica, que atua em 35 países. Em uma década (1999-2008), o lucro do grupo no Brasil somou mais de R$ 18 bilhões. A taxa de felicidade dos clientes, porém, não acompanhou a dos espanhóis. No mesmo período, a empresa liderou seis vezes (1998, 1999, 2000, 2001, 2006 e 2008) o ranking de reclamações do Procon. Na rede social Orkut, a comunidade virtual “Eu odeio a Telefônica” tem 19 mil adeptos. Adriano Mendes, que trabalha numa lan house da capital, é um deles. “Às vezes passa um dia, dois dias sem internet, sem contar a lentidão de uma hora para outra, e eles não dão satisfação”, reclama. A “vedete” do momento da empresa é seu serviço de banda larga, o Speedy. No último dia 22 de julho a Anatel proibiu a venda de Speedy para novos assinantes após quatro “apagões” em menos de um ano, com interrupções que chegaram a 36 horas, prejudicando negócios e serviços públicos, como a emissão de boletins de ocorrência e a renovação de documentos. Outra iniciativa tardia foi a reativação do Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações, que não se reunia havia nove anos. “A pane é produto do corte de gastos com manutenção e pessoal”, afirma o procurador Duciran Farena, coordenador do Grupo de Telefonia do Ministério Público Federal (MPF), que faz coro à opinião de especialistas da área que apontam a falta de investimento e qualificação de pessoal como o cerne das falhas. Segundo reportagem da revista Teletime, especializada na área, um mecanismo administrativo chamado “Mesa de Compras” ajuda a entender a questão. O método instituído pela Telefônica consiste em premiar os empregados terceirizados não por soluções alcançadas, mas sobre o que economizam. Seria como um plano de saúde premiar médicos que evitam despesas com exames laboratoriais, cirurgias e internações, ainda que a saúde ou a vida do paciente seja posta em risco. A companhia menciona investimentos de R$ 500 milhões no Speedy em 2008 e outros R$ 750 milhões até o final de 2009. Sua campanha de marketing defensivo – começa com “Tudo o que a Telefônica vinha fazendo para enfrentar os seus problemas
FALTA CONCORRÊNCIA Rafaela não tem dinheiro para pagar a banda larga. Usa o acesso discado, que é mais lento e ainda inutiliza a linha telefônica
Estudo recente do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostra que o setor de telecomunicações emprega hoje menos do que há dez anos. No teleatendimento, a maioria é de jovens (55% entre 18 e 24 anos). O estudante de computação Luiz An-
MAURICIO MORAIS
PERDAS E DANOS Adriano tenta tocar uma lan house. Negócio difícil quando se depende da Telefônica
dré, 22 anos, trabalhou no suporte técnico do Speedy para a Atento por dois anos. E diz que o famoso som do “pi, pi, pi”, que enerva o cliente na busca de solução para o seu problema, ocorria sempre. “A gente derrubava ou deixava o cliente na linha até ele cansar”, conta. “Como o salário fixo era baixo, quanto mais ligações a gente atendesse, mais podia incrementá-lo no fim do mês. Se a gente ficava longe da meta, acelerava.” Luiz esclarece que não era ordem da empresa deixar o cliente esperando ou derrubar ligações, mas a pressão era inerente à jornada. “A gente tomava bronca se ficasse mais de três minutos na linha. Ir ao banheiro era problema. Colocava a pausa no telefone e ia, só que os supervisores registravam.” Os casos simples eram resolvidos na hora, como “usuário e senha errados” ou “placa de rede desconectada”. Os maiores problemas, no entanto, eram de sinal. “E quando a gente não tinha ideia do problema falava que era erro geral: ‘O problema é na região inteira; ligue mais tarde, por favor’.” Expressões como “oferecemos aos nossos empregados uma compensação competitiva” ou “a companhia investe em programas cujo objetivo é incentivar o desenvolvimento e a motivação dos funcionários” estão no site da Atento, onde também trabalhou Renata Falconeri, de 21 anos, de 2006 até este ano – saiu por desentendimentos com um gestor de área. “Ele gritou comigo no meio da operação”, explica. Com o enquadramento da atividade telemarketing na norma regulamentadora do Ministério do Trabalho NR-17, que
determina entre outras medidas de proteção à saúde pausa de 10 minutos para cada 50 trabalhados, a situação melhorou um pouco, segundo ela. “Operador não tinha tempo de comer, beber água, e levava advertência se estourasse os minutos de lanche.” No entanto, Renata revela que as técnicas “motivacionais” da empresa eram motivo de chacota. “Davam balas e doces pra motivar uma boa venda ou meta cumprida. Brincávamos que íamos sair diabéticos e obesos dali. Davam outras coisas, bicicletas e tevê, mas para uma multinacional desse porte deveriam valorizar o funcionário com melhores salários”, finaliza. Em julho, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça divulgou um levantamento com base nos registros do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec) – que integra os Procons estaduais e mais 60 municipais. O setor de telecomunicações foi responsável por mais de 600 mil queixas entre maio de 2005 e abril de 2009, o que representa uma em cada três reclamações. O Ministério Público de São Paulo formalizou em fevereiro um processo contra a Telefônica alegando danos morais e materiais aos consumidores. A ação civil pública pede indenização de R$ 1 bilhão. Em outro processo, Oi/Brasil Telecom e Claro também foram acionadas pelo DPDC/MJ por descumprimento das regras de atendimento em call center. As ações cobram de cada empresa multa de R$ 300 milhões.
Problema de origem O Sistema Telebrás, estatal, unia a Embratel, de longa distância, e as telefônicas estaduais. A preparação para a privatização, em 1998, começou três anos antes, período em que as tarifas das assinaturas básicas subiram 2.000%. A primeira avaliação de mercado da Telebrás, R$ 40 bilhões, levava em conta a demanda futura de acesso à internet. O lobby privado fez com que os contratos de concessão fossem reduzidos à telefonia fixa. “Queriam pagar menos pela Telebrás, porque uma coisa é comprar uma empresa que pode prestar múltiplos serviços e outra coisa é uma que pode prestar um só”, diz Flávia Lefévre, advogada do Instituto Pró-Teste de Defesa do Consumidor. O lance inicial caiu para R$ 13,5 bilhões e o preço final atingiu R$ 22,5 bilhões. Para os defensores do leilão, “ágio” de 67%. Para os
críticos, prejuízo de R$ 18 bilhões. “Perdemos muito mais depois, porque as empresas foram constituindo sua rede de dados sem obrigação nenhuma, nem de universalização, nem de qualidade.” A Lei Geral de Telecomunicações (LGT) aprovada criou duas categorias de operadoras no sentido de “fomentar a concorrência”: as concessionárias, vencedoras dos leilões, e as autorizadas a competir com elas. As autorizadas não tinham obrigação de universalização, mas não podiam apresentar preços mais baixos que as concessionárias. Com exceção da operadora GVT, na Região Sul, nenhuma obteve sucesso. O mercado ainda é controlado basicamente por três empresas: a espanhola Telefônica (que opera rede fixa e detém metade da Vivo e a Tim), a Oi/Brasil Telecom e a mexicana
Telmex, dona da Embratel, da Claro e da Net. A LGT também não inclui a banda larga como serviço essencial, ao lado da telefonia fixa. Pesquisa realizada pela International Data Corporation Brasil (IDC) indica que apenas 5% dos brasileiros têm banda larga, menos que no Chile e na Argentina, próximos de 8%. O sociólogo Sérgio Amadeu, autor de Exclusão Digital – A Miséria na Era da Informação, diz que é necessária uma política pública no setor, como existe para saúde e educação. “Qual a estrutura básica para a inclusão digital? Banda larga. O governo deveria incluí-la no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) como estratégica. A inclusão digital, além de um direito humano, vai ajudar a melhorar a qualidade do serviço privado e reduzir os custos da comunicação”, destaca.
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AMBIENTE
Respeito à fronteira Violações à reserva legal do Cerrado, destruição de matas ciliares e uso intensivo de agrotóxicos marcam a história da agricultura no oeste baiano. Com aumento da fiscalização e mercado mais exigente, produtores decidiram se mexer Por Marcel Gomes
À
margem esquerda do rio São Francisco, o oeste baiano é uma das maiores fronteiras agrícolas do país. O plantio de soja, algodão e café avança em suas terras planas do Cerrado. A região é a maior produtora nacional de algodão, com mais de 1 milhão de toneladas colhidas por ano, e a sétima no ramo da soja. Cada safra gera para os 39 municípios da região uma riqueza estimada em R$ 2,4 bilhões, visíveis no crescimento de bairros nobres e no trânsito de picapes de luxo em cidades como Barreiras, Luís Eduardo Magalhães e São Desidério. Mas tamanho desenvolvimento também veio acompanhado de degradação ambiental. Casos de desrespeito à reserva legal (os 18
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20% que uma fazenda deve manter de cerrado nativo), destruição de matas ciliares e uso intensivo de agrotóxicos marcam negativamente a história de muitos produtores locais, que finalmente decidiram se mexer. Reunidos na Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), firmaram parceria com o governo federal e estadual, o Ministério Público e ambientalistas em busca da regularização de suas propriedades. “Não queremos ficar de fora da legislação”, diz José Cisino Menezes Lopes, diretor de meio ambiente da Aiba. Neste mês de setembro, inicia-se um amplo processo de cadastramento das fazendas, identificação dos passivos e planejamento da recuperação, que deve durar três anos e custar R$ 4,2 milhões – dinheiro dos
próprios produtores. A expectativa é que, após esse período, a maior parte das propriedades rurais esteja de acordo com o Código Florestal, que é ainda letra morta em diversas fronteiras agrícolas do país. Mais do que uma crise de consciência, a mudança de atitude é fruto de maior fiscalização das autoridades e da pressão do mercado externo, alvo comercial dos produtores locais. Atualmente, a metade do algodão colhido é exportada. O projeto de regularização ambiental do oeste baiano foi iniciado em julho de 2008, a partir de uma pesquisa de monitoramento por satélite do uso do solo em sete municípios da região. O trabalho, feito pela Universidade de Brasília em parceria com o governo federal e a organização não
governamental The Nature Conservancy (TNC), identificou rios, estradas, áreas de vegetação nativa e atividade agropecuária, núcleos urbanos, irrigação, reflorestamentos e açudes. Os dados revelaram cidades como Cocos, com 83% de matas ainda preservadas, e outras, como Luís Eduardo, com apenas 43%. De posse das informações, a TNC procurou os produtores para negociar. “Nossa proposta era repetir a experiência que a TNC teve em Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, onde um projeto semelhante cadastrou 100% dos produtores”, explica Afonso dalla Pria, especialista em agronegócio e conservação da ONG. Segundo ele, o programa em Lucas, iniciado em 2006,
também realizou a identificação do passivo ambiental e a orientação para que os produtores começassem a recuperação das áreas. Apoiado por grandes agricultores locais, especialmente sojicultores, e pela prefeitura, o projeto fez com que no ano passado 80% da matas ciliares degradadas já estivessem em recuperação. No caso do oeste baiano, após a execução do monitoramento por satélite, a TNC entrou na fase de cadastramento e identificação de passivos ambientais dos agricultores, mas a resistência foi grande. A previsão era cadastrar mil produtores de três municípios da região – Riachão das Neves, Luís Eduardo e Barreiras – entre abril e julho de 2009, mas apenas 200 se habilitaram. Para
FOTOS CODEVASF/DIVULGAÇÃO
CUSTO ALTO Canais e estações de bombeamento foram construídos para levar água a centenas de plantações, como a de banana, em Bom Jesus da Lapa, Bahia. As facilidades agora geram avanço sobre áreas de preservação
Dalla Pria, muitos ficaram com receio de que estariam fazendo uma autodeclaração de culpa quanto ao passivo ambiental, tornando-se alvos de processos. Para colaborarem, propuseram então um arranjo legal ao governo da Bahia, o que só foi conquistado nos últimos meses. Primeiro, foi firmado um acordo entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o governo do estado em torno das operações de fiscalização. O objetivo era aumentar a influência da legislação estadual sobre o tema ambiental, garantindo que acordos fechados no estado não fossem derrubados no âmbito federal. O receio tanto do governo baiano quanto da Aiba era que houvesse uma repetição da Operação Veredas do SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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Ibama, realizada no oeste da Bahia em novembro de 2008. A Operação Veredas, a maior executada em área de cerrado no ano passado, foi desencadeada por 40 fiscais e resultou em 73 autos de infração e termos de interdição, a maioria por desmatamento irregular. Foram emitidos R$ 33,7 milhões em multas e realizado o embargo de 57,9 mil hectares de terra. “A operação revelou a situação de calamidade ambiental da região”, diz Vânia Maria Passos dos Santos, analista ambiental do Ibama em Barreiras. Após o acordo com o Ibama, o governo baiano promulgou em julho a Lei Estadual nº 11.478, que permite a redução de até 90% de multas por irregularidades ambientais cometidas por agricultores, desde que entrem no projeto de regularização. “É a regra do jogo que eles queriam”, diz Dalla Pria. Com isso, o representante da TNC acredita que o projeto pode ter resultados semelhantes aos de Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso. Para garantir a transparência do processo, a condução do cadastramento dos produtores ficará a cargo da TNC, mas a Aiba e sindicatos rurais participarão do conselho de administração do projeto.
Velho Chico
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PRODUTO PARA EXPORTAÇÃO Na margem esquerda do Velho Chico estão as maiores fazendas de algodão do país
FOTOS MARCEL GOMES
Além da regularização ambiental, governo, produtores rurais e ONGs chegaram a um acordo sobre a cobrança do uso da água do rio São Francisco. A decisão foi tomada no âmbito do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio, no qual todos esses setores possuem representação. Prevista pela Lei nº 9.433, de 1997, mais conhecida como Lei das Águas, a cobrança só é aplicada hoje em duas grandes bacias hidrográficas brasileiras, ambas no Sudeste – a do rio Paraíba do Sul e a dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Seu objetivo é garantir que usuários das águas, como agricultores, empresas de saneamento e indústrias, financiem projetos de preservação dos mananciais, definidos pelo comitê. “A cobrança no São Francisco começa no início de 2010”, avisa o gerente de cobrança pelo uso de recursos hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), Patrick Thomas. Os valores foram definidos no mês de maio pelo comitê. Na captação de água sem tratamento, a taxa será de R$ 0,01 por metro cúbico. No consumo, que responde pela parcela da água captada que não retorna ao rio, sobe para R$ 0,02. E será mais alta no
ÁGUA DE BEBER Lavadeira dá banho em sua filha no São Francisco: a agroindústria terá de pagar pela água tirada do rio
caso de lançamento de dejetos ou água contaminada, chegando a R$ 0,07 por quilo de carga orgânica. Atualmente, o Comitê da Bacia e a ANA articulam a fase de implantação da cobrança, com a contratação provisória de uma empresa para administrar os recursos. Estima-se uma arrecadação de R$ 20,6 milhões por ano, a serem aplicados em projetos que vão desde estações de tratamento de esgotos até disseminação de modelos agrícolas mais sustentáveis. Primeiro, apenas produtores que captam água diretamente do São Francisco pagarão a taxa, mas logo a conta deverá chegar para aqueles que usam poços ou água de afluentes do rio. Isso porque, de acordo com Thomas, o início dos pagamentos em uma bacia hidrográfica estimula outros comitês de bacia a fazer o mesmo. É o que ocorre, por exemplo, com o rio Grande, que cor-
ta o oeste baiano antes de desaguar no São Francisco, cujo comitê já está tratando do assunto. “Mas é um processo que leva tempo e instituir a cobrança pode demorar um pouco”, alerta o gerente da ANA. Diferentemente do São Francisco, que é considerado um rio da União por cruzar mais de um estado – nasce em Minas Gerais e passa por Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, antes de desaguar no oceano –, o rio Grande é de responsabilidade estadual, uma vez que possui nascente e foz dentro do território baiano. As águas subterrâneas, captadas para irrigação e também passíveis de cobrança, são por lei sempre controladas pelos estados. No oeste da Bahia, a agricultura irrigada representa 5% da área plantada. São 80 mil hectares beneficiados por 800 pivôs, de um total de 1,5 milhão de hectares cultivados. Trata-se de um dos maiores perímetros irrigados do país.
Se os agricultores aparentemente estão satisfeitos, o mesmo não acontece com ambientalistas. Para Martin Mayr, da ONG 10Envolvimento, com sede em Barreiras, e integrante do Comitê da Bacia do São Francisco, os valores a serem cobrados são “ridiculamente baixos”. “Os R$ 20 milhões estimados talvez não sejam suficientes nem sequer para manter os funcionários que farão a cobrança”, critica Mayr. Vale lembrar que a taxa não será aplicada apenas na Bahia, mas em todos os estados por onde passa o São Francisco, e os projetos de preservação terão de ser distribuídos por toda essa extensão. Crítica semelhante é feita por Edilson de Paula Andrade, da secretaria executiva do Comitê da Bacia do rio Paraíba do Sul. Os valores cobrados ali são os mesmos previstos para o São Francisco. Segundo ele, a arrecadação anual é de R$ 8,5 milhões, insuficientes para o desenvolvimento de projetos, em especial no ramo de saneamento, que é prioridade na bacia, mas cujos custos de obras são sempre milionários. “A solução foi usar os recursos como contrapartida para outros projetos maiores”, explica Andrade. “Para viabilizar um projeto de R$ 6 milhões com a Sabesp (companhia de saneamento e abastecimento de São Paulo), por exemplo, damos R$ 1 milhão de contrapartida”, completa. Estratégia desse tipo foi utilizada pelo Comitê da Bacia do Paraíba do Sul em projetos nos municípios paulistas de São Luís do Paraitinga e Taubaté. Para os produtores rurais ligados à Aiba, no entanto, os valores da cobrança não poderiam inviabilizar a produção. “As taxas definidas para o São Francisco são razoáveis. E o produtor entende que, quando paga, também garante o direito à água”, afirma Cisino. De acordo com cálculos da ANA, o impacto da cobrança no São Francisco sobre os custos de produção agrícola serão de apenas de 0,26%. Uma conta maior será paga pelo setor de saneamento, cujo custo subirá 3%. “Os produtores têm uma reação normal de resistência no início, afinal veem a cobrança como mais um custo. Mas nossa experiência mostra que, quando conhecem o instrumento, como os recursos são gastos e quais os benefícios, mudam de ideia e passam a ser favoráveis. Foi assim nas outras bacias e é assim no São Francisco”, explica Patrick Thomas. SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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ENTREVISTA
Entre os muitos mistérios que a medicina não decifrou, um envolve diretamente o fígado desse jornalista, cartunista e um dos personagens mais folclóricos da imprensa e da boemia nacional Por Tom Cardoso
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LUCIANA WHITAKER
Fígado de Jaguar
A
os 77 anos, e consumidor de chope há mais de meio século, ele próprio calcula: 10 chopes por dia, em média; 3.650 por ano; mais de 200 mil litros de experiência. O fígado do cartunista, por um milagre, está zerado. Ao médico ele foi apenas uma vez nas últimas cinco décadas, por insistência da mulher, a sanitarista Célia Pierantoni. Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o Jaguar, se diverte trabalhando. É assim desde que entrou para a revista Manchete, em 1958. Na época, conciliava o trabalho de desenhista com o de escriturário do BB. Seu chefe era ninguém menos do que Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Trabalhou em grandes publicações, da Senhor, de Paulo Francis, ao Última Hora, de Samuel Wainer. Hoje é consultor de humor da Desiderata, editora responsável pelos melhores lançamentos em quadrinhos dos últimos anos e pelas antologias de O Pasquim – o tablóide que marcou época nos anos 1960-1970, tendo à frente ele próprio e os melhores vagabundos de Ipanema, como Ziraldo, Paulo Francis, Tarso de Castro, Millôr Fernandes, Luiz Carlos Maciel, Sérgio Cabral. A entrevista, ainda inédita, estava guardada pelo repórter há dois anos. Mas, assim como o fígado do sabatinado, resistiu firme ao tempo. Vocês fizeram história com O Pasquim, mas também cometeram gafes. Recusaram publicar, em 1969, trechos de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, que havia acabado de ser lançado.
Quem se recusou a publicar foi o Tarso. Todo mundo achou o livro genial, até então desconhecido, mas o Tarso, que era o chefe, bateu o pé: “Imagina se O Pasquim vai publicar livro de cucaracha!” Não saiu uma nota.
Mais tarde se redimiram e fizeram uma entrevista com o García Márquez no Pasquim.
É, foi em 1971, quando ele veio ao Brasil pela primeira vez, para ficar hospedado na casa do Oscar Niemeyer em Canoas (RJ). Toda a intelectualidade estava presente: Ferreira Gullar, Glauber Rocha, todo mundo. Quando cheguei para a entrevista, o Darcy Ribeiro estava ensinando ao García Márquez como trepar em rede sem levar tombo. Eu é que deveria ter tido aquela aula... Logo depois de sair do Exército, fui à Amazônia, tipo aventura mesmo. Decidi trepar com a filha da dona da pensão numa rede. Levei um tempo e quase quebrei o crânio. Eu é que deveria estar na rede com o Darcy, tendo aulas.
Vocês entrevistaram mulheres lindíssimas no Pasquim. O Tarso deixou alguma pra você?
Só a Betty Friedman (feminista americana). Depois da entrevista, descolei uma garrafa inteira de batida de limão e fomos bebê-la no Antonio’s. Depois da oitava dose, eu já estava achando a Betty parecida com a Ava Gardner. Tentei beijá-la, mas ela me deu uma joelhada.
Já tomou viagra?
Tomei uma vez. Mas só para me masturbar. Viagra é ótimo para a memória: de vez em quando eu esqueço como é uma mulher nua.
Ao contrário do Ziraldo, você diz que já broxou várias vezes...
Já broxei muito. Você não sabe como é bom broxar. O cara que não broxa é como um vibrador: liga, aperta o botão, e pronto. É uma delícia ficar insistindo. E tem outra coisa: a mulher adora quando consegue fazer o cara sair do prejuízo, se sente orgulhosa, uma heroína. O cara que vive de pau duro não pode dar esse prazer à mulher. E outra coisa: é mentira que o Ziraldo nunca broxou. O bordão dele é mentiroso. Eu tenho como provar. Andei namorando uma cantora lésbica, muito bonitinha. Não vou dizer quem. De repente tem filho dela por aí. Vai me processar. Nós fomos para um hotel. No meio da conversa, surgiu a história do Ziraldo, de que ele nunca havia broxado. Ela levantou indignada: “Não é bem assim, não”. E eu: “Como você sabe?” E ela: “Ele esteve comigo e não aconteceu absolutamente nada”. Parece que ele fumou um baseado e vomitou. Na verdade, é preciso dar um certo crédito ao Ziraldo, já que não foi tecnicamente uma broxada. Ele nem chegou a ficar de pau duro. Eu também sou assim: toda vez que fumei maconha, vomitei.
A cocaína era a droga da moda do Pasquim.
Todo mundo cheirava, todo mundo. Menos eu, que ficava na biritinha. Ah, o Sérgio Cabral também não. Ele já sabia que seria pai do futuro governador do Rio. Não podia dar bandeira.
É verdade que o Carlos Drummond de Andrade era louco por sua primeira mulher, a Olga Savary?
Sim. Ele cansou de dar em cima da Olga. Nós nos encontramos na mesma lotação, a caminho da cidade. Naquele tempo, ainda não havia o aterro e as ondas batiam à beira-mar e molhavam todo mundo dentro do ônibus. E o Drummond ali, impassível. Ele era caladão, como o Manuel Bandeira, mas gostava de mulher. Era um velhinho assanhado. Eu morava na mesma quadra que ele e de vez em quando ele passava pelo meu prédio. Cantou a Olga no elevador, de um jeito discretíssimo, é claro. Ela me contou e eu mandei avisá-lo que iria enchê-lo de porrada. Imagine, eu batendo no meu ídolo, o Drummond.
Quando você decidiu viver do humor?
Eu era um garoto asmático, muito doente. Enquanto os outros caras jogavam bola, andavam de bicicleta, eu sofria com a asma. Meu pai é paulistano, mas morou muitos anos no Sul. Era apaixonado por Buenos Aires, pelas bibliotecas de lá. Aqui não tinha biblioteca, não tinha nada. Ele trazia uma pilha de livros da Argentina, tudo o que você podia imaginar: Kafka, Baudelaire, Rimbaud. E os livros que você lê dos 11 aos 18 anos são
O Carlos Drummond de Andrade era caladão, como o Manuel Bandeira, mas era um velhinho assanhado. Cansou de dar em cima da Olga, minha primeira mulher
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os livros que o marcam. E eu não fazia outra coisa. Só lia. Essa foi a vantagem de ter asma. A única, mas me salvou. Eu sou carioca, mas, por causa dos meus problemas de saúde, meu pai decidiu morar em Juiz de Fora e depois em Santos. Quando melhorei da asma, mudei para o Rio. Acho que o meu pai preferia que eu continuasse asmático. Seu pai não desistiu de pagar seus estudos?
Quando casei com a Célia, eu achava que jornalista era a categoria que mais bebia. Passei a frequentar sua roda de amigos e descobri que médico bebe muito mais que jornalista
Não. Ele me matriculou no Colégio Rio de Janeiro. Não durei uma semana. Fiz uma redação e usei uma palavra pouco usual. E o professor: “Olha, a redação está boa, mas você usou uma palavra que não existe”. Respondi na mesma hora: “O que não existe é um professor de português ignorante, que nunca leu Eça de Queiroz. Analfabeto!” Ele me deu uma reguada. Passei por mais alguns colégios e finalmente concluí o curso clássico num colégio do Largo do Machado. Aí veio o Exército. Foi uma carreira brilhante. Cheguei a cabo e terminei a carreira rebaixado, como soldado raso.
Por que foi rebaixado?
Por causa de um sargento chamado Gambine. Ele cismou que eu era veado porque era intelectual. Lia Rimbaud o tempo todo. E eu era o soldado 424, olha o meu azar. E todo mundo ali, perfilado, e o sargento Gambine me chamava: “Ô, 424, passo a frente!” E jogava um fuzil no meio do meu peito, com toda a força. E perguntava: “Que fuzil é esse?” Toda a tropa já sabia o que eu ia responder: “É uma espingarda”. O sargento ficava furioso. Nos oito meses que fiquei no Exército, passei, pelo menos, a metade preso, por causa da maldita espingarda. Acabei rebaixado, depois de ser pego em flagrante por um comandante. Por ser cabo, eu era chefe da guarda de um monumento histórico na Barra da Tijuca. Comandava três soldados. Um dia, um comandante, que nunca ia lá, resolveu levar a família para conhecer o forte. Chegou lá e viu os quatro soldados de cueca, cercados de garrafas de pinga. Minha carreira militar acabou ali. Cheguei a comer a mulher de um sargento. Eu e metade da tropa. Ela era ninfomaníaca.
Foi sua primeira vez?
Não. A primeira foi com duas empregadas. Eram duas alemãs, de Santa Catarina. E eu, magrinho. Elas me pegaram, levaram para o quarto delas e me curraram. E diziam que se eu contasse para a minha mãe cortavam meu pau. Fiquei traumatizado. Quando me lembro da minha primeira experiência, fico horrorizado. Deixei de comer muita prima por causa das duas alemãs.
O Hélio Fernandes (irmão de Millôr) chegou a dizer que você desenhava mal e que jamais deveria largar o trabalho de escriturário...
Ele estava certíssimo. Sempre fui um péssimo desenhista.
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Mas seu chefe no Banco do Brasil, o Sérgio Porto (o célebre cronista e humorista Stanislaw Ponte Preta), dizia que você levava jeito...
O Sérgio Porto era fantástico. Foi uma sorte que eu dei. Já tinha procurado outros empregos, mas nada dava certo. Cheguei a trabalhar numa agência de publicidade, mas vi que não levava jeito. Depois fui vender vinhos em lojas. Recebi um mostruário e bebi tudinho. Eu era um desastre. Aí resolvi entrar para a Marinha Mercante. Fiz um concurso e passei. Meu plano era ficar rodando o mundo, enchendo a cara e comendo mulher. Aí me apaixonei e casei com a Olga Savary. Tinha de levar a vida a sério. Resolvi fazer concurso para o Banco do Brasil e passei. Mas tirei zero em datilografia, que na época ainda não era eliminatória. E o meu trabalho seria justamente datilografar ordem de pagamento.
E como se virou?
Eu cheguei lá, vi qual era o meu serviço e resolvi ir embora. O meu chefe me pegou pelo braço e perguntou: “Você tem algum parente médico?” Eu disse que tinha vários primos médicos. E ele: “Pega uma licença médica e faz um curso intensivo de datilografia. Qualquer débil mental aprende a bater a máquina. Até você”. Era o Sérgio Porto. Ele já era um grande cronista...
Sim, escrevia na Tribuna da Imprensa. Ele ficou seis meses comigo e se demitiu. Depois, me chamou para ilustrar os livros do Stanislaw Ponte Preta. Eu ia lá na casa dele, na Leopoldo Miguez, em Copacabana. Fomos muito amigos. Ficamos várias vezes de porre em pleno expediente. Às vezes aconteciam algumas cagadas. Eu fazia ordem de pagamento para o mundo inteiro. Era para mandar uma ordem de pagamento de 10 mil coroas para Copenhague, na Dinamarca, e mandei de 100 mil. E pagaram! Foi possível conciliar o trabalho no Banco do Brasil com o de cartunista na revista Manchete?
Sim. Naquela época todo humorista tinha de ganhar a vida com algum emprego sério. Eu entrei na Manchete no lugar do Borjalo, que tinha sido contratado da revista O Cruzeiro, celeiro dos grandes chargistas da época. Fiz um concurso, promovido pelo Nahum Sirotzky, diretor da Manchete. Passei, junto com outros dois chargistas, o Claudius, do Sul, e o Brandão, que era do Maranhão. O Brandão, aliás, estava animadíssimo, com as malas prontas para vir pro Rio. Eu perguntei: “Vai viver do quê? De cartunista? Vai morrer de fome, arruma um emprego logo”. Ele entrou no concurso do Banco do Brasil e largou a carreira de humorista. Alguns anos atrás o encontrei. Ele estava desgostoso com a vida de bancário. Culpa minha.
Você participou da equipe fundadora da revolucionária revista Senhor...
É. Fui demitido da Manchete pelo Sirotzky. Eu fiquei puto. Saí espalhando barbaridades sobre ele, dizendo que era um centauro, metade cavalo e metade também. Eu não sabia, mas ele já estava tramando, em 1959, a revista Senhor, junto com o Carlos Scliar e o Paulo Francis. Quando o projeto deixou de ser segredo, ele me chamou. Foi a publicação mais importante editada no país. É claro que O Pasquim teve sua importância, mas a Senhor reuniu um time imbatível, de Rubem Braga a Drummond, de Fernando Sabino a Carlinhos Oliveira. Fiquei até o fim, em 1964. Eu tenho essa característica. No Pasquim, também fiquei do primeiro ao último número. Só na Bundas (extinta revista de humor, lançada por Ziraldo) saí no meio, brigava muito com o Ziraldo.
Sua mulher consegue acompanhá-lo na bebedeira?
Você continua brigado com o Ziraldo?
É. Se tivesse ressaca eu não bebia. Não aguentaria. Eu nunca contei, como o Romário, mas acho que já bebi mais de mil litros de chope
Não. A gente briga como dois irmãos brigam. Somos amigos há mais de 50 anos. Só que eu não concordava com essa história de Bundas, de Pasquim 21, de tentar resgatar os tempos do Pasquim. O jornal já está na história. Não há mais clima para resgatá-lo.
Vocês passaram um tempo na Vila Militar, no episódio que ficou conhecido como a “Gripe do Pasquim”. O único que não foi preso foi o Millôr. O Tarso de Castro jura que ele fez acordo com os militares.
Eu não sei de nada. O que eu disser aqui vai ser puro “achismo”. Só sei que fui parar na cadeia por pura chantagem sentimental do Paulo Francis.
Que chantagem?
Eu estava muito bem escondido, na casa de um dos maiores reacionários da história: o Flávio Cavalcanti. O cara que depredou o Última Hora, do Samuel Wainer. Ou seja, não seria encontrado nunca pelos militares. Estava em excelente companhia, com a Leila Diniz, tomando o uísque do Flávio Cavalcanti, sem culpa. Eu estou lá, no bem-bom, e liga o Paulo Francis, que já estava preso: “Vocês têm de se entregar só para prestar depoimento. Se não vierem, eles não soltam a gente”.
E você?
Eu disse que não ia. Que não queria ser preso. Ele fez uma voz dramática, embargada, e disse: “Segue a voz da sua consciência”. Fodeu. Fiquei com remorso. Liguei para o Sérgio Cabral, contei a história, e ele decidiu ir comigo. No meu caminho, encontramos o Flávio Rangel: “Eu também vou”. E eu: “Mas eles nem te chamaram!” E ele: “E como fica a minha consciência?” E o pior é que o Rangel estava com uma mala enorme, pronto para prestar depoimento! É claro que os caras iriam aproveitar e enquadrá-lo ali mesmo. Quando chegamos em frente à Vila Militar, eu tive uma intuição e disse para o chofer do táxi: “Volta para o primeiro boteco que você encontrar”. Tomei um copo de cachaça e me entreguei. Ficamos dois meses e ninguém interrogou a gente porra nenhuma.
Vou dizer uma coisa: quando casei com a Célia, eu achava que jornalista era a categoria que mais bebia. Depois que passei a frequentar a roda de amigos da minha mulher, descobri que médico bebe muito mais.
Qual foi o maior bebum que conheceu?
É verdade que você não tem ressaca?
Vai ao médico, se cuida?
Eu não me cuido porra nenhuma. É um milagre. Não tenho horário para comer, não faço ginástica, não ando. No máximo ando um quarteirão, de bar em bar. Só fui ao médico agora, quando urinei sangue. Minha mulher me obrigou a marcar uma consulta, não teve jeito.
Algo de grave?
Não, nada. O médico perguntou há quanto tempo eu não marcava uma consulta. Eu disse que há 20 anos e que atribuía a esse longo período o fato de ainda estar vivo. Eles fizeram todos os exames. Gastei uma fortuna, pois não tenho plano de saúde. Só não fiz toque retal. O médico disse que queria me apalpar e eu disse que ele só conseguiria se chamasse dois negões. Ele olhou espantado para mim e quis saber o porquê dos dois negões. E eu: “Para me segurar”. Acabei não topando, e nunca vou fazer. Vou morrer virgem.
FOTOS LUCIANA WHITAKER
Bebum qualquer um pode ser. Conheço gente que toma três cervejas e já fica de porre. O Roniquito (Ronaldo de Chevalier, economista) era assim. Tomava dois uísques e já queria partir para a porrada com todo mundo. O Paulinho Mendes Campos (escritor) também. O difícil é ser um bom bebedor.
É muito bom broxar. O cara que não broxa é como um vibrador: aperta o botão, e pronto. A mulher adora quando consegue fazer o cara sair do prejuízo, se sente orgulhosa, uma heroína
Você chegou a dizer que quando morresse queria que suas cinzas fossem espalhadas por todos os bares em que bebeu. Vai ter cinza suficiente?
Para você ser cremado, é preciso registrar em cartório, né? Fui lá e o cara me perguntou: “Como você quer que suas cinzas sejam espalhadas?” E eu: “Quero que as minhas cinzas sejam espalhadas pelos bares em que bebi no Rio”. O cara fez a mesma pergunta: “Será que vai dar?” Eu disse: “Se não der, é só pegar um pangaré velho, queimar e juntar tudo”. Mas, como não confio muito nesses caras de hoje, eu mesmo vou fazer um ensaio geral da minha cerimônia de cinzas.
Já começou a ensaiar?
Ainda é cedo, mas já fiz a lista: serão dez bares por dia durante alguns meses. Minha mulher acha meio mórbido, mas estou decidido. A ideia é ótima. Meus amigos também acham. Estão todos animadíssimos com o meu funeral. SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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ÁFRICA
Refúgio no caos
Mesmo com crise e desemprego de 20%, a África do Sul liberou a entrada de imigrantes devido à situação calamitosa do Zimbábue. Sem trabalho, dinheiro ou comida, refugiados ainda acham que a vida ali está melhor Por Rafael Pirrho
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Assentamento na cidade de Musina
FOTOS MÉDICOS SEM FRONTEIRAS/DIVULGAÇÃO
“B
em-vindos ao Zimbábue”, disse o enfermeiro Tragedy Matsvaire ao entrar na Igreja Metodista, no centro de Johanesburgo, África do Sul. No prédio de cinco andares, há poucos pontos de luz, vidros e portas quebrados, mau cheiro e sujeira. Alguns imigrantes se deitam nos corredores e nas escadas, sem se importar com o vaivém e com a superlotação. Numa cozinha improvisada, mais de cem refugiados se espremem no chão, dividindo espaço com suas malas. As panelas com comida também ficam no chão, e as pessoas vão até elas aos poucos – não por falta de fome ou excesso de educação, mas porque não há espaço para todas se movimentarem ao mesmo tempo. A situação é desumana. E todos estão lá por
SOBREVIVENDO Tendai Tatirenijika: “Até vou à escola, mas não consigo estudar, porque faltam luz e espaço”
SUPERLOTAÇÃO No prédio da Igreja Metodista, em Johanesburgo, os refugiados dormem até nas escadas. E há fila do lado de fora em busca de uma vaga
CONTRASTES No Zimbábue reina a barbárie de um ditador. Em Angola o povo reconstrói seu país
Angola Zimbábue
África do Sul
opção. “É impressionante ver tanta gente vivendo nessas condições, mas elas me dizem que aqui é melhor que no Zimbábue”, explica Sedi Mbelani, psicóloga que atende crianças que moram na igreja. O ambiente é hostil aos visitantes. Em meio ao caos que já dura mais de um ano, os imigrantes tentam se organizar. Toda sextafeira representantes se reúnem em um salão para discutir seus problemas. Há espaços destinados aos casais, outros para jovens e crianças, um indício de que essa já não é uma situação transitória. São quase 3 mil zimbabuanos instalados permanentemente e outros 2 mil dormindo nas calçadas, à espera de um lugar ali dentro. Todos refugiados de uma catástrofe que devastou um dos países mais promissores da África até a década de 1990.
Há 29 anos no poder, o ditador Robert Mugabe arruinou o Zimbábue com megalomania, repressão e ações autoritárias. O ápice da crise ocorreu a partir de 2000, quando Mugabe promoveu uma reforma agrária forçada, tirando terras dos brancos, maiores produtores do país, e destruindo a produção agropecuária. A nação mergulhou num colapso ainda sem fim. Calculase que mais de 90% da população não tem emprego e quase 70% vive abaixo da linha da pobreza. Quando a moeda oficial foi suspensa, em abril, com uma hiperinflação superior a 230.000.000% ao ano, circulavam notas de até US$ 500 trilhões (dólares zimbabuanos) – tão imprestáveis que vinham com data de validade. As pessoas precisavam carregar centenas delas para uma simples compra na padaria. Enquanto isso, em fevereiro, Mugabe gastou US$ 250 mil (americanos) para organizar sua festa de 85 anos, com direito a 5 mil garrafas de uísque, 2 mil de champanhe francês, 8 mil caixas de chocolate Ferrero Rocher, 8 mil lagostas e 100 quilos de camarão. “Lembro como meu país era maravilhoso há alguns anos. Tínhamos comida, casa, trabalho, não faltava nada. De repente tudo acabou. Não há mais nada, nem esperança”, lamenta a zimbabuana Nosuthu Silongwe, que se mudou com os três filhos pequenos para Johanesburgo.
Olhe para mim
Diante da tragédia no vizinho, a África do Sul, maior economia do continente, aboliu este ano a necessidade de visto para zimbabuanos. Eles agora têm direito de entrar e permanecer no país por até seis meses. Na prática, no entanto, é impossível monitorar a situação de cada imigrante, com tamanho afluxo. Além disso, a simples permissão não resolve o problema. “A África do Sul sinalizou que os refugiaSETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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FOTOS MÉDICOS SEM FRONTEIRAS/DIVULGAÇÃO
dos são bem-vindos, e isso é positivo. Mas as pessoas continuam sem atendimento médico, segurança ou lugar para morar. O país não tem como dar conta de tudo sozinho, por isso apelamos para que a ONU e a comunidade internacional interfiram”, pede Eric Goemaere, coordenador da Organização Médicos Sem Fronteiras na África do Sul. Estima-se que 3 milhões de pessoas – um quarto da população do Zimbábue – tenham atravessado a fronteira com a África do Sul. A principal porta de entrada é a cidade de Musina, no norte do país. No ano passado, o fluxo se intensificou, desagradando a muitos sul-africanos, que acusam os imigrantes pelos altos índices de violência e pobreza, pelo desemprego de 23% e pela disseminação de doenças como a aids.
SEM ESPERANÇA Nosuthu e seus filhos: “Lembro como meu país era maravilhoso”
Cooperação em bom português O idioma, a técnica e a identidade cultural fazem dos médicos brasileiros personagens importantes da reconstrução de Angola Por Elisângela Cordeiro
C
olonização portuguesa centenária, plantações de café, negros, escravos, independência, diversidade cultural, tambores e berimbaus, entre o samba e o semba, Silvas e Santos. As semelhanças e a identidade histórica e cultural entre Brasil e Angola vão muito além do idioma. E têm encurtado o caminho de grande parte daqueles que atravessam o Atlântico em direção ao país africano, onde a medicina é uma das atividades mais desenvolvidas por brasileiros. Depois de uma década e meia de guerra pela independência (declarada em 1975) e outras três décadas de guerra civil (encerrada em 2002), Angola se vê ao mesmo tempo em processo de reconstrução e de busca do desenvolvimento econômico. “O longo período de guerra fez com que muitos deixassem o país, que sofre com a carência de profissionais. Os médicos angolanos que permaneceram não puderam desenvolver adequadamente suas habilidades específicas, sobretudo em procedimentos de alta complexidade”, explica
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Fábio Luiz Vieira, médico brasileiro que viveu na capital Luanda por mais de dois anos, atuando como coordenador do Programa de Melhoria da Capacidade de Resposta dos Hospitais Nacionais. “Os profissionais que conseguiram se especializar estudaram em outros países. Quando voltam, enfrentam dificuldades em razão da falta de equipamentos adequados.” O governo local procura ampliar sua
autonomia para resolver os problemas de saúde sem precisar mais encaminhar cidadãos doentes para outros países. Um departamento, a Junta Médica de Angola, foi criado para decidir quais casos devem ser tratados no exterior. As despesas com traslado aumentam ainda mais os gastos com saúde. “A solução foi investir em treinamento e incorporação tecnológica: formar o médico em Angola e criar condições para que atue com equipamentos e materiais adequados”, diz Vieira. Estima-se que o país tenha 2 mil médicos para mais de 16 milhões de habitantes, ou seja, um médico para cada 8 mil habitantes – a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda um para cada mil. Como 1.500
Juntando os cacos Angola conquistou sua independência de Portugal em 1975, após quase 15 anos de guerra, e continuou em processo de guerra civil até 2002. O país, cuja língua oficial é o português, tem mais de 20 idiomas e dialetos. A língua nativa mais falada é o umbundo e a segunda, tradicional da capital Luanda, é o quimbundo. O petróleo, os minérios e os diamantes colocaram Angola no mapa da disputa geopolítica. Uma boa referência histórica está no documentário Para Não Esquecer de Angola, do diretor Marcelo Luna, produzido pela Maianga Produções (www.maianga.com.br). A democracia ainda está em processo de amadurecimento. As eleições legislativas de 2008 foram consideradas um passo importante e preparatório para a eleição presidencial programada para 2010. O país encontra-se em plena fase de reconstrução de vida social, do funcionamento de suas instituições e de resgate de sua dignidade e identidade. Seus avanços políticos, sociais e econômicos são tidos como referência para o desenvolvimento do continente africano.
desses profissionais, parte deles vinda de Cuba e do Leste Europeu, estão em Luanda, onde vivem 3 milhões de pessoas, a situação fora da capital é ainda mais dramática. O projeto de Melhoria da Capacidade de Resposta dos Hospitais Nacionais teve início em 2007 e já capacitou profissionais nas especialidades de ortopedia, cirurgia do aparelho digestivo, otorrinolaringologia, ginecologia, urologia e oncologia. A parceria organizada pelo Ministério da Saúde de Angola envolve universidades e hospitais brasileiros. José Eduardo Monteiro da Cunha, professor da Universidade de São Paulo, foi o responsável, em Angola, pela primeira cirurgia do aparelho digestivo por meio da técnica de videolaparoscopia em um serviço público, realizada no Hospital do Prenda, em Luanda. “Hoje eles praticam esse procedimento, o que representa um avanço na técnica cirúrgica. Trata-se de uma sofisticação que traz resultados como cirurgia menos invasiva, recuperação mais rápida e menos tempo de internação”, explicou Cunha, pouco antes de embarcar para Angola para mais uma etapa do treinamento de capacitação. De acordo com o diretor científico e pedagógico do Hospital do Prenda, Eduardo Kedifobua, entre setembro do ano passado e agosto deste ano foram realizadas mais
de dormir ao lado dos homens, sem ninguém para vigiar. Até vou à escola, mas não consigo estudar, porque faltam luz e espaço”, lamenta Tendai Tatirenijika, de 19 anos. Durante a entrevista, a jovem usava uma camisa onde se lia, em inglês, a frase “Olhe para mim”. A estampa soava mais como apelo do que simplesmente como moda. A situação deprimente em que Tendai e outros milhares de compatriotas vivem chamou a atenção do enfermeiro zimbabuano Tragedy Matsvaire, que abriu as portas da Igreja Metodista para a Revista do Brasil. Em 2007, Tragedy esteve na África do Sul e conheceu a situação dos imigrantes. Voltou ao Zimbábue para buscar a mulher e os três filhos e se candidatou a uma vaga no posto de saúde que presta serviço aos imigrantes no local. “Minha decisão não teve nada
a ver com uma questão profissional. Vim para ajudar. Para mim não era uma escolha, era uma obrigação. Tenho muito orgulho do meu trabalho aqui”, explica Tragedy. Mas o trabalho, como ele próprio reconhece, é apenas paliativo. Sem higiene e alimentação adequadas, os pacientes voltam ao consultório sempre com os mesmos problemas. Ao deixar a igreja, às 18h30 de uma sextafeira, a reportagem foi assaltada. Os ladrões, nervosos, não viram a mochila nem o aparelho GPS dentro do carro. Só levaram um telefone celular. Não foi possível saber se eram imigrantes ou criminosos locais, se eram zimbabuanos ou sul-africanos. Mas eram, certamente, vítimas de uma mesma tragédia, da mesma falta de espaço, de emprego e de moradia para tanta gente, produtos do caos simbolizado por aquele prédio.
FÁBIO LUIZ VIEIRA/ARQUIVO PESSOAL
A insatisfação de radicais sul-africanos transformou-se em violência. No ano passado, em maio, uma onda de ataques xenofóbicos em várias cidades do país deixou 62 estrangeiros mortos e outros 13 mil desabrigados. De lá para cá a igreja passou a receber ainda mais gente, em busca também de segurança. Como não há espaço para todos, muitos dormem nas calçadas, o que causa superlotação no quarteirão. No início de julho, a polícia prendeu, numa só noite, 344 pessoas instaladas nas ruas, incluindo crianças. Por isso, quem já conseguiu espaço dentro da igreja não pretende sair de lá, mesmo sem ter condições mínimas de moradia. Muitas pessoas dizem que os ataques, organizados e com conivência policial, pararam por pressão da Fifa, mas acreditam que devem voltar depois da Copa do Mundo de 2010. “Infelizmente não há privacidade, temos
DESAFIO Cirurgião brasileiro treina equipe de médicos angolanos
de cem cirurgias videolaparoscópicas do aparelho digestivo. O médico angolano destaca que os profissionais brasileiros são escolhidos não só pela facilidade do idioma, mas sobretudo por sua qualidade técnica reconhecida internacionalmente. Os desafios para melhorar a qualidade do serviço público de saúde em Angola ainda são grandes. Além de ampliar a formação de médicos e de consolidar uma boa infraestrutura hospitalar, o país precisa investir no fortalecimento da rede básica, com centros e postos de saúde. Os
existentes ainda são poucos em relação às demandas da população. “O atendimento a gestantes e aos recém-nascidos é insuficiente e se reflete na alta taxa de mortalidade infantil. Assim como o tratamento da malária, todos os problemas de saúde com diagnósticos precoces seriam resolvidos mais facilmente por meio da estruturação da rede básica de saúde”, avalia o brasileiro Fábio Luiz Vieira, que atualmente se dedica à elaboração de projetos de continuidade da cooperação brasileira para a melhoria dos hospitais de Angola.
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CAPA
VIVO E CANTANDO Com o apoio decisivo da mulher, André voltou a cantar e a reger
A
sentença foi recebida pelo maestro André Infante, da Orquestra Sinfônica de Santos (SP) em 1987: o tumor de mais de seis quilos deveria ser reduzido com quimioterapia para então ser retirado, e não haveria tempo. Por decisão de Marília, sua mulher, que o via definhando a cada dia, o tratamento recomendado foi interrompido no início. Depois de alguns dias, ele fez a cirurgia para a retirada do sarcoma de retroperitônio, no Hospital do Câncer A.C. Camargo, na capital paulista. Trata-se de um tumor pouco comum, que afeta tecidos como músculo, gordura e nervos, muito semelhante ao que acomete o vice-presidente da República, José Alencar. Nesses 22 anos, André passou por 22 cirurgias: “A doença é como uma trepadeira na árvore. Sempre cresce e precisa ser aparada”. O maestro teve retirados parte do intestino grosso, um rim, baço, um pedaço do diafragma e do pâncreas. Mesmo assim vive bem e sem medicação. 30
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Cinco anos depois de ser operado pela primeira vez já podia levantar os braços para reger a orquestra. Aos 71 anos, canta e atinge tons tão altos que ninguém diria que ele passou por tudo isso. Segue uma rotina de consultas, tomografia, ressonância magnética e exames de sangue periódicos. O tratamento “classe A” é pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ele faz questão de ressaltar. “Meu sonho era ver minha filha crescida, e hoje ela já tem 22 anos”, diz. André se beneficia dos avanços no tratamento do câncer obtidos nos últimos anos. A cada dia a ciência revela mistérios dessa doença que todo ano mata mais de 6 milhões em todo o mundo. “Cada pessoa tem sua própria constituição molecular, por isso responde a tratamentos de maneira diferente. Esse conhecimento permite biópsias mais completas e estratégias terapêuticas específicas e bem-sucedidas”, diz Carlos Gil Moreira Ferreira, chefe do serviço de pesquisa do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro.
o retorno da doença. Por enquanto, o que já se sabe sobre o perfil genético de alguns tipos de leucemia está ajudando os médicos a decidir pelo tratamento ou cirurgia mais adequados. “Temos também tecnologia para determinar a quantidade de células doentes que ficaram no corpo depois do tratamento, o que está ligado aos riscos de recaída. Só há cura quando o número de células doentes é bem pequeno e o organismo consegue combater”, diz Petrilli. Outro avanço foi a descoberta de que muitos casos começam com lesões benignas. É o caso de um pólipo – espécie de verruga – localizado no intestino que pode virar câncer. Hoje se sabe que por meio de uma colonoscopia é possível removê-lo. Bactérias que causam irritações na mucosa do estômago podem evoluir para tumores malignos. Vírus como os da hepatite B (HBV) e C (HCV) estão entre as causas do câncer de fígado. E falta de higiene, isso mesmo!, pode provocar uma irritação crônica na cabeça do pênis também capaz de virar câncer, cujo tratamento muitas vezes é a amputação. O problema é tão sério que levou a Associação Brasileira de Urologia a lançar campanha nacional para esclarecer a população. A constatação de que a doença em muitos casos pode ser evitada veio com as descobertas sobre o cigarro, associado a 90% das ocorrências de câncer, que por progredirem rapidamente reduzem as chances do tratamento. Segundo o Inca, das 4.700 substâncias que produzem o cigarro e sua fumaça, 60 são cancerígenas. Parte delas é absorvida pela mucosa da boca e da garganta. Outra parte segue para os pulmões. Os exames também avançaram. A ultrassonografia evoluiu e se aliou à tomografia computadorizada, à ressonância magnética e a outras variações. Por exemplo, o PET Scan, capaz de detectar tumores minúsculos e suas ramificações pelo corpo, as metástases, e de indicar se o tratamento está sendo bem-sucedido. A radiotera-
Avanços contra o câncer
Essas terapias, as chamadas drogas-alvo, agem especificamente em alguns pontos da célula cancerosa. É o caso de fármacos desenvolvidos para mulheres com câncer de mama, que têm em suas células receptores do hormônio estrógeno, alimentadores do tumor. Sem a ação hormonal, o tumor deixa de evoluir. Ou das novas drogas quimioterápicas chamadas anticorpos monoclonais. Uma delas é o cetuximabe, que impede o desenvolvimento e propagação de vários tipos de câncer. “Conhecendo as características do tumor e do paciente, é possível tratar de maneira personalizada. Há 20 anos, havia um só tratamento para todas as pessoas”, explica Ademar Lopes, diretor do departamento de cirurgia pélvica do Hospital do Câncer. Para Sérgio Petrilli, oncologista pediátrico da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e superintendente do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graacc), esse conhecimento levará, no futuro, a métodos que impeçam a proliferação ou mesmo
Casos mais comuns no Brasil
ALEXSANDER FERRAZ
Nas duas últimas décadas a ciência descobriu que a doença pode ser prevenida e combatida com exames, medicamentos e cirurgias mais precisos. O Brasil começou a investir tarde e precisa tirar o atraso para democratizar o acesso aos diagnósticos, à prevenção e ao tratamento Por Cida de Oliveira
Entre homens Entre mulheres Pele 55.890 Pele 59.120 Próstata 49.530 Mama 49.400 Pulmão 17.810 Colo de útero 18.680 Estômago 14.080 Colorretal 14.500 Colorretal 12.490 Pulmão 9.460 Fonte: Inca/RJ – Projeção de casos entre 2008 e 2009
pia, que emite radiações sobre o tumor e promove um desequilíbrio molecular que leva à morte as células cancerosas, é cada vez mais precisa. A modalidade mais moderna, a conformacional, é capaz de irradiar apenas a área do tumor e amenizar as sequelas. A combinação de quimioterapia, radioterapia e cirurgia leva à cura em 70% dos casos de leucemias e sarcomas (tumores ósseos), que afetam mais crianças e adolescentes. Em outros, as chances são de 90%. Se houver metástase, 50%. “Nos sarcomas, a quimioterapia é feita ao longo de 12 semanas. Então, o ortopedista tira o tumor e coloca uma prótese interna, preservando o braço ou a perna. As amputações só são necessárias quando há infiltração nos vasos sanguíneos”, explica Sérgio Petrilli. Até o final dos anos 1970, os doentes eram submetidos a amputações e mais de 80% morriam até dois anos após o diagnóstico. O êxito da terapia e, principalmente, a manutenção do membro dependem do diagnóstico precoce. SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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O desenvolvimento da quimioterapia e da radioterapia e o maior conhecimento dos aspectos biológicos do câncer de mama impulsionaram o avanço na cirurgia. Até a década de 1980 eram retirados todo o órgão, os músculos da região e as glândulas da axila, e os resultados estéticos, funcionais e emocionais eram desapontadores. Hoje, quando o tumor ainda é menor do que 3 centímetros, é possível a retirada de apenas um quarto da mama, com excelentes resultados. Em alguns outros casos, porém, é realizado o procedimento tradicional. Foi o que aconteceu com a terapeuta Maria Vargas Lopes Lustig. Em 2007, com exames periódicos recém-feitos e resultados normais, ela percebeu que o mamilo esquerdo estava retraído e a aréola, inchada e vermelha. O médico, procurado às pressas, suspeitou de uma mastite (inflamação da mama), mas mandou fazer novos exames e uma biópsia. O tumor era tão agressivo que cresceu 2 centímetros em 15 dias. Em um mês e meio, mais 1,5 centímetro. A mastectomia total precisou ser feita poucos dias depois. Maria conta que, ao contrário de quando teve câncer no útero, em 2001, e foi submetida à retirada do órgão, dessa vez pôs para fora seus sentimentos como forma de terapia. “Procurei amigos, professores, orei muito”, diz. Depois da cirurgia vieram as sessões de radioterapia, quimioterapia e a queda dos cabelos. Fez ioga e psicoterapia e ainda faz exercícios. Embora se sinta constrangida em ir à piscina, por exemplo, não se sente pronta para a reconstrução mamária. Mas tem certeza de que está bem. “Saí da doença fortalecida.” As cirurgias deverão ser ainda mais precisas e pouco invasivas graças aos robôs, que já operam experimentalmente em diversos centros oncológicos. Medicamentos contra dor, infecção e vômitos – comuns durante a quimioterapia – também melhoraram. Em muitos centros de tratamento há apoio psicológico, nutricional, reabilitação para sequelas de cirurgia em tumor cerebral (que hoje são menores) e ambiente mais acolhedor. Iniciativas como as do Graacc, onde 95% dos pacientes vêm do SUS, têm reduzido a zero a desistência do tratamento. A escola móvel, com grupo de professores e voluntários, impede que a criança fique longe dos estudos. E há apoio à criança mais pobre durante o tratamento, como hospedagem e alimentação para ela e acompanhante. No passado, 10% delas desistiam. “E desistir de tratar é morrer”, lembra Sérgio Petrilli.
FORÇA A terapeuta corporal Maria Lustig superou dois tumores, um no útero e outro na mama
Todas essas boas notícias são fruto de pesquisas intensificadas há quase 40 anos. Em janeiro de 1971, o presidente americano Richard Nixon declarou guerra ao câncer e injetou mais verba em pesquisa. Vinte anos depois, os resultados começaram a aparecer. Segundo a Sociedade Americana do Câncer, desde 1991 o número de mortes pela doença cai a cada ano. No Brasil, ainda não é bem assim. Nas duas últimas décadas o número de mortes aumentou 43%. Entre os principais fatores desse crescimento estão o envelhecimento da população, a urbanização, dietas alimentares inadequadas e o tabagismo. A idade é um importante fator de risco por uma razão matemática: é mais tempo de exposição a agentes como cigarro, sol, alimentos gordurosos e industrializados lotados de aditivos químicos e radiação ionizante – como aquelas emitidas por raio X –, entre outros. Estima-se que em 2025 o país terá cerca de 30 milhões de pessoas com mais de 60 anos. Mas a pesquisa por aqui só começou a ser incrementada de 2005 para cá, quando o governo federal passou a investir mais recursos.
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REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2009
MAURICIO MORAIS
Investir em prevenção
AVANÇO Ademar Lopes, do Hospital do Câncer: “Hoje são curados 50% de todos os tipos da doença. Poderíamos curar até 90%, com diagnóstico precoce e tratamento apropriado”
Como e por quê
REGINA DE GRAMMONT
n O organismo é formado por trilhões de células. O câncer é uma alteração em uma delas, que se torna anômala e passa a se multiplicar. n De 5% a 10% dos cânceres têm origem hereditária. Mais de 90% são adquiridos durante a vida, devido à exposição a agentes físicos, químicos e biológicos. n O fator de risco isolado mais importante é a idade. Quanto mais a pessoa vive, mais se expõe. Em 1950, a expectativa de vida de uma pessoa ao nascer era de aproximadamente 40 anos. Em 2000, de 72. Só isso já é razão para que o número de casos praticamente dobre.
Aqui e no mundo, um grande desafio do câncer é conhecer mais profundamente os complexos mecanismos internos das células cancerosas. Há algum tempo, quando os cientistas descobriram que uma droga chamada inatimibe impedia o crescimento celular em alguns tipos de leucemia, muita gente imaginou que isso se aplicaria também a outros tumores. Porém, como cada tipo tem características próprias, são necessários vários mecanismos. Por isso um grande alvo são terapias que impeçam o desenvolvimento da célula tumoral. Os cientistas buscam também a individualização dos tratamentos para o maior número possível de tumores. Para especialistas, tão importante quanto achar respostas em nível celular é resolver a carência de investimentos em saúde capazes de democratizar o acesso a exames mais modernos para o diagnóstico precoce e o tratamento adequado. Ricardo Caponero, da Associação Brasileira de Câncer, ressalta haver lei no país que garante o acesso à mamografia, mas faltam mamógrafos. O rastreamento desarticulado do tratamento é outro nó das estratégias. “Tem mutirões que identificam 12 mulheres com tumor na mama entre 400 examinadas, mas não há como tratar todas. Então, por que rastrear?”, questiona Caponero. Outra crítica é quanto ao autoexame das mamas, que para ser eficaz depende de treinar a mulher para fazê-lo tal como os médicos. Além disso, entre a detecção, a biópsia e a cirurgia, passa muito tempo. Apenas alguns hospitais públicos, como o da Unifesp, o Pérola Byington e outros poucos centros de referência, fazem os exames na hora, e com isso ajudam a curar mais.
Saiba mais n Associação Brasileira de Câncer: www.abcancer.org.br n Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer: www.graacc.org.br n Hospital A.C. Camargo (Hospital do Câncer): www.hcanc.org.br n Instituto Nacional do Câncer: www.inca.gov.br n Guia gratuito sobre direitos da pessoa com câncer: www.oncoguia.com.br n Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica: www.sboc.org.br n Sociedade Brasileira de Urologia: www.sbu.org.br
Outra medida preventiva urgente é conter o agente causador. O câncer de colo de útero, mais comum que o de mama em muitas regiões brasileiras, pode ser prevenido com a vacinação de meninas de 9 a 11 anos contra o HPV, vírus também associado ao câncer de faringe. São necessárias três doses, cada uma a R$ 200. “Para começar, a ação pode ser focalizada em grupos de maior risco”, opina Caponero. “O tratamento de uma mulher com câncer de colo uterino custa US$ 3 mil, com baixa taxa de cura; tratar lesões iniciais custa em torno de US$ 50, com 100% de cura. De todos os casos, 95% são provocados por HPV.” A vacinação contra hepatite pode ser aliada também contra o câncer de fígado, quinta maior causa de morte. Um sistema de saúde bem estruturado depende ainda da capacitação de médicos de outras especialidades para que possam detectar um câncer. Das 170 escolas médicas existentes no país, não mais que meia dúzia tem a Oncologia como disciplina obrigatória na grade curricular. “Não se trata de formar oncologistas na graduação, mas fazer com que o futuro médico pense sempre nos fatores de risco, avalie a possibilidade da doença e encaminhe o quanto antes seus pacientes”, diz Ademar Lopes. Para a população, o especialista recomenda oncocheckups, partindo do clínico geral o pedido de exames conforme os fatores de risco da pessoa. Lopes exemplifica com a verruga na parede do intestino que é retirada durante a colonoscopia. Um procedimento simples de prevenção ao câncer. “Se a gente for esperar dor, cólica, sangramento ou qualquer outro sintoma, aí já será tarde”, diz. As pessoas precisam deixar de associar o câncer à sua fase mais avançada, que é justamente quando a dor aparece. SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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CIDADANIA ESPERANDO COMIDA Adriana vive com os filhos nas ruas há seis meses
A Prefeitura de São Paulo trata com descaso a situação de mais de 10 mil moradores de rua na cidade Por Marcelo Santos
POLÍTICA DO A
tarde do dia 19 de agosto em São Paulo presenciou um cortejo diferente. Moradores de rua, que habitualmente sobrevivem invisíveis ao longo do dia, saíram de quatro pontos da cidade para protestar pelos cinco anos de impunidade do crime que escancarou o espírito da região central da capital, até então encoberto pelas sombras do cinismo. Em agosto de 2004 sete moradores de rua foram assassinados como animais. Outros oito ficaram feridos. Mas a procissão não apenas relembrava a barbaridade. Também denunciava que “o massacre continua”, como costuma dizer Anderson Lopes Miranda, 33 anos, do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Anderson viveu em orfanatos até os 14 anos de idade, quando decidiu pegar o “trecho” – gíria para os deslocamentos de
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uma cidade a outra – e dormir nas ruas. O movimento começou após os assassinatos na região da Sé. De lá para cá, já foram organizados dois encontros nacionais da população de rua. “Chega de assistencialismo. Precisamos de políticas públicas de qualidade”, afirma. Anderson não vive mais nas ruas. Conseguiu um apartamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), onde mora com a mulher e dois filhos. É uma exceção entre seus “iguais”, homens, mulheres e crianças que estão nas calçadas. Caminho pela noite fria no centro de São Paulo e encontro, sob um amontoado de papelões, Adriana Maria Leão, de 25 anos, com os filhos Jéferson e Mateus, de 5 e 3. Há seis meses nas ruas, ela aguarda a doação de comida, realizada toda terça-feira à noite
por um grupo de evangélicos, nas proximidades do Pátio do Colégio. Adriana não é a única. Centenas de outras pessoas, nas mais diferentes e complexas condições físicas e psíquicas, ocupam as cinzentas calçadas à procura de alimento, trabalho e dignidade, exaustas de desalento. Sebastião Nicomedes de Oliveira, 41 anos, já conseguiu mudar sua história trabalhando como escritor e dramaturgo (ele possui diversas peças e um livro publicado). “Apesar de viver hoje numa pensão, não consigo andar pelas ruas como se fosse um ex-morador de rua. Eu me interesso pelas pessoas que vejo nessa situação e ando com elas”, conta Tião. Nero Valter, 72 anos e há três nas ruas, ex-motorista, relembra antigos trabalhos glamurosos com personalidades. E interrompe a história no episódio do acidente de carro com a família. O
catador de papelão Clarin da Silva, 64 anos, veio para São Paulo há mais de duas décadas, deixando quatro filhos em Cachoeiro do Itapemirim (ES). Ninguém de sua família sabe da sua real situação.
Sem saída
Essas pessoas formam um contingente estimado em mais de 10 mil, segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), que parece uma máquina de assistencialismo sem nenhum compromisso com a reabilitação delas. Deveria ser diferente. De acordo com a Lei Municipal nº 12.316, de 1997, regulamentada em 2001, cabe ao poder público municipal prestar atendimento à população de rua na cidade e ter um plano de reinserção social dividido em três passos básicos. Os albergues seriam apenas a porta de entrada nesse processo de reabilitação. Depois de seis meses, no máximo, a pessoa migraria para a moradia provisória, onde teria mais autonomia e responsabilidades. O passo seguinte seria ir para a moradia definitiva, através de subsídio da prefeitura. A Smads, dirigida pela vice-prefeita, Alda Marco Antônio, alega que é assim que fun-
ciona e muitas pessoas vivem nas ruas porque querem, uma vez que há trabalhos de abordagem e vagas nos albergues. “Eu nunca escolhi nada. Não queria estar na rua com meus filhos”, conta Adriana, que já passou por diversos dos 40 albergues da rede municipal, mas sempre acaba voltando às ruas. A prefeitura já fechou dois albergues no centro da cidade e planeja fechar o terceiro, no bairro da Liberdade. “A secretária não fala com o povo da rua. Ela está sempre ocupada como vice-prefeita”, critica Robson César Correia Mendonça, 58, líder do Movimento Estadual dos Moradores de Rua, uma subdivisão do movimento nacional. Alda alega que “tem muita gente que ganha R$ 1.000 e continua morando nos albergues por comodismo”. Na Câmara Municipal, em depoimento à Comissão de Direitos Humanos, a vice-prefeita declarou que pretende reduzir o número de vagas nos albergues pela metade. Atualmente há 8 mil vagas na rede para atender mais de 10 mil pessoas nas ruas, segundo a prefeitura, ou 19 mil, segundo os movimentos sociais. Outro plano da secretária é a criação dos centros de convivências. Um deles foi ins-
talado no Parque Dom Pedro II, inaugurado em 24 de julho pelo prefeito Gilberto Kassab (DEM). O investimento foi de R$ 66 mil. Batizado de Espaço de Convivência Jardim da Vida Dom Luciano Mendes de Almeida, ocupa uma área de 100 metros quadrados, coberta por uma tenda, e é visitado diariamente, em média, por 100 pessoas. Há banheiros químicos e chuveiros, jogos de tabuleiro e espaço com TV. “Lá eles podem passar a noite seguros, como se estivessem nas ruas; tem banho oferecido, mas não obrigado, e, acima de tudo, tem educadores prontos para conversar”, disse a vice-prefeita. A prefeitura pretende convencer também as entidades que distribuem alimentos pelas ruas a centralizar suas ações na tenda. Como “incentivo”, tem multado carros que estacionam em lugares irregulares para fazer a entrega da comida. Para Robson, do movimento social, a tenda lembra a famosa trupe “do Cirque de Soleil”, só que menos animada. “A prefeitura pensa que morador de rua é palhaço para colocá-lo sob uma lona”, esbraveja. Segundo ele, um homem teria morrido de frio ao se refugiar no circo, poucos dias depois de ser montado.
PÃO E CIRCO FOTOS JAILTON GARCIA
COMPAIXÃO Sebastião hoje vive numa pensão, mas dedica seu tempo a oficinas para ajudar moradores de rua
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Preconceito
Na opinião do sociólogo Cássio Giorgetti, 35 anos, o atendimento à população de rua patina devido a preconceito e falta de conhecimento do perfil desse público. “Medidas eleitoreiras são tomadas a todo instante. Um exemplo é a criação de vagas de trabalho para pessoas que ainda não foram recuperadas das sequelas de sua vivência nas ruas”, observa. Filho do cineas ta Ugo Giorgetti, Cássio foi responsável pela Central de Atendimento Permanente e de Emergência (Cape), da Smads, de 2004 a 2007. A tarefa dos agentes sociais do Cape era encaminhar as pessoas em situação de rua aos abrigos. “A contradição é que não tínhamos vagas nos albergues para todos”, relembra.
Durante o tempo em que esteve na prefeitura, Cássio conheceu o que chama de “o outro lado da noite” (que deu título ao livro publicado por ele, em abril). Entre as piores carências está, em sua opinião, a falta de atendimento médico adequado para essas pessoas, principalmente contra o alcoolismo. Ele lembra de um caso, “entre as quase diárias mortes que ocorrem nos equipamentos da prefeitura ou nas ruas”. A viatura da Cape conduzia um homem chamado Ricardo Oliveira à Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro. “Ele cuspia sangue, tinha diarreia e vômito.” Ao chegar ao hospital, Ricardo foi atendido rapidamente. O laudo médico dizia: “Paciente encontra-se em péssimo estado de higiene e mau cheiro (...) não se trata de uma patologia que necessita
de auxilio de hospital. Trata-se de problema social”. Ricardo morreu a caminho do albergue, dentro da viatura. Apesar de a vice-prefeita e responsável pela Smads, Alda Marco Antônio, dizer que “não tem conhecimento” de ações ostensivas ou desrespeitosas contra moradores de rua no Centro, no dia 18 de agosto viaturas policiais, além de caminhões da prefeitura, estacionaram nas proximidades do Mercado Municipal. “É a forma como o Estado e a prefeitura estão fazendo memória do massacre. Com um tratamento torturante e desrespeitoso de tirar os pertences das pessoas, lançar jatos de água e impossibilitar qualquer defesa”, relatou o Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua.
Morei no Albergue São Francisco, esquina da rua Santo Amaro com o viaduto Jacareí, bem em frente à Câmara Municipal de São Paulo. Antes, chamava-se Cirineu e era administrado por uma ONG de quinta categoria, com verba da prefeitura. Quebrado, sem dinheiro, não conseguia arrumar emprego e fui parar lá. Éramos mais de 400 pessoas amontoadas num imenso porão-dormitório sujo. Um depósito de seres humanos, com um cheiro insuportável. Senhores com mais de 80 anos misturavam-se a jovens alcoólatras, drogados, crianças, mulheres, pessoas com deficiência, tuberculose, aids, alguns ex-presidiários, outros em condicional, nenhum tipo de assistência. Aquilo se assemelhava a um campo de concentração nazista. Durante dez anos o albergue funcionou ali – foi desativado por força de um abaixo-assinado de vizinhos. O “dum-dum” dos veículos ao passar pelas emendas do viaduto martelava nossos ouvidos. Com raríssimas exceções, os monitores, contratados pela igreja e sem qualificação profissional, nos humilhavam, deixando-nos na fila, debaixo de chuva e frio, à espera da hora de entrar. Entrava-se após as 17h30 e acordava-se às 5 horas. Até as 7, todos tinham de ir para a rua, inclusive aos domingos e feriados, fizesse sol ou chuva. As assistentes sociais explicavam que eram ordens da prefeitura. Alguns idosos não conseguiam fazer suas
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necessidades no banheiro. Sujavam a roupa, a cama, o chão. Não havia fralda geriátrica. Para conseguir almoçar era preciso esperar até três horas. Um papel colado na parede interna do dormitório indicava a dedetização vencida. Os dormitórios ficavam infestados de baratas e outros insetos, principalmente muquiranas, espécie de piolho que dá no corpo de quem não toma banho, produzindo uma coceira infernal. Suportávamos as humilhações com medo de represálias: ser cortado e ir para a rua. Eram filas para entrar, para pegar alguma roupa no bagageiro, para tomar banho (quando os chuveiros funcionavam) e para jantar. Não adiantava muito tomar banho, porque éramos obrigados a vestir a mesma roupa, que cheirava mal. Às 5 da manhã, no auge do sono, as luzes do amplo dormitório eram acesas. Lavava o rosto, escovava os dentes e ia tomar café. Ficava observando o movimento de homens sujos e maltrapilhos, que geralmente não falavam coisa com coisa. Muitos usavam muletas ou bengalas, com a perna ou os braços engessados. Não era difícil adivinhar o motivo: embriaguez seguida de atropelamento. Pouco antes das 7 horas estava na rua. Passava na banca mais próxima para ler as manchetes. Eu era um maloqueiro bem informado. Quando ainda estava com sono, pegava um ônibus que fazia um roteiro bem longo.
EDU MORAES
“Parecia um campo de concentração” Depoimento de Rubens Marujo
Às vezes pegava um ônibus com roteiro bem distante e ia dormindo. Os cabelos brancos livravam a passagem. Duas horas para ir, mais duas para voltar: eram quatro a menos na rua Não foram poucas as vezes em que acordei com o cobrador gritando: “Ponto final, Terminal Santo Amaro. Queira descer, por favor!” Descia, subia a escada do terminal e pegava o ônibus de volta. Graças aos meus cabelos brancos eu não pagava passagem. Duas horas para ir e duas para voltar: quatro a menos na rua. Aí tentava almoçar. Depois voltava para a rua. Tinha de enfrentar a realidade. O corpo dolorido. Andava desconjuntado de tanto sentar em superfícies duras. Quanta saudade de um sofá. Sentava em um degrau de uma porta qualquer e ficava pensando na
vida, no meu passado. Com tênis furado, calça larga e camiseta suja, me sentia um espantalho. Numa tarde fazia muito calor. Entrei num bar e sentei num banquinho. Pedi um copo de água da torneira e o funcionário respondeu: “Aqui, meu senhor, água da torneira se toma em pé e do outro lado do balcão”. Sentia uma vontade louca de tomar um cafezinho. Andava olhando para o chão na esperança de encontrar dinheiro. Entrar num albergue é fácil. Sair é o problema. Tem gente há mais de dez anos nessa vida. Um dia mandei um e-mail (no centro velho da cidade existem alguns lugares em que se pode acessar a internet) desesperado para um jornalista amigo meu. Ele sempre me ajudava e pedia para que não perdesse a esperança. Mas eu estava mal, com princípio de pneumonia, cansado e com a autoestima lá embaixo. Sem forças. Eu não acreditava em mais nada e pensava até em abreviar a vida. Ele repassou o e-mail para outros jornalistas, que no final das contas acabaram me socorrendo com algum dinheiro e algumas roupas e pediram para eu sair de lá. Providenciaram trabalho, ajuda psicológica, e eu me reintegrei à sociedade. Mas sou uma exceção. Comigo aconteceu o que chamo de milagre. Rubens Marujo, 57 anos, é jornalista profissional, morou num albergue da Prefeitura de São Paulo durante três meses em 2008
Retrato
Por Marcelo Santos. Foto de Jailton Garcia
Cinco anos de impunidade
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uando estava estendido sobre o leito frio de uma cama do Instituto Médico Legal de São Paulo, o morador de rua Ivanildo Amaro da Silva, 41 – um travesti desempregado, que era conhecido como Pantera e aparentava 50 anos –, conseguiu a atenção que nunca teve enquanto estava vivo. Ali notaram a cor castanha de seus olhos, sua compleição física mediana e sua pele negra. Descreveram seu bigode como de um “colorido grisalho”, seus cabelos raspados e sua face ovalada, abrigando um largo nariz. Nas mãos, unhas cuidadosamente pintadas de “vermelho cintilante”. Pantera morreu depois de ser atingido por um “agente contundente”, provavelmente um porrete, que o fez sangrar enquanto dormia na esquina da rua Tabatinguera com a praça João Mendes. Ele foi um dos sete moradores de rua assassinados na região central da cidade de São Paulo, numa onda de 15 ataques sofridos entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, que deixaram ainda oito feridos. Cinco anos depois, o episódio, conhecido como a Chacina da Sé, ainda não foi esclarecido. Na ocasião, um opala preto circulou, durante as madrugadas, pelo local. Dentro do automóvel, homens armados de cassetetes escolhiam suas vítimas, moradores de rua
imersos em um sono do qual jamais despertariam. Não houve luta. Apenas um golpe. Certeiro. Apesar das câmeras e seguranças que vigiam o centro da cidade ininterruptamente, durante as madrugadas do ataque ninguém sabe o que aconteceu, ninguém viu. O inquérito policial, que se estendeu durante quase um ano, apontou como culpados cinco policiais militares e um segurança; nenhum deles responde pelo crime. O processo, apresentado pelo Ministério Público de São Paulo, repousa no Supremo Tribunal de Justiça, nas mãos da ministra Laurita Vaz. É provável que caminhe para um arquivamento, segundo a Pastoral do Povo da Rua. Por essa razão, quatro grupos formados por moradores de rua saíram dos pontos onde os massacres ocorreram. Levaram bandeiras, pandeiros, cruzes e cartazes pedindo justiça. Depois do ato, na frente da Catedral da Sé, eles voltaram para suas atividades cotidianas, quem sabe naquele momento à espera de que mais um jato d’água dos caminhões-pipa de limpeza da prefeitura os expulsassem das ruas onde costumam dormir, encharcando os seus pertences – diante dos olhos da vice-prefeita, Alda Marco Antônio, presente ao ato. SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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CONSUMO
Onde sobra, falta
O mundo ainda se dá ao luxo de jogar fora um terço dos alimentos que produz. O desperdício é uma dívida social – e uma responsabilidade para indivíduos, empresas e governos – tão grande quanto combater a fome e a desnutrição Por Giedre Moura e Otavio Valle 38
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“
elhor sobrar do que faltar.” De origem latina, esse dito popular, que vem desde os tempos romanos, acaba explicando uma infeliz realidade no mundo de hoje. Segundo a ONU, até chegar ao prato do consumidor, pelo menos 30% da produção anual de alimentos é desperdiçada. No Brasil, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais estima que diariamente vão para o lixo 91 mil toneladas. Um exemplo desse desperdício pode ser presenciado no cotidiano de uma feira livre. No decorrer da manhã, os feirantes descartam produtos aparentemente sem condições de venda. Por volta do meio-dia, esse descarte já forma pequenas montanhas, que poderiam garantir o almoço de necessitados. Maria de Lourdes dos Santos chega com os quatro filhos e enche algumas sacolas. “É com essa comida que a gente cata aqui do lixo que consigo alimentar minha família.”
Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), 64% do alimento plantado pelo agricultor nacional não chega à mesa dos brasileiros: 20% se perdem na colheita, 8% no transporte e armazenamento, 15% no processamento e o restante no processo culinário e nos hábitos alimentares da população. Para enfrentar esse círculo vicioso, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) atua tanto na pesquisa como na orientação dos atores desse processo. Celso Moretti, chefe-geral da Embrapa Hortaliças, diz que o maior vilão é a falta de informação: “As perdas que vemos desde a colheita, nas embalagens, transporte, armazenamento até a exposição ocorrem por desconhecimento de tecnologia existente por parte de todos os envolvidos na cadeia produtiva”. Outra iniciativa que pretende dar um destino adequado ao que poderia virar lixo são os bancos de alimentos. Existem dois tipos de alimentos excedentes. Os chamados in natura, em condições de consumo, mas
dia a instituições parceiras. Depois, passou-se a fazer a distribuição de alimentos aliada a um conjunto de ações educacionais. “Queríamos ir além do assistencialismo. Um projeto que fosse mais abrangente, que desse o peixe e também ensinasse a pescar”, explica Luciana Gonçalves, coordenadora do projeto em São Paulo. Desde 2003, o programa mudou de nome para Mesa Brasil, com abrangência nacional. A realidade de cada estado é levada em conta na maneira de operar. Enquanto em São Paulo os hortifruti são predominantes nas doações que vão complementar as refeições das entidades assistidas, no Maranhão, os itens da cesta bási-
bel Marçal, nutricionista e coordenadora do projeto. A reportagem da Revista do Brasil acompanhou um dia de trabalho da equipe de colheita urbana, que começou pela Vegetais Processados, empresa que atua com a distribuição de alimentos in natura ou minimamente processados (descascados, limpos e embalados) para cozinhas de grande porte. A clientela da empresa só aceita produtos sem um “defeito” sequer. “Muitas vezes o padrão não é compatível nem com a realidade da natureza”, conta o administrador da empresa, Felipe Cussnir. Em razão desse perfil, da produção diária de 15 mil quilos de alimentos, cerca de 4 mil a 5 mil quilos são dis-
que por algum motivo não serão mais comercializados (por exemplo, por não apresentarem um visual atrativo). E os industrializados, que possuem registro e data de validade (apesar de terem condições de consumo, próximos do fim da validade são de difícil comercialização). Há também dois métodos de trabalho mais comuns: o banco de alimentos propriamente dito e a colheita urbana. O banco é uma unidade fixa, com estrutura de armazenagem, que recebe doações e as disponibiliza para retirada por parte das instituições. É um dos padrões mais usados por prefeituras e companhias de abastecimento. Já por meio da colheita urbana, a entidade responsável faz a retirada e entrega os alimentos excedentes a outras instituições. Uma das experiências pioneiras no Brasil foi o Mesa São Paulo, do Sesc, estimulada pela Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, liderada pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho. No início, em 1994, eram oferecidas cerca de 600 refeições por
FOTOS OTAVIO VALLE
LIXO PRECIOSO Feiras de São Paulo: LIXO PRECIOSO diariamente o Brasil joga Feiras de São Paulo: fora 91 mil toneladas de diariamente o Brasil joga fora 91 mil toneladas dealimentos alimentos
ca são prioridade. “Há uma carência muito pensados. Na conta também entram cascas e grande nas instituições, que não têm o bá- talos. Algo entre 300 e 500 quilos estão prósico para servir”, conta a nutricionista do prios para consumo e vão para o Banco de programa no Maranhão, Delbana Pereira Alimentos. O restante segue para uma usiRodrigues. O estado tem o maior índice de na de compostagem mantida pela empresa. insegurança alimentar no país. São 30,9% O motorista Valter dos Santos encosdos lares sem acesso adequado à alimen- ta a perua no setor de cargas da empresa tação, segundo o IBGE. doadora e tudo está preparaOutra iniciativa é a ONG do para a retirada. A primeira paulistana Banco de Alimenparada para entrega é o Centro tos. Fundada em 1999, a ins- do alimento para a Criança e o Adolescente tituição recolhe excedentes de plantado Paulo de Tarso. Para a entidade produtores, atacadistas e vare- pelo ser conveniada com o Banco de jistas e os distribui a entidades Alimentos é necessário atender agricultor que atendem pessoas carentes. a uma série de requisitos. Um A ONG faz a chamada colhei- nacional deles é participar semanalmenta urbana, com quatro carros não chega te das atividades e cursos de nupassando pelos pontos previa- à mesa dos trição promovidos pela ONG. mente indicados pelos doado- brasileiros “Com a verba que recebemos res. Cada viatura possui uma da prefeitura, garantimos apedestinação específica na cidade. “Além de nas o básico das refeições. Todas as frutas, garantir a agilidade e reduzir custos, pre- verduras e legumes consumidos aqui são serva-se a qualidade, pois o alimento não provenientes das doações”, conta Rosangela fica circulando pela cidade”, explica Isa- Cuccolo, diretora da instituição.
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Como os bancos trabalham apenas com comida in natura ou industrializada, a pergunta é: por que não é feito o mesmo com o arroz e feijão excedentes de um restaurante? A questão nesse caso é delicada. “Para um restaurante doar alimentos de maneira correta, além da complexidade do manuseio e das normas de vigilância, que implicariam utilização de equipamentos de alto custo, há o problema da legislação, que não protege o doador de boa-fé. A responsabilidade por problema de saúde atribuído à comida doada recai sobre quem produziu o alimento”, explica o microbiologista Eneo Alves da Silva Júnior, do Centro de Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo. Desde 1996 está em tramitação no Congresso a Lei do Bom Samaritano, que visa regulamentar doações e isentar o doador de responsabilidade civil ou penal, se houver algum dano causado pelo consumo do bem doado, desde que não se caracterize dolo ou negligência. Enquanto a proposta não anda, uma maneira de minimizar o desperdício por meio das doações é oferecer a comida diretamente aos necessitados. “A solução mais prática seria os restaurantes servirem refeições aos carentes enquanto estão em condições de conservação”, conclui o microbiologista, lembrando que, além do desperdício, a fome e a desnutrição são dívidas sociais que merecem o engajamento de todos na busca por soluções. 40
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FOTOS OTAVIO VALLE
COLHEITA URBANA A ONG Banco de Alimentos recolhe as doações e as encaminha direto a quem precisa, como o Centro para a Criança e o Adolescente Paulo de Tarso (abaixo)
O jeito é se programar
Quem em sã consciência teria coragem de rasgar uma nota de 100 reais? Pois segundo o Instituto Akatu, organização voltada para o consumo consciente, é o que fazemos: um terço do que compramos vai para lixo. Ou seja, se gastamos R$ 300 numa compra de mercado, R$ 100 vão embora à toa. Acabamos não percebendo o tamanho do desperdício no dia a dia: é um resto de leite jogado fora numa manhã, um tomate passado descartado no outro dia. Para reduzir o desperdício, é essencial planejar: fazer uma lista de compras, segui-la à risca e
não pegar nas gôndolas mais itens do que o necessário. Somem-se a isso dicas conhecidas, como não ir ao mercado com fome, não sucumbir a promoções, substituir a compra mensal por semanais, e o desperdício e os gastos podem cair cerca de 20%. Ao falar sobre o desperdício de alimentos estamos visualizando uma das variantes de um problema muito maior: a segurança alimentar, tema que tem ganhado espaço na agenda mundial. O primeiro passo foi dado em 1996, quando a ONU promoveu em Roma a Cúpula Mundial sobre Alimentação, que traçou como objetivo redu-
Aproveite ao máximo Comprar bem Preferir legumes, hortaliças e frutas da época. Conservar bem Armazenar os alimentos em locais limpos e em temperaturas adequadas.
n Aparas de carne – molho, sopa, croquete
e recheio n Peixes e frango – suflê, risoto, bolo salgado n Feijão – tutu, feijão tropeiro, virado e
bolinho n Pão – pudim, torrada, farinha de rosca,
rabanada Preparar bem Lavar bem os alimentos, não retirar cascas grossas e preparar apenas a quantidade necessária para a refeição da família.
n Frutas maduras – doce, bolo, suco,
Mantidas em condições seguras até o (re)preparo, sobras e aparas podem ser aproveitadas: n Carne assada – croquete, omelete, torta, recheio etc. n Carne moída – croquete, recheio de panqueca e bolo salgado n Arroz – bolinho, arroz de forno, risoto n Macarrão – salada ou misturado com ovos batidos n Hortaliças – farofa, panqueca, sopa, purê
n Folhas de cenoura, beterraba, batata-doce,
vitamina, geleia n Leite talhado – doce de leite
Não jogar fora
OTAVIO VALLE
BAIXO CUSTO Isabel: agilidade garante qualidade dos produtos
zir pela metade, até 2015, os efeitos da fome no mundo. Segurança alimentar é a garantia de acesso de todas as pessoas, durante toda a vida, a alimentos suficientes, seguros e nutritivos para uma vida ativa e saudável. Mas as estatísticas brasileiras são preocupantes. Uma pesquisa realizada em 2006 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e pelo IBGE revelou que 18 milhões de lares vivem em estado de insegurança alimentar. Ou seja,
34,8% das famílias não têm acesso a alimentação de qualidade. Uma aberração. A produção interna de alimentos permitiria alimentar os 191 milhões de brasileiros e ainda apresentar um excedente de 25%. Seriam 2.960 calorias diárias disponíveis por habitante, mais que as 2.350 recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. Outro paradoxo: a FAO estima em 11,7 milhões os brasileiros em estado de desnutrição e em 70 milhões os obesos.
nabo, couve-flor, abóbora, mostarda, hortelã e rabanete n Cascas de batata, banana, tangerina, laranja, mamão, pepino, maçã, abacaxi, berinjela, beterraba, melão, maracujá n Talos de couve-flor, brócolis, beterraba n Sementes de abóbora, melão n Nata n Pão amanhecido n Pés e pescoço de galinha
Saiba mais n Como escolher alimentos: Embrapa Hortaliças (www.cnph.embrapa.br/ laborato/pos_colheita/dicas. n Orientações nutricionais, informações, receitas e dicas sobre como planejar as compras: Sesc Mesa Brasil (www.mesabrasil.sesc.com.br) e ONG Banco de Alimentos (www.bancodealimentos.org.br) n Consumo consciente: Instituto Akatu (www.akatu.org.br)
Um por cento de desperdício parece desprezível, mas sobre o volume da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (Ceagesp) assusta. “Comercializamos 10 mil toneladas por dia, e o desperdício chega a 100 toneladas”, observa o presidente da empresa, Rubens Boffino. Em 2008, mais de 3,85 milhões de toneladas de hortigranjeiros, flores, frutas e pescado passaram pelos 13 entrepostos da Ceagesp. Na ponta do lápis, “apenas” 1% significa 38,5 mil toneladas. “Por isso a empresa precisa agir de forma sustentável.” Desde 2003 foi criado o Banco de Alimentos, que distribui 200 toneladas por mês de produtos in natura.
“Atingimos 1 milhão de pessoas. São moradores de rua, entidades como hospitais e igrejas, prefeituras. É uma roda que só tem a crescer.” O banco está presente na capital e em dez entrepostos do interior. Produtos que não estão em condições de venda, mas podem ser consumidos são, em geral, doados por produtores e comerciantes atacadistas ao Banco. Os impróprios para consumo são transformados em adubo orgânico. A Ceagesp recicla palha, madeira, ferro e papelão deixados diariamente nos entrepostos. As entidades cadastradas, em geral, tornam-se dependentes. É o caso do Asilo Lar Mãe Mariana, em Poá (SP), que toda última sexta-feira do mês faz a retirada
REGINA DE GRAMMONT
Ceagesp: 1% ainda é muito
Refeição no Lar Mãe Mariana dos alimentos na Ceagesp. A entidade reconhece o valor do gesto, mas sente a redução das doações, antes semanais. A periodicidade foi alterada, segundo a Ceagesp, devido à sazonalidade e ao aumento das instituições
cadastradas, de 60 em maio de 2008 para 150. O Lar Mãe Mariana cuida de 45 idosos e funciona como albergue. “Sem as doações não sobreviveríamos”, admite a psicóloga e coordenadora Carmem Alves Carvalho de Castro. SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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ATITUDE
Agô , o predestinado Q
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uem o encontrou nos disse que ele estava agonizando, repetia muito isso. Daí resolvemos dar-lhe o nome de Agô”, conta Aline Cristina, técnica veterinária e funcionária do Clube dos Vira-Latas, organização não governamental (ONG) para a qual foi levado. Desde a salvação, Agô demonstrava ter nascido com o rabo longilíneo virado para a lua. Coube à protetora de animais Cláudia São Bernardo – conhecida por sempre cruzar abandonados com cães da raça São Bernardo – topar com o SRD (sigla para Sem Raça Definida) caramelo, acompanhado de duas irmãs, uma delas já sem vida. Logo que chegaram ao Clube, com aproximadamente 20 dias de vida, os dois mem-
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bros remanescentes da família foram diagnosticados com cinomose, virose que ataca principalmente o sistema nervoso e costuma ser fatal. Apenas ele resistiu e a única lembrança da enfermidade é uma leve fisgada na pata dianteira. Além de refúgio para cerca de 350 cachorros, o Clube dos Vira-Latas, em Ribeirão Pires, no ABC paulista, é a residência de Cida Lellis, presidente da entidade. Há quatro anos ela trocou a casa onde morava por uma chácara de quase 400 metros quadrados. Solteira e sem filhos, a professora aposentada fez uma opção pelos bichos. No primeiro sábado de maio, dentro de uma bolsa, Agô embarcou em um Táxi Dog rumo à feira inaugural de animais deficientes promovida pela ONG Solidariedade à
LUIZ ALBERTO CARVALHO
Ele não é patrocinado por fabricante de material esportivo nem de cerveja, mas tem estrela. A vida de animais abandonados como ele e as condições sanitárias das cidades seriam bem piores se não fossem entidades e defensores independentes Por Luiz Alberto Carvalho
Salvadores anônimos
Para obter a guarda de um animal é preciso ter mais de 21 anos, apresentar RG, CPF, comprovante de residência e ser capaz de amar e oferecer carinho. Parte do custo para manutenção dos bichos é paga com a realização de bingos e bazares beneficentes. A gran-
LUIZ ALBERTO CARVALHO
Vida Animal (Sava). A organização não possui abrigos, mas funciona como uma espécie de central responsável por convocar a rede de parceiros para feiras e mutirões de castração. Dentro do pet shop Tancredo Dogs, na avenida Tancredo Neves, zona sul de São Paulo, histórias e latidos se misturam. Sem a pata direita da frente, amputada depois de um atropelamento, Mel se faz perceber logo na entrada. Com porte semelhante ao de um labrador, é a maior entre os SRDs acomodados em duas fileiras de gaiolas. Movimenta-se sem dificuldade e aceita carícias dos visitantes, apesar de ficar receosa com crianças. “Ela deve ter sido machucada por alguma”, acredita Eliana Matiussi, que custeia os gastos com o veterinário e a hospedagem. Também professora aposentada, casada, dois filhos e três netos, Eliana recolhe animais em situação de risco para mantê-los em clínicas até a oportunidade de adoção. É um dos chamados cuidadores independentes, cuja missão tem sido facilitada pela internet. Pela rede, comunidades propagam denúncias de maus-tratos, pedem socorro para manutenção de abrigos e acolhimento, estimulam adoções.
DIFERENTES Os militantes Fowler e Teresa, com os cachorros Menina e Pituxo
de fatia, contudo, sai do bolso dos protetores. Nos encontros que a Sava promove com cães sem deficiência, a média é de 20 adoções. Dessa vez, três deficientes encontraram um lugar para morar. Cego (olhos perfurados na rua), com cerca de 8 anos, pelos marrom-escuros, Teco acaba de ganhar nome e fará companhia para Liliane Medeiros e Renato Kenjiro. “A maioria tinha protetor, menos ele. Resolvi levá-lo”, diz Liliane. Será o sexto na casa, além dos 12 que a adestradora mantém na residência da mãe. No primeiro dia, Teco ficou um pouco alheio, mas logo mapeou o quintal e, sempre que chamam seu nome, chega balançando o rabo. Mesmo destino teve Pandor, depois Adamastor e atual Sheldon. “Meu marido tinha dificuldade para dizer Adamastor”, explica
Natália Rogek, que chegou como voluntária e saiu como mãe adotiva. O cachorro de pelos pretos e cerca de 2 anos teve de passar por cirurgia para retirada da pata dianteira, depois de uma protetora encontrá-lo com uma fratura mal curada. Enquanto os pontos não cicatrizam, Sheldon dorme ao lado de uma gata, sua melhor amiga, na cama da bióloga e do marido. Antes de todos eles, Agô mostrou a estrela mais uma vez. Daniele chegou às 14h na feira, motivada pelo desejo da filha de 5 anos de ter um mascote. Em vez de comprar um, resolveu adotar. “Você vê tantos abandonados na rua”, comentou. Foi paixão à primeira vista. Agô também mudou de nome e agora reina absoluto como Beethoven, na Vila Carioca, zona sul de São Paulo. Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde, há cerca de 20 milhões de cachorros no Brasil. De acordo com os protetores, os grandes responsáveis pelo abandono são a falta de campanhas de conscientização sobre posse responsável, poucos programas de castração para controlar a superpopulação e ausência, em boa parte dos municípios brasileiros, de políticas públicas que encarem o problema dos gatos e cães abandonados como assunto de saúde pública. A vida dos bichos – assim como as condições sanitárias das ruas – seria muito mais difícil não fossem as entidades e, principalmente, a ação dos defensores independentes. Como definiu Fowler Filho, presidente da ONG Focinhos Gelados, “um inestimável exército de gente que fica no anonimato”.
Responsável pelos cuidados com os animais apreendidos nas ruas, o canil do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da cidade de São Paulo é acusado de negligência. “O CCZ mistura cães sadios com doentes, grandes com pequenos. Eles acabam transmitindo viroses uns para outros ou brigando e se matando”, denuncia Arlete Martinez, presidente da Sava. “Depois que o senhor Marco Antonio Vigilato assumiu a gerência, a parceria com as ONGs para feiras de adoção foram canceladas e há obstáculos para a atuação dos protetores”, conta a jornalista Silvana Andrade, diretora da Agência Nacional dos Direitos dos Animais. Diante da pressão, Vigilato foi afastado e algumas mudanças já começam a aparecer como parcerias com voluntários
para passeios com os animais e mutirões de banho e tosa aos que serão disponibilizados para adoção. Coordenadora do Programa de Proteção e Bem-Estar Animal da prefeitura, Rita Garcia aponta falta de estrutura como a principal dificuldade do órgão. Desde 2008, uma lei estadual impede a eutanásia de animais saudáveis. “O CCZ não foi preparado para ficar tanto tempo com os cachorros. Há canis para abrigá-los por até três dias. Antes eram mortos depois desse período.” De acordo com a veterinária, um edital para obras de ampliação deve sair até o mês que vem. Por enquanto, os cerca de 500 cães são separados conforme a personalidade, independentemente do porte, e os doentes são colocados com outros na mesma condição. Mas não há área de isolamento.
PAULO PINTO/AE
Após denúncias, Centro de Controle de Zoonoses afasta diretor
Canil de São Paulo
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VIAGEM
Ruben la Torre: idealismo e conscientização histórica
Dom Quixote de Los Andes
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izem que Laguna de Telpis tem um espírito. “Quando está brava porque está muito barulho, ela começa a fazer ondas e chama a chuva para afastar os visitantes”, diz Jesus Omar Oban, morador do pequeno vilarejo de Yacuanquer, no sul da Colômbia, próximo à lagoa. No dia 6 de julho, ela parecia mesmo irritada. Pudera: éramos mais de 45 jovens de todos os cantos da América Latina – e alguns europeus – que, depois de duas horas e meia de caminhada pesada pelas montanhas verdejantes da cadeia dos Andes, chegávamos a 3.600 metros para poder finalmente apreciar a bela vista da lagoa. Era um dos primeiros dias da Ruta Inka, expedição organizada por comunidades andinas que leva jovens para conhecer sua cultura e história. Eles pagam US$ 300 para participar de 40 dias de peregrinação por comunidades que integraram o Tahuantinsuyu, o Império Inca, que chegou a se estender do sul da Colômbia ao norte do 44
REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2009
Chile a partir de meados do século 15 até a conquista espanhola, no século 16. A cada temporada o percurso é diferente. Este ano teve início em 4 de julho na cidade de Pasto, no sul da Colômbia, passando por vilarejos e reservas naturais, até chegar ao maior sítio arqueológico do Equador, Ingapirca, centro-sul do país, em 12 de agosto. O objetivo, segundo o idealizador, Ruben la Torre, é restaurar a autoestima das comunidades indígenas e propagar a rica cultura andina mundo afora. “Agora que a ONU fez uma declaração sobre os direitos dos povos indígenas, há cada vez mais interesse em recuperar a cultura, da qual sempre nos ensinaram a ter vergonha por tanta agressão que existe na sociedade.” Antes de largar tudo para se dedicar à Ruta Inka – que organiza praticamente sozinho e sem patrocínio de nenhum governo –, Ruben la Torre, descendente de índios quíchuas, foi diplomata no serviço peruano por dez anos.
A carioca Juliana: culturas semelhantes
FOTOS NATALIA VIANA
Ruta Inka leva a um encontro com a cultura dos povos que habitavam o noroeste da América do Sul antes da colonização Por Natalia Viana
“Eu mesmo, quando estava no serviço diplomático, sentia vergonha de não ter um dos grandes sobrenomes espanhóis. É isso que tratamos de reverter na Ruta Inka, dizendo, ‘por que se envergonha de ser inca, de ser indígena?’ Os melhores estudantes do mundo veem pela sua cultura, porque a outra está em crise. Veja a ecologia, por exemplo, os incas foram precursores no respeito à natureza.”
sentam danças típicas, mas eles participam mais como espectadores, não é um evento deles”, conta Ruben. “E o slogan era: ‘Vamos seguir o trajeto de Antonio de Ulloa, que foi um conquistador’. Claro, na visão deles.” A irritação de Ruben – que chama a Ruta Quetzal de “neocolonialismo” – foi se transformando numa ideia absolutamente quixotesca. E bela. Essa viagem muda a visão de como chegamos destruindo algumas culturas durante a colonização”, diz a espanhola Alba Juárez Pizarro, de 18 anos. “A gente aprende mais sobre o ponto de vista do colonizado, porque na Espanha aprendemos a história do ponto de vista dos conquistadores.” Para tornar a expedição realidade, todo ano Ruben percorre dezenas de comuni-
Mingas comunitárias
O projeto nasceu quando Ruben foi encarregado de dar apoio à Ruta Quetzal, uma iniciativa patrocinada pela coroa espanhola e pelo grupo financeiro BBVA que leva jovens europeus para conhecer o caminho inca mais conhecido, entre Quito, no Equador, e Cuzco, no Peru. “Os indígenas apre-
dades andinas para engajar as autoridades na empreitada. Cada povoado fica a cargo de receber e alojar os visitantes, preparar eventos e conversar com os expedicionários sobre a sua cultura. “Fazemos como os incas faziam na época do império, as mingas comunitárias, em que moradores de uma região trabalhavam voluntariamente para construir uma ponte ou uma estrada que no final ia beneficiar a todos”, diz Ruben. “Apesar da falta de apoio dos governos, conseguimos fazer o verdadeiro turismo comunitário, onde se pode vivenciar o dia a dia.” E é assim mesmo. Ao longo de todo o trajeto para a Laguna, fomos acompanhados por diversos moradores, orgulhosos em mostrar as belezas naturais e contar
VITOR TAVEIRA
Comidas típicas de Obonuco, Colômbia Laguna Telpis, no sul da Colômbia
histórias tradicionais da região. Na volta, uma refeição oferecida pelo prefeito da cidadezinha trazia banana, choclo, um típico milho andino, e habas, um tipo de feijãoverde. Sentados no chão, todos saboreavam os alimentos locais, e ninguém reclamava da falta do luxo típico das excursões turísticas tradicionais. A mesma recepção carinhosa se repetiu durante toda a expedição. Num vilarejo próximo à cidade de Pasto, visitamos uma festa típica de celebração às guaguas de pan – pães caseiros em formato de bebês, especialidade da culinária local. Os expedicionários receberam o quitute de presente e ainda foram nomeados cumpadres da festa, celebrada com muita música e danças tradicionais andinas.
Gente parecida NATALIA VIANA
Festa em La Esperanza
VITOR TAVEIRA
Ibarra, Equador
A excursão também não ficou devendo em belezas naturais. Um exemplo foi a visita à bela Isla Corota, que fica na Laguna de la Cocha, no sul da Colômbia, onde SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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Dança andina em Pasto, na Colômbia
Novos rumos em 2010
A espanhola Alba Pizarro: “Essa viagem muda a visão de como chegamos destruindo algumas culturas durante a colonização”
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FOTOS NATALIA VIANA
No próximo ano, a Ruta Inka comemora dez anos e vai fazer um percurso mais ousado: serão 70 dias desde a Bolívia até a Guatemala, passando por Panamá, Costa Rica, Nicarágua e Honduras. “Vamos ao encontro dos maias, que também são nossos irmãos”, orgulha-se Ruben. Mais informações no site www.rutainka.net.
as águas espelhadas sustentam casebres de madeira para os habitantes locais. Outra paisagem de tirar o fôlego foi a Laguna Verde, uma lagoa sulfurosa que fica na boca do vulcão Azufral, em Túquerres, na mesma região. A caminhada foi mais uma vez organizada pela administração local e terminou com o ritmo de La Guaneña e pratos típicos da região. Tudo com muita festa e muita dança. Outro momento marcante foi no Cabildo Indígena Quillasinga, uma organização de tribos indígenas do sul colombiano onde os expedicionários participaram de rituais de purificação com incenso. Na sincrética cerimônia de abertura da sessão, em que os estudantes conversaram longamente sobre as tradições e costumes dos indígenas, as lideranças passam um bastão e pedem bênçãos à Virgem Maria e a Pachamama, a divindade suprema da cultura andina: a Mãe Terra. Durante o percurso, os estudantes ficam
hospedados em batalhões do Exército, compartilhando a comida, os horários e as histórias dos oficiais. “Estou feliz de estar aqui, porque sempre ouvimos falar do Exército, mas agora, conhecendo de perto os soldados, tenho mais respeito pelo trabalho deles”, diz o colombiano Carlos Francisco Arcila Salamanca, sentado em um dos beliches do Batalhão Militar de Boyacá, em Pasto. “Aqui estou vivendo a cultura do país, vendo como vivem as pessoas daqui, os indígenas”, diz a carioca Juliana Corrêa Brandão, de 20 anos, segunda brasileira a participar da Ruta Inka. “Os brasileiros não têm muito interesse em conhecer os países que estão perto, preferem ir para a Europa ou os Estados Unidos. Mas eu acho que a gente é muito parecida com os outros sul-americanos – o jeito de tratarem as pessoas, as brincadeiras, o modo como são receptivos... E precisa estar no meio deles para ver isso.”
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Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)
Procura de emprego (1950), foto de German Lorca
Fotografia...
Para quem gosta de fotos em p&b, foi prorrogada até 1º de novembro a exposição Um Acervo em Preto e Branco: Fotografias (1947/1980). A mostra conta com importantes nomes da fotografia que doaram suas obras à Pinacoteca do Estado, entre eles Thomaz Farkas, Boris Kossoy, German Lorca, Cláudia Andujar, Carlos Moreira.
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
...e história
A alguns quarteirões dali, na Estação Pinacoteca, aproveite para conferir a exposição A Luta pela Anistia. 1964 - ?. Até 18 de outubro você tem acesso a documentos, fotos e publicações dos movimentos de anistia e direitos humanos, dos anos 1960 até hoje. Pinacoteca: Praça da Luz, 2, (11) 3324-1000. Estação Pinacoteca: Largo General Osório, 66, (11) 3337-0185.
Marianne Faithfull e Corey Burke
Superavó Conhecida como musa dos Rolling Stones nos anos 60, a cantora Marianne Faithfull interpreta uma dedicada avó em Irina Palm (2007), de Sam Garbarski. No filme, comovente e engraçado, Maggie é uma tímida viúva com mais de 50 anos que vende a casa para financiar o tratamento do neto Ollie (Corey Burke), vítima de uma doença muito grave. Numa
idade em que já é difícil conseguir emprego, ela aceita trabalhar em um club privé no subúrbio de Londres, e sua habilidade faz com que se torne a atração do lugar. É assim que conquista o coração do dono do Sexy World, Mikky (Miki Manojlovic). Disponível em DVD.
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Grupo Mawaca
O som das pinturas Transformar pinturas rupestres em partituras. Foi o que o grupo Mawaca fez ao montar o repertório que deu origem ao álbum Rupestres Sonoros, resultado de três anos de pesquisas. Com um trabalho de world music consolidado no Brasil e no exterior, o Mawaca une sonoridades indígenas e pinturas de povos primitivos, transformados em 12 faixas com arranjos vocais primorosos e pitadas de música eletrônica. Formado por sete vozes femininas e seis instrumentistas, o grupo, que já lançou cinco CDs nessa linha, dessa vez se voltou
Retrato impiedoso Suíte Francesa (Companhia das Letras, R$ 62), de Irène Némirovsky, começou a ser escrito em 1941, quando a autora ainda estava refugiada num povoado francês. Transformados em ficção, são relatos amargos que apresentam uma França vencida e ocupada pelos alemães. Irène foi presa e levada para Auschwitz logo depois de terminar o livro. A edição também traz anotações pessoais e correspondências da autora.
exclusivamente para os Kayapó (Mato Grosso), Wari, Gavião e Suruí (Rondônia) e Kaxinawá (Acre). O repertório reúne cantos de pajelança, que representam mitos da criação do mundo, e um canto antropofágico do povo Suruí. Uma das faixas, intitulada Mawaca, é uma homenagem ao próprio grupo feita pelo músico francês Phillipe Kadosh. O álbum tem participação especial de Tetê Espíndola, Marlui Miranda e Carlinhos Antunes. Para saber mais sobre o CD e o trabalho do grupo, acesse: www.mawaca.com.br (por João Correia Filho)
Desapegado
Não é pouco: 25 anos de carreira e 18 discos. E o cantor, compositor e produtor musical Pingo de Fortaleza comemora com o lançamento de Prata 950, álbum de pegada pop e letras simples. Das 12 faixas, três são regravações. Destaque para Coração de Pedra, com citação de Domingo no Parque e Parabolicamará, ambas de Gilberto Gil. Aproveite o Dia, que abre o disco, foi usada no projeto Selo Unicef Município, tem mensagem positiva e de incentivo. O disco custa R$ 5, mas Pingo de Fortaleza libera o download em pingodefortaleza.blogspot.com. “A gente tem de se desprender da distribuição.” SETEMBRO 2009 REVISTA DO BRASIL
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Crônica
Por Flávio Aguiar
Mais paixão, menos canhão!
Q
Flávio Aguiar foi professor de Literatura Brasileira da USP (19732006), editor de Cultura do jornal Movimento, diretor de TV e editor-chefe da Carta Maior e assina o blog Cartas do Velho Mundo, na Rede Brasil Atual
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uando éramos estudantes, em 1965, gritávamos nas ruas: “Mais pão, menos canhão!” Foi a primeira palavra de ordem das manifestações contra a ditadura militar instalada em 1964. Pois agora tenho vontade de gritar: “Mais paixão, menos canhão!” Desta vez a frase é contra certos ditadores que pregam, supostamente para prolongar ou salvar a vida, que se leve uma vida sem gosto, sem prazer, sem pulsações fortes, descorada, enfim. Agora veio uma equipe de médicos dos EUA (tinha de ser de lá!) dizer que paixão pelo futebol faz mal ao coração. Era só o que faltava! Dizem esses médicos que se apaixonar pelo próprio time aumenta o risco de infarto. E ainda acrescentam: o risco é maior quando o time perde. O que eles estão apontando é na verdade uma mistura de medo e de amargura, sentimentos que podem dar a tônica na vida de um país (o deles) que tem quase 50 milhões de pessoas fora de qualquer sistema de saúde, coisa que agora o Barack está tentando remediar, encontrando uma resistência danada. E 50 milhões: o equivalente a um quarto de Brasil, ou a 600 Maracanãs lotados. Tem outra coisa: que na vida só se pode ganhar. É ganhar ou ganhar, ganhar e ganhar sempre. Mais ou menos o sentimento que levou aos investimentos cada vez mais malucos, num mercado financeiro cada vez mais maluco e desregrado, até a bolha... estourar. Na nossa mão, e vamos pagando a conta. O coração tem de estar em forma quando a gente precisar de verdade dele, ou seja, quando ele for atacado. Ele precisa estar acostumado com situações-limite. E a situação-limite por excelência é a da paixão. Amar apaixonadamente, em todos os sentidos do verbo e do advérbio, é o que há de melhor contra o colesterol, e também contra o besteirol de dizer que uma vida sem paixões é a melhor pedida. Viver apaixonado é o melhor remédio contra os canhões que se armam a partir das frustrações e dos ódios.
REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2009
O esporte ensina uma coisa: que a vida verte e reverte. Que hoje a gente perde, amanhã ganha, depois empata, e vice-versa e versa-vice. O futebol e suas paixões nos ensinam desde criança a ganhar e a perder. Porque tão importante quanto saber perder é saber ganhar. Saber ganhar e saber perder é o contrário do fanatismo. Há algo mais bonito do que uma torcida embandeirada cantando? E há algo mais feio do que uma pancadaria a solta num estádio ou fora dele? Os da pancadaria não aprenderam com o esporte. A torcida embandeirada está aprendendo a viver, e a viver com solidariedade e paixão. Mas isso também se estende ao outro lado: nada mais bonito do que ver um time jogar a bola pela lateral para um adversário ser atendido no gramado, e depois o outro time devolver a bola. E a gente aplaudir. Claro, durante o jogo, a gente grita pelo time, xinga o adversário, a mãe do juiz, que deve estar em casa rezando pela vida e pelo bom trabalho do seu filhinho, esse filho da... opa, desculpem. Isso não é problema: faz parte das grandes paixões. Nos grandes amores a gente não cai também nos xingamentos, não puxa de vez em quando um palavrão em vez de um argumento? Nem por isso o amor acaba – desde que uma relação não seja só isso de xingamento e discussão, é claro, porque aí ela já acabou. Andar não faz bem ao coração? Faz. E uma paixão faz a gente até andar na Lua! Ou nos quintos dos infernos! Então como é que vai fazer mal? O que faz mal é comida sem gosto e vida sem cor, isso sim. Porque aí a frustração rói a alma. E uma alma roída – pela frustração, pelo medo, pela angústia, pelo ódio, pelo fanatismo, pela hipocrisia, pelo cinismo –, isso, sim, é um perigo para o coração, para o próprio e o dos outros também. Por isso, vivam o futebol, o esporte e a paixão!
Há 187 anos o Banco do Brasil viu nascer uma nação independente e corajosa. 7 de setembro. Dia da Independência do Brasil. Esse dia faz a diferença.
Gabriel, filho do funcionário BB Jorge Luís – RJ.
Nossa nação se tornou exemplo de perseverança, sinônimo de alegria e lar de um povo confiante em sua capacidade de realização. Um povo que sabe a diferença que faz poder contar com um banco todo seu para crescer cada vez mais forte e independente.
Banco da sustentabilidade Central de Atendimento BB - 4004 0001 ou 0800 729 0001 SAC - 0800 729 0722 - Ouvidoria BB - 0800 729 5678 - Deficiente Auditivo ou de Fala - 0800 729 0088 ou conecte bb.com.br