Revista do Brasil nº 050

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EDUCAÇÃO O ensino técnico e seu papel na formação de cidadãos do futuro

nº 50

agosto/2010

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MITOLOGIA CANDANGA A força da cultura popular inventada na capital federal FUTEBOL O Brasil pode vencer em casa em 2014. Mas e se perder?

UMA NOVA TELEVISÃO

Metalúrgicos do ABC lançam primeiro canal de TV aberta dos trabalhadores TOME ESPETÁCULO Se a violência dá audiência­, por que a mídia ajudaria a combatê-la?



Índice

Editorial

JIAILTON GARCIA

Brasil 8 As metas do Plano Brasil 2022 para o bicentenário da Independência Mídia 12 Depois de 22 anos, cinco governos e quatro nãos, enfim uma nova TV Entrevista 16 Venício Lima: construção de mídia livre virá da sociedade organizada Educação 22 Ensino técnico é estratégico para desenvolvimento de alunos e do país Cidadania 28 Combate à violência contra mulher trava enquanto a mídia não mudar Cultura 32 Grupo Seu Estrelo e Fuá do Terreiro cria tradição popular para Brasília Esporte 38 Depois da Copa, aberta a temporada de mudanças no futebol mundial Comportamento 40 Gírias descem morro ou pegam busão para entrar no idioma dos branquelas

Texto no teleprompter sintetiza o objetivo da TV dos Trabalhadores: informação diferenciada

Chega de se trumbicar

E PAULO DONIZETTI DE SOUZA

Cavalo marinho, um dos espetáculos de Barra Grande

Viagem 44 Com apenas 66 km, litoral do Piauí tenta preservar oásis com ecoturismo SEÇÕES Cartas 4 Ponto de Vista

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Na Rede

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Atitude 37 Curta Essa Dica

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Crônica 50

sta edição traz pelo menos cinco assuntos diferentes que poderiam ser encaixados na vinheta “mídia”. Mas cada um carrega abordagem particular e caminha com pernas próprias. Na entrevista do mês, o professor Venício Artur de Lima desmonta o discurso da tradicional imprensa comercial, que se habituou a rotular como “ameaça à liberdade de imprensa” qualquer sinal da sociedade que reivindique um meio democrático e civilizado de coibir abusos midiáticos. Para Venício, a liberdade de expressão e o direito à informação nada têm a ver com a liberdade dos grandes jornais, rádios e TVs de dizer o que bem entendem. Se agissem em sintonia com os interesses da coletividade, talvez os recentes casos famosos de violência não tivessem tratamento de séries policiais com requintes de terror na guerra baixa pela audiência, como trata reportagem à página 28. Um mídia mais civilizada poderia, por exemplo, dedicar alguns de seus preciosos minutos diários para orientar o público a prevenir ou enfrentar episódios como esses, que têm em seu DNA os arbítrios de uma sociedade machista. “Eta cabeças velhas, reacionárias, destas chamadas elites e formadores de opinião do Brasil”, diria o velho Aloysio Biondi, cujos dez anos de ausência também são lembrados nesta edição. “É de se lamentar que o grande cidadão e jornalista Aloysio Biondi não possa estar assistindo ao fim do mito neoliberal”, registrou Mauro Santayana, que também dedica algumas linhas a analisar o que se passa com os jornais. A reportagem de capa, por sua vez, conta a história da conquista da TVT, dos metalúrgicos do ABC, primeiro canal de televisão aberta obtido por concessão pública para uma entidade dos trabalhadores. O projeto, a ir ao ar em 13 de agosto, premia 23 anos de persistência. A expectativa é de que a TVT expanda para esse meio eletrônico a comunicação de massa inovadora que tem passado pelos blogs, as redes sociais, o amadurecimento dos produtos alternativos e a evolução de projetos como esta revista e as experiências de rádio, jornais impressos e internet, agregados na Rede Brasil Atual. Não por acaso, produtos da união de entidades dos trabalhadores que fazem da informação um dos expoentes do conceito de sindicato cidadão – aquele que, mais que participar da melhoria da situação das pessoas em seu lugar de trabalho, atua para que essas mesmas pessoas sejam sujeito da construção de uma vida melhor e mais justa em sua cidade, em seu país e no planeta. AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores assistentes Vitor Nuzzi Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Jailton Garcia Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Antonio de Lisboa Vale, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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Viva favela Maravilhosa a reportagem sobre o mundo da informática e das favelas na era virtual (Favela on-line, ed. 49). Essa Rede Brasil é completa. Não consigo

ficar mais sem acessar. José Aguiar, São Paulo (SP)

Ambientalismo Têm saído diversas reportagens na Revista do Brasil sobre ambientalismo. Espero que vossas senhorias tenham lido o artigo do deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e os artigos do professor Dennis Rosenfield (colunista de O Estado de S.Paulo), falando sobre a mudança do Código Florestal. Nos artigos do professor Dennis são citadas ONGs ambientalistas. Percebo uma coincidência de pensamento entre muitas reportagens que essa revista publica e a opinião das ONGs. Elas são, na minha opinião, uma invenção dos neoliberais. Leônidas Silva, São Paulo (SP)

Vietnã Muito boa a reportagem Vietnã Revisitado (ed. 49). Quase não temos acesso a informações do Vietnã. E vindo de um jornalista e professor confiável, Bernardo Kucinski, melhor ainda. Espero que o socialismo vietnamita seja vitorioso e que o povo usufrua dos seus benefícios. Zilda Araújo, Matupá (MT) Protesto Gostaria de deixar meu protesto pelo fato de o site www.redebrasilatual.com.br reproduzir na página “O candidato José Serra” uma mentira, a de que ele é um economista. Devo lembrá-los que Serra nunca apresentou qualquer prova que seja economista e que há interpelações judiciais dos Conselhos Regionais de Economia de diversos estados contra ele justamente porque o que afirma não é verdade. Manuel Rosa Bueno, Campinas (SP) revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100

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PontodeVista

Por Mauro Santayana

A dialética do jornalismo Não é provável que o jornalismo impresso esteja destinado à morte. Há 100 anos, tem resistido aos meios eletrônicos

P

rimeiro, foi o rádio: nos anos 1920, nos Es- já superam, e em muito, as tiragens dos jornais destitados Unidos e na Europa, o seu uso para a nados às camadas de maior poder aquisitivo. Eles são difusão de notícias e de opinião se tornou a importantes, entre outras coisas, para que se recupere novidade. Os jornais reagiram: as tiragens o hábito da leitura. O que está faltando aos editores dos cresceram. As pessoas ouviam o rádio, mas jornais é encontrar a receita certa que mantenha os leibuscavam confirmar informações e interpretar fatos tores de gravata e a eles acrescente os leitores de macacom o texto impresso. A razão era simples e vinha do cão. Para isso, é necessária certa coragem dos editores. Evangelho: as palavras, leva-as o vento; o que está escrito, É possível oferecer aos leitores, ao mesmo tempo, a permanece. O rádio servia – e continua servindo – mais crônica de turfe e uma seção sobre o candomblé. Ou à informação rápida e à diversão do que para a reflexão. a notícia de que os especuladores preparam uma crise Quando a televisão começou a popularizar-se, nova- cambial como armadilha para o governo, em setembro, mente decretaram a morte do jornal impresso: a imagem com a finalidade de afetar Lula nas eleições, conforme é mais sedutora do que o texto e, acompanhada do som, informações que circulam há dias nos meios financeiros. torna-se insuperável. Os observadores outra vez se equi- O que se desafia é o talento dos redatores de imprensa. vocaram: a velocidade da informação, lonNo passado, era mais fácil porque, de ge de ser vantagem, traz nova dificuldade. O que falta modo geral, o jornalista era um ficcionisAs pessoas veem as cenas, mas não conse- aos editores ta por vocação. Tivemos homens capazes guem “pensá-las”. Os locutores são econô- dos jornais de serem lidos por todos os públicos, como micos com o texto que chega aos ouvidos Rodrigues. Tanto em A vida como é encontrar Nelson do espectador em frases curtas e separadas, ela é, sua seção de crônicas no jornal Últie cada uma delas desfaz a anterior. Todos a receita ma Hora, como em seus insuperáveis textos temos uma experiência interessante: quan- certa, que esportivos e nos grandes folhetins, ele foi o do estamos ouvindo uma pessoa que fala, e mantenha jornalista completo: com Asfalto Selvagem, damos demasiada atenção à sua aparência, os leitores do fim dos anos 50, Nelson conseguiu dobrar não conseguimos reter exatamente o que de gravata e a venda de Última Hora tanto no reparto da ela nos diz. Manter ouvidos e olhos com a zona sul, mais rica, como na zona norte. O acrescente mesma atenção é um exercício difícil. Um jornal de Samuel Wainer foi grande exemdos truques de alguns homens de televisão os de plo de jornalismo de todos os públicos. Ené o de distinguir a sua presença mediante macacão quanto a cabeça do jornal se endereçava ao tiques exagerados, como faziam o Chacrileitor do Rio em geral, o tablóide (caderno nha, o Paulo Francis, ou como hoje tenta Arnaldo Ja- de variedades) mantinha uma coluna social para a zona bor. Não obstante esses truques, Paulo Francis era mais sul, assinada por Maneco Muller (Jacinto de Thormes) bem entendido em seus textos impressos, e o mesmo e outra da zona norte, firmada pelo ator Carlos Renato. ocorre com Jabor. Em Minas, um só diário popular, Super Notícia, venAgora é a internet. Nos primeiros momentos, o novo dido a R$ 0,25, tem uma circulação (350 mil exemplameio eletrônico causou grande prejuízo aos jornais im- res) superior a todos os outros jornais do estado. Nos pressos, mas essa onda começa a baixar. Uma das res- Estados Unidos e na Europa, os grandes jornais estão postas do jornalismo impresso foi buscar um público, o recuperando seu público, de maneira lenta, mas firme. dos trabalhadores, que se afastara dos jornais por duas Todos os registros de todos os computadores do mundo razões: a primeira pelo preço, caro, comparado ao da podem apagar-se em um instante com a possível inverinternet – o que ainda pode vir a ser revisto, porque são do campo magnético da Terra ou intensa tempesa tendência é a de que se cobre pelo conteúdo dos si- tade solar, como a ocorrida em 1859, observa o físico tes. A segunda é porque os jornais estão cada dia mais Ubirajara Brito. Nesse caso, teríamos que partir do zero. elitistas, com um conteúdo que não seduz as massas. O papel impresso continuará sendo o grande veíA edição de jornais populares nas grandes cidades culo para a reflexão e, com sua maleabilidade, o mais brasileiras a um preço quase simbólico mostra que há confortável e confiável meio de comunicação e regisum grande mercado disponível. Os jornais populares tro da História.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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NaRede

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Na cola dos candidatos

Por Anselmo Massad, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Vitor Nuzzi

A Rede Brasil Atual acompanha as eleições 2010 por meio das redes sociais e de reportagens especiais. O dia a dia das campanhas, as diferenças de projetos, a agenda dos partidos e coligações estão na página especial Eleições 2010. Os passos dos candidatos à Presidência da República podem ser seguidos por mapas, fotos ou pelo twitter. Acompanhe em www.redebrasilatual.com.br/ temas/eleicoes-2010 Os primeiros dias de corrida oficial à Presidência, aberta em julho, trouxeram poucas novidades. Os destaques foram as oscilações negativas de José Serra (PSDB), tanto nas pesquisas

O que suja as fichas O Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social publicou estudo sobre o sistema de financiamento de campanhas eleitorais. A eleição como negócio tem se acentuado, movimentou R$ 4,6 bilhões nos dois últimos pleitos, com o volume arrecadado ainda muito concentrado em poucas empresas e sem critérios transparentes. Segundo o Ethos, na forma como são feitas as campanhas hoje, uma candidatura precisa ser pelo menos 50% financiada pelo setor privado para ser competitiva. Embora não emita posição formal pró-financiamento público de campanhas, a entidade vê no atual modelo “a raiz de toda a corrupção no país”. http://bit.ly/ficha-suja 6

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como na adoção do discurso mais à direita. Antes mais comedido em desafiar a popularidade de Lula, o tucano endossou as acusações de seu vice, Índio da Costa (DEM), de ligação do PT com as Farc, o narcotráfico e o crime organizado, criticou a alternância de poder entre partidos, chegando a dizer que se um dia o fez foi por “excesso de burrice”. E, incomodado durante uma entrevista coletiva, chegou a tentar intimidar um repórter. “De onde você é?”, perguntou. “Da Rede Globo”, respondeu o rapaz. “Ah, então desculpa”, aliviou o candidato. http://bit.ly/ redebrasilatual_eleicoes1

Dona Ilda

Direito à verdade Restos mortais de desaparecidos políticos da ditadura foram encontrados no maior cemitério da América Latina, em Vila Formosa, na zona leste de São Paulo. Segundo entidades de defesa dos direitos humanos, foi lá que o corpo do militante Virgílio Gomes da Costa, conhecido pelo codinome de Comandante Jonas – participante do sequestro do embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick em 1969 –, foi enterrado pelos órgãos de repressão. A mulher de Virgílio, dona Ilda, revela a angústia da espera por informações. Outros familiares ainda vivem situação semelhante. Acompanhe a série de reportagens de João Peres. http://bit.ly/vila_formosa


Pedagiômetro

BLOG NO SITE E NO RÁDIO Tumulto no tunel durante a Love Parade

Em 1º de julho, os pedágios das rodovias paulistas tiveram um reajuste entre 4,18% e 5,22%. Foi o ponto de partida para que o site Pedagiômetro (http://pedagiometro. com.br/) registrasse no final do mês passado a marca de R$ 3 bilhões arrecadados em tarifas nas 227 praças espalhadas pelo estado. Até o final do ano, calcula-se, os motoristas deixarão R$ 5,3 bilhões nas bilheterias das rodovias. Daria para bancar quase uma dúzia de arenas para a Copa de 2014.

Selo para trabalho decente

Alopatia e homeopatia nunca conviveram muito harmonicamente. Agora, é a vez da crise econômica pôr pilha na polêmica. Alegam os inimigos da medicina alternativa que, por não haver comprovação científica de sua eficácia, os sistemas de saúde não deveria dar cobertura alguma à tratamentos orientados por homeopatas. De Berlim, Flávio Aguiar e seu Blog do Velho Mundo analisam o que está por trás dessa conversa. http://bit.ly/rba_homeopatia No Jornal Brasil Atual, Flávio comentou

a tragédia da Love Parade e responsabiliza a falta de planejamento das autoridades – ao permitir o remanejamento de um evento de Berlim para uma cidade muito pequena, Duisburg – pelo incidente que resultou em mais de 340 pessoas feridas e na morte de 19. O programa Jornal Brasil Atual vai ao ar de segunda sexta, das 7h às 8h, em FM 98,9 para a Grande São Paulo, com notícias do Brasil e do mundo. Às terças, Flávio Aguiar bate um papo com o apresentador Osvaldo Luiz Colibri Vita sobre os fatos internacionais. http://migre.me/10A2l

Depois de certificar produtividade e compromisso ambiental, como forma de estimular métodos de produção que valorizem produtos e imagem das empresas, chegou a hora de estender o conceito às boas práticas nas relações de trabalho. Para dezembro deste ano, está previsto o lançamento da ISO 26000, um modelo de certificação de responsabilidade social que definirá parâmetros para a questão. Assim, respeito e a valorização do trabalho pode ser, também, uma ferramenta de marketing positivo. No Brasil, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) supervisiona o debate. O economista Clóvis Scherer explica os objetivos e entraves colocados na questão. A proposta inclui direito de organização sindical e de negociação coletiva. http://bit.ly/ISO-26000

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

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BRASIL

Maquete do bicentenário País discute com a sociedade metas para os 200 anos da Independência. Plano busca antídoto para políticas neoliberais e quer garantir ações efetivas Por Maurício Thuswohl

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E

mpossado em outubro de 2009, o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, foi chamado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e recebeu uma encomenda: elaborar um plano para o bicentenário da Independência do Brasil. “Ele pediu que eu colocasse em um documento aquilo que a sociedade desejaria ser em 2022”, resume o ministro. Começava um processo de consultas que resultaria no Plano Brasil 2022. O documento, apresentado oficialmente no

final de junho, estabelece metas e ações para os próximos 12 anos nas áreas sociais, de economia e infraestrutura – fruto de um processo de consulta a 20 mil entidades civis, que contribuíram com críticas e sugestões. As discussões se deram em grupos de trabalho que contaram com a participação de dirigentes de diversos ministérios, técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e representantes de setores da sociedade, como trabalhadores, empresários, artistas, políticos e intelectuais. As ações envolverão 36 setores de governo em


áreas definidas como Estado, economia, infraestrutura e social. A partir de uma perspectiva totalmente antineoliberal, o Plano Brasil 2022 já ganhou lugar no rol das iniciativas do atual­ governo que provocam arrepios em seus críticos. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o ex-secretário de governo tucano José Goldemberg critica Pinheiro Guimarães por expor “visões ideo­ lógicas” e afirma que as metas propostas são “arbitrárias”. Algumas metas parecem impraticáveis para setores da política brasileira que pregam a diminuição dos gastos públicos e a redução da presença do Estado na economia. Entre os objetivos estão listados pontos como “reduzir à metade a concentração fundiária”, “erradicar o analfabetismo”, “universalizar o atendimento escolar de 4 a 17 anos”, “reduzir pela metade o número de homicídios” ou “reduzir o desmatamento ilegal a zero”.

PRIORIDADE Plano para 2022 inclui universalização do atendimento escolar

WILSON DIAS/ABR

Tendências

O plano parte de perspectivas do cenário global nos próximos anos, no qual o mundo conviverá com a aceleração da transformação tecnológica, mas também com o agravamento da situação ambiental e energética, das desigualdades sociais e da pobreza; as migrações, o racismo e a xenofobia; a concentração de poder pelos países ricos e a insistência destes em ditar parâmetros para as economias domésticas dos subdesenvolvidos. Segundo Pinheiro Guimarães,

o fosso tecnológico que separa países ricos e pobres tende a aumentar nos próximos anos e será fator de crise. Ele cita a informática e nichos como a engenharia genética e a nanotecnologia como exemplos de setores particularmente sensíveis nesse “apartheid tecnológico”. O ministro chama a atenção também para os aspectos militares da crise provocada por essa desigualdade: “O progresso tecnológico afetará desde a doutrina ao equipamento e aumentará cada vez mais a eficiência letal dos armamentos, a sua miniaturização, o seu controle remoto e a sua colocação no espaço. Isso terá como consequência a ampliação do hiato de poder, especialmente entre os Estados Unidos e os Estados subdesenvolvidos da periferia”, diz. No campo energético, ele acredita que ocorrerá uma transformação da atual matriz energética baseada em carbono para outra, baseada em fontes de energia renováveis: “Tudo indica que essa transformação será lenta e conflituosa devido aos poderosos e numerosos grupos de interesse econômico dentro dos países”. O fortalecimento da relação do Brasil com outros países também é meta prioritária para os próximos anos: “A ação brasileira em um cenário mundial político e econômico tão complexo e difícil somente poderá ter êxito se articulada politicamente com a ação de outros Estados da periferia, sejam eles grandes, como a Argentina, a África do Sul, a China e a Índia, sejam

ALGUMAS METAS DO PLANO BRASIL 2022 (www.sae.gov.br/brasil2022) Reduzir à metade a concentração fundiária Regularizar a propriedade de terra Dobrar a produção de alimentos Dobrar a renda da agricultura familiar Concluir o zoneamento econômicoecológico de todo o país n Garantir a segurança alimentar a todos os brasileiros n Reduzir pela metade o consumo de drogas n Alcançar 50% de participação das fontes renováveis na matriz energética n Elevar para 60% o nível de utilização do potencial hidráulico n Dobrar o consumo per capita de energia n Instalar quatro novas usinas nucleares n Erradicar o analfabetismo n Universalizar o atendimento escolar de 4 a 17 anos n Atingir as metas de qualidade na educação dos países desenvolvidos n n n n n

n Interiorizar a rede federal de educação para

n Ter agências da Previdência

todas as microrregiões n Atingir a marca de 10 milhões de universitários n Ter uma praça de esportes em cada município n Incluir o Brasil entre as dez maiores potências olímpicas n Garantir o monitoramento integral das fronteiras terrestres e das águas jurisdicionais n Lançar o primeiro veículo lançador de satélites (VLS) construído no Brasil n Assegurar tratamento digno a todos os presidiários n Reduzir à metade os detidos sem sentença n Reduzir pela metade as mortes no trânsito n Reduzir pela metade o número de homicídios n Universalizar a Previdência Social

em todos os municípios ou consórcios de municípios n Demarcar todas as terras indígenas e dar sustentação socioeconômica às áreas indígenas demarcadas n Assegurar a efetividade da execução da dívida ativa da União n Implantar e expandir os mecanismos de conciliação e transação com o Estado n Assegurar total transparência das despesas públicas nos três níveis e nos três poderes n Reduzir o desmatamento ilegal a zero n Reduzir em 50% a emissão de gases de efeito estufa n Tratar de forma ambientalmente adequada 100% dos resíduos sólidos n Aumentar a reciclagem dos materiais que têm valor econômico no pós-consumo para 30%

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de menor dimensão. Mas, certamente, essa articulação deve começar pelos países da América Latina e, nela, pelos nossos vizinhos da América do Sul”. O físico José Goldemberg faz críticas ao plano por lançar “toda a culpa dos atuais­ problemas em opções neoliberais, o que é um exagero”. Para ele, o plano parece não compreender a realidade atual, particularmente quando atribui o agravamento da situação ambiental-energética às teorias liberais. O ministro Pinheiro Guimarães expressa essa tese da seguinte forma: “A expansão das atividades industriais com base nas teorias liberais relativas à melhor organização da produção e do consumo, a partir do dogma do livre jogo das forças de mercado, levou a um desperdício enorme de recursos naturais e de vidas humanas”.

Nova economia

Para o vice-presidente-executivo do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, o empresário Paulo Itacarambi, tão importante quanto o objetivo é o planejamento, ou seja, como atingir as metas. “A agenda tem de incluir uma nova economia”, afirma. O próprio Ethos discutiu recentemente a sua visão para os próximos dez anos. O instituto defende “uma economia ao mesmo tempo inclusiva, verde e responsável”. Ouvido para o plano como representante do Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção, Itacarambi observa uma “macrotendência mundial” de crescimento da chamada economia verde, incluindo baixo nível de emissões de carbono e melhor reaproveitamento de resíduos como matérias-primas. “Os processos industriais vão se relacionar de forma muito mais amigável com as questões ambientais.” Isso passa também por uma melhor distribuição da riqueza, acrescenta o executivo. “O processo concentrador está na forma como a riqueza é produzida. Cada vez mais a participação do trabalho é menor”, afirma. Assim, essa nova economia terá de garantir “menor desigualdade de acesso à renda, ao trabalho, aos direitos, à Justiça, aos serviços básicos”. É preciso ainda, aponta, que as ações do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) incorporem essa perspectiva de longo prazo. “Estamos pensando nas obras de infraestrutura com esse critério? O pré-sal

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também está sendo pensado dessa maneira? O importante é que o plano tenha continuidade, mesmo que haja mudança de partido que está na condução do governo.”

Eficiência

Para o Greenpeace, o plano – que fala em crescimento anual de 7% nos próximos 12 anos e, para isso, dobrar o consumo de energia per capita – peca por não estabelecer metas de aumento da eficiência dos sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia, além do consumo. “Dobrar o consumo per capita é uma necessidade relativa. Podemos ser mais eficientes nos processos produtivos e ter crescimento da economia utilizando cada vez menos energia”, diz Ricardo Baitelo, coordenador da

campanha de energias renováveis da ONG. Segundo ele, o plano para 2022 mantém a política de construção de grandes hidrelétricas em regiões remotas e a dependência de linhas de transmissão de “milhares de quilômetros” para abastecer as principais atividades econômicas e as maiores cidades do país. “Fala-se muito pouco em relação à eficiência das linhas de transmissão”, critica. Para Baitelo, o plano de expansão da capacidade instalada de geração elétrica será feito na Amazônia – “fatalmente” com impacto nas populações locais. Como acontecerá, cita, na futura usina de Belo Monte, no Rio Xingu (PA). O coordenador do Greenpeace teme que os impactos sociais e ambientais provoquem conflitos e deman-


LEONARDO MELGAREJO/MST/DIVULGAÇÃO

Reduzir a concentração de terras também significa diminuir a violência no campo

das na Justiça e lamenta que o plano não contemple a potencialização das hidrelétricas já instaladas, com a substituição de turbinas antigas por equipamentos novos e mais eficientes. Ideias não faltam. O professor Ladislaw Dowbor, do Departamento de PósGradua­ ção da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, identifica uma inovação já no fato de ter havido uma consulta pública técnica. “Não me lembro de ter visto uma consulta assim antes (no Brasil).­Vi vários tipos específicos, mas não amplos assim, nem com consulta à sociedade”, diz Dow­bor, uma das personalidades consultadas. Para o presidente do Núcleo de Estudos do Futuro, da PUC, o planejamento de Estado não pode mais se restringir a um ciclo de governo de quatro anos. “Quando se elabora um documento que apresenta uma visão estratégica para o país, você estimula a reflexão da sociedade”, diz. “Hoje, os representantes do povo no Brasil são eleitos basicamente pelas grandes empresas, por meio do financiamento de campanhas. Temos bancada dos banqueiros, dos ruralistas, que defendem seus interesses... Só não tem bancada do cidadão. Isso não deixa que aflorem interesses mais amplos. Enquanto isso não mudar, é difícil.” O professor defende a conduta adotada pelo atual governo, que tem direcionado esforços para uma “significativa” redução da desigualdade social. “Então há esperança.” Colaboraram Xandra Stefanel e Vitor Nuzzi

Os principais pontos do Plano Brasil 2022 foram apresentados pelo ministro Samuel Pinheiro Guimarães a estudantes da Universidade de Brasília (UnB) na primeira semana de julho. O ministro disse que a afirmação política e econômica do país deve passar pela superação de antigos dogmas: “Os parâmetros que surgiram como resultado das negociações da Rodada Uruguai (foro de negociações desenvolvido de 1986 a 1994) e se concretizaram no conjunto de acordos que vieram a criar a OMC (Organização Mundial do

Comércio) limitaram de forma significativa a capacidade dos países subdesenvolvidos de organizar e executar políticas de desenvolvimento necessárias à superação de suas fragilidades econômicas e sociais”. No ensaio que abre o Plano Brasil 2022, Pinheiro Guimarães afirma que a aproximação do bicentenário da Independência acontece ao mesmo tempo em que “se inicia a etapa soberana e altiva do Brasil multirracial, multicultural e multifacetado”. Afirma também que a data simbólica é uma oportunidade

Samuel Pinheiro Guimarães

WILSON DIAS/ABR

Ensaio geral

de “reduzir de forma radical as desigualdades sociais que nos dividem e nos atrasam, de eliminar as vulnerabilidades externas que nos ameaçam em nosso curso e de realizar nosso gigantesco

potencial humano e material”. O ministro admite não nutrir ilusões de que o sistema internacional venha a sofrer mudanças significativas nos próximos 12 anos, mas acredita que o Brasil, “devido às suas dimensões territoriais e geográficas e aos seus extraordinários recursos naturais”, tem potencial para marchar por conta própria: “A extensão do papel do Estado é a grande questão que surgiu com a crise de 2008, em que ainda está o mundo imerso, resultado da aplicação extremada na ideologia neoliberal, crise que clama por uma solução”. AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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MÍDIA

DINAMISMO Talita Galli: entradas direto da redação

Metalúrgicos do ABC conquistam a primeira concessão de canal aberto para uma entidade de trabalhadores. O novo veículo pretende multiplicar a voz de movimentos e redes sociais e inovar a produção de TV no país Por Vitor Nuzzi

No ar, o Brasil F

oram necessários 22 anos, dez meses, 15 dias, cinco governos e quatro “nãos” para que os trabalhadores conquistassem a sua primeira emissora de televisão, superando o ainda pantanoso terreno das concessões públicas. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC inaugura neste 13 de agosto a TVT (TV dos Trabalhadores), com programação voltada para prestação de serviços, cidadania e educação e um pé na internet. Uma experiência inédita que pode escrever um novo capítulo na histó-

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ria dos meios de comunicação no Brasil, 60 anos após o início das transmissões de TV no país. Em julho, os corredores da emissora, em um prédio no centro de São Bernardo do Campo, próximo ao sindicato, já mostravam a movimentação típica de uma redação. Dezenas de pessoas – há quase 100 envolvidas no projeto – preparavam os primeiros programas, discutiam pautas, selecionavam imagens, indo para lá e para cá entre os dois estúdios e as quatro ilhas de edição. “Temos percebido uma emoção muito grande. En-

fim, estamos no jogo”, afirma a diretora de Jornalismo, Nelma Salomão. Essa história começa em 29 de setembro de 1987, quando uma comissão foi recebida pelo então ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, falecido em 2007. Era o governo Sarney, um recordista de concessões – após a Constituinte de 1988, o Executivo perdeu a prerrogativa de ser o único a decidir. A partir daí, o Congresso também teria de aprovar. Tornou-se, por sinal, tema predominante no Parlamento: em 2009, a maior parcela de propostas aprovadas pelo


Uma câmera na mão A TVT começou a surgir indiretamente quando o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Luiz Inácio da Silva ganhou uma câmera durante uma viagem à Europa, no início dos anos 80. “Quando ele voltou para o Brasil, doou a câmara para o sindicato para registrar a história”, conta Sérgio Nobre. As primeiras filmagens animaram os metalúrgicos, que pouco depois compraram uma câmera VHS 1800, mais profissional. Com o tempo, o trabalho foi sendo organizado e sistematizado, dando origem à produtora TVT.

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INFORMAÇÃO Carlos Ribeiro será o apresentador do jornal diário

OTIMISMO Sérgio Nobre: mais uma porta de entrada do mundo do trabalho nas comunicações

Senado, 901 de 2.364, foi referente a autorizações ou permissões para funcionamento de rádio e televisão. Em 21 de julho último, decreto assinado pelo presidente Lula criou uma comissão interministerial para “elaborar estudos e apresentar propostas de revisão do marco regulatório de organização e exploração dos serviços de telecomunicações e radiodifusão”. Integravam aquela missão de 1987 o deputado federal Luiz Inácio Lula da Silva, atual presidente da República; os presidentes da CUT, Jair Meneguelli, hoje à frente do Serviço Social da Indústria (Sesi), e do sindicato, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, atual deputado federal; e o secretário-geral da entidade, Mário dos Santos Barbosa. Eles pediam a concessão ao todo-poderoso dono da caneta capaz de determinar a abertura e o fechamento de canais de rádio e de televisão. O ministro pediu um estudo técnico, que posteriormente seria aprovado – mas por um prefeito da região – para ganhar sua emissora educativa. Desde então, foram quatro tentativas e quatro negativas, sem critérios técnicos convincentes. Para eles, a motivação para que a concessão não saísse sempre foi política, já que os requisitos exigidos estavam todos lá. Um ano antes, os metalúrgicos haviam criado a TVT (TV dos Trabalhadores), com a preocupação de documentar e preservar a memória da categoria. Hoje dona de um grande acervo, a TVT começou a preparar uma série de programas, além de cobrir os mais diversos tipos de eventos. Um dos mais lembrados é o programa Olhar Brasileiro, exibido na Record em 1993. O ex-operador de máquina da MercedesAGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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-Benz­Josimar Alves Bezerra, que se tornaria o cinegrafista Banana, lembra das filmagens iniciais, feitas a pedido de Barbosa, da greve conhecida como Vaca Brava, em 1985, pela redução da jornada. Há 20 anos na TVT, Banana cuida do acervo, que conhece como poucos. É o funcionário mais antigo da produtora, ao lado do coordenador, o ex-ferramenteiro Elizeu Marques da Silva.

Sonho

Em 1991, foi criada a Fundação Sociedade Comunicação, Cultura e Trabalho, dirigida por um conselho de 40 integrantes, representando diversas categorias profissionais. O atual presidente da Fundação, Valter Sanches, diretor de Comunicação do HISTÓRIA VIVA Sanches no acervo: imagens de 1987 mostram Lula, Vicentinho e Jair Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, con- Meneguelli em audiência com o então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães sidera que ele e toda a equipe em torno da emissora são “realizadores de sonhos”, concretizando uma antiga reivindicação, aprovada em congresso da categoria. Em 13 de abril de 2005, saiu a concessão para o canal 46, de Mogi das Cruzes, na região da Grande São Paulo. A outorga veio em 19 de outubro do ano passado. Inicialmente, a emissora produzirá sete programas, com uma hora e meia diária no total (leia box). A grade será completada, neste primeiro momento, com retransmissões da TV Brasil e especiais da TV Câmara.­“Toda a programação está voltada para os movimentos sociais, para a vida do trabalhador”, diz Sanches. “O projeto de comunicação prevê que o principal meio é a internet”, conta o dire- CONECTIVIDADE Jordão: formação de redes sociais é fundamental para que o projeto cresça tor de programação da TVT, Antonio Jordão Pacheco, lembrando que a emissora já Rio (26 UHF), cobrindo as duas regiões me- tras fontes de sustentação, como apoios culé conhecida como uma máquina de escuta. tropolitanas, além de uma rede de emissoras turais. O projeto de comunicação pode cres“A formação de redes sociais é fundamen- afiliadas, que cobrem hoje por volta de um cer ainda mais. Há duas concessões de rádio, tal para que o projeto cresça.” quarto do território nacional. em São Vicente (2007) e Mogi (2009). O sinMovimentos sociais terão oito A transmissão O projeto inclui transmissões dicato ainda estuda um meio de fazer com câmeras e poderão colaborar será feita pelo via cabo por meio de canais que o sinal chegue até São Paulo para connas reportagens, assim como canal UHF 46, comunitários, por meio de cretizar uma integração com a Jornal Brasil comissões de fábrica (repre- de Mogi das parceria com associação esta- Atual, dentro da rede da qual fazem parte o sentantes de trabalhadores Cruzes, e pelo dual do setor, em São Paulo. portal de mesmo nome e a Revista do Brasil. em seus locais de trabalho) na Com isso, os coordenadores O objetivo é ser plural, lembra Sanches. NGT, que tem base dos metalúrgicos. Tamafirmam que a programação “Por quatro vezes fomos preteridos”, afirbém haverá espaço para re- emissoras da TVT poderá ser vista pra- ma, lembrando dos pedidos de concessão ceber mensagens e sugestões próprias em ticamente em todas as regiões feitos aos governos de plantão. “Agora, sovia Twitter, Facebook, blog e São Paulo do país. mos o único caso de entidade organizada Orkut. “Vamos ter reuniões (48 UHF) Para garantir a viabilidade que tem uma emissora. Mas não queremos de pauta ao vivo pela internet”, e Rio (26 UHF) do projeto, houve um aporte permanecer como os únicos mantenedoacrescenta Nelma Salomão. de R$ 15 milhões, que os me- res. A ideia é que os movimentos sociais A transmissão será feita pelo canal UHF talúrgicos calculam ser suficiente para man- façam parceria conosco ou tenham sua pró46, de Mogi das Cruzes, e pela NGT, que tem ter a emissora durante três anos. Enquanto pria emissora”, acrescenta. Para ele, o projeemissoras próprias em São Paulo (48 UHF) e isso, a fundação e o sindicato buscarão ou- to significa o início do rompimento de um

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INTERAÇÃO Nelma na redação da TVT: “Teremos reuniões de pauta ao vivo pela internet”

preconceito contra o trabalhador. “O mundo do trabalho não é retratado.” Previsíveis, as primeiras críticas surgiram muito tempo antes de a emissora entrar no ar. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Sérgio Nobre, responde com outra pergunta: “Por que todos podem ter um canal de televisão, menos o trabalhador?” Ele cita os movimentos iniciados em 1978, com as greves na região do ABC que fizeram história no país. “Era basicamente por democracia, na política e no interior da fábrica. Democracia é todo mundo poder falar”, resume. “Espero que a nossa TV seja uma porta de entrada para que o mundo do trabalho esteja presente nas comunicações.

É um marco histórico”, diz Nobre, acrescentando que agora começa um segundo desafio: dar sustentação à emissora, que não é só dos metalúrgicos. “Precisamos ter muito apoio para realizar o nosso sonho. Queremos dialogar com os movimentos sociais”, afirma o dirigente.

Privilégio ou conquista?

Responsável pelo site Observatório da Imprensa, o veterano jornalista Alberto Dines não vê diferença entre “oferecer uma TV educativa a um sindicato ou ao

Programação inicial n Seu Jornal – segunda a sexta, 19h De segunda a sexta-feira, às 19h, com 30 minutos de duração n Memória e Contexto – segundas, 19h30 Tem como diferencial o riquíssimo acervo da TVT, com mais de 6 mil fitas n Clique Ligue – terças, 19h30 A diretora de Jornalismo da Rede TVT diz que o programa mostrará experiências das redes sociais e de inclusão digital no Brasil. Durante todo o tempo, a participação do público será incentivada n Boa Gente – terças, 19h30 Também quinzenal, o programa contará a história de vida da pessoa convidada, que dará a sua opinião sobre os assuntos mais atuais

n Bom para Todos – quartas, 19h30 Programa de serviços, com temas como direito do consumidor, saúde, Previdência, impostos. “A ideia é estar sempre dialogando com a rua”, diz Sanches. Internautas também poderão participar fazendo perguntas n Melhor e Mais Justo – quintas, 19h30 Um espaço de debate sobre diversos temas com uma hora de duração. O objetivo é não limitar o debate aos especialistas. “Vamos quebrar aquela forma engessada, tornando o assunto mais acessível”, diz Pacheco n ABCD Maior em Revista – sextas, 19h30 Um programa semanal que mostrará personagens da região

dono de um curral eleitoral no interior”. Para ele, ambos os casos configuram privilégios. “É um caso inédito, disso não há dúvidas. Mas apesar do concessionário ser um sindicato de trabalhadores, o ato não se diferencia das centenas de licenças para emissoras de rádio e TV outorgadas ou renovadas periodicamente em benefício de deputados, senadores ou de seus laranjas e apaniguados”, afirmou, em artigo publicado no ano passado no Observatório. Para Dines, o sistema continua “equivocado e irregular”, à medida que ignora o pluralismo e, principalmente, a necessidade de estabelecer uma nova política de regulação das concessões. Já o professor e jornalista Gabriel Priolli considera a TVT “um surpreendente avanço, considerando o histórico do Ministério das Comunicações”. Para ele, a nova emissora representa uma conquista democrática. “É um tabu que se supera. A facilidade com que instituições como igrejas conseguem concessões de canais é inversamente proporcional à das entidades sociais.” Ele chama a atenção para o fato de a TVT surgir em um momento de desenvolvimento da tecnologia, o que facilita o aprimoramento de vários canais. “A tendência universal da televisão é de segmentação, atendendo a demandas específicas. Já temos hoje canais universitários, do Legislativo, do Judiciário. Demos um passo consistente em relação à democratização dos meios de comunicação. Espero que o novo canal contribua para o debate sobre a questão trabalhista no Brasil”, diz Priolli. Ao mesmo tempo, ele cobra avanços na regulamentação do setor. O sistema, diz ele, segue caminhando de forma lenta e irregular. As outorgas, por exemplo, teriam de passar pelo Conselho de Comunicação Social, “que não se reúne há três anos, por falta de interesse dos políticos que controlam o Congresso e são na sua maioria radiodifusores ou ligados à radiodifusão”. A 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) representou um avanço, avalia Priolli, mas “precisa resultar em projetos de lei e políticas públicas”. Ele aguarda também pelos resultados da comissão interministerial criada em julho por Lula. “Estamos vendo, há muitos anos, inúmeras tentativas de revisão do marco regulatório. Espero que desta vez o governo resista e leve isso adiante, porque a cada dia a legislação fica mais obsoleta.” AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Para o professor Venício Lima, estudioso dos meios de comunicação, a construção de uma mídia diferenciada e livre da imprensa dominante não será obra de políticos ou governos, mas da própria sociedade organizada Por Paulo Donizetti de Souza

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MAURICIO MORAIS

A informação emancipada


V

enício Artur de Lima, sociólogo e professor aposentado da Faculdade de Comunicação Social da Universidade de Brasília (UnB), é um dos mais requisitados estudiosos brasileiros quando o assunto é mídia (expressão aportuguesada que resume o termo em inglês mass media, ou meios de comunicação de massa). Autor de vários ensaios e projetos acadêmicos, publicou há dois anos Mídia - Crise Política e Poder no Brasil, pela Editora Perseu Abramo, que vai às minúcias dos principais veículos de comunicação e mostra o quanto o papel de informar se confunde com o objetivo não explicitado de conduzir a opinião do eleitor. Recentemente, lançou mais um trabalho essencial para quem se interessa em pesquisar e entender os conceitos em que se baseiam o funcionamento e o discurso dos grandes proprietários da indústria da informação no Brasil. Em Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa - Direito à Comunicação e Democracia, editado pela Publisher Brasil, Venício desmascara a tentativa da imprensa brasileira de situar-se acima do bem e do mal, das leis, da ética e do interesse público, ao confundir liberdade de imprensa com liberdade das empresas de publicar o que bem entendem, e até mesmo com liberdade de expressão, um dos direitos individuais elementares que integram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborado pelas Nações Unidas pouco depois da Segunda Guerra. Aos 65 anos, o professor não se cansa de debater o tema. Nesta entrevista, ele demonstra um pouco do pensamento que orientou sua intensa vida acadêmica e ainda orienta seus passos de eterno militante da democratização do acesso a informação como fator vital para o exercício da cidadania. O Jornal do Brasil vai deixar de circular na versão impressa. O que está acontecendo com a nossa imprensa?

Bom, não é só no Brasil. No ano passado, o Christian Science Monitor, que é um jornal tradicional americano de mais de 50 anos, também passou a ter somente sua versão eletrônica. A internet obrigou a mídia impressa a se repensar. Não tem sentido o leitor comprar no dia seguinte um jornal para ler ou saber de algo que ele já sabe desde o dia anterior. Mas não é só isso. No caso brasileiro, nos últimos anos, o que é até meio paradoxal, se você observar a tiragem total dos jornais impressos, há meses a circulação tem subido. Isso porque os jornais populares estão subindo sua tiragem; há um jornal mineiro, o Super Notícia, que é vendido por 25 centavos e que hoje circula mais do que a Folha de S. Paulo. Além de conviver com o fenômeno da agilidade da internet, a mídia impressa tem de redescobrir uma forma de ser necessária. Muita gente que estuda essas questões acha que os jornais ficarão cada vez mais ideológicos, analíticos, e até mesmo partidários. Isso já está acontecendo.

A tomada de posição já está acontecendo?

Sim, e esse caminho vai estreitar ainda mais, no caso brasileiro, o espaço de circulação da mídia impressa, que sempre foi elitista até pela natureza do público leitor.

A dita independência dos jornais é um mito?

Muito. Os jornais são mais do que nunca locais ou regionais, não são nacionais. A Folha não é, o Estadão não é e O Globo, menos ainda. Folha e Estado, por exemplo, têm 80%, 90% da circulação em São Paulo. O Globo é cada vez mais carioca. As revistas semanais talvez continuem sendo nacionais, mas com espaço de circulação muito elitizado. Mas os dados de circulação dessas revistas não são confiáveis, não sabemos o número exato e a efetividade da distribuição. Se há um meio impresso em que essas consequências da internet, das transformações, estão acontecendo, esse meio é a Veja, que virou uma revista totalmente opinativa e não tem condições de contemplar leitores que não pensem como ela. Ela chega a ser intolerante com o leitor que não compartilha suas opiniões partidárias, ideológicas. Até as resenhas de livros são ideologizadas. O caso do JB não é isolado. A gente não sabe ainda qual solução será encontrada por esses grandes grupos de mídia com relação à mídia impressa. Certamente haverá alguma, e até lá vamos ter, em alguns casos, o fechamento puro e simples ou a migração para a edição eletrônica. Estamos ficando dependentes da internet e da escola para formar cidadãos inteligentes, críticos?

Se for da escola, estamos lascados (risos). No nível universitário, por exemplo, eu que passei boa parte da minha vida na universidade, pelo menos nas áreas com as quais tenho contato, tenho tido reiteradas decepções. Acho que a minha geração não conseguiu acompanhar as transformações que ocorreram na sociedade e insiste ainda num tipo de aula, num tipo de reprodução de conhecimento distanciado da realidade.

A academia vive num mundo paralelo?

Estamos desviando um pouco da sua pergunta anterior, mas vou te contar uma experiência emblemática: às vésperas de iniciar-se, em Brasília, a primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que foi uma luta histórica, encontrei um coordenador de um programa de pós-graduação na área. Ele: “O que você vai fazer amanhã?” Eu: “Amanhã começa a primeira conferência, estou totalmente envolvido com isso”. E ele: “Primeira conferência de quê?”. O sujeito não sabia que ia acontecer a conferência, nem o que ela era! Para mim, isso é emblemático da distância que existe entre as questões concretas, vitais para a sociedade, e o que se pensa e se produz no espaço acadêmico. Na carreira acadêmica a meritocracia determina. As pessoas­têm de publicar, e aí surgem as revistas internas. Da minha perspectiva, agora externa ao processo, essa situação é preocupante.

A grande mídia começa a sofrer problemas de credibilidade. Hoje, capas como as da Veja não têm mais poder de provocar maiores repercussões

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Quanto à sua pergunta se a mídia contribui para a formação da cidadania, se colabora para a reflexão em certas áreas, acho um pouco mais complicado, porque existem esses cadernos de cultura ou semanais que os grandes jornais têm, que às vezes ainda trazem traduções de textos recentes de pensadores importantes etc. Mas a importância relativa disso é muito pequena. A elaboração dessa pauta cultural é dirigida a um público restrito.

Com todos os avanços de uma mídia interativa, como a internet, a mídia tradicional ainda tem o poder de agenda, de tematizar o debate

Eu acho que a TV paga – que aliás é um fenômeno interessante porque tem crescido nos últimos dois, três anos até mais do que a indústria esperava –, apesar de ter um alcance pequeno em relação à população, também oferece algumas alternativas de qualidade. Mas como a mídia impressa, o alcance é muito reduzido. No fundo, essas são características que permeiam a sociedade brasileira, que é muito desigual, com um espaço de reflexão cultural muito pequeno. Temos deficiências incríveis na área dos equipamentos culturais, como teatro,­cinema, música. Isso tudo, aqui, é muito reduzido. Tanto é que esse ponto está colocado nos programas dos candidatos à Presidência da República. Ainda falta muito para uma ampliação do espaço de reflexão sobre o país, seus projetos, a cultura nacional. A contribuição da mídia é muito pequena.

As chamadas “maiorias silenciosas” estariam formando uma inteligência, uma sensibilidade, à revelia da mídia, e por isso a mídia estaria decadente?

Esse é um ponto absolutamente importante e crítico. Eu acho que o poder da mídia na formação, na construção desse espaço que toda a sociedade tem, diminuiu nos últimos anos. Sobretudo pelo avanço da internet, que é um tipo de canal que quebra a característica fundamental da mídia tradicional, que é a unidirecionalidade. Enfim, esse poder da mídia que os frankfurtianos criticaram, na minha opinião com razão, certamente não existe mais. (Refere-se aos pensadores ligados à escola de Frankfurt, entre eles Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, críticos do capitalismo, mas que viam limites nas teorias críticas marxistas na busca de novas alternativas de desenvolvimento social.) Por outro lado, não há dúvida para mim, que mesmo com todas as transformações recentes e com todos os avanços de uma mídia interativa e não unidirecionalizada, como a internet, a mídia tradicional ainda tem um poder importante, sobretudo, de tematizar o debate. Um poder de agenda.

O grande sintoma disso é que, se você olha os grandes jornais e os grandes portais de internet, as principais notícias são as mesmas.

O que é mais preocupante, com relação a esse poder de agenda, é que se você pensar no que está acontecendo no Brasil, os temas predominantes nos espaços públicos brasileiros são pautados pela grande mídia: o

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assassinato da possível amante do ex-capitão e goleiro do Flamengo; a campanha eleitoral pautada no que eu chamo de pequena política, política udenista, no pior sentido que esse termo pode ter. E os atores políticos vão atrás dessa repercussão, às vezes de coisas que a rigor não deveriam ter importância. Mas é o que alimenta os colunistas, as manchetes de primeira página desses jornais e revistas, manipulações às vezes grotescas. Há um espaço na esfera política brasileira que é pautado por isso. Me incomoda muito que até gente do alto escalão da burocracia do governo se alimente diariamente de um clipping de mídia impressa, como se aquilo fosse a realidade do país. E não é. Eu sempre resisti a isso e chamei a atenção (quando trabalhou na Secretaria Geral da Presidência da República). Mas esse poder de pautar a agenda política em círculos de poder ainda é grande?

Agora a grande mídia começa a sofrer problemas de credibilidade. O fenômeno do prestígio do governo Lula, com toda a evidente má-vontade e hostilidade da imensa maioria da grande mídia, sobretudo impressa, fez com que aflorasse a questão da credibilidade. Hoje, capas como a da Veja (sobre os “radicais” do PT) não têm mais poder de provocar maiores repercussões.

Os métodos de concessão e de renovação de concessões de rádio e TV não mudaram. A distribuição das verbas públicas com publicidade mudou pouco. Na área de internet, só agora, no último ano de governo, saiu um plano nacional para levar banda larga às regiões mais pobres.

Eu tenho sido um crítico bastante frequente, azedo, do governo Lula na área de comunicação. Aparentemente, há um esforço nos últimos três anos para repensar e redistribuir as verbas públicas de publicidade. Isso não significa que o governo não continue a abastecer a grande mídia. Continua. Nem significa uma política de apoio a uma mídia que possa se constituir como alternativa de qualidade à mídia p­rivada dominante. Mas há, aparentemente, um esforço para a descentralização das verbas. A criação da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), iniciativa do Executivo aprovada no Congresso, é uma experiência. Trata-se de uma empresa que se autodefine como pública, o que é um avanço porque nós não tínhamos nada no país, positivado no sentido legal, de uma empresa pública de comunicações. Mesmo que você discorde de sua organização, dos vínculos com o Estado etc., agora é possível fazer uma discussão por dentro. Antes não existia nada nesse sentido. Foi um avanço inegável. E houve a convocação da Confecom, que não tem força para implementação de políticas – sabemos que nenhuma das mais de 600 propostas que foram aprovadas se concretizou até este momento –, como toda conferência desse tipo, mas foi propositiva. No geral, em relação ao status quo da comunicação no Brasil, não só não houve avanço, como em alguns casos houve retrocesso.


A escolha do modelo da TV digital. No primeiro governo Lula, o ministro das Comunicações, Miro Teixeira, apontou numa direção que contemplava a possibilidade não só de uma construção tecnológica de um modelo adequado à realidade brasileira – com o envolvimento do parque nacional brasileiro, da possibilidade criativa da universidade brasileira na área tecnológica –, mas sobretudo contemplava a possibilidade de ampliação do número de concessionários, que seria o grande potencial democratizador da digitalização. O primeiro decreto, de 2003, fazia tudo isso. Em 2006, pós-crise do mensalão e nos acordos políticos que foram feitos e implicaram na mudança do ministro das Comunicações – que passou a ser um representante direto dos grupos tradicionais que dominam a área –, saiu um novo decreto e foi feita a escolha de um modelo que dá mais canais para quem já é detentor e impossibilita a ampliação dos concessionários, que era a grande expectativa com relação à digitalização. O PSOL entrou com uma ação de inconstitucionalidade em relação ao decreto de 2006. A Procuradoria Geral da República deu parecer favorável a essa ação, que entrou na pauta do STF três vezes e não chegou a ser discutida e votada. E apesar de haver uma pendência jurídica, o governo brasileiro está patrocinando a implementação desse sistema em países da América Latina. Recentemente esteve no Brasil uma delegação de países africanos para também poder adotar esse modelo. Não só não houve avanço, como houve recuo.

Enquanto na América do Sul alguns governos compraram a briga, no Brasil o governo foi sempre um gentleman com os setores da mídia que atuam como partido. E ainda assim sempre o acusam de uma suposta ameaça à sua liberdade. Procede?

Nós chegamos a uma situação tão grotesca no Brasil que até as decisões judiciais relativas a um princípio jurídico de processos de investigações que correm em segredo de justiça têm sido consideradas por alguns jornais como censura prévia. Ou seja, eles sugerem se colocar acima do sistema legal, qualquer decisão tomada em relação à mídia é automaticamente considerada censura ou ameaça à liberdade de imprensa, de expressão. A mídia se coloca de uma forma como se gozasse de liberdade absoluta, o que é totalmente absurdo. No artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, você encontra que mesmo a liberdade de expressão pode sofrer restrições em benefício da honra, liberdade e privacidade das pessoas, que têm de ser protegidas. Não há princípio de liberdade absoluta.

O senhor está se referindo a um direito humano preconizado pelas Nações Unidas.

Fundamental. No entanto, a mídia se apresenta como se sobre ela nada pudesse se colocar. O que nós temos hoje, em relação ao comportamento da imprensa, desde que o Supremo decidiu pela inconstitucionalidade

total da Lei de Imprensa de 1967, é um comportamento ambíguo da própria Justiça. Em alguns casos, o direito de resposta já foi negado porque determinado juiz interpretou que não há regulamentação sobre isso. Mas mesmo a decisão do STF pela inconstitucionalidade da Lei de Imprensa deixou claro que não havia necessidade de uma lei para regulamentar o direito de resposta, porque o direito de resposta está contemplado na Constituição e seria auto-aplicável.

FOTOS MAURICIO MORAIS

Por exemplo?

Isso serve, além de emissoras que detém concessões públicas, para jornais impressos e privados.

Nós aqui não temos sequer o direito individual de resposta, embora esteja na Constituição. Então, tenho convicção de que realmente há um déficit imenso nessa área e, infelizmente, vejo que não conseguimos avançar. Os setores dominantes da grande mídia conseguem manter um poder na correlação de forças políticas que não permite avanços na área, até porque têm uma imensa e poderosa representação no Congresso Nacional . Ao contrário do que está acontecendo nos nossos vizinhos da América Latina e nas principais democracias representativas liberais do mundo, onde há, sim, vários aspectos de regulação do mercado da mídia, intervenção do Estado na garantia da liberdade de expressão de grupos que não são contemplados na grande mídia.

O senhor vê perspectiva que essas demandas pela democratização, levando em conta a informação como direito humano de promoção da cidadania, possam tomar rumo diferente a partir do processo eleitoral e da composição de um novo governo?

Gente do alto escalão da burocracia do governo se alimenta diariamente de um clipping de mídia impressa, como se aquilo fosse a realidade do país

Não. A minha expectativa positiva de avanço nessa área decorre do que está ocorrendo no espaço público, fora do Estado. Vejo com muito entusiasmo a organização dos blogueiros, o aumento da consciência sindical com relação à mídia, todas essas iniciativas que se tornam realidade – como esta Revista do Brasil, ou a nova TV dos Trabalhadores. O principal resultado da Confecom foi a sua realização, porque houve debate no país inteiro, nos mais diversos fóruns. Isso, sim, me parece alentador. A Confecom foi capaz de pautar um debate sobre a própria mídia que ela nunca pautou e nunca fez.

Essa é uma agenda a ser perseguida?

É. Vejo com expectativa positiva o avanço da internet, por isso a importância do plano de banda larga, que, se aprovado, é um avanço fantástico, inexorável. Temos de caminhar para isso. O que me resta de expectativa positiva é nesse espaço no qual a sociedade se organiza e pratica uma comunicação diferenciada da produzida pela mídia dominante. E que espero que avance não só pela internet, mas pelos meios tradicionais, com uma entrada mais vigorosa do que antes, com esse espaço da mídia sindical.

Colaborou Guilherme Amorim AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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MEMÓRIA

Há dez anos, um vazio

ANÁLISE AFIADA Biondi foi uma das poucas vozes críticas às políticas do governo FHC

O

texto ao lado foi publicado no jornal paulista Diário Popular em 19 de julho de 2000. Eram comentários a respeito de um incêndio em uma favela. Foi um dos últimos escritos de Aloysio Biondi, que morreria dois dias depois, aos 64 anos, dos quais 44 foram dedicados ao jornalismo. Passados dez anos, as análises e comentários de Biondi, sempre baseados em dados e números, não em palpites, ainda fazem falta. Especialmente quando se lembra de que, aliado ao rigor técnico, eram textos acessíveis, sem a praga do economês, escritos por alguém que não ficou de braços cruzados. Em setembro do ano passado, o acervo do jornalista foi doado ao Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), da Universidade de Campinas (Unicamp). Eram 15 estantes de seis prateleiras cada uma, ou mais ou menos 150 caixas de documentos, segundo Antonio Biondi, 32 anos, seu filho do meio, que não resistiu à influência do pai e também trabalha na área de comunicação. “Ele era muito amigo nosso. E influenciou tanto a gente que eu e o Pedro fomos ser jornalistas, e a Bia pendeu para uma outra faceta dele, que era a música”, conta Antonio, referindo-se aos irmãos, de 34 e 31 anos, respectivamente. O pai gostava de contar anedotas, mas “quando era para dar uma cobrada, vinha uma mais dura”, lembra. 20

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ARQUIVO/DIÁRIO DA MANHÃ/DIVULGAÇÃO

Ícone do jornalismo crítico e analítico, Aloysio Biondi se foi sem deixar substitutos Por Vitor Nuzzi

Embrutecemos. A sociedade brasileira embruteceu. Os meios de comunicação embruteceram. Nós, jornalistas, embrutecemos. (...) Os governantes atuais não se importam mais com o povo, o ser humano. Mas todos também somos culpados. Por silenciar. Por ficar de braços cruzados. Embrutecemos, sim. Apreciador da obra do russo Tchaikovsky,­ Aloysio quase virou pianista. Na música brasileira, gostava de Chico Buarque e Maria Bethânia. Acima de tudo, amava e defendia o país, o que ficou claro no livro O Brasil Privatizado, lançado em 2000. Naquele período dos anos 90, Biondi foi uma das poucas vozes críticas às políticas do governo, apoiado em peso pela imprensa. “Foi uma fase muito dura, com o desmonte da pequena base que o país tinha”, comenta Antonio. “Ele (Biondi) passou a década de 90 buscando alternativas para estabelecer uma trincheira contra esse processo.” Encontrou na Revista dos Bancários, publicação do Sindicato dos Bancários de São Paulo que existiu de 1993 a 2006 – e que deixou de circular com a criação da Revista do Brasil. Seguiu-se um périplo pelo Diário da Manhã, de Goiânia, pelo DCI, Shopping News, Folha de S. Paulo e, finalmente, o Diário Popular, atual Diário de S. Paulo. “Ele passou a década buscando construir espaço para um

projeto de país. Em vários momentos, se chocou com alguns fatores, desde a falta de recursos até a falta de espaço”, diz Antonio. É difícil imaginar – ou nem tanto – que tenha havido, entre os donos da imprensa, quem não se interessasse em dar mais espaço para o padrão de qualidade de Biondi. Aliás, houve quem desejasse reduzir seu espaço. Pouco antes de trocar a Folha pelo Diário, o articulista que escrevia às terças e quintas-feiras passou a contar com apenas uma coluna semanal, no auge do programa de privatizações do governo Fernando Henrique. “É de se lamentar que o grande cidadão e jornalista Aloysio Biondi não possa estar assistindo ao fim do mito neoliberal”, escreveu em 2008, no Jornal do Brasil, o jornalista Mauro Santayana, colaborador desta RdB. Como provavelmente, se aqui estivesse, Biondi também seguiria desafiando mitos e verdades consagradas por observadores não habituados a se guiar pela ciência dos fatos, mas pelos editorialistas.


AMBIENTE

100 reciclável %

Graças à parceria entre município e universidade, coleta seletiva alcança todos os domicílios em Assis (SP) e cooperativa processa 180 toneladas de materiais recicláveis por mês Por Vanessa Zandonade

são comercializadas in natura, como ocorre com o papelão. O presidente da Coocassis, Claudineis de Oliveira, observa que quando a coleta é reali­zada junto ao lixo comum, como ocorre em São Paulo, há grandes perdas. Isso porque os produtos têm contato com substâncias orgânicas e com rejeitos que os contaminam e os tornam desapropriados para a comercialização. “Daí a importância da coleta seletiva”, diz. Os 90 mil habitantes do município des-

cartam, diariamente, em média 60 toneladas de lixo e acumulam 13 toneladas de recicláveis. Com a implantação da coleta seletiva em toda a zona urbana, a quantidade de materiais que podem ser reciclados em meio ao lixo caiu para 3%. A média nacional é de 15% em regiões em que há somente a coleta convencional. A maior receita é obtida com a venda de plásticos, a R$ 0,80 o quilo. O papelão, item coletado em maior quantidade na cidade, tem valor de R$ 0,28 na venda.

RICARDO AMARO/DIVULGAÇÃO

A

emoção toma conta de Noe­ mia Virgínia Vitor quando fala da compra da tão sonhada casa, onde mora com três filhas, três genros e sete netos. “Antes eu vendia saco de lixo pelas ruas. Às vezes, conseguia R$ 2 num dia. A maneira como nós atuamos e como as pessoas nos veem mudou com a cooperativa”, conta. Noemia é coordenadora da esteira de triagem da Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de Assis (Coocassis). Constituída em 2001 a partir da união entre a Cáritas (organização ligada à Igreja Católica) e do Núcleo de Incubadora de Cooperativas (projeto de extensão da Universidade Estadual Paulista), responsável pelo suporte, capacitação e orientação dos participantes, a implantação resolveu não só problemas sociais como ambientais da cidade, localizada a 450 quilômetros da capital paulista. Até 2003, todo lixo produzido pela população da cidade era jogado de forma in natura num aterro sanitário. Hoje, a coleta seletiva domiciliar atinge 100% do território urbano. Pelo menos 180 toneladas de materiais recicláveis são processadas e encaminhadas mensalmente para centros comerciais do estado. Outras 60 toneladas

BOM PARA TODOS Triagem do lixo: emprego e mudança de hábitos

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EDUCAÇÃO PREMIADOS Eduardo e Lucas criaram uma prótese para membros inferiores com materiais recicláveis, um dos destaques da Feira Internacional de Ciência e Engenharia

JUAREZ MACHADO

Para o trabalho

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U

ma das bandeiras dos candidatos à Presidência da República, a educação profissional – ou ensino técnico – estará no centro do debate neste mês de agosto. E não é só por causa da campanha eleitoral. Convidados pelo Ministério da Educação (MEC), especialistas e representantes dos professores, dos trabalhadores, dos estudantes e dos movimentos sociais se reuniram para discutir propostas pedagógicas para o setor. As ideias, se apoiadas em uma audiência pública do Conselho Nacional de Educação, prevista para este mês, poderão compor a resolução sobre as Diretrizes para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. “Esperamos a aprovação para que possamos, enfim, ter uma formação sólida para o mundo do trabalho, e não mais um modelo­ superficial, ditado pelas regras exclu­dentes do mercado”, afirma a professora Marise­ Ramos, pesquisadora da Faculdade­de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante da comissão formada pelo MEC. O mercado, como ela salienta, não deve ser o objeto da formação, mas precisa se

relacionar­com a educação tecnológica numa perspectiva do desenvolvimento da capacidade produtiva do sujeito – o trabalhador. A educação voltada para atender só ao capital tem conteúdos organizados de maneira superficial, que podem mudar de acordo com o contexto socioeconômico. Já a formação que Marise e os setores progressistas defendem consistiria de uma sólida base científica e tecnológica que fundamentam os processos produtivos e permitem ao trabalhador compreender e assimilar revoluções e inovações que venham a ocorrer. O educador Almerico Biondi, superintendente de Educação Profissional do governo da Bahia, diz que as diretrizes que ajudou a formular são norteadas pela vinculação entre a educação básica e a profissional e por princípios educativos que respaldem a formação sólida – aquela que desenvolve uma inteligência individual e social, além da profissional. Ou seja, para qualquer ramo de atividade técnica que venha a escolher, o indivíduo precisa ter acesso a um patrimônio pessoal de conhecimento. “O desenvolvimento social, econômico e ambiental em curso no país exige a for-

mação de técnicos que, mais do que apertar botões, compreendam os fundamentos científicos e tecnológicos do sistema produtivo onde atuam e também o contexto socioeco­nômico no qual estão inseridos”, sustenta Biondi. O documento, segundo ele, pela primeira vez coloca a formação profissional como direito e é também uma resposta ao atual modelo que, entre outras coisas, culpa o trabalhador pela falta de “capacitação”,­por ser inexperiente, ou velho e ultrapassado ou até por morar longe do trabalho e representar mais tempo e custos com transporte. “Temos de superar a ideologia que obriga os trabalhadores a se adaptar às incertezas de um mercado de trabalho baseado na pedagogia das competências, que preconiza o seu conformismo diante de uma realidade em que somente alguns são empregáveis”, completa Rosana Miyashiro, coordenadora pedagógica da Escola de Turismo e Hotelaria Canto da Ilha, em Florianópolis, ligada à CUT. Para ela, o cenário de crescimento econômico previsto para os próximos anos exigirá uma estratégia de desenvolvimento sustentável,­

e para a vida

A concepção de ensino técnico defendida por especialistas, educadores e movimentos sociais no Conselho Nacional de Educação sugere corrigir distorções dos objetivos e da organização desse segmento estratégico para o país Por Cida de Oliveira pautada pela cidadania e pela inclusão. “E a educação profissional, ferramenta no processo de ampliação das capacidades do trabalhador, é fundamental”, diz.

SEM DECOREBA Cláudio Ricardo, reitor do IFCE, do Ceará: aprendizado técnico privilegia o raciocínio e o conhecimento

JR. PANELA

Longa história

O modelo de formação profissionalizante brasileiro tem raízes assistencialistas e data de 1840, quando foram criadas nas capitais as chamadas casas de educandos e artífices. Conforme Francisco Cordão, no livro Ensino Médio e Ensino Técnico no Brasil e em Portugal – Raízes Históricas e Panorama Atual, a criação desses espaços, bem como dos “asilos da infância e AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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dos meninos desvalidos”, visava também a redução “da criminalidade e vagabundagem”. Depois de alfabetizados, os menores eram levados para o trabalho em oficinas públicas. Em 1910, o governo construiu 19 escolas profissionalizantes em várias regiões, que até o início de 1940 se limitavam a treinar para tarefas simples, repetitivas, em série. A Constituição de 1937 previa a existência de escolas vocacionais e pré-vocacionais para as classes pobres, mantidas pelo Estado em colaboração com as indústrias e os sindicatos. O Senai e o Senac surgiram entre 1942 e 1946. Nesse mesmo período, foram definidas as Leis Orgânicas da Educação Nacional, que consolidaram o ensino secundário, normal e superior para “formar as elites condutoras do país” e o profissional para os filhos do operariado, que precisa-

vam ingressar cedo na força de trabalho da industrialização. Em 1971, quando a política desenvolvimentista dos militares exigia operários que produzissem mais e em tempo menor, o ensino de 1º e 2º graus foi reformado e a educação técnica de nível médio, universalizada. A medida – também para brecar o acesso ao ensino superior – levou à abertura de centenas de cursos, muitos distantes das demandas reais, oferecidos em classes de ensino regular e supletivo, sem instalações adequadas, professores capacitados e tampouco carga horária necessária para habilitar­um técnico. Com o fracasso da experiência, essa modalidade voltou a ser restrita às escolas técnicas. “Nos anos 1980, houve um salto de qualidade e o segmento­ se tornou modelo. Era o chamado ensino de excelência”, afirma Silvia Elena de

Tecnologia no campo Em Água Doce, interior de Santa Catarina, está localizado o Centro Estadual de Educação Profissional Agrotécnico Prof. Jaldyr Behering da Silva. Nessa verdadeira fazenda, cerca de 200 estudantes recebem formação técnica em agropecuária. A maioria deles frequenta o curso integrado ao ensino médio regular. Quando concluírem o curso e o estágio, poderão ir para a universidade ou trabalhar em propriedades voltadas à produção agrícola e pecuária ou indústrias de processamento. “Já tivemos aluno que veio do Pará”, conta o professor Lindomar Menegati, hoje assessor de direção da unidade. Com um programa que inclui tecnologias para o aumento da produção de alimentos e ao mesmo tempo o respeito ao meio ambiente, além de parcerias com grandes empresas e entidades, o professor Lindomar sente falta apenas do acesso a equipamentos de última geração, como instrumentos usados na agricultura altamente mecanizada ou de precisão, que tem levado o Brasil ao topo da produção de alimentos.

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Lima, secretária-geral do Sinteps, o sindicato dos trabalhadores em escolas técnicas e faculdades de tecnologia estaduais paulistas e co-autora do livro Os (Des)Caminhos da Educação Profissional e Tecnológica no Estado­de São Paulo.

Acima da média

Na época, o ensino regular público já perdia investimentos e qualidade. As redes técnicas passaram a atrair os filhos da classe média voltados para o vestibular das universidades públicas já elitizadas. Com o aumento da demanda, foram instituídos os vestibulinhos para ingresso – ou seja, de antemão, os alunos que ingressam nessas escolas já são acima da média. A clientela selecionada, em escolas bem equipadas e com professores concursados, de excelente formação – com no mínimo especialização,


formação que integra as disciplinas acadêmicas desta etapa às de cunho técnico, aos professores bem preparados, à pesquisa e ao desenvolvimento de projetos que consolidam o aprendizado que privilegia o raciocínio e o conhecimento, e não a decoreba”, explica o gestor. Outro diferencial dos alunos da rede técnica é participação vitoriosa em mostras estu­dantis de ciência e tecnologia. Em maio, a Feira Internacional de Ciência e Engenharia, maior evento pré-universitário realizado nos Estados Unidos, concedeu 16 prêmios e duas menções honrosas a 11 estudantes brasileiros. Sete deles de escolas técnicas. Karoline Elis Lopes Martins, 18 anos, aluna do curso de Edificações do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) de Minas Gerais, em Belo Horizonte, recebeu três prêmios, que totalizaram­

US$ 13 mil, pelo projeto de construção, com garrafas PET, de um canal integrado a um sistema de água e de tratamento de resíduos. Aspirante à graduação em Engenharia Hidráulica, ela sempre quis cursar ensino médio profissionalizante. “As instalações das escolas e a qualidade dos professores são fundamentais na qualidade do ensino”, resume. A Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, de Novo Hamburgo (RS), foi destaque com as premiações de William Lopes, autor de um projeto de utilização de um fungo no tratamento de águas residuais, e de Eduardo Trierweiler Boff e Lucas Strasburg Ferreira, ambos com 18 anos, que projetaram uma prótese para membros inferiores, de baixo custo, a partir de materiais recicláveis. “Acredito que as aulas de metodologia científica me ensinaram muito, principalmente a me organizar e organizar o meu aprendizado”, diz

FOTOS OSVALDO NOCETTI

e muitos com mestrado e doutorado – acentuou a diferença, que se mantém até hoje. Dados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2009, divulgados em julho, mostram o desempenho acima da média dos alunos dessas escolas. Os da Federal do Paraná, campus de Curitiba, obtiveram a primeira colocação não só naquele estado como em toda a região Sul. Na capital paulista, com escolas particulares consideradas top, o Centro Federal ficou em quinto lugar. No Ceará, a melhor média de todo o estado vem de alunos matriculados no ensino técnico mantido pela União. Reitor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Cláudio Ricardo Gomes de Lima diz que é comum os alunos se destacarem também em competições científicas e matemáticas. “O bom desempenho no Enem se deve à

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PAULO PEPE

paração técnica, com ampliação da carga horária do curso. “O decreto do presidente Lula resgatou a integração, mas de maneira opcional. E nem todos os estados aderiram”, observa Silvia Elena de Lima, do Sinteps. São Paulo não aderiu. E a rede estadual continuou com os conteúdos separados e dupla jornada escolar: num período o aluno cursa o ensino médio, com duração de três anos, e no outro período, o ensino técnico, que dura dois ou três semestres. De acordo com Silvia Elena, quando o técnico era ministrado juntamente com o ensino médio, o conteúdo profissionalizante era desenvolvido ao longo dos três anos de curso, e solidificado junto com os conteúdos de Português, Matemática, Física, Biologia e Química, e enriquecido com Literatura, Artes e Línguas. “Havia envolvimento do aluno, e sua formação era mais completa. Atualmente com dois ou três semestres, no máximo, o conteúdo é reduzido, o tempo de absorção é muito DEGRAU Regivaldo fez Mecânica e Eletrotécnica, cursos técnicos que garantiram seu acesso a melhores postos de trabalho e a salários que permitiram a ele fazer a faculdade menor, e é muito mais difícil os alunos se envolverem no cotidiano da escola”, diz a Lucas, que já trabalha numa indústria e se dio em prol de uma formação profissional sindicalista. Priscila Gaspar, estudante de Logística na prepara para cursar Engenharia. “O ensino básica, também com baixa remuneração. técnico­faz muita diferença na vida da gen- Como na época não existiam políticas afir- Escola Técnica Estadual Basilides de Gote. Trabalho numa grande empresa onde mativas, apenas o mais favorecidos ingres- doy, da Vila Leopoldina, zona oeste da caquase todos foram selecionados na escola savam no ensino superior. “Faltam estudos pital paulista, não se incomoda de estar o em que estudei”, diz o colega Eduardo, hoje sobre o impacto da fragmentação do ensi- dia todo na escola. Pela manhã, cursa as disno técnico, mas observações mais atentas ciplinas acadêmicas e à tarde, as profissiograduando­em Engenharia. nalizantes. “Quando eu estava mostram um apagão de mão para concluir o ensino fundade obra nos anos seguintes. Em maio Adequação mental numa escola particuNos anos 1990, marcados pela desindus- Faltaram desde trabalhadores passado, lar, comecei a pensar num trialização e o desemprego, o Estado redu- com capacitação básica até a Feira colégio que oferecesse ensino ziu a oferta de ensino profissionalizante. de nível superior”, diz Alme- Internacional de qualidade pelo menos igual Surgiram cursos particulares, superficiais, rico Biondi, que entre 2003 e de Ciência e ao da antiga escola, que fosse de curta duração, sobretudo para o setor 2007 chefiou o Departamenperto de casa e gratuito”, diz de serviços, e a iniciativa privada assumiu to de Qualificação no Minis- Engenharia, Priscila. “Embora pertença ao a requalificação de seus trabalhadores. No tério do Trabalho e Emprego. nos Estados Estado, é uma escola diferenfinal de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da “A desarticulação do ensino Unidos, ciada. Não é como as demais Educação Nacional desobrigou a vincula- profissional com o ensino bá- concedeu 16 estaduais.” ção da educação profissional ao ensino mé- sico é ruim para a formação prêmios e 2005, o governo fededio. No ano seguinte, com o Decreto 2.208, do trabalhador e para o Braduas menções ralEm começou a expansão da o governo de Fernando Henrique Cardoso sil. O fruto da baixa escolarisua rede. Até o final deste fragmentou a educação técnica integrada, dade é o trabalho precário, a honrosas ano, terá entregue um total reduzindo a oferta de vagas nesse nível de sub-remuneração, as migra- a sete de 214 escolas. Outras uniensino. As poucas escolas que as mantive- ções, que não trazem benefí- estudantes dades foram federalizadas ram empobreceram seus currículos, mas a cios para ninguém.” brasileiros da com a reorga­nização. No toEm 2004, mesmo com a rede técnica peneira continuava forte. Restava aos estal, serão mais de 500 mil vatudantes mais pobres sair do ensino mé- pressão de setores ligados à dio direto para o mercado de trabalho, sem educação privada no Congresso Nacional, gas até o final do ano. Segundo Eliezer Panenhuma qualificação, para ganhar salários foi aprovado o Decreto 5.154, que revogou checo, secretário de Educação Profissional baixos, até que pudessem investir na pró- o 2.208. O ensino técnico voltou a ser vin- e Tecnológica do MEC, há ainda acordo culado à educação básica, foi assegurado o com o Senai e o Senac, que estão trazenpria qualificação. Outra opção era abrir mão do nível mé- cumprimento da formação geral e da pre- do mais vagas de cursos técnicos e profis26

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PAULO PEPE

APLICADA Priscila Gaspar estuda o dia todo: pela manhã as disciplinas acadêmicas, e à tarde, as de Logística

sionalizantes a estudantes e trabalhadores de baixa renda. Dois terços dos recursos dessas entidades devem financiar a oferta gratuita dos cursos. O MEC transferiu recursos para as redes estaduais destinadas a construção, ampliação, reforma, compra de equipamentos e formação de professores na área de ciên­cias. As redes estaduais também têm investido. Em São Paulo, nos últimos dez anos, em parcerias com os municípios, foram entregues 41 unidades – hoje são 186 escolas técnicas, em 158 municípios. Mas os trabalhadores da rede estadual lamentam a falta de investimentos em pessoal e equipamentos. Na rede federal, os servidores dizem acompanhar de perto uma ampliação tão grande que esbarra em questões como atraso na entregas das obras ou equipamentos. “Mesmo acreditando que muitos dos problemas sejam frutos da fase de implantação e serão resolvidos, estamos atentos”, diz Ricardo Eugênio, coordenador nacional do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional (Sinasefe). O debate das questões filosóficas e pedagógicas e a ampliação da rede técnica, no entanto, são insuficientes. “Buscamos também novos modelos de financiamento para garantir as atuais conquistas para que as gerações futuras não venham a sofrer retrocessos”, ressalta o reitor Cláudio Ricardo Gomes de Lima, do IFCE. O principal deles, segundo o educador cearense, é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 24, que se encontra na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e prevê a criação de um fundo para a educação profissional. Para o engenheiro mecânico Regivaldo Claudino de Souza, de São Paulo, o debate em torno do ensino técnico é fundamental. Com dois cursos profissionalizantes de nível médio no currículo – Mecânica e Eletrotécnica –, ele credita à formação técnica o acesso a melhores postos de trabalho e a salários que o permitiram viver bem enquanto estudava para obter o tão sonhado diploma de engenheiro. Atuando hoje no setor de assistência técnica de uma empresa multinacional, Regivaldo diz que a bolsa paga a estagiários técnicos que ele está recrutando é bem superior à media recebida por estagiários de nível superior. “Por essas e outras, já converso com meu filho sobre começar a formação profissional a partir de uma escola técnica.” AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

Triste espetácu A

notícia do suposto assassinato da estudante e modelo Eliza Samudio, de 25 anos, começou a agitar os telejornais do país no início de junho, quase simultaneamente ao início da Copa do Mundo. O episódio envolvendo uma celebridade do futebol brasileiro, o goleiro Bruno, do Flamengo, dominaria as manchetes de todos os veículos de comunicação durante os dois meses seguintes. Como de costume, a cobertura dita jornalística extrapolou. Chegou-se à exposição de versões detalhadas do crime e das pessoas a ele relacionadas, beirando o macabro. Com tempo de sobra – dada a eliminação precoce da seleção brasileira no Mundial –, o assunto prestou-se ao ibope das emissoras de TV e de rádio e da internet. Mais uma vez, um crime repugnante foi transformado em espetáculo. O sequestro de Eliza, seguido de cárcere privado, tortura física e psicológica e homicídio brutal, passou a ter tratamento de novela. Mostrado em capítulos disfarçados de boletins informativos, o roteiro levava o espectador a conhecer os muitos aspectos da trama, desde a infância dos personagens principais até a sua ligação com os muitos coadjuvantes. Novos ingredientes eram adicionados à história a cada dia, e sempre havia a promessa de novas informações durante o restante da programação. Jornais e revistas semanais também entraram na onda. Manchetes e capas passaram a antecipar aos leitores suas próprias versões

de “jornalismo investigativo”, em que equipes do tamanho de times de futebol eram destacadas para a produção do material, rico em gráficos, simulações e similares. Os supostos fatos eram acompanhados de análises psicológicas e comportamentais. “Especialistas” eram solicitados a buscar explicações sobre como um personagem de perfil vencedor, um ídolo consagrado, foi levado a cometer um ato de proporções tão bárbaras. Também se viu que a tragédia havia sido previamente anunciada. A vítima tinha deixado um legado de testemunhos, fotos e mensagens eletrônicas em que indicava que o namorado famoso era cada vez mais uma ameaça. Isso porque, informou a imprensa, ela o pressionava a reconhecer o filho nascido em fevereiro passado. O menino seria fruto de uma aventura, ou uma orgia. Mas ela insistia no reconhecimento da paternidade pelo jogador, que teria exigido o aborto. Com tanta informação disponível e tantas “evidências”, parte do público começou a formular o seu próprio veredicto. A moça, no final das contas, poderia ter sido a responsável pela própria tragédia. Passou a ser vista como uma golpista, uma maria-chuteira que planejara uma forma de garantir seu futuro e acabou se dando mal. No fechamento desta edição, no final de julho, o goleiro ainda não havia sido indiciado criminalmente pelas evidências que o envolviam no hediondo homicídio; eram poucas as chances de ele não ser condenado por um júri popular. Mas, independentemente do que vier a acontecer ao jogador, a morte de Eliza passará para a história como mais um ato de violência masculina contra uma mulher.

De janeiro a maio deste ano foram exatos 51.354 relatos de violência recebidos pelo serviço de atendimento à mulher criado pelo governo 28

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Meios de comunicação ainda transformam crimes em folhetins macabros e perdem a oportunidade de informar a sociedade sobre como avançar no combate à violência contra a mulher Por Fábio M. Michel

Ódio, amor e desigualdade

No início deste ano, o Mapa da Violência no Brasil, estudo patrocinado pelo Instituto Zangari com base em informações fornecidas pelo banco de dados do Sistema Único de Saúde (Datasus), mostrou que, no Brasil, dez mulheres são assassinadas por dia – foram 41.532 vítimas de homicídio de 1997 a 2007. A Central de Atendimento à Mulher, pelo telefone 180 (serviço criado e mantido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, com informações e orientações para situações de violência), registrou 271.719 atendimentos nos primeiros cinco meses de 2010, um aumento de 95,5% em relação a igual período de 2009. De janeiro a maio foram exatos 51.354 relatos de violência, dos quais 29.515 casos de violência física, 13.464 de violência psicológica, 6.438 de violência moral, 1.060 de violência sexual e 207 de cárcere privado. O relatório traz ainda informações significativas sobre a origem das agressões: 39,8% das denunciantes declararam sofrer violência desde o início da relação; 38% afirmaram que se relacionam com o agressor há pelo menos dez anos e 71,7% residem com o seu car-

rasco. Ainda que o aumento das denúncias seja um dos resultados visíveis da Lei Maria da Penha, que tenta justamente frear o impulso agressivo de homens contra mulheres, são números que comprovam que o sofrimento imposto à mulher pelo companheiro ainda é um ato cotidiano que corre o risco de ser banalizado. O tema foi debatido em julho no Fórum de Organizações Feministas para a Articulação do Movimento de Mulheres Latino-Americanas e Caribenhas, em Brasília, no mesmo dia da festa de abertura da Copa do Mundo. Na ocasião, a secretária de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, afirmou que a violência contra a mulher acontece com muita frequência e nem sempre ganha destaque na imprensa. “Quando surgem casos que chegam aos jornais, principalmente com pessoas famosas, é que a sociedade efetivamente se dá conta de que aquilo acontece cotidianamente e não sai nos jornais. As mulheres são violentadas e subjugadas todos os dias pela desigualdade.”

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A busca das motivações que levam homens a humilhar, caluniar, agredir, ferir e até matar esposas, ex-esposas, namoradas e ex-namoradas mobiliza profissionais, ativistas e estudiosos de áreas diversas. As conclusões comumente apontam para a desigualdade social como fator de risco à integridade física das mulheres pobres, e por isso mesmo o seu sofrimento está fora dos circuitos midiáticos. Essa relação desigual resulta de valores distorcidos que ainda orientam a sociedade e levam a distúrbios de comportamento que extrapolam a condição social de agressores e agredidos. “Não há como sair à procura de razoabilidade para esse desejo de morte entre ex-casais, pois seu sentido não está apenas nos indivíduos e em suas histórias passionais, mas em uma matriz cultural que tolera a desigualdade entre homens e mulheres”, diz a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB). Ela ressalta que as razões para episódios violentos patrocinados por homens contra suas mulheres têm outra natureza. “A brutalidade não é constitutiva da natureza masculina, mas um dispositivo de uma sociedade que reduz as mulheres a objetos de prazer e de consumo.”

Decadência

Para ativistas dos direitos femininos, o que se viu na cobertura do caso Bruno seria mais um sinal de que se vive um momento de decadência moral, cujas consequências atingem, entre outros grupos sociais, as mulheres de forma geral. A advogada Sonia Nascimento, que coordena a capacitação de promotoras legais contra a violência doméstica na periferia da capital paulista, avalia que a ânsia da mídia em buscar fatos novos sobre o caso causou absurdos que deveriam levar os próprios canais de comunicação a se envergonhar. “A gente viu de tudo (durante a cobertura), uma baixaria sem fim. Os jornais condenaram os dois (Bruno e Eliza), mas ninguém condena a mídia”, constata Sonia. “Nos jornais, nas novelas, nos programas de auditório, a todo momento vemos as mulheres tratadas como objeto sexual, além de todo tipo de preconceito e violência. Inclusive contra pobres e negros, e reforçando uma série de valores que não têm mais cabimento em uma sociedade que se pretende desenvolvida.” A advogada lembra ainda que o noticiário não deu muita importância, por exemplo, ao fato de o goleiro Bruno alegar que as queixas de Eliza não deveriam ser levadas em consideração, uma vez que ele a conhecera numa orgia. “Ele poderá ser condenado por seu envolvimento em um crime, mas o fato de ser homem e famoso parece ter lhe dado o direito de estar acima do bem e do mal. E a gente aceita isso como normal”, observa. Mais lamentável ainda é que nem todo o exagero da mídia deverá pôr um fim na sucessão de episódios violentos contra as mulheres de todo o país. Segundo Sonia, “tudo faz parte de uma estratégia muito bem pensada, para manter o público ‘anestesiado’, mas sem que se desperte nas pessoas o estímulo para exigir mudanças no atual estado de coisas”. E puxa pela memória recente para lembrar alguns outros casos de mulheres mortas por quem mais deveriam confiar e que tiveram grande repercussão, mas que caíram no esquecimento. A advogada Mércia Nakashima, baleada e afogada em São Paulo, em episódio que se desenrolava, com menos destaque, simultaneamente ao caso Bruno; a adolescente Eloá, refém do namorado por

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Estudos mostram que a dependência econômica aparece como o principal obstáculo para se romper uma relação violenta


mais de 100 horas em sua própria casa, até ser baleada pelo rapaz, na região do ABC paulista; Dayana Alves da Silva, no Rio, que teve o corpo queimado pelo ex-marido e passou dois meses internada antes de morrer, no início deste ano; a cabeleireira Islaine de Moraes, de Belo Horizonte, que levou sete tiros do ex-marido enquanto trabalhava, tudo gravado por uma câmera instalada em seu salão (que rendeu bons pontos de audiência), em janeiro passado; o estupro de uma menina de 13 anos em Florianópolis, enquanto dormia por efeito de sedativos, entre os suspeitos estava o filho de um diretor de um poderoso grupo de comunicação na região Sul, o que pode ter contribuído para que o caso não tenha virado mais um espetáculo. Tudo tendo a violência como protagonista. Uma infinidade de casos a aguardar a ocorrência de outros, se nada for feito.

Força de lei

Segundo a pesquisadora Débora Diniz, da UnB, a persistência da impunidade contribui para que a solução dos conflitos entre casais aconteça de forma violenta pela parte masculina da relação, embora os avanços representados pela Lei Maria da Penha sejam importantes. “A aplicação do castigo aos agressores não é suficiente para modificar os padrões culturais de opressão.” Falta para a humanização do fim dos relacioO direito a viver namentos a instalação definitiva de mecanismos em segurança, previstos no texto da lei, o que ainda vai requerer um grande esforço de mobilização da parceem paz e com la da sociedade interessada, mulheres e homens dignidade, incluídos. precisa ser É o caso da capacitação de profissionais que assegurado pela prestam atendimento nas Delegacias Especiaelaboração de lizadas em Crimes contra a Mulher, da criação políticas que dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Intra-familiar, além da consolidação da presenpromovam a ascensão social ça do Estado, garantindo que as polícias protejam aquelas que tentem romper o ciclo violento das mulheres em que estão inseridas e que tenham o devido acompanhamento jurídico e psicológico fornecidos pelo poder público. É o caso também de promover a igualdade econômica­ entre homens e mulheres, conforme atestam todos os estudos sobre violência doméstica. O mais recente deles, da organização não-governamental Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre), que tem sede na Suíça, mostra que a dependência econômica aparece como o principal obstáculo para se romper uma relação violenta. Parte das vítimas (27%) diz ser dona de casa, sem outra ocupação e sem possibilidade de independência financeira. “O direito a viver em segurança, em paz e com dignidade, precisa ser assegurado pela elaboração de políticas que promovam a ascensão social das mulheres, que ainda são submetidas a salários mais baixos que os homens em ocupação semelhante, no Brasil e na América Latina”, afirma uma das ativistas do Cohre, Mayra Gomez. Acima de tudo, porém, é urgente questionar a cultura diariamente ensinada em nossa sociedade, de que as mulheres existem para que seus corpos estejam à disposição dos homens e que estes têm todo direito de manter pleno domínio sobre elas. AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

Tradição inventada

A partir da criação de mito, dança e batuque próprios, o grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro inventou para a capital federal uma tradição popular repleta de imaginário e princípios Por Patrícia Bonilha 32

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elo Brasil afora, muita gente acredita que Brasília é só uma cidade de concreto e asfalto, artificial. Sem sal, açúcar nem graça. Há, no entanto, muitas formas de se olhar a capital do país. O grupo de cultura popular Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro, por exemplo, afirma que Brasília é fora do comum e nasceu para inventar. Movidos pela falta de uma história cultural própria local e pela abertura que a cidade oferece para a criação, o grupo se desafiou a inventar para a sua terra uma tradição popular, que eles chamam de brincadeira. “A cultura popular é sempre muito ligada ao local, ao passado e à história daquele lugar. Nela, você ouve falar de heróis que nun-

ca ouviria na escola oficial. Você começa a ouvir a sua história sendo contada por quem foi oprimido e isso proporciona uma outra relação com o local”, explica Tico Magalhães, 33 anos, um dos criadores do grupo. Pernambucano profundamente ligado à cultura popular de sua terra, Tico recebia muitos convites para dar oficinas de maracatu em Brasília, onde mora há 15 anos. Mas sentia que essa tradição não era de lá, suas raízes pulsavam longe do Planalto Central. “A força tinha de estar perto. Alguma coisa tinha de vir e contar a história simbólica dessa cidade”, define ele, que até hoje sai no carnaval de Recife como caboclo de lança no maracatu Piaba de Ouro, criado pelo reconhecido Mestre Salustiano.


RAÍSSA TAVARES/ DIVULGAÇÃO

RAÍSSA TAVARES/ DIVULGAÇÃO

TATIANA REIS/ DIVULGAÇÃO

Calango voador

Eu ouvi lá na mata um trovão Meu corpo tremeu Quis sambar O trovão era meu coração Que na mata se fez trovoar Trovoa minha nação Cheguei, tô querendo sambar Trovoa minha nação Salve o filho de sinhá Laiá! (trecho da loa Trovão)

JOSÉ MAGALHÃES/DIVULGAÇÃO

Seu Estrelo

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Tico diz que, em uma de suas idas a Recife, recebeu de uma entidade espiritual em um terreiro de Xangô a seguinte mensagem: “Se você está procurando uma nação, ela não está mais aqui. Aqui não é mais o teu lugar, você tem de voltar”. Ganhava força naquele momento a criação da brincadeira de Brasília. E como muitas histórias vinculadas à capital, a invenção da tradição popular candanga também teve início de forma mítica ou espiritual.

Mito candango e instigante

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Incitação à cultura O Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro é reconhecido por apoiar e divulgar o trabalho de grupos tradicionais de Brasília e entorno. Por exemplo, nos festivais anuais que promovem – e que já estão no calendário cultural da cidade. A criação do Fórum de Cultura Popular e de uma categoria de cultura popular no Fundo da Zé Cadê Arte e da Cultura foram frutos de “muita briga” do grupo. Outra atividade que repercutiu bem foi a Caravana Seu Estrelo, Rumo à Cidade Mestiça, entre novembro de 2008 e janeiro de 2010. Com um ônibus, os integrantes percorreram cidades satélites e áreas do Plano Piloto e visitaram 12 grupos populares, entre eles o Boi de Seu Teodoro, Martinha do Coco, Cacuriá Filha Herdeira, Folia do Divino de Mestre Badia Medeiros e Mestre Zé do

Pife e as Juvelinas. Nos encontros, diálogo, troca de saberes, batuque e remelexo. Dona Doralice de Oliveira Barbosa, 73 anos, uma das fundadoras da Irmandade Nossa Senhora do Rosário do Carmo do Cajuru, grupo também visitado pela caravana, resume assim esse trabalho junto aos grupos populares: “Só com muito amor no coração para fazer tudo isso”. TATIANA REIS/ DIVULGAÇÃO

O estudioso de mitologia Joseph Campbell­ afirma que os mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido e de significação através dos tempos. “Todos nós precisamos contar e compreender nossa história”, afirma. Motivado justamente por essa busca do entendimento e da expressão, em 2004 o Seu Estrelo criou o Mito do Calango Voador, fruto da amarração­de elementos de vários universos e de muita imaginação. Dividida em três partes, a mitologia retrata na primeira a própria criação: “No tempo em que só existia o dia no mundo, várias coisas viviam e todas tinham um ruído, um canto, uma fala. E assim, toda vez que aparecia um barulho novo, uma nova criatura tomava vida”. Em seguida, o surgimento do Cerrado (com suas caliandras, matas de árvores retorcidas, trombas d’água e um céu que mais parece o mar) e do Calango Voador: “No Cerrado e dessa maneira, nasce o filho do Sol e da Terra”. E, claro, a história da construção de Brasília: “Por isso, junto com Seu Estrelo, a Mata e o Calango inventaram de construir uma nova Coisa, uma fabulosa criatura. Uma nova cidade que abrigaria todos os homens que para o Cerrado vieram para enfrentar a Criatura Comedora de Homens que estava para chegar”. Trata-se de um mito vivo, já que ele não foi concluído, não está terminado. Repleto de figuras cheias de brilho e força, essa mitologia candanga retrata com bom humor uma verdadeira epopeia sobrenatural de amor à vida e, principalmente, à natureza. Como em outras mitologias, a moralidade e o julgamento não estão presentes, mas a busca pela bem-aventurança, sim. Segundo a professora Alessandra Simões, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), é interessante observar que o Mito do Calango Voador utiliza uma estrutura comum a todos

Confira: 6º Festival Brasília de Cultura Popular, de 6 a 12 de setembro. Gramado da Funarte. Entrada Franca. Acesse também www.seuestrelo.art.br


os mitos, de religiosos a artísticos. “Existe uma cosmogonia, um universo novo que é criado para explicar a Brasília e o cerrado reais. A linguagem é poética, subliminar, cheia de meandros e detalhes. Tudo é simbólico e tem sentido, mesmo que a gente não entenda facilmente”, analisa.

A roda extrapola o tempo

Com a ideia de ter uma pulsada própria e diferente para Brasília, e inspirado pelo maracatu e pelo cavalo marinho – manifestações pernambucanas de longa e forte tradição –, o grupo trouxe à luz o samba pisado, nome tanto do ritmo como da dança criados por eles. A partir de uma célula rítmica, foram feitas inúmeras dobras e variações. O samba pisado resultou em uma mistura do som das pisadas dos brincantes do cavalo marinho com a pancada do

RAÍSSA TAVARES/ DIVULGAÇÃO

Se todos os personagens entrarem na roda, a apresentação leva três horas e meia

baque­solto dos maracatus, batida forte e contagiante, daquelas que não deixa ninguém ficar parado. A “casinha”, uma sede pequena com menos de 100 metros quadrados onde o grupo ensaia, se apresenta e recebe grupos amigos e convidados, explicita que tudo ali tem significado e a forte impressão que se tem é de que nada acontece por acaso no terreiro do Seu Estrelo. Os instrumentos foram “chegando” dentro da proposta de que por meio dos sons se criasse o mundo, preparando o espaço para que as figuras do mito chegassem na roda. A caixa, ligada ao fogo, é a primeira a ser tocada. Como o sol, ela esquenta e inicia a brincadeira. O gonguê vem na sequência, simbolizando o ar. Seguido pelos abês e o caracaxá, soltos, que representam a água e as chuvas. Por último, entram os tambores, vinculados à terra. Dos 16 inte-

grantes do grupo, nove são músicos ou batuqueiros. Há quatro mulheres. Em uma espécie de terreiro e picadeiro, a figura do Capitão conduz a apresentação dos demais personagens, de um total de 25. Laiá, a filha da mata, Seu Estrelo, Mané Avesso, Chico Pescador, Caliandra, Zé Cadê, Tromba D’Água, a Véia e, claro, o Calango Voador. Se todos entrarem na roda, a apresentação leva três horas e meia. Segundo Tico, a roda tem a função de trazer os seres fantásticos do mito, ou do Cerrado, para brincar e para as pessoas saberem que essas figuras imaginárias existem. “Elas são bastante sagradas para nós. Cada figura tem sua dança, sua loa (canto), seu figurino e sua brincadeira. Dentro do mito elas têm uma profundidade maior mas, na roda, são seres que vêm para brincar e divertir, são palhaços que contam pedaços do mito”, esclarece Felipe Gebrim, que interpreta, entre outros, o Seu Estrelo. Os figurinos são brilhantes e coloridos, uma atração à parte na apresentação, já que ajudam a expressar a força e a singularidade de cada personagem. “Estamos fazendo algo novo. Temos nossas referências, mas não temos padrão nenhum a seguir”, afirma Felipe, referindo-se ao tripé mito-batuque-dança que está na base dessa brincadeira contemporânea e ao mesmo tempo já tradicional, pela história que traz com ela.

Fundamento e respeito

Em seis anos de existência, o Seu Estrelo conquistou um amplo reconhecimento na cidade e na região. Para se ter uma ideia, o primeiro Festival Brasília de Cultura Popular, organizado por eles em 2005, durou um dia, teve a apresentação de três grupos e participação de mil pessoas. Em 2009, 16 grupos de cultura popular de todo o Brasil e um grupo da Colômbia se apresentaram em três dias, para 25 mil pessoas. O grupo lançou o seu primeiro CD que, além de registrar o samba pisado, conta com a participação de Dinda Salustiano, Zé do Pife, Orquestra Marafreboi e do percussionista Petit Mamady Keita, de Guiné. Em 2007, Seu Estrelo foi premiado pelo Ministério da Cultura como grupo de cultura popular tradicional e em 2010 foi reconhecido como Ponto de Cultura. A postura comprometida parece explicar o sucesso do Seu Estrelo. No início, quando a maior parte do grupo ainda não conhecia muito a cultura popular, Tico explicitou AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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RAÍSSA TAVARES/ DIVULGAÇÃO

Laiá, a filha da Mata

Um dia sentada numa pedra Laiá menstrua, corre gritando assustada com o seu sangue lá pra dentro da Mata/ Por onde Laiá passa vai deixando pingos de sangue/ As flores morrem de rir, zombando da cara assustada de Laiá/ A Mata, sua mãe, pede pra Laiá se acalmar e diz que não tem necessidade nenhuma dela estar assustada, que todo aquele sangue nada mais é que vida molhada/ Para mostrar a Laiá a beleza desse momento, a Mata transforma os pingos de sangue de Laiá em Caliandras, cada pingo vira uma flor vermelha... Até hoje são elas que embelezam as Matas do Cerrado quando a seca acontece. (trecho de A História do Surgimento da Noite, primeira parte do mito)

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que compreender os fundamentos e respeitar a tradição é essencial. “Tudo tem um porquê na sua tradição. É preciso entender o que é um instrumento, por exemplo, o que significa naquela tradição, por que escolhê-lo. Os elementos do Cerrado são trazidos por nós, mas se as pessoas não se sentirem lavadas e impressionadas, é melhor não trazer. Tudo o que a gente traz de outra tradição tem de ser muito bem feito e cuidado porque senão, em vez de ajudar a perpetuar­ aquilo, a gente vai estar prejudicando.” Além da dedicação aos ensaios (o grupo não tem finais de semana livres, por exemplo), alguns rituais revelam que o Seu Estrelo tem uma preocupação maior, mais espiritual. Os tambores são tocados de lado (não se cruza corda para não cortar energia). O tambor do maracatu chama as pessoas que já viveram na terra, no passado. Não se bebe ou fuma antes das apresentações e ensaios. Há sempre uma música que inicia e outra que fecha os trabalhos. Aos sábados, o ensaio termina dentro da casinha; e os instrumentos só saem da casinha para tocar para o Seu Estrelo, para as figuras. “Essa postura vem dos mestres, que é de quem a gente traz toda essa tradição. Essas relações têm de ser entendidas por quem coloca a alfaia no ombro”, afirma Tico. Ele completa dizendo que o Seu Estrelo sempre contou com o total apoio dos mestres de cultura popular de Pernambuco e de Brasília. As perspectivas para o Seu Estrelo são promissoras: realização do 6º Festival Brasília de Cultura Popular; o lançamento do livro O Mito do Calango Voador, com novas ilustrações e fatos inusitados, deve ocorrer em dezembro; o trabalho com as comunidades, principalmente a Vila Telebrasília (antiga ocupação com histórico de resistência), deve ser intensificado com oficinas de vídeo, software livre, música e cultura popular; adaptação, para 2011, da apresentação do mito para o teatro de mamulengo; e, o mais importante, a montagem do espetáculo Brasília, uma Ópera Popular Candanga, que deve estrear em 2011. Parece muito, mas segundo o mamulengueiro Chico Simões, o Seu Estrelo está só começando. “Há um futuro imenso de 360 graus de possibilidades, como o horizonte de Brasília, pela frente. Sinto que está se cumprindo uma vocação da cidade e é real­ mente o início de uma tradição. Daqui a 50 anos, Seu Estrelo vai estar irradiando pro mundo todo”, afirma. Oxalá!


Atitude

Texto e foto: Marina Duarte de Souza

Sargento artista e arteiro

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dificuldade de trabalhar com cultura fez com que James­ Frank de Assis Lopes, 32 anos, escolhesse o Exército como opção profissional. Mas o caminho militar não impediu que o palhaço-ator parasse de acreditar no potencial da arte de transformar cidadãos e de trazer alegria. Fã de Elisa Lucinda, viu nessa poeta e atriz capixaba que conheceu na época do colégio, inspiração para seguir os primeiros passos no teatro – que escolheu como linguagem e instrumento para provocar a autoestima das pessoas. Com um grupo de dez amigos artistas e arteiros, levava diversão a orfanatos, hospitais, asilos. Com uma mania inquieta de querer agitar o ambiente, James desmonta a frieza do estereótipo militar, carreira que escolheu seguir no final da adolescência, e incorporar os ofícios de pianista, palhaço, ator, atleta. Vestiu a farda, mas não tirou o nariz. Hoje é sargento e trabalha no setor administrativo do 24º Batalhão de Caçadores de São Luís (MA), onde é responsável por eventos, passeios e colônia de férias, pois também é formado em Turismo. James costuma levar Azulão, seu personagem da adolescência, nas ações de que participa com o Projeto Rondon. O projeto, criado em 1967, tinha o propósito de integrar universitários a ações sociais

acompanhadas pelo Exército – e ao mesmo tempo mantê-los longe das manifestações e das organizações contrárias à ditadura. Foi assim até 1989. Em 2005, a pedido da União Nacional dos Estudantes (UNE), foi retomado pelo Ministério da Defesa, então chefiado pelo vice-presidente, José Alencar. De cara nova, a proposta é envolver os universitários em ações voltadas ao estímulo da participação, da inclusão social e da promoção da cidadania em municípios do Norte e Nordeste com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). As mais recentes operações ocorreram agora em julho em Pernambuco, Rondônia e Maranhão. James foi o “anjo”, o militar encarregado de acompanhar o grupo de estudantes em seu estado, e permaneceu duas semanas com 14 estudantes em Nina Rodrigues, cidade do interior maranhense com aproximadamente 12 mil habitantes. As obrigações eram dar apoio logístico e supervisionar o grupo. Diante do grande número de crianças encontradas na visita, os estudantes ganharam reforço nas atividades culturais, e o sargento, a chance de reviver Azulão. James quer criar uma ONG para expandir essa “promoção da alegria” pelo Maranhão adentro, e quem sabe pelo Brasil. Parece movido por um sonho solidário do artista sob farda. AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE

Possibilidades de uma no Redução das diferenças entre sul-americanos e europeus; crescimento da torcida dos EUA; novos perfis de campeões; a Copa num país de fanáticos por times, não pelo futebol. Entre a África e 2014, tempo de mudanças Por Renato Pompeu

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fim da Copa do Mundo da África do Sul abriu uma nova era no futebol mundial e no futebol brasileiro em particular. Encerrou-se a época em que os quatro grandes – Brasil, Itália, Alemanha e Argentina – sempre tinham pelo menos um representante na final, a época em que só o Brasil erguia a taça fora de seu continente. Outra mudança significativa foi a confirmação de que não há mais supercraques do nível de Pelé, Beckenbauer­, Cruijff e Maradona, à medida que a progressiva e hoje milimétrica ocupação dos espaços do campo, tornada possível pelo desempenho físico mais intenso, dificulta maiores desempenhos técnicos. Enquanto isso, agora os melhores craques europeus têm nível comparável aos melhores sul-americanos, os quais sobressaíam no trato da bola até pouco tempo atrás. A diferença técnica entre Kaká e Iniesta é bem menor do que a que havia, digamos, entre Pelé e Beckenbauer. No Brasil, acabou a Era Dunga. A substituição desse treinador por Mano Menezes abre um período cheio de novas possibilidades. Mano tem uma mentalidade

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mais profissional do que a do corporativo e grupista Dunga; está longe de ser teimoso e é menos influenciado pelos esquemas táticos europeus. Mano dificilmente será apanhado de surpresa por surpresas... previsíveis, ao contrário de Dunga, que não deu ouvidos às unanimidades de que não havia um substituto, nem mesmo um companheiro, para Kaká, e de que o esquema tático, se funcionava no caso de vantagem no marcador, não tinha muitas alternati-

vas para o caso de placar adverso. Para os brasileiros e, por que não dizer, para o mundo inteiro, é particularmente importante o fato de que a próxima Copa, em 2014, vai ser disputada em nosso país. Deixando de lado a questão da preparação do Brasil em termos de estádios e de infraestrutura, e pensando apenas no futebol, será uma experiência inédita para a esmagadora maioria da população. Apenas aqueles que estão hoje com mais de 65 anos


CIVILIDADE Brasileiro assiste à desclassificação do Brasil diante da bandeira holandesa: vitória na próxima Copa é “obrigação”

têm alguma lembrança do que foi a Copa de 1950. De qualquer modo, deverá ocorrer uma movimentação de massas em escala nunca vista no país. Isso apesar de, já nos anos 1950, técnicos de futebol estrangeiros que visitaram o Brasil terem notado que “o brasileiro não gosta de futebol, e sim de torcer para o futebol”. Em outras palavras, no Brasil, se Corinthians e Flamengo estiverem mal, e times fora dos grandes centros estiverem muito

PAULO WHITAKER/REUTERS

nova era

bem, os dois primeiros continuarão atrain- seja, o futebol vai atrair aqueles que usam do mais espectadores e mais telespectado- pouco os pés e usam muito as mãos, trares e radiouvintes do que os times peque- balhando em fábricas ou escritórios, como nos, tecnicamente muito melhores e mais inversão de sua postura usual. Mais exatabem situados nas classificações. Do mesmo mente, o futebol vai atrair as classes trabamodo, os times de maior torcida continua- lhadoras que continuam se sentindo clasrão tendo mais atenção da mídia do que os ses trabalhadoras fora do local de trabalho. melhores times. Ora, as classes trabalhadoras não exisNão podemos afirmar com certeza se, com tem fora do local de trabalho nos Estados exceção das respectivas colônias, haverá Unidos, não têm sindicatos fortes e muitantos brasileiros como havia sul-africanos to menos partidos políticos próprios, por assis­tindo a uma final Espaexemplo. Os trabalhadores nha x Holanda. Afinal, mui- Teremos americanos se identificam to menos gente no Brasil viu, oportunidade muito mais com o basquete, por exemplo, a final Argenti- de constatar, muito parecido com uma lina x Holanda em 1978 do que se o Brasil nha de montagem, ou com o havia visto o jogo Argentina x beisebol, em que a cada monão cumprir Brasil naquela Copa. mento apenas um de “nós” Também teremos opor- a verdadeira está enfrentando o mundo tunidade de constatar, se o “obrigação” hostil, que é como os ameriBrasil não cumprir a verda- de ganhar a canos se sentem em geral fora deira “obrigação” de ganhar Copa em casa, do local de trabalho. Lembrea Copa em casa, se a reação se a reação da mos que, no Japão, até pouda torcida vai ser tão tranquicas décadas atrás o futebol torcida vai ser la quanto em 1950, quando não era importante, e o sisteo público no Maracanã sim- tão tranquila ma de emprego vitalício faplesmente aplaudiu os uru- quanto em zia cada trabalhador se sentir guaios ao final do jogo. Tudo 1950, quando muito mais membro de sua indica que uma eventual der- o público no empresa, como se fosse uma rota não vai ser recebida com Maracanã família, do que membro das tanta serenidade. Isso apesar classes trabalhadoras. O insimplesmente de, do ponto de vista estritateresse pelo futebol cresceu à mente futebolístico, contar aplaudiu os medida que aumentou o núcomo mérito para o Brasil o uruguaios ao mero de trabalhadores japofato de ser o país com mais final do jogo neses não protegidos pela viCopas conquistadas e, entre taliciedade do emprego. A mesma coisa está para acontecer nos os que as conquistaram, o único, ao lado Estados Unidos. O interesse pelo futebol da Espanha, que nunca a ganhou em casa. nunca foi tão grande lá, como aconteceu País do soccer na última Copa, que lá atraiu, por exemMas, em termos mais globais, a maior no- plo, mais internautas do que as finais de vidade que a próxima Copa pode trazer é futebol americano. Com a crise econômiuma incorporação um tanto mais perma- ca, se vêm alterando radicalmente as vinente da torcida americana à torcida mun- sões que as classes trabalhadoras ameridial. Para entender o que está ocorrendo canas têm de si próprias, de um lado, e no futebol dos Estados Unidos, precisamos do futebol, de outro. Não foi à toa que a levar em conta que, se o futebol é um espe- direita americana mais conservadora pastáculo dramático, em que cada time, além sou a bradar que o futebol é um “esporte de si próprio, é um símbolo sociocultural – estrangeiro” e “de pobres”, enquanto um no caso do Corinthians, o “povão”; no caso parlamentar republicano apresentou um do Roma, os esquerdistas; no caso dos Cel- projeto de proibição de prática do futebol tics de Glasgow, os católicos –, o fato é que nas escolas. Mas atenção: o fato de os traisso não é específico do futebol, mas ocorre balhadores americanos poderem se tornar também com o vôlei, o basquete, o beisebol, mais fãs do futebol não implica necessariao futebol americano. mente um maior progressismo deles. Pois O que é específico do futebol é o grande as massas de torcedores de futebol podem uso do pé e a proibição do uso da mão. Ou muito bem ser fascistas. AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Língua e COMPORTAMENTO

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se impossível;­mas a entrevista via internet demora alguns segundos. Lucas diz que não sabe de onde vieram as palavras que mais usa – mano, tipo assim, pode crê, firmeza, é nóis, pode pá –, mas imagina que nasceram na periferia mesmo. “Todos os jovens falam gíria hoje, né? Eu e meus amigos falamos MUITO”, assim mesmo, em caixa alta. Para o MC (mestre de cerimônias) e rapper­paulista Kamau, usar termos sem conhecer o significado é comum na sociedade: “É uma prática do ser humano para tentar se destacar e mostrar o que não é. As pessoas que não são da periferia usam a linguagem da periferia, e as que são, fa-

para pensar no seu real significado ou de onde vieram. Chama o amigo de “mano”, “Jão”, começa as frases com “tipo”, termina com “tá ligado?” e se alguma coisa dá certo comemora com um “é nóis”. As gírias que nasceram na periferia desceram o morro – ou pegaram um busão para o centro –, e fazem parte do vocabulário dos adolescentes de todos os bairros, de todas as tribos e classes sociais. Lucas Cardoso de Moraes tem 16 anos e estuda em um colégio particular de Campo Limpo Paulista (SP), onde mora. Ele admite usar gírias o tempo todo, na escola, em casa e com os amigos, apesar de a mãe, Solange,­­não gostar: “Já pensou se ele resolve falar desse jeito em uma entrevista de emprego? Não sei onde ele aprende essas coisas”. E de a professora descontar pontos quando ele escreve “tipo assim” nas provas. “Quando eu era muleke, eu morava com a minha vó e eu era certinho e talz, mas andava com uns meninos que já eram da rua e com eles aprendi a falar várias gírias”, escreve, por e-mail, porque falar ao celular ou pessoalmente para essa molecada é qua-

lam de um jeito mais rebuscado de forma errada para mostrar que sabem alguma coisa diferente”. Ele não acha ruim essa escapada das gírias para as zonas mais nobres, mas diz que às vezes elas são usadas como forma de preconceito: “Nosso jeito de falar hoje entra em lugares em que nós mesmos não somos benvindos. E pelo tom a gente percebe que é pejorativo, se dizem ‘uns manos ali’ ou ‘aqueles manos do rap’, ironizando. Até escrito dá para sentir o tom”. O escritor carioca Paulo Lins também acredita que isso acontece desde sempre: “As gírias sempre nasceram na favela e se espalharam. Quando eu estudava a linguagem da rua para escrever Cidade de Deus era assim. Agora estou pesquisando a história do samba nos anos 1930 no Brasil, e já tinha isso. Oswald de Andrade já dizia que a língua é viva e deve ser usada de forma coloquial. É dele aquele poema: “Para dizerem milho dizem mio/ Para melhor dizem mió/ Para pior pió/ Para telha dizem teia/ Para telhado dizem teiado / E vão fazendo telhados”.

ginga PAPO SÉRIO Victoria, de 13 anos, garante que não usa gírias nos trabalhos escolares

MAURICIO MORAIS

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As gírias da quebrada são incorporadas ao idioma dos branquelas Por Andrea Dip

ndo gingando cuns braços pra trás/ Só falo na gíria e pros bico é demais/ Sô forgado, afronto os gambé/ Sô polêmico/ Na favela o meu diploma acadêmico/ De tênis All Star, de cabelo black/ Meu beck, a caixa e o bumbo e o clap/ Cresci ali envolvidão qua função/ Na sola do pé bate o meu coração.” Se você tem mais de 30 anos, provavelmente ficou sem entender uma ou outra palavra da música do grupo paulista de rap Racionais MC´s. Se tem menos de 20, não só entendeu perfeitamente como talvez use essas e outras gírias diariamente sem parar

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“mano”, “véio”, “pá” nos bate-papos e redes de relacionamento da internet ou quando encontra as amigas. Rodrigo, o pai, fica em cima: “Usar gírias com os amigos tudo bem, é coisa de adolescente. O que sempre digo para ela é que precisa saber falar e escrever corretamente. E precisa ter um vocabulário rico para se preparar para o futuro”.

Gíria cabeça

Para o professor cearense João Bosco Gurgel, gíria é coisa séria. Ao concluir curso de Antropologia e Sociologia em 1968, resolveu fazer mestrado em Antropologia da Linguagem e entrou de cabeça nesse universo: “Comecei uma

RODRIGO ZANOTTO

Na mesma Rio de Janeiro de Paulo Lins nasceu Israel Marins Morettoni. Aos 20 anos de idade e cursando o primeiro ano de Pedagogia em uma faculdade federal, ele sabe muito bem usar a norma culta, mas concorda com o poeta Oswald sobre a importância da língua viva, aquela que é aprendida nas experiências cotidianas: “Sempre convivi com vários tipos de pessoas, surfando, jogando bola, bolinha de gude. Então aprendi várias gírias que uso hoje, no contato com os meus amigos. Lek (abreviação de muleke), maior onda, irado, punk, show de bola, tamo junto, pangaré, GN (garoto novo), haule, e por aí vai”. O professor Jorge Luiz do Nascimento, do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisador da cultura hip-hop, acredita que a mídia ajuda a disseminar para o resto do país o modo de falar da periferia, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, por meio de novelas, filmes e da música: “Há a tendência de que os dialetos gírios desses lugares atinjam todo o Brasil e sejam utilizados até em Portugal, onde essas expressões brasileiras se incorporaram ao falar local por causa das novelas brasileiras lá exibidas”. Renegado, rapper de Belo Horizonte que tem levado seu “dialeto gírio” para o resto do mundo (ele deu a entrevista antes de embarcar para Paris), concorda com o professor. Para ele, a cada disco dos Racionais ou filme nacional ambientado na favela, como Cidade de Deus e Tropa de Elite,, novas levas de gírias incrementam o vocabulário da moçada: “Aqui em BH a gente até tem expresolhar), mas a sões próprias, como ‘fragar’ (olhar), maioria vem mesmo do Rio e de São Paulo”. Ele acha bacana essa mistura de culturas: “Se estamos nos comunicando, estamos cumprindo a nossa função. Se a molecada de fora da periferia ouve e entende a nossa música, nossa mensagem, melhor ainda!” Victoria Saloti Zeni, de São Paulo, gosta mesmo é de um tal happy rock, ou rock feliz: reação da garotada “pós-emo” que mudou o guarda-roupa preto e as canções tristes pelas cores e versos animados. Aos 13 anos e cursando a 8ª série em uma escola particular, ela jura que nunca escreveu gírias em provas ou trabalhos: “Já pensou? Como assim escrever gíria em prova, véio?” Mas admite que usa muitas, como “tipo”,

pesquisa da linguagem popular na imprensa do Rio de Janeiro e cheguei rapidamente à gíria, observando que não era linguagem só de malandros, já que era também usada pelo jornal popular, pelo rádio e pela televisão”. Ele conta que após anos de pesquisas no Rio e em Brasília, juntou material suficiente para a primeira edição do Dicionário de Gírias, lançado em 1985, com 6 mil verbetes. Hoje, o dicionário está na oitava edição e possui 33.500 mil termos na versão impressa, além de uma página na internet com o Jornal da Gíria, que traz novidades, curiosidades e

NO PÉ Solange fica em cima de Lucas. Ele admite que usa gírias o tempo todo, até nas provas escolares


do. Não me detive sobre elas, mas admito que serão devastadoras no nosso processo linguístico”.

VÁRIAS TRIBOS Israel convive com tipos diferentes desde criança. Ele tem um vocabulário show de bola

RODRIGO QUEIROZ

Língua engomadinha

regras da língua. Até o final de julho passado, o site contabilizava mais de 496.460 acessos de estudiosos, tradutores, especialistas e pais tentando entender o que os filhos falam. “No Brasil, o primeiro dicionário de gíria é de 1912. Outros importantes saíram nas décadas de 1950 e 1960. E no Rio de Janeiro foi publicado o primeiro livro em girês: Memórias de um Sargento de Milícias”, diz Gurgel. Para o pesquisador, as gírias nascem em todos os locais onde existam pessoas que desconhecem, por alguma razão, a língua padrão e não têm vocabulário para se expressar com correção. “A gíria é a segunda língua do brasileiro, não chega a ser um dialeto, porque conserva a escala fonemática e morfo-

lógica da língua portuguesa, surgindo mais como uma sub-língua, com a mesma estrutura gramatical. Ela tem uma fase romântica, aquela da malandragem, e uma fase virtual ,que floresceu com a ampliação dos grupos dos excluídos, dos que não estudam e dos que estudam e não aprendem, independentemente de classe social.” Sobre a influência midiática nesse processo de disseminação, o professor vê não só como importante, mas criadora de uma nova língua: “A influência do cinema é residual. Do rádio e da televisão é mais forte. Hoje, com os novos fluxos ou vertentes dos rappers e da internet, importantes transformações e mudanças estão surgin-

Outro dicionário de gírias muito rico e em atualização constante é o do site da comunidade do Capão Redondo, na periferia de São Paulo. Clicando em um botão chamado de dialeto local, é possível encontrar termos em ordem alfabética e até cadastrar novas gírias e explicações. Mas vale a advertência: se você não é um iniciado na linguagem das ruas, nem tente. A explicação de uma gíria é dada com outras ainda mais complicadas. Exemplo: “FIM DE CARREIRA, mano e ou mina zuados q usa mt droga etc. poh mano droga d+ é fin de carreira”. “A língua portuguesa ainda é muito engomadinha, então é bom subverter, misturar”, manda Ferréz, escritor, rapper e dono da marca 1 da Sul. Ele não credita a propagação das gírias à mídia. Para ele, a linguagem das ruas se espalha no boca-a-boca: “Todo mundo circula em todos os lugares, aí você tromba um motoboy que diz ‘e aí, Jão?’, tromba um motorista que fala ‘é nóis’, e isso vai passando. Por mais que o cinema e a música tentem, não dá para pasteurizar as gírias, porque tudo muda rápido demais. Eu saio na rua em uma semana e na outra as gírias já mudaram. A língua não é estática”. Ferréz lembra algumas gírias que vieram do Nordeste e do Sul, que pegaram no resto do país: “A coisa de chamar o outro de macho, ‘e aí, macho?’, vem do Nordeste por exemplo. Outra é o ‘qual que pá?’, que vem do Sul. A periferia é rica, grande mistura de culturas. Pessoas vêm e vão, não ficam trancadas em apês como a classe média. Ficam mais na rua, deixam o portão aberto, nisso são bem mais ricas”, provoca. Como dizem os Racionais MC´s, “Não adianta querer/ tem que ser/ tem que pá/ O mundo é diferente da ponte pra cá/ Não adianta querer ser/ tem que ter pra trocar/ O mundo é diferente da ponte pra cá”. Da ponte pra lá, só resta copiar e desengomar a língua. Mas usar a linguagem dos manos e ser preconceituoso não está com nada. É paradoxal. Essa, você que tem mais de 25, entendeu. E se você não sabe o que é paradoxo, “fikadika”: conhecer o português em sua norma culta também é importante. Assim você não vacila nem paga de otário com a crew, né, Jão? AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

No mangue e na moita

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atriz italiana Laura Dondi já viu em alguns meses de Brasil algo que a maioria dos brasileiros não vê em uma vida toda. Está prestes a concluir uma travessia pela costa nordestina. Depois de uma “maratona” de areia e sol desde a Bahia, ela acaba de aportar no pequeno litoral do Piauí, vinda de Jericoacoara, na costa oeste do Ceará. Antes de seguir viagem aos Lençóis Maranhenses, vai gastar uns dias na praia de Barra Grande, no município de Cajueiro da Praia. A pequena embarcação já vai sair. Espera só a maré subir e encher a veia que sai do rio Camurupim em direção ao mar. O canal é um dos componentes do extenso manguezal e da chamada rota do cavalomari­nho, uma das bucólicas atrações do vilarejo. Evandro Carlino da Silva, de 27 anos, e Francisco Júnior, 21, da Associação Nativos Ecotur, se revezam no remo, enquanto descrevem tudo o que sabem sobre a fauna, a flora, a biodiversidade da região, as dezenas de espécies de aves e crustáceos, as ilhotas onde a vegetação de mangue e cerrado se encontram. 44

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Entre uma narração e outra, uma pausa no ruído das vozes e do encontro do remo com a água. O silêncio faz parte do show. Uma multidão de caranguejos observa das margens, entre as folhas e raízes. O barco estaciona. Um cavalo-marinho é retirado delicadamente pelo guia e colocado num recipiente de vidro. Deve estar farto de ser o astro do espetáculo, do olhar curioso dos humanos que não têm mais o que fazer. Os condutores explicam que é melhor assim.­Organizar e disciplinar as visitas é uma forma de mostrar detalhadamente o valor daquela biodiversidade, de proteger os bichos dos predadores e, ao mesmo tempo, de fazer desse pedagógico tour ambiental um meio de gerar renda para os ribeirinhos. No fim, essa espécie de hipocampo que escolheu o mangue como morada vai achar que se exibir um pouco de vez em quando vale o sacrifício. “Só do turismo ainda não dá pra viver”, resigna-se Evandro. Além de receber os turistas – em pequeno número, quando não é fim de ano nem Carnaval – em suas pousadas, bares e lojinhas de artesanato, a comunidade de Barra Grande, com cerca de

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Cajueiro da Praia e seus paraísos, como a praia de Barra Grande, tentam se preservar no pequeno e agitado litoral do Piauí Por Paulo Donizetti de Souza


Cajueiro da Praia MA CE Teresina PI TO

BA

Brasília

PAULO DONIZETTI DE SOUZA

ALCIDE FILHO/DIVULGAÇÃO

PEQUENO NOTÁVEL O litoral do Piauí tem apenas 66 km de extensão

ENCANTAMENTO A italiana Laura Dondi e o cavalo marinho: grande astro de Cajueiro da Praia

1.500 habitantes, vive da pesca e, cada vez menos, da agricultura de subsistência. Laura vai anotar tudo em seu diário. Quando voltar para casa, em Milão, já tem na cabeça o que vai propor ao grupo. “Vou escrever uma peça sobre o Nordeste brasileiro.” Felizmente, ela aparenta não fazer parte da legião de estrangeiros que vê nas terras e casas “baratas” daquele pedaço pobre do Brasil uma oportunidade de se estabelecer e mudar de vida longe dos padrões europeus. A chegada de proprietários da Europa – associada à total falta de planejamento e de visão de sustentabilidade nas últimas três décadas – faz parte das mutações da paisagem, da forma de ocupação e das características naturais de muitos refúgios do litoral nordestino. Não é diferente no hoje cada vez mais badalado trecho entre Jericoacoara e Lençóis, passando pelo Delta do Parnaíba, complexo piauiense onde Cajueiro da Praia ainda se esconde com alguma segurança.

Pé atrás

Marcos Cazuza, funcionário da secretaria da escola estadual de ensino fundamental do vilarejo de Barra Grande, conta nos AGOSTO 2010 REVISTA DO BRASIL

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EXPLORAÇÃO SUSTENTÁVEL Os moradores de Cajueiro temem as consequências da ocupação desenfreada, que já vitimou praias vizinhas

Kitesurfe e peixe-boi

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500 o total de peixes-bois em todo o Brasil, e apenas 35 desses mamíferos estariam morando nos arredores de Cajueiro. “O fato de não haver caça intencional na região ajuda. Esse ponto na divisa entre o Piauí e o Ceará tem um litoral razoavelmente preservado. Temos uns 11 mil hectares de manguezal que formam um estuário importante, bastante favorável para a reprodução desse mamífero”, diz Patrícia, que mora em Parnaíba, trabalha como analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio, do Ministério do Meio Ambiente) e há três anos atua na base do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos, em Cajueiro. Visitantes que quiserem passear pela área monitorada e tentar a sorte de avistar o animal contam com o aval dos técnicos da base. As águas do estuário não sabem o que é barulho de motor. Tudo ali é vasculhado em pequenas embarcações a remo. Para a tentativa de observação é preciso contar com uma combinação de fatores – maré, lua, época do ano, ser dia de ronda dos monitores, além de sorte – e agendar com a base pelo telefone (86) 8107-4827, com o coordenador Heleno, ou (86) 8105-0258, com João. Segundo Patrícia, a ideia de estimular as visitas, além de ajudar a disseminar a importância da preservação dessa e de outras espécies para o bioma, pode estimular as autoridades a aprimorar o atendimento ao turismo sustentável. “Nosso objetivo é conseguir instalar em breve um museu e um auditório, proporcionar às pessoas a observação da fauna e do cenário, e que tomem gosto pelo que observam.” CMA-PI/DIVULGAÇÃO

Cajueiro da Praia é um dos quatro municípios do Piauí com acesso ao Oceano Atlântico. Junto à Ilha Grande, Parnaíba e à vizinha Luiz Correia, da qual se emancipou há pouco mais de uma década, ocupa parte dos 66 quilômetros de praias do estado. Parnaíba, com quase 150 mil habitantes, é o ponto de apoio mais conhecido e estruturado, com hotéis e agências de turismo para quem procura a região como parte dos caminhos entre Barrinhas (sede dos Lençóis Maranhenses) e Jericoacoara, na costa oeste cearense. Há também passeios que partem dali para os sítios arqueológicos dos parques da Serra da Capivara e de Sete Cidades. Luiz Correia, colada a Parnaíba, tem menos de 30 mil habitantes, mas é também referência para quem faz os roteiros do complexo de dunas, lagoas,­ ilhas e igarapés do delta do Rio Parnaíba, o único do continente americano em mar aberto. A região fica a 180 quilômetros tanto de quem vem da direção de Barreirinhas como de Jericoacoara. E a 340 de Teresina. A sede administrativa de Cajueiro está a uma hora de Luiz Correia. Além da xodó Barra Grande, a cidadezinha de menos de 7 mil habitantes tem outras belas praias, algumas não “feitas” para gente andar. Sua posição geográfica e a pouca frequência no período que vai de julho até o início do ano atraem muitos praticantes do kitesurfe. O lugarejo também abriga uma das cinco bases do Projeto Peixe-boi Marinho no país. Segundo a cientista social Patrícia dos Passos Claros, a população desse animal em águas braPeixe-boi se sileiras está na lista das espécies em extinção. recupera em Numa estimativa – que ela admite estar desacativeiro tualizada, “mas é a que temos” – não passa de


turismo sexual e outras formas de violência que já abatem outros ex-paraísos não muito longe dali. A região fica em uma Área de Preservação Ambiental (APA), o que já ajuda com a imposição de limites à ocupação. Mas a fiscalização é precária. Os próprios moradores se organizam em associações para traçar estratégias de defesa. “Na relação com os visitantes e até com gente da própria comunidade, a gente procura ser didático, explicar que para podermos contar sempre com os privilégios que o lugar nos dá, temos de seguir algumas regras”, conta Evandro. O condutor mostra um pescador carre­ gando algumas dezenas de caranguejos que acabou de extrair do manguezal, apesar das restrições do período de reprodução. “O cara pensa que é esperto, vai vender esse monte de caranguejo para algum restaurante. A gente tenta explicar que ele pode ganhar o dia, mas isso pode comprometer o futuro, vai faltar peixe, vai faltar caranguejo. A gente até convence o morador daqui, duro é convencer quem vai servir o caranguejo. Se aumentar muito o número de gente disposta a consumir peixe pescado de jeito errado, no tempo errado, isso aqui não dura.” VENTANIA A praia pouco frequentada e varrida pelos ventos atrai os kitesurfistas

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PAULO DONIZETTI DE SOUZA

DIDÁTICO Evandro guia os turistas pelo mangue e explica os aspectos do bioma local

dedos: já são cinco as propriedades adquiridas por franceses e italianos. Ele também participa de uma associação de condutores de turistas, a Barratur, que tenta disciplinar as visitas e garantir que prevaleça o turismo sustentável. Cazuza é nativo do vilarejo e passou os últimos cinco anos pesquisando a fundo a sua história. Ele colheu elementos que o fazem crer que a comunidade tem sangue gaúcho, pois teria se originado de remanescentes da Guerra dos Farrapos migrados do Rio Grande do Sul, que aprovaram aquela vidinha de pescadores ermitões. Quem não aprovou a chegada deles foram os índios tremembés, integrantes daquele habitat até o início do século 20, quando se sentiram literalmente deslocados pela expansão da população branca. “Já tenho um livro pronto; agora, publicar são outros quinhentos”, brinca. A comunidade vive um dilema: se aposta ou não em sua vocação turística. “As pessoas­aqui sabem que é uma faca de dois gumes. Temos a ganhar e a perder. Não podemos correr riscos”, calcula o morador, temendo as consequências da ocupação desenfreada, como a deterioração dos recursos, a especulação imobiliária,­o

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Cena de Decir Lluvia y que Llueva

O Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília chega à sua 11ª edição e ocupa os principais teatros da capital de 25 de agosto a 5 de setembro com 29 espetáculos internacionais, nacionais e brasilienses. A abertura será no dia 24, com o espetáculo Till, que marca a volta do Grupo Galpão ao teatro de rua. Os destaques vão para dois espetáculos do

Cena de Odysseus Chaoticos

grupo Kabia, do País Basco (Espanha), o músico sérvio Góran Bregovic e para o grupo israelense ISH Theater, que mistura vertiginosamente teatro físico, clown e mímica. Atenção para as reflexões sobre o exílio, a tortura, a violência e a guerra, temas cotidianos nos países de várias companhias. Consulte a programação em www.cenacontemporanea.com.br.

Outra forte mulher de Isabel Zarité é uma escrava negra que foi vendida aos 9 anos de idade para o francês Toulouse Valmorain, dono de uma das maiores plantações de cana-de-açúcar das Antilhas. A Ilha sob o Mar (Editora Bertrand Brasil), 19º romance da chilena Isabel Allende, conta as mazelas vividas pela escrava durante a colonização francesa no século 18. Quando adulta, Zarité tornou-se amante de seu dono e passou a cuidar da casa e dos dois filhos de Valmorain, um deles com ela. Depois de uma grande rebelião, a família foi obrigada a fugir do país. É uma obra cheia de detalhes psicológicos e da organização social, narrados em círculos que sempre voltam ao meio: o olhar da escrava. R$ 41, em média. 48

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Contágios A exposição francesa Epidemik, em cartaz na Estação Ciência da Universidade de São Paulo, simula diferentes cenários de epidemia em um videogame coletivo gigante que permite a 40 jogadores enfrentar doenças que se difundem rapidamente. Criada pelo museu francês Cidade da Ciência e da Indústria, a mostra tem atentado bioterrorista de peste pulmonar, gripe pandêmica, Aids, malária e dengue. Ao pisar no tabuleiro, o jogador recebe uma “aura”, que é projetada no solo e o acompanha indicando seu estado de saúde em função das atitudes preventivas que assume ou tratamentos que escolhe, sempre orientado por uma tela de 11 metros. A exposição também conta a história milenar dos homens e das epidemias por meio de filmes e materiais jornalísticos. Até 26 de setembro, de terça a sexta-feira, das 8h às 18h, e aos finais de semana, das 9h às 18h. R$ 4. Mais informações: (11) 3671-6750 ou www.eciencia.usp.br.

DIMITRY TULPANOV/DIVULGAÇÃO

Encenação

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

BORJA RELAÑO/DIVULGAÇÃO

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

CurtaEssaDica


FOTOS WILSON SANTOS/CPDOCJB/DIVULGAÇÃO

Caetano Veloso: guitarras em “invasão ianque”

Informação, emoção e diversão A era dos grandes festivais (1965-1972) proporcionou cenas incríveis da Roberto história da música brasileira – no momento em que ela mais se misturou à Carlos: claque para história política do país. E ao narrar a finalíssima de 1967, da TV Record, vaiar os diretores Renato Terra e Ricardo Calil fazem de Uma Noite em 67 um documentário antológico. O trabalho tem cenas manjadas enriquecidas com muitas inéditas ou raramente vistas. Entre essas raridades, a íntegra das quatro performances mais bem colocadas – Ponteio (com Edu Lobo e Marília Medalha), Domingo no Parque (Gilberto Gil e Os Mutantes), Roda Viva (Chico Buarque e MPB-4) e Alegria, Alegria (Caetano Veloso e os Beat Boys, grupo de rock argentino) – e de outras duas mal classificadas, mas essenciais para a descrição da temperatura da época – Maria, Carnaval e Cinzas (Roberto Carlos) e Beto Bom de Bola (Sérgio Ricardo). As apresentações são intercaladas com cenas de bastidor e de hilárias conversas dos jornalistas Cidinha Campos, Randal Juliano e Blota Jr. com os músicos. O documentário traz ainda depoimentos dos mesmos artistas, hoje sessentões, em geral referindo-se às obras como algo entre a inexperiência e a molecagem, no bom sentido. Roberto Carlos se surpreende com a informação de que havia uma claque de avessos à “alienante” Jovem Guarda organizada para vaiá-lo – ainda que tenha defendido um puro samba-canção de Luiz Carlos Paraná. Sérgio Ricardo admite que jamais repetiria o gesto de arrebentar o violão e arremessá-lo contra o público que o vaiava sem sequer ouvi-lo. A diversidade e a tensão eram deliberadas iscas por audiência. Afinal, conta Paulo Machado de Carvalho, Sérgio Ricardo: então chefão da Record, os festivais eram, antes de tudo, violão quebrado programas de auditório. Outra polêmica tensa era a resistência de uma ala da MPB à “invasão ianque” da guitarra elétrica, promovida por Caetano em Alegria, Alegria. Conciliador acidental, Gil misturou a guitarra ao seu bom e velho violão em meio ao arranjo espetacular de Rogério Duprat para Domingo no Parque. O jurado Sérgio Cabral, que votou em Ponteio, hoje diz que teria sido correto votar em Gil. Uma Noite em 67 é um filme honesto, competente, com informações inéditas até para iniciados, e divertidíssimo. Estreou em 30 de julho nos cinemas das maiores capitais. Quem gosta do assunto que não bobeie, porque os bons filmes nacionais não ficam muito tempo em cartaz.

Gilberto Gil: arranjo inovador

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Crônica

Por Mouzar Benedito

A América é dos gringos De vez em quando, algum brasileiro gringófilo desvairado se gaba de ter morado “na América”, de ter estudado “na América”

“A

Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi

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mérica”... Quantos brasileiros falam dos Estados Unidos como se só lá fosse “América”. Acham que o nome é privativo dos Estados Unidos. Para começar, América, do México para o sul, era “América” antes dos Estados Unidos. Enquanto o Caribe já tinha muitas cidades habitadas por europeus, o México já estava cheio (e com o saco cheio) de espanhóis. O Peru também, e o Brasil tinha núcleos de portugueses. A atual gringolândia era um mundo desconhecido pelos europeus. Os espanhóis tentaram fazer um assentamento onde é hoje a Carolina do Sul, em 1526, mas não deu certo. Depois, em 1565, fizeram outro na Flórida. O primeiro assentamento inglês foi na Carolina do Norte, em 1586, e não durou nem três anos. Só em 1607 os ingleses fizeram um assentamento permanente chamado Jamestown. Então por que eles se julgam donos do nome América, dado pelos europeus ao continente inteiro? Sempre achei que, se queriam um nome exclusivo, que se autodenominassem Gringolândia ou Gringóvia. Depois de pensar bastante, parti para uma conclusão radicalmente diferente: agora acho que eles devem ser América mesmo, e nós é que devemos procurar um nome mais apropriado para o nosso continente, excluindo aquela parte. Américo Vespúcio era um marqueteiro mentiroso. Já no início do século 16, ele inventou que tinha feito uma viagem em 1497 em que teria chegado à costa da América do Sul, inclusive do Brasil. Portanto, teria sido antes da chegada de Colombo ao norte da América do Sul, em 1498 (em 1492 ele parou nas Antilhas), e de Cabral ao Brasil, em 1500. Assim, enganou o cartógrafo alemão Martin Waldeemüller, que estava fazendo uma cosmografia e pôs no novo continente o nome do “seu descobridor”. Foi o que se chama apropriação indébita. E nisso os gringos são bons. Bastaria citar o exemplo da invenção do avião. Depois que Santos Dumont voou pela primeira vez em Paris, os gringos vieram com a história de que os irmãos Wright levantaram

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voo antes dele, sem ninguém ver, e assim mesmo com o uso de uma catapulta para mandar o avião para cima. Outro exemplo: a laranja foi introduzida no Recôncavo Baiano logo no governo de Tomé de Souza. No início do século 19, ocorreu uma mutação num laranjal, em que essas laranjas começaram a ter uma espécie de umbigo, e assim surgiu a laranja Bahia. Em 1873, técnicos em citricultura levaram três mudas dessa laranja para os Estados Unidos, e de lá a espalharam pelo mundo com o nome de washington navel, como se eles tivessem “inventado” a tal laranja. Enfim, são dignos do nome do trambiqueiro Vespúcio. Então, se a gente quiser dar um nome de gente para o nosso continente, que seja, por exemplo, o do índio Hatuey, do Haiti, que em 1512 já percebeu o caráter do colonizador europeu, liderou uma revolta contra a escravização dos índios pelos espanhóis cristãos, foi preso em Cuba e queimado vivo. Antes da execução, um padre quis convertê-lo ao cristianismo para que ele entrasse no céu. Hatuey perguntou se no céu tinha cristãos, o padre respondeu que sim, muitos, e ele disse que preferia ir para o inferno. Poderíamos também pensar num nome como Pindorama, terra das palmeiras em tupi, mas aí não contempla o continente inteiro. Pachamama, nome da principal deusa indígena dos Andes, a mãe terra, ou mãe do universo, também seria restrita à parte sul do continente. Quem sabe juntar as iniciais de alguns dos maiores povos daqui, maia, asteca, tupi, inca, aruaque... Ou uma mistura de sílabas de quatro palavras importantes de diferentes línguas indígenas, como Pachamama, México, Pindorama e Caribe. É questão de pensar e achar um nome legal. Que a gringolândia fique com o do colonizador e cascateiro Américo Vespúcio.


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