Revista do Brasil nº 052

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PAULO CÉSAR PINHEIRO Um baú de 2 mil canções, histórias e parcerias

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O país está bem perto de seguir mudando para melhor

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A VEZ DE DILMA

outubro/2010

I SSN 1981-4283

nº 52

R$ 5,00

ASSÉDIO MORTAL Pressões e humilhações no trabalho que tiram a vontade de viver



Índice

Editorial

LUCIANA WHITAKER

TOMAS BRAVO/REUTERS

Eleições 8 Com apenas Dilma e Serra no páreo, tucano não resistirá a comparações Saúde 14 Consumidores de remédios são reféns da indústria farmacêutica Trabalho 18 Pressão por produtividade à base de humilhação pode levar ao suicídio História 24 Sobreviventes da bomba atômica só encontraram a paz no Brasil Ambiente 28 Ano da Biodiversidade: hora de conter o prejuízo e reverter a destruição

Paulo César Pinheiro

SELMA TRONCO

Viagem 46 Colonização alemã ainda influencia o cotidiano de Pomerode, em SC SEÇÕES Cartas 4 Ponto de Vista

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Na Rede

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Atitude 37 Curta Essa Dica

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Crônica 50

O caminho a ser seguido

A

Entrevista 32 Paulo César Pinheiro conta que suas canções brotam como nascentes Mídia 38 Por que o governo de São Paulo maltrata tanto a TV Cultura? Cultura 42 Três décadas depois, rap nacional rediscute os seus caminhos

Arquitetura alemã em Pomerode

Estudantes de Monterrey, México, em marcha silenciosa contra a violência ligada ao tráfico

chamada “guerra ao narcotráfico” no México já produziu mais de 28 mil mortos nos últimos quatro anos. Em todos os níveis, autoridades são corrompidas pelas organizações criminosas, ameaçadas, assassinadas. O país sofre influência direta dos Estados Unidos em sua política de defesa nacional. De acordo com o respeitado sociólogo mexicano Héctor Díaz-Polanco, o país está perdido, não tem projeto nacional e a sociedade está tomada por uma sensação de desalento. O México foi um dos mais engajados no neoliberalismo desde os anos 1990. Hoje, enfrenta sem forças um inimigo recente, poderoso e torpe, que abastece de drogas o assombroso mercado consumidor americano. O país não é pobre e poderia exercer liderança semelhante à do Brasil na América do Sul. Mas o Estado está debilitado. O assunto será objeto de reportagem de um dos próximos números da Revista do Brasil. Mas por que abordar, neste espaço, temas de uma edição que ainda está por vir? Trata-se de dar uma vaga ideia do que poderíamos ter virado caso o Brasil não tivesse começado, há oito anos, a virar o jogo do neoliberalismo conduzido pelo PSDB/DEM. Sabe-se que a eficiência e a inteligência policial são essenciais no enfrentamento ao crime, mas essa ação será inócua se não forem combatidas a concentração de renda e a miséria, raízes mais profundas das sociedades violentas. No Brasil, foi nos presídios do estado mais rico que nasceu a principal organização criminosa do país, que mesmo de dentro das celas comandam suas operações. No sistema de segurança desse estado estão os piores salários de policiais do país, e nas escolas desse mesmo estado os profissionais de educação estão entre os mais desprezados. E as mesmas forças políticas e cabeças econômicas comandam esse mesmo estado há mais de 16 anos. E depois de se comportar como amigos da onça enquanto o Brasil reagia à crise econômica, agora ainda tentam retomar o poder central, perdido em 2002. Diferentemente do que costumam alardear as cabeças tucanas e seus porta-vozes na imprensa, o sucesso da economia brasileira não está na “continuidade” da política da era PSDB/DEM. Está na ruptura iniciada há oito anos, que adotou o estímulo ao crescimento econômico em vez da estagnação. E que tem como resultado, ao contrário daquela época, o crescimento do emprego, da massa salarial, a inclusão social e a distribuição de renda. É esse o ponto de partida para se chegar a uma sociedade sem violência, a um país que seja grande economicamente e também justo com seu povo. Que o Brasil siga nessa trilha, sem dar chance ao retrocesso. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Vitor Nuzzi e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de Gilberto Tadday Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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REVISTA DO BRASIL OUTUBRO 2010

A vida no moinho Gostei muito da reportagem sobre a Favela do Moinho (“A vida no moinho”, ed. 51). Apresentei a reportagem nos grupos de que participo como educador de rua e palestrante para pessoas usuárias e dependentes de drogas. Esse é mais um tormento que tem afligido nossa juventude no mundo. Precisamos cobrar dos nossos governantes mais ação e uma política autêntica para que possamos levar aos nossos filhos uma orientação e cura para esse grande flagelo que está destruindo nossa humanidade. Parabéns, Revista do Brasil. Essa reportagem vale mais que ouro. José Aguiar, São Paulo (SP). Bela e fera Excelente reportagem com uma bela mulher (“A Bela é fera”, ed. 51). Adorei essa edição. Não que das outras não tenha gostado, mas isso é mais um incentivo para as mulheres que têm vontade de fazer um esporte que antes era predominantemente feito por homens. Adriana Calixta de Sousa, Mauá (SP) Serra é do DEM Li no Viomundo, do Azenha (www.viomundo.com.br), uma análise brilhante apontando para a incapacidade das lideranças de esquerda em detectar, neutralizar e/ou responder boatos. Aponto para outra: a incapacidade de veicular na net argumentos que os adversários oferecem de bandeja. Um está embutido na própria campanha de Serra, de demonização de Dilma. Não, não falo do aborto, mas sim o jingle que diz “Serra é do bem”, que quer dizer “... Dilma é do mal”. Pegue o mote e grite: “Serra é do DEM!” O DEM que é responsável por tantas e tantas mazelas na história deste país. Túlio Muniz, Fortaleza (CE ) Futebol Lamentável o comentário sobre futebol desse jornalista, parece que o cidadão não é do ramo (Paulo Ganso e a Cidadania, de Renato Pompeu, ed. 48). Robinson Zamora, São Paulo (SP)

Privatizações em SP A reportagem “Apagão de Memória” (ed. 51) foi oportuna, porém acho que foi um grande erro não ter descrito a situação em que ficou a Emae com a cisão da Eletropaulo. É a maior prova da falta de respeito que o PSDB/DEM demonstrou com o bem público. Sugiro uma matéria específica sobre o estrago que o episódio com a Emae foi para o patrimônio público. Gothardo Garcez Vilete Violência contra mulher Estou escrevendo um artigo acadêmico que será publicado e pretendo utilizar trechos da reportagem Triste Espetáculo (sobre violência contra a mulher), publicada na edição 50, de agosto deste ano. Aliás, quero elogiar a revista pelas reportagens bem elaboradas e dizer que sempre as utilizo nos trabalhos em sala de aula, com meus alunos de ensino médio. Nanci Moreira Branco, Pres. Prudente (SP) Falência total É difícil constatar que o que está prevalecendo nesta eleição são os bolsa-votos e cotas demagogas. A dívida interna, assim como educação, saúde e segurança estão um caos. Até quando a nação suportará antes de sua falência total moral, ética e cívica? Lucio Costa, São Paulo (SP) Correção A informação publicada da página 17 da edição 51, em “Presente para banqueiro”, de que o Bradesco teria adquirido o Bemge, está incorreta. Segue trecho corrigido, por colaboração do leitor José Joaquim Veiga, de São Paulo: o BC gastou R$ 62 bilhões com o Proer, e arrecadou R$ 11,6 bilhões. O Banerj foi o primeiro a ser vendido, ao Itaú, em junho de 1997. Em setembro do ano seguinte, o Itaú (e não o Bradesco) absorveu também o Bemge. Outro mineiro, o Credireal, foi comprado pelo ex-BCN, banco depois incorporado pelo Bradesco.

revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.


PontodeVista

Por Mauro Santayana

O povo e seu líder Os êxitos dos últimos oito anos não foram obra de economistas, mas da classe trabalhadora, que criou dirigentes capazes de governar e de lutar pelas melhores condições de vida nas fábricas e em seus lares

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screvemos estas notas no dia 5 de outubro, A grande importância do operário Luiz Inácio foi a logo depois de contados os votos do primeiro­ de confrontar-se com a ditadura, ao romper as algemas turno e antes que se iniciasse a campanha para a que estava submetido o movimento sindical, e liderar o segundo. Tudo começa de novo. Jornalismo­ a primeira greve depois de muitos anos de arrocho e de não é profecia, embora possa­reunir­indícios,­ silêncio. Era o povo que, na pessoa de um metalúrgico, comparar fatos e apontar tendências. Preferimos, no só conhecido entre seus companheiros, se levantava para entanto,­fazer algumas considerações sobre o governo chamar outros brasileiros ao brio. É claro que, quando que termina. Qualquer que venha a ser o futuro político­ isso ocorreu, muitos outros brasileiros já haviam lutado, do presidente Lula, que deixa a chefia do Estado com sofrido a ignomínia das prisões políticas e das torturas, os mais altos índices de reconhecimento e morrido em pleno martírio. Mas, com nacional­e internacional,­a sua trajetória O povo Lula, essa resistência saía da clandestinidade vida e de liderança política­garante-lhe brasileiro se de e das casas parlamentares, para voltar à lugar na História entre os mais importantes­ resumiu e luz do dia. Por isso, e de repente, o rapaz brasileiros de todos os tempos. Não é gêse torna a referência da Igreja e dos intelecse integrou nio intelectual, nem santo. Como seus tuais, como porta-bandeira da plena redeinimigos­gostam de dizer, é um apedeuta,­ na pessoa mocratização do país. ou seja, um homem do povo – que gosta de seu Ao chegar finalmente ao poder, Lula não de futebol, de se reunir com amigos para presidente, foi o governante perfeito. Cometeu erros almoços­descontraídos, de tomar sua cer- com seus políticos, e em certos momentos deixou-se vejinha e torcer pelo seu time. levar pela vaidade, diante do reconhecimenpecados e Exatamente assim tornou-se um dos quase universal de suas virtudes. Como defeitos, mas, to homens mais importantes da História, e poucos de seus predecessores, soube falar de com ele o povo se sentiu protagonista. As mais do que igual para igual com os governantes estranelites contam com outros bens, com que se isso, com geiros, e defender os povos historicamenapegar, mas os pobres só têm a pátria, e só sua vontade te marginalizados nas reuniões internaciodela podem desfrutar nas cores da bandei- de ser nais. Não se deixou embasbacar diante dos ra, na visão de sua paisagem, no orgulho plenamente grandes do mundo, como fizera seu antecesdas riquezas naturais, das quais nunca se sor imediato, deslumbrado com as luzes de senhor do aproveitam. “A pátria dos pobres está semBuckingham e com as alamedas de Harvard. pre no futuro, sempre na esperança”, resu- próprio Lula praticou, nos encontros com os dimia Tancredo Neves, para quem o Brasil destino rigentes dos grandes países, a filosofia de só avança pela luta reivindicatória de seus outro homem do povo, Garrincha, para pobres e a eles, queiram ou não os elitistas, cabe a van- quem qualquer adversário era João. Sabe que represenguarda da História. ta um dos maiores países do mundo e um povo não é Os êxitos dos últimos oito anos não foram obtidos maior ou melhor do que os outros, tampouco é menor pelos economistas. Esses êxitos se devem à classe ope- ou pior. Assim, não tinha por que se curvar. rária – que, com seus sindicatos, criou dirigentes caO povo brasileiro se resumiu e se integrou na pessoa pazes de lutar pelas melhores condições de vida nas de seu presidente – com seus pecados, seus defeitos, fábricas e em seus lares, e lutar decididamente pela evo- mas, mais do que isso, com sua vontade de ser plenalução política do Brasil. Sempre que essa consciência mente senhor do próprio destino. Completa-se o soesmaece,­o povo sofre com a perda da liberdade. Ou nho de Vargas em sua carta testamento: “Este povo, do com o retrocesso econômico. qual fui escravo, não será mais escravo de ninguém”.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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NaRede

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Lula na academia

O ator Ruy Ricardo Dias como Lula

DIVULGAÇÃO

Lula, o Filho do Brasil foi escolhido como o representante brasileiro na disputa por uma indicação ao Oscar 2011 na categoria de melhor filme estrangeiro. A escolha foi unanimidade no Comitê de Seleção Oficial e anunciada no mês passado pelo presidente da Academia Brasileira de Cinema, Roberto Faria. O filme dirigido por Fábio Barreto conta a trajetória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desde a infância pobre em Pernambuco, até a morte de sua mãe, dona Lindu, em 1980, mesmo ano de fundação do PT. Os cinco filmes concorrentes ao Oscar de melhor filme estrangeiro serão anunciados em 25 de janeiro de 2011. A cerimônia acontece em 27 de fevereiro. http://migre.me/1uPAG

Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Vitor Nuzzi

Maioria no Senado

Maioria na Câmara

Coligados na eleição presidencial, PMDB, com 19 representantes, e PT, com 15, passam a ter as duas maiores bancadas do Senado a partir do ano que vem, segundo o Diap. O PSDB encolhe e fica com dez parlamentares, enquanto o DEM também diminui a sua representação, ficando com oito. Foram eleitos 35 novos senadores, um índice de renovação de 64,81%, enquanto 19 foram reeleitos. “Dos senadores que faziam oposição ostensiva ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que tentaram a reeleição, apenas José Agripino (DEM-RN) e Demóstenes Torres (DEM-GO) foram reeleitos”, diz o Diap. Dos 81 atuais senadores, 27 têm mandato até 2014. http://migre.me/1uPyI

O PT terá a maior bancada da Câmara dos Deputados na próxima legislatura, ocupando 88 cadeiras. Na posse, em 2007, o partido tinha 83 representantes. O PMDB, em seguida, virá com 79 parlamentares (11 a menos que há três anos). O PSDB ocupará 53 vagas (eram 64 na posse de 2007). Depois virá o DEM, com 43 cadeiras. Em 2007, ainda como PFL, eram 64. Segundo o site Congresso em Foco, a base aliada de um possível governo Dilma será 13% maior que a eleita quatro anos atrás. Os governistas teriam 402 deputados federais, ante os 380 atuais e os 357 eleitos em 2006. Já a bancada de oposição deve encolher 29%. Em outubro de 2006, PSDB, DEM (ainda como PFL), PPS e PSOL somavam 156 deputados, hoje são 133 e no ano que vem serão 111. Os números ainda podem sofrer modificações. Muitos nomes estão sub judice devido ao impasse com a Lei da Ficha Limpa. http://migre.me/1uPzt e http://migre.me/1uPA9

A Câmara em 2011

O Senado a partir de 2011

PMDB PT PSDB DEM PTB PP PDT PR

6

19 14 10 8 6 5 4 4

REVISTA DO BRASIL OUTUBRO 2010

PSB PCdoB PSOL PRB PSC PMN PPS

3 2 2 1 1 1 1

PT PMDB PSDB DEM PR PP

88 79 53 43 41 41

PSB PDT PTB PSC PV PCdoB

34 28 20 17 16 15

PPS 12 PRB 8 PMN 4 PSOL 3 PTdoB 3 PHS 2

PRP PRTB PSL PTC

2 2 1 1


Uma senhora cobertura Durante o final de semana do 1º turno, a Rede Brasil Atual produziu cerca de 100 notícias sobre as eleições e milhares de comentários no Twitter. Também foram feitas parcerias que podem render bons frutos em termos de produção de informação e de multiplicação de audiência. O site manteve acessos ao canal TVT e ao blog 48h de Democracia, ação colaborativa que reuniu, antes e depois da eleição, dezenas de jornalistas e blogueiros, em sintonia com milhares de visitantes numa “vigília democrática” virtual.

BATEU, NÃO LEVOU

Representantes da velha-guarda do Congresso se deram mal como oposição

Arthur Virgílio (PSDB)

Tasso Jereissati (PSDB)

Gustavo Fruet (PSDB)

Efraim Morais (DEM)

Depois de governar três vezes o Ceará e exercer o mandato de senador desde 2002, Tasso Jereissati (PSDB-CE) perdeu a sua primeira eleição, ficando atrás de Eunício (PMDB) e José Pimentel (PT). Líder histórico dos tucanos no Nordeste, Jereissati também foi presidente nacional do PSDB. Ele já adiantou que abandonará a vida política. As eleições fizeram um número expressivo de “vítimas” entre nomes consagrados da política – sobretudo de oposição ao governo Lula. Pelo menos 12 lideranças ficaram de fora. Em Pernambuco, Marco Maciel (DEM). No Amazonas, Arthur Virgílio (PSDB). Figura frequente nos microfones de ataque ao governo, Virgílio chegou a falar em dar literalmente uma surra no presidente Lula.

Heráclito Fortes (DEM)

Marco Maciel (DEM)

Mão Santa (PSC)

Na Bahia, César Borges (PR) e José Carlos Aleluia (DEM), herdeiros de ACM, terminaram respectivamente em terceiro e quinto lugares na disputa do Senado. No Piauí, Heráclito Fortes (DEM) ficou em quarto, atrás do também derrotado Mão Santa (PSC). O DEM perdeu ainda o senador Efraim Morais, da Paraíba. No Rio de Janeiro, a principal liderança do DEM, Cesar Maia, também foi reprovado nas urnas. Assim como a tucana Rita Camata (ES), vice de José Serra em 2002, perdeu a disputa para o Senado. No Paraná, a eleição em primeiro turno de Beto Richa (PSDB) não ajudou seu colega de partido Gustavo Fruet, que ficou atrás de Gleisi Hoffmann (PT) e do ex-governador Roberto Requião (PMDB). http://migre.me/1uPxM

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

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ELEIÇÕES

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Ficou para o segundo tempo Os 3,1 pontos percentuais de votos válidos que faltaram a Dilma no primeiro turno frustraram petistas e causaram euforia entre tucanos. Agora, chegou o momento de comparar gestões Por Vitor Nuzzi

JAMIL BITTAR/REUTERS

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andidatos, eleitores e imprensa aguardaram até quase o último minuto do domingo, 3 de outubro, para ter certeza se haveria ou não segundo turno na disputa para a Presidência da República. Confirmada a segunda rodada, os petistas tentaram disfarçar a decepção, enquanto os tucanos, de quase derrotados, surfaram na onda da euforia. Passada a ressaca, este segundo turno é momento de debater de fato quem fez o quê, comparar gestões e evitar a boataria que contaminou boa parte da campanha. O bispo de Jales (SP), dom Demétrio Valentini, presidente da Cáritas Brasileira, detecta uma mudança de comportamento da população, que já não se guia pelos chamados formadores de opinião ou por recomendações de viés autoritário. “Grandes camadas da população brasileira se dão conta das transformações em curso, e começam a perceber que elas dependem de opções políticas. A grande popularidade de Lula não é fruto somente do seu carisma político. Lula é símbolo da mudança acontecida. Se esta não existisse, o povo deixaria Lula de lado, e não apoiaria Dilma”, afirma. Mas o bispo considera importante também dar “consistência” a essa nova postura política. “Nesse sentido, acho que será bom o povo perceber que Lula não será mais o presidente. Para perceber que a política está segura só quando está nas mãos do povo.” Ganhar no primeiro turno não era obrigação, observou o professor Paul Singer, secretário nacional de Economia Solidária, para quem o resultado, na verdade, mostrou o êxito do atual governo. “O grande prestígio do presidente Lula, a meu ver merecido, mostra que este governo fez muita coisa pelo país.” Singer disse esperar ainda que o segundo turno seja marcado por efetivo debate dos problemas nacionais e não por denúncias de escândalos. No pós-eleição, políticos da base aliada detectaram problemas de comunicação. O governador eleito do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), falou em “mal-estar” com os cristãos e disse que a situação exigiria uma resposta rápida e clara. Por sua vez, o governador reeleito de Pernambuco (com 83% dos votos), Eduardo Campos, do mesmo partido, defendeu que a campanha desfaça a onda de contra-informação movida pelos adversários. O deputado Ciro Gomes (PSB-CE) diz que os boatos têm importância “periférica­”

PASSADO COMUM Para a cientista política Maria Victoria Benevides, a história de Marina Silva a coloca ao lado de Dilma e na obrigação política de orientar o voto para a petista


RR AP

AM

CE

MA

PA

RN PB PI

AC

PE AL SE

TO

RO

BH

MT

A votação por estado n Dilma n Serra n Marina

DF GO MG ES MS SP

RJ

PR

SC RS

panha deve ser centrada na comparação entre os governos FHC e Lula. Essa também é a visão de Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência e coordenador da campanha petista. “Marina (Silva, candidata do PV) obteve êxito quando jogou pelo caminho da terceira via. Mas agora só há duas, que o povo conhece bem”, afirma. A cientista política Maria Victoria Benevides,­professora da­Faculdade de Educação da USP, acredita que a votação surpreen­ dente alcançada por Marina Silva deve se dividir no segundo turno. Benevides considera, no entanto, que a candidata do PV teria “politicamente e moralmente” obrigação de se manifestar a favor da petista. “Ela (Marina) não pode dar as costas para a esquerda da qual sempre fez parte”, sustenta Maria Victoria. Ela observa que as duas candidatas tiveram “um passado conflituoso no governo”, mas Marina teria uma proximidade muito maior com uma coligação de esquerda do que com uma que abranja o DEM”. Dilma ficou com 47% dos votos válidos do primeiro turno. Precisa, portanto, do apoio de apenas um quarto dos eleitores de Marina para suceder Lula a partir de 2011.

RICARDO MORAES/REUTERS

Melhorias

na campanha. “Boato só prospera onde há perplexidades, vácuos, vazios. Quando você tem um vácuo e não tem clareza, o boato­ acaba­prosperando mais do que devia.” A própria Dilma falou sobre a necessidade­ de esclarecer a população sobre boatos lançados durante a campanha. “Considero que foi feita uma campanha perversa sobre o que eu penso e acredito. E foi uma campanha mais difícil porque quem me acusava não aparecia de forma muito clara. É aquela campanha que lança inverdades e nunca permite que a gente discuta.” Já eleito para o governo do Rio Grande do Sul com 54% dos votos, Tarso Genro (PT) destaca que, mesmo não tendo sido ainda

eleita, Dilma recebeu votação “espetacular” mesmo depois de passar mais de 60 dias sob um bombardeio absoluto da mídia. “Fez 47% dos votos, praticamente o que o Lula fez em sua última eleição”, observou. No dia seguinte ao da eleição, ele afirmou que todos os governadores eleitos da base aliada estavam prontos “para uma grande ofensiva política de natureza programática”.Ou seja, comparar gestões e resultados. O sociólogo Emir Sader considera fundamental esse debate. “Não soubemos (no primeiro turno) colocar como agenda central o fato de que o Brasil se tornou menos injusto, menos desigual com Lula, e que é o caminho central a seguir”. Para ele, a cam-

Números não faltam. De janeiro de 2003 até o final deste ano, com base nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, estima-se que o país terá criado aproximadamente 12 milhões de empregos com carteira assinada. Em seus oito anos, o saldo do governo FHC é inferior a 800 mil. A taxa média de desemprego atingiu em agosto o seu menor nível na série histórica, segundo o IBGE. Os índices de pobreza e miséria caíram consideravelmente. O atual governo tomou posse, em janeiro de 2003, com US$ 30 bilhões em reservas internacionais. Fechou setembro deste ano com US$ 275 bilhões. O crescimento médio do PIB aumentou nesse período, e a previsão é de que supere 7% em 2010, com inflação sob controle. O governo espera expansão da atividade industrial de 10% este ano e 5,5% ao ano de 2011 a 2014. Luiz Guilherme Schymura, diretor do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), destaca como aspectos positivos a recuperação da agricultura, a plataforma energética com diversas fontes (etanol, reservas de gás, OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Depois que passar o furacão eleitoral, começará a fase de montagem de governos e suas equipes, com as tradicionais especulações. Se na economia as perspectivas continuam positivas, no campo político espera-se turbulência nas relações entre governo e oposição. Afinal, as últimas semanas de campanha eleitoral foram tensas e incluíram golpes baixos. Para a professora Roseli Coelho, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o diálogo já está irremediavelmente prejudicado. No caso de um governo Dilma, diz ela, o Congresso poderá ser “um lugar de faca nas costas, de sangue, metaforicamente falando”. Com Dilma eleita, alguns “fios soltos” poderão ser retomados pelos oposicionistas, avalia a professora. O que também seria uma oportunidade de apurar se, por trás da enxurrada de denúncias, existem tentativas sinceras de apuração ou se tratava-se de oportunismo puro e simples. “Para a imprensa, o denuncismo é mais fácil, sempre”, comenta. Segundo ela, a gestão Lula levou a um novo paradigma, a um patamar mais elevado de exigência. “É uma herança bendita para o conjunto do país”, afirma. Na nova configuração do Congresso, PT e PMDB saíram em vantagem, formando as maiores bancadas tanto na Câmara como no Senado. Na oposição, PSDB, DEM e PPS perderam cadeiras. Dos 18 governadores eleitos no primeiro turno, PMDB, PSDB e PT fizeram quatro cada, enquanto o PSB elegeu três, o DEM ficou com dois e o PMN, com um. Dom Demétrio Valentini, da Cáritas, não vê risco de crise institucional, mas cobra­ um posicionamento dos políticos. “E espero­ que o novo governo garanta um clima de respeito­e de confiança, que possa envolver a responsabilidade­da oposição.” Mas o bispo­ vislumbra­uma “tarefa hercúlea” para o próximo governo. “Na educação, foram dados passos importantes, criadas escolas técnicas e facilitado o acesso ao ensino superior. Mas um perigo ronda o processo educacional brasileiro, a sua falta de qualidade, em boa parte consequência da mercantilização

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Ciro Gomes (PSB-CE)

MARCELLO CASAL JR./ABR

Certezas e pedras

Boato só prospera onde há perplexidades, vácuos, vazios

Lula é símbolo da mudança acontecida. Se esta não existisse, o povo deixaria Lula de lado e não apoiaria Dilma Dom Demétrio Valentini, presidente da Cáritas Brasileira

CNBB/DIVULGAÇÃO

pré-sal) e o desenvolvimento da indústria. “Isso nos permitiu uma pauta exportadora muito diversificada”, afirma, defendendo uma “gestão cuidadosa para nos aproveitar dessa situação (favorável)”.

da educação, que requer uma presença fiscalizadora muito mais rigorosa.” Na opinião do empresário Benjamin Steinbruch, controlador da Companhia Siderúrgica­Nacional (CSN) e até 4 de outubro­presidente em exercício da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo­ (Fiesp), a maior conquista do governo Lula foi a inserção de 50 milhões de consumidores no mercado, além dos sistemas produtivo e financeiro organizados. “Nunca vi o Brasil nessa situação”, diz Steinbruch, para quem este deixou de ser o país do futuro para ser o do presente. “Hoje somos libertos e independentes do ponto de vista econômico-financeiro. Temos de preservar isso. Estamos a um passo

de nos tornar uma potência”, afirma. No final de setembro, o empresário criticou a concessão de reajustes na faixa de 10%. “É um certo exagero, considerando o que acontece no resto do mundo.” Com poucas correções de rota, ele vê pelo menos mais dez anos de crescimento contínuo sustentado. A observação do empresário sobre os salários foi contestada pelo economista Sérgio Mendonça, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Os salários no Brasil são baixos, a participação do salário na renda nacional ainda é pequena. Há espaço para crescer”, afirma. Ele defende uma mudança de foco na discussão. “Parece que há uma coisa­


Hoje somos independentes do ponto de vista econômicofinanceiro. Temos de preservar isso

EVELSON DE FREITAS/AE

Benjamin Steinbruch, controlador da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN)

WILSON DIAS/ABR

Vamos partir para uma grande ofensiva política de natureza programática

Tarso Genro, governador eleito do Rio Grande do Sul pelo PT

imutável nesse debate, que é o lucro. E não é imutável.” O lucro líquido da Companhia Siderúrgica Nacional foi de R$ 1,4 bilhão no primeiro semestre, crescimento de 95,5% sobre igual período de 2009. O presidente da Associação Brasileira da Infra-estrutura e Indústrias de Base (Abdib), Paulo Godoy, lembra que os investimentos em infra-estrutura passaram de R$ 58 bilhões em 2003 para R$ 122 bilhões no ano passado, sendo metade no setor de petróleo e gás. “Entretanto, o Brasil precisa de algo como R$ 160 milhões por ano”, diz o executivo. O diretor-técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, inclui pelo menos duas grandes questões na agenda a partir de 2011: as reformas política e tributária. “Tem também algumas minirreformas, como o Cadastro Positivo, que dariam capacidade ao governo para baixar a taxa básica (de juros)”, acrescenta. Uma preocupação mais imediata é com a questão cambial. “É um problema que está posto hoje em todo o mundo. É uma questão para preservar nossa estratégia de exportação.” Ao mesmo tempo em que declarou à revista britânica The Economist que pretende se recolher após o final do mandato, Lula garantiu que continuará fazendo política. Para ele, por sinal, a reforma política tem de ser vista como prioridade. “Agora estou me comprometendo, quando eu não for mais presidente, a começar a convencer o meu próprio partido, porque acho que essa é a principal reforma que temos de fazer no Brasil, para que possamos (depois) fazer as demais.” Segundo Lula, esse é um motivo de frustração em seu mandato. Colaborou João Peres

“Se eu tivesse seguido a política do FHC, o Brasil tinha quebrado” Em entrevista conjunta ao site Carta Maior, ao jornal Página 12 (Argentina) e La Jornada (México), Lula rebateu os que costumam dizer que seu governo seguiu a política econômica do antecessor: “Se eu tivesse seguido a política do Fernando Henrique, o Brasil tinha quebrado”, disse o presidente. “Quando cheguei aqui no governo a palavra de ordem era que o governo não poderia gastar, não poderia fazer investimentos porque tudo tinha que garantir

o superávit primário. E era preciso cuidar do déficit. Ora, o que aconteceu, o que aconteceu, meu filho? Nós que ficávamos subordinados ao FMI, nos livramos do FMI. Nós, que não tínhamos nenhuma reserva, vamos chegar ao final do ano a US$ 300 bilhões em reservas. Nós, que éramos devedores, viramos credores do FMI. Nós éramos um país de economia capitalista sem capital, sem crédito, sem investimento”, acrescentou Lula. “Cada país tem as suas par-

ticularidades. Eu acho que os Kirchner, tanto o Néstor quanto a Cristina, têm o seu estilo de governar. O dado concreto é que a Argentina está melhorando. Nosso querido Pepe Mujica tem seu modelo de governar; o fato concreto é que o Uruguai está melhorando. Eu tenho o meu tipo; o fato concreto é que o Brasil está melhorando. O Evo tem seu tipo; o fato concreto é que o Peru está melhorando, e assim vale para todo mundo. É isso que me interessa. “

O presidente lembrou ainda que democracia precisa ser entendida como uma palavra inteira e não meia palavra. “É não apenas o direito de gritar que se tem fome, mas o direito de comer. Não apenas o direito de protestar, mas o de conquistar.” Conquistas do governo à parte, na entrevista à The Economist, ao responder a uma pergunta sobre o próximo presidente, Lula foi simples: “Fazer política com o coração, cuidar dos mais pobres e praticar a democracia até o fim absoluto”. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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INTERNET

Com novo portal, que inclui TV e rádio-web, CUT sinaliza nova era de investimentos em comunicação Por Isaias Dalle

Novo canal de informação

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m agosto, mês em que comemorou 27 anos de existência, a Central Única dos Trabalhadores lançou novo portal na internet. O site, reformulado, traz ainda duas novas ferramenta, rádio-web e TV-web. O objetivo, além de oferecer serviço noticioso ao público do movimento sindical representado pela central, é manter um canal de acesso direto por toda a sociedade, tornando-a mais independente da cobertura tradicional da imprensa comercial. A ação, intitulada Rede CUT, expõe uma visão crescente na central e entre entidades que a compõem, de que os tempos de apenas reclamar dos defeitos da grande mídia acabaram. A democratização do acesso à informação passa também pela produção de conteúdo diferenciado. Para o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos, a parte mais difícil vem a seguir: fazer com que as notícias ultrapassem os limites do ambiente sindical. “Nosso papel é levar o pensamento dos trabalhadores para todo o país, ampliando o canal de debate. A seguir, devemos buscar a sustentabilidade desse projeto”, aponta. A secretária de Comunicação da central, Rosane Bertotti, afirma que a ideia é integrar diversos parceiros na iniciativa: “Tudo acontecerá a partir da articulação dos sindicatos e dos movimentos sociais. A proposta é agregar a essa iniciativa, por exemplo, rádios e TVs comunitárias espalhadas pelo Brasil”.

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A dirigente lembrou ainda a importância de a ação não ser um passo isolado, mas parte de um movimento que inclui outros veículos, como o programa de rádio Jornal Brasil Atual, a Revista do Brasil – reunidos na Rede Brasil Atual –, além da TV dos Trabalhadores (TVT). O secretário de Administração e Finanças da CUT, Vagner Freitas, acredita que a forma como a grande imprensa atuou no período que antecedeu as eleições de 2010 mostra que é necessário discutir o acesso à produção da informação. “Trata-se de um espaço estratégico de disputa de poder. Não podemos falar de nós para nós mesmos enquanto lidamos com canais de criminalização em massa dos movimentos sociais. Com a internet, o papel de formador de opinião deixou de ser restrito aos articulistas dos grandes jornais, inclui todos os trabalhadores”, afirma. A reação da grande mídia a um ato político realizado no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo em 23 de setembro, por jornalistas, blogueiros independentes e representantes dos movimentos sociais, mostrou como uma atuação articulada pode incomodar. Os veículos da velha imprensa, que costumam simplesmente ignorar ações como essa, dessa vez pautaram o tema e deram a suas coberturas um discurso unificado, como que escrito pelo mesmo autor.

Classificaram a mobilização – convocada para denunciar o abandono de regras básicas do jornalismo com objetivo de alterar o rumo das eleições – como manobra “contra a liberdade de expressão”, como fazem com toda crítica objetiva à conduta da imprensa, como se só esta tivesse o direito de crítica. Artur Henrique lembra de um fato ocorrido recentemente que não causou revolta aos supostos defensores da democracia. “Há quatro anos, os partidos DEM e PSDB entraram com uma ação judicial para impedir a circulação do primeiro número da Revista do Brasil simplesmente por trazer uma reportagem de capa explicando por que o presidente mantinha elevado índice de aprovação, apesar de apanhar sistematicamente da mídia durante todo o primeiro mandato. “Interessante, nesse caso a imprensa não se comoveu nem protestou. Deve ser porque o excesso de transparência incomodou”, ironizou o presidente da CUT. Durante o debate de lançamento da Rede CUT, o diretor do canal Telesur Beto Almeida afirmou que a TV, a rádio e o site da CUT podem ser uma experiência viva e dinâmica para a difusão dos temas que estão sempre distantes dos grandes meios de comunicação, mas que também são cruciais para tornar o Brasil um país mais justo.

www.cut.org.br


ECONOMIA

Donos da Petrobras Empresa, agora com 64% sob controle da União, garante financiamento de negócios até 2014, agiganta a Bovespa e protagoniza um dos maiores lances da história do capitalismo

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cena de fato parecia insólita: um ex-sindicalista – que disputou sua primeira eleição em 1982 dizendo “vote 3 que o resto é burguês” – fazendo festa na Bolsa de Valores. Ele próprio fez questão de lembrar – “dez anos atrás eu passava aqui na porta da Bolsa, as pessoas tremiam de medo: ‘Onde é que vai esse comedor de capitalismo?’” – ao bater o martelo na maior oferta pública de ações já vista no mercado, iniciada em 24 de setembro. Para o presidente da BM&F Bovespa, Edemir Pinto, a economia passou a se dividir “em antes e depois da operação de capitalização da Petrobras”. A oferta incluiu mais de 2,1 milhões de ações ordinárias (com direito a voto em assembleias) e quase 1,6 milhão de preferenciais (cujos titulares recebem antes os lucros), por meio de um aumento de capital da Petrobras. Durante a cerimônia, o presidente da estatal, José Sergio Gabrielli, informou que a oferta alcançou R$ 115,05 bilhões (ou US$ 66,9 bilhões). Parte dos recursos ajudará a financiar o plano de negócios da companhia de 2010 a 2014, que totaliza US$ 224 bilhões. Para “um comedor de capitalismo”, Lula ajudou a dar um bom impulso, já que na véspera da operação a Bolsa paulista se tornou a segunda maior do mundo em valor de mercado, atingindo

RICARDO STUCKERT/PR

Lula, Mantega, Gabrielli e representantes da Bolsa: capitalização é salvaguarda

R$ 30,4 bilhões, ou US$ 17,7 bilhões, atrás apenas da de Hong Kong (US$ 19,8 bilhões). “O valor da nossa bolsa está ligado ao potencial de crescimento do país e das empresas brasileiras e fruto da operação que comemoramos nesta data”, afirmou Edemir Pinto. Lula também enfatizou a importância da operação para a economia brasileira, em possível referência à época em que a Petrobras foi cotada para entrar na lista de privatizações e até mudar o nome para Petrobrax. “Ao contrário do passado, não estamos aqui para debilitar o Estado ou alienar o patrimônio público. Um Estado fraco nunca foi sinônimo de iniciativa privada forte”, afirmou. “A capitalização é uma das salvaguardas criadas pelo governo para evitar que essa riqueza se perca num labirinto de desperdícios e interesses equivocados.” Segundo o ministro da Fazenda, Guido Mantega, a União aumentou de 40% para 49% a sua participação no capital total (64% das ordinárias) da Petrobras. Como em toda operação dessa natureza, a capitalização mexeu com o mercado de câmbio, que ainda causa preocupação ao governo, por causa do real valorizado, o que prejudica as exportações brasileiras. Durante evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Mantega disse que o mundo vive uma “guerra cambial”. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

Não acredite em amostra grátis

ÚNICA SAÍDA Claudia Damarindo recorreu ao serviço de distribuição gratuita de remédios para conseguir retardar as complicações do Alzheimer de sua mãe, Cecy

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DANILO RAMOS

Indústria farmacêutica ainda dita preços de remédios cujas patentes não deviam nem existir Por Cida de Oliveira


LPI estão sendo contestados. Em novembro de 2007, a Federação Nacional de Farmacêuticos (Fenafar), em nome da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), pediu ao procurador-geral da República, Antônio Fernando Barros e Silva e Souza, a propositura de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4234), protocolada quase dois anos depois no Supremo Tribunal Federal (STF).

Por que a pressa?

“Os artigos protegem invenções que, por estarem registradas em outros países antes de 1995, deixaram de ser novidade, e não atendiam mais o principal requisito de patenteabilidade”, explica a advogada Renata Reis, coordenadora do grupo de trabalho sobre propriedade intelectual da Rebrip. “Queremos que essas patentes caiam e voltem ao domínio público, que permite a fabricação de suas versões genéricas. Assim corrigiremos esse erro histórico.” Segundo a advogada, se a decisão do Supremo for favorável, é possível que se decida pela inconstitucionalidade de maneira retroativa, abrindo caminho para ações indenizatórias, ou com validade apenas após a sentença. Renata, que integra também a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, do Rio de Janeiro, conta que a ação nasceu da consta-

FOTOS RODRIGO QUEIROZ

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ntre 2001 e 2007, um reconhecido programa brasileiro poderia ter gasto US$ 519 milhões a menos só com a compra de cinco medicamentos do coquetel de combate aos efeitos da aids e assim atender mais portadores do HIV. O prejuízo, calculado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, teria sido evitado não fossem dois artigos da Lei 9.279, de 1996, conhecida como Lei Brasileira de Propriedade Industrial (LPI), elaborada e aprovada a toque de caixa no governo Fernando Henrique Cardoso. Esses artigos – 230 e 231 – instituíram as chamadas patentes pipeline, proibiram o acesso do sistema de saúde aos genéricos, então disponíveis para tratar todas as doenças, e causaram danos ainda a calcular à saúde e ao bolso do brasileiro, aos cofres públicos e à indústria farmacêutica nacional. Os artigos permitiram a aprovação automática, sem avaliação prévia, dos pedidos ou de patenteamento feitos ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) até um ano após a entrada da lei em vigor. Bastava ao requerente comprovar o registro original de patente em outro país para obter aqui o direito de exclusividade. A corrida foi grande. Entre maio de 1996 e de 1997 foram depositados 1.182 pedidos, dos quais mais de 700 eram de fármacos. A lista inclui itens caríssimos e essenciais no tratamento das mais variadas doenças, como o Imatinib (marca comercial Glivec), usado contra leucemia. O preço ao consumidor de uma caixa com 30 comprimidos chega a custar R$ 12 mil. Por isso, muitos deles são alvo de batalhas entre o governo, entidades que defendem o acesso aos tratamentos, fabricantes de genéricos e os detentores das patentes. Em maio de 2007, pela primeira vez, o Brasil decretou a quebra de patente do Efavirenz, produzido pelo laboratório norteameri­cano Merck para terapia antiaids, declarado de interesse público. O fabricante chegou a oferecer desconto de 30% sobre o preço de US$ 1,59 por comprimido, mas o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, considerou insuficiente. Com o licenciamento, foi possível importar versões genéricas de laboratórios qualificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Cheque em branco assinado e entregue por FHC às indústrias, especialmente as bilionárias farmacêuticas, os dois artigos da

DOMÍNIO PÚBLICO Renata (no alto) e Gabriela: ação pela quebra de patentes

tação de que as drogas contra HIV estavam na lista do pipeline. A partir de então seu grupo começou a publicar artigos alertando para o problema, e costumeiramente criticados “por olhar muito para o passado”. Até que um evento realizado em São Paulo, em 2007, teve forte presença de representantes das farmacêuticas. “Foi um termômetro do alto interesse pelo tema”, diz. O grupo se debruçou então a escrever ADI. Desconhecido fora dos laboratórios e das ONGs ligadas ao setor, o assunto já suscita pressões para influenciar a decisão do Supremo. Segundo o site do STF, a Anvisa, a Associação Brasileira da Indústria Química Fina, a Fundação Oswaldo Cruz e representantes da área farmacêutica e de produtores de sementes apresentaram argumentos. Por enquanto, foram acolhidos apenas o da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), que reúne 28 laboratórios que abastecem 54% do mercado brasileiro. A entidade quer a improcedência da ação. Outra aberração da lei é a pressa com que ela foi elaborada e aprovada. Em 1994, países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) assinaram o Acordo Trips, que obriga o reconhecimento, por 20 anos, de patente para todas as áreas tecnológicas. Até então, era opcional patentear algumas áreas, como o setor farmacêutico. Como as novas regras trariam mudanças, a OMC deu prazo até 2005 para os países em desenvolvimento se adequarem. Nações pobres, como Moçambique e Bangladesh, têm até 2016. “Em vez de usar o tempo que tinha, o Brasil correu”, afirma a farmacêutica Gabriela Costa Chaves, integrante da Campanha de Acesso aos Medicamentos Essenciais da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF). Como ela diz, sobram desconfianças de que o governo cedeu a pressões da indústria. A Índia, por exemplo, só mudou sua legislação em 2005. “Com isso, sem desobedecer ao acordo, os indianos tiveram tempo para desenvolver versões genéricas mais baratas e se transformaram na grande farmácia genérica do mundo”, diz Gabriela. Como antes da LPI o Brasil não reconhecia patentes de medicamentos, o Far-Manguinhos, laboratório vinculado à Fundação Oswaldo Cruz, já fabricava, no começo dos anos 90, sete dos medicamentos do coquetel antiaids. A produção e a comercialização foram interrompidas com a nova lei. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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DANILO RAMOS

Começavam­então o sucateamento do parque industrial nacional e a luta das organizações de saúde para mitigar o impacto das novas regras. Consultora do Ministério da Saúde e ex-diretora de Far-Manguinhos, a química-farmacêutica Eloan Pinheiro avalia a concessão das patentes pipeline como a maior derrota que a saúde pública poderia ter. “As grandes farmacêuticas foram beneficiadas em detrimento da indústria nacional, que teve muitas fábricas desativadas ou vendidas. Ficamos dependentes de matéria-prima para medicamentos, tendo que importar quase tudo”, diz. “Lembro que no dia da votação da lei, vi no aeroporto um rapaz da Interfarma dizer ao telefone, em inglês, ‘conseguimos muito mais do que queríamos’”. Eloan, na época dirigente do Sindicato dos Químicos e Engenheiros Químicos do Estado do Rio de Janeiro, conta que foram feitas várias reuniões. “Eram poucos os que compreendiam o estrago que estava para ser feito. O discurso de que caminhávamos para a modernidade era forte, embora, na verdade, estivéssemos reféns de uma política de importação, sem estímulo à indústria farmoquímica nacional.” Célia Chaves, presidente da Fenafar, acrescenta que a LPI é consequência do projeto apresentado pelo governo Collor em abril de 1991, sob o argumento de criar um clima favorável aos investimentos externos. O projeto se arrastou na Câmara e no Senado, onde, sob pressão explícita do governo brasileiro, da embaixada dos Estados Unidos e do lobby­da indústria, especialmente a farmacêutica americana, foi sucessivamente modificado até a sua aprovação, ainda no primeiro mandato de FHC. A dirigente diz não ter dúvida de que a decisão do STF será pela inconstitucionalidade. As patentes causam impacto no preço dos remédios. Dá ao detentor o direito de exclusividade de venda, ou de designar quem vai vender, por 20 anos, além de impor o preço que quiser. E não só a substância ativa é patenteada. Há patentes da substância e da manipulação que vai transformá-la em medicamento e até das combinações que poderão ser feitas no futuro. Isso gera confusão jurídica e os laboratórios aproveitam. É o caso do Seroquel, contra distúrbios como esquizofrenia. “Na lista pipeline com vigência até 2006, o fabricante Astrazeneca entrou com liminar para prolongar a vigência do direito de exclusividade”, explica Odnir Finotti,

BOM SENSO Luiz paga R$ 0,95 por uma cápsula que pode custar R$ 45 numa drogaria comercial


“Quando ela teve o diagnóstico, há cerca de dois anos, fomos orientados a procurar o serviço de distribuição gratuita”, conta Claudia. “Se não fosse isso, como faríamos? A aposentadoria dela mal dá para uma caixa do remédio”.

ANDRÉA GRAIZ

ALTERNATIVA INTELIGENTE Márcia recorreu ao Banco de Remédios, uma ONG de Porto Alegre, e conseguiu os caros comprimidos que precisa para tratar uma doença que ataca os rins

presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (Pró Genéricos). Os preços variam entre R$ 40 e R$ 763, conforme a dosagem do princípio ativo e o número de comprimidos. Há quase dois anos, a auxiliar administrativa Márcia Greff Demétrio descobriu que tem lúpus, uma doença autoimune que ataca os rins. O remédio indicado – mais eficaz e com menos efeitos colaterais – é o micofenato mofetil. O preço varia entre R$ 537 e R$ 1.972, conforme dosagem e quantidade. Sem poder pagar, Márcia recorreu ao programa de medicamentos de alto custo, do Sistema Único de Saúde (SUS), mas, por questões burocráticas, não conseguiu. Recorreu ao Banco de Remédios, uma ONG estabelecida em Porto Alegre, e conseguiu os comprimidos. “Há mais de um ano recebo os remédios e voltei a trabalhar e a viver normalmente”, diz. A bancária Claudia Damarindo teve mais facilidade de acesso ao Reminyl (Galantamina) que sua mãe, Cecy, toma para retardar o avanço e complicações do Alzheimer.­

Pressionado pela crescente demanda por medicamentos para pacientes infectados pelo HIV – os gastos com aquisição saltaram de US$ 35 milhões em 1996 para US$ 305 milhões em 1998 – o governo que concedeu as patentes pipeline não viu outro jeito senão criar, três anos depois, o Perversidade programa de medicamentos genéricos. SeEstá aí a perversidade da questão. Se- gundo a Pró Genéricos, em dez anos fogundo a consultora Eloan Pinheiro, nos ram investidos mais de US$ 170 milhões na primeiros cinco anos de venda é possível construção e modernização de plantas inrecuperar o que foi investido no desenvol- dustriais. Pela lei, os genéricos são, no mínivimento. A partir de então, o que entrar é mo, 35% mais baratos que os de referência.­ lucro. Quando a patente expira e os fabriEsses medicamentos podem ser aincantes de genéricos começam a produzir da mais em conta por meio de programas suas versões, a competição como a Farmácia Popular Empresas são derruba os preços. Hoje, em do Brasil, do Ministério da muitas farmácias, é possível protegidas Saúde, com unidades espalhadas em várias cidades. O comprar o Viagra, cuja pa- por lei feita artista plástico Luiz Lombartente expirou recentemente, às pressas di, 59 anos, da capital paumais barato que o genérico. nos anos 90, lista, recorre a esses ende“Por que antes o fabricante que concedeu reços sempre que precisa. mantinha o preço lá em cima mais de 700 Com um problema dermase acabou mostrando depois tológico, Luiz deve tomar que pode vender por muito patentes a uma cápsula de Fluconazol a menos?”, critica Eloan. Ela medicamentos cada sete dias, durante 20 secoloca em questão também que não manas. Nas farmácias, cada os principais argumentos poderiam em defesa das patentes: o es- mais ser uma custa entre R$ 8 e R$ 45. tímulo à inovação e a busca “Aqui pago R$ 0,95”, diz. patenteados de novas moléculas. A cada 100 remédios venO investimento em pesquisa e desenvol- didos, 20 são genéricos. Há estimativas de vimento, aliás, tem sido menor do que em crescimento com a entrada no mercado das marketing. Estudos mostram que em 2002, versões do Viagra e do Lipitor (atorvastatinos Estados Unidos, as companhias gasta- na), que por muitos anos foram beneficiaram para “estreitar o relacionamento com dos pelas pipelines. Em setembro, a Anvisa os médicos” o dobro do que investiram em aprovou o genérico da atorvastatina – fárbusca de novas formulações. maco da Pfizer para baixar o colesterol que Nos últimos 30 anos, as estratégias co- custa entre R$ 44 e R$ 656. merciais ficaram mais intensas e agressivas, Os genéricos também são bom negócio. com o patrocínio de congressos médicos e A Medley, grande empresa nacional do seshows de artistas famosos para o lançamen- tor, foi comprada no ano passado pela Sato de medicamentos que nem sempre são nofi, uma das maiores do mundo. Essa coninovadores. Sem contar as viagens nacio- corrência é bem-vinda porque derruba os nais e internacionais, os presentes e brin- preços. Gabriela Chaves, do Médicos Sem des a médicos. “Embora os grandes labora- Fronteiras, lembra que a terapia antirretrotórios neguem, é claro que todo esse gasto viral de primeira linha – usada no comeestá embutido no preço”, diz o médico in- ço do tratamento para pacientes com resistensivista Guilherme Barcellos, diretor do tência ao coquetel anti-HIV – custava, nos Sindicato Médico do Rio Grande do Sul. anos 1990, US$ 10 mil/paciente/ano. Hoje Recentemente, a entidade lançou a cam- está por volta de US$ 87. panha “Alerta – Amostra nunca é grátis”, que por meio de atividades, aulas e pales- Mais no site tras voltadas principalmente aos médicos Em www.redebrasilatual.com.br, saiba residentes pretende reduzir a influência das sobre outros fatores que influenciam o custo dos remédios e programas que indústrias sobre a escolha do medicamento beneficiam pacientes cuja renda não dá conta do preço dos remédios. a ser receitado. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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TRABALHO

Pressão fatal Alguns modelos de gestão movidos a competitividade nociva e a exploração do trabalho sob assédio moral, pressões por desempenho e humilhações podem estar por trás de um ato extremo: o suicídio Por João Correia

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láudio debruçou-se sobre o parapeito de uma das passarelas da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Só tinha em mente pular e terminar com todo o sofrimento. Foi impedido por um companheiro de trabalho que passava. Maria tomou mais de 20 comprimidos, mas a dose não foi suficiente para que ela acabasse com a própria vida. Gislaine também tentou o suicídio tomando comprimidos. Depois, jogou-se de uma das escadas de sua casa e sofreu traumas no corpo. Essas pessoas têm mais em comum do que o fato de ainda estarem vivas após frustradas tentativas de suicídio. A primeira semelhança, o diagnóstico de depressão profunda, os insere numa estatística silenciosa e alarmante: estima-se que

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cerca de 15 milhões de pessoas sofram dessa­ doença no Brasil. O segundo elo está nos motivos que os levaram à decisão de se matar: problemas no trabalho. “Nos três casos ficaram claros fatores como assédio moral, perseguições, humilhações e sobrecargas, que desestruturaram e destruíram a vida dessas pessoas”, afirma Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalhador, pioneira no estudo do assédio moral. Margarida é uma das autoras da cartilha Suicídio e Trabalho – Manual de Promoção à Vida para Trabalhadores e Trabalhadoras, lançada em maio pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo. Há uma década, sua pesquisa estarrecedora sobre assédio moral, intitulada Jornada de

Humilhações, revelou que de 2.072 entrevistados 42% sofriam de humilhações constantes em seus ambientes laborais – 16% desse grupo já havia pensado em se matar. No ano passado, a médica organizou outra pesquisa, Suicídio e Trabalho: Homicídio Culposo Corporativo?, ouvindo 400 trabalhadores, 84 homens e 316 mulheres. Mais de um quarto desse grupo teve ideias suicidas ligadas ao trabalho – tendência proporcionalmente mais presente entre os homens (37%, ante 24% das mulheres). “Os resultados da pesquisa e as histórias colhidas em meu consultório chamaram a atenção para uma realidade que coloca o suicídio como resultado da exploração constante que os trabalhadores têm sofrido, como um grito de socorro que ainda não foi ouvido.”


JOÃO CORREIA FILHO

Quebrei o vidro do meu carro com o pulso, quase morri. Não tenho os movimentos da mão ainda. Minha vida é no hospital. Tomo seis tipos de remédios, calmantes, antidepressivos, fico descaracterizado Wellington, bancário

Na França, empresa é condenada Para casos de suicídio ainda não há jurisprudência no Brasil e, mesmo em termos mundiais, o cenário avança lentamente. Na Espanha, por exemplo, há jurisprudência desde 2003, quando um tribunal superior considerou como acidente de trabalho o suicídio de um funcionário que caiu em depressão decorrente de várias situações de humilhação. Na França, um episódio chamou a atenção da mídia por envolver uma gigante do setor automobilístico. Depois de um longo processo, envolvendo o suicídio de vários engenheiros, a Renault foi condenada pela morte de um dos trabalhadores envolvidos e a pagar indenização à viúva. Agora em agosto, a France Telecom

reconheceu como acidente de trabalho o suicídio de um de seus empregados, em sua casa, em julho de 2009. Em 18 meses foram registrados 24 casos de suicídio na empresa, atribuídos às mudanças de gestão ocorridas nesse período. Tais casos reforçam os dados obtidos por pesquisas como as feitas no Sindicato dos Químicos de São Paulo. E a urgência de mudanças drásticas na organização do trabalho, para que histórias como as de Gislaine, Cláudio e Maria não sejam vistas como casos isolados de depressão e descontentamento pessoal, mas como denúncia de que a pressão no trabalho como ferramenta de autoridade ou de desempenho pode ser uma arma mortal.

Para o psicólogo Nilson Berenchtein Netto, co-autor da cartilha, um dos motivos para que a relação entre suicídio e trabalho seja negligenciada é que as análises de doenças como depressão e outros transtornos psíquicos quase sempre consideram que o problema está no indivíduo. “Ou se diz que essas patologias ocorrem por falta de algum neurotransmissor, de alguma substância que faz com que a pessoa se deprima, ou que surgem do próprio psiquismo, considerando que ela se deprimiu porque não conseguiu se adaptar às relações sociais e pessoais. Essas correntes não levam em conta o trabalho como uma categoria fundamental na constituição do homem nem, portanto, a relação entre trabalho, depressão e suicídio”, diz Netto. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Fora do Brasil, um caso que tem chamado a atenção da imprensa mundial é o da empresa chinesa Foxconn. Foram 13 suicídios de funcionários nos últimos oito meses. A Foxconn, fornecedora de equipamentos eletrônicos para gigantes como Dell, Sony, HP e Apple, é acusada de submeter funcionários a uma disciplina militar e constante assédio moral. Segundo a Organização Mundial de Saúde, 3 mil pessoas suicidam-se todos os dias no mundo. A média aumentou 60% nos últimos 50 anos. Porém, a maioria dos órgãos ligados ao assunto, incluída a OMS, distancia-se de ver danos decorrentes de relações inadequadas de trabalho. Embora assuma o suicídio como problema de saúde pública, o órgão liga os casos a transtornos mentais, depressão, drogas. E quando os relaciona ao trabalho o faz de maneira discreta, atribuindo-os a vulnerabilidade individual. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a taxa de 4,5 casos de suicídio em cada 100 mil mortes é considerada baixa, embora seu crescimento seja preocupante. Mais de 90% deles são atribuídos a transtornos mentais e ao abuso de substâncias psicoativas, sem relação direta com o universo do trabalho. Margarida Barreto vê nesse cenário uma tentativa de responsabilizar o indivíduo pelo suicídio, deixando de lado fatores sociais marcantes. “É preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas, baseada no assédio moral e numa verdadeira gestão por injúria”, reforça a médica.

Setor bancário: depressão epidêmica Embora haja muitas estatísticas referentes ao adoecimento e à depressão de trabalhadores, poucas pesquisas relacionam tais doenças ao suicídio. Uma das pioneiras foi apresentada na década passada pelo professor Ernani Xavier, mestre em Administração­pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Xavier identificou 76 bancários que se suicidaram entre

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1993 e 1995, época em que estavam em alta temas como reorganização do trabalho, aceleração tecnológica, privatizações, fusões, programas de demissão voluntária e demissões em massa – no período, foram demitidos mais de 430 mil trabalhadores no setor em todo o Brasil. Em 2009, o trabalho Patologia da Solidão: O Suicídio de Bancários no Contexto da Nova

Organização do Trabalho, tese de mestrado em Administração de Empresas de Marcelo Augusto Finazzi Santos, na Universidade de Brasília (UnB), apurou que 181 bancários terminaram com a própria vida de 1996 a 2005 – em média, um a cada 20 dias. Entre as principais causas, assédio moral, pressões por metas, excesso de tarefas e medo do desemprego.

Em 2007, cansada das humilhações no ambiente de trabalho, a bancária Mônica, de 25 anos, tentou acabar com o sofrimento tomando uma overdose de remédios. Ela mesma relata: “Olhei pra cima e falei: ‘Me leva porque eu não aguento mais as humilhações, os xingamentos’. Minha mãe me socorreu. Em 2009, eu tentei de novo com 40 ou 50 comprimidos­de


JOÃO CORREIA FILHO

Um dos motivos para que a relação entre suicídio e trabalho seja negligenciada é que as análises de doenças como depressão e outros transtornos quase sempre consideram que o problema está no indivíduo

medicamentos controlados. Fui levada para o hospital. Não aguentava mais, o gerente me ignorava, não falava comigo, passava meus clientes para os outros. Eu simplesmente não existia. O médico me afastou, mas meu gerente me forçou a trabalhar mesmo com atestado. Aí, pediu minha demissão”. Mônica não suportava mais ouvir insultos dos superiores. “Um dia eu estava almoçando, eram mais de 16h, e a minha gerente geral começou a gritar: ‘Não pode comer!’. Eles

nos humilhavam na frente de todo mundo. ‘Que porcaria de produção é essa? Vocês querem que eu enfie um Sonrisal no c* de vocês para andarem que nem jet ski?’ E eu não conseguia esquecer essas coisas. Ia ficando cada vez pior.” Em novembro de 2009, ela foi pressionada a abrir em uma semana 100 contas de renda acima de R$ 4 mil. “A meta geral era abrir dez contas dessas em um mês. Em uma semana era impossível. Diziam ‘se vira!’ E eu pensei: ‘Vou acabar com

Lourival Batista Pereira, coordenador da Secretaria de Saúde do Sindicato dos Químicos de São Paulo, questiona a quem interessa o silêncio diante dessa problemática. “As empresas não têm intenção de assumir esse ônus, pois é comum tratar o trabalhador como uma peça descartável”, afirma. A costureira Gislaine vê seu caso como exemplo. Entre 2003 e 2004, depois de ingressar numa multinacional do setor de plásticos, passou a sofrer humilhações constantes de uma das gerentes. “Eu trabalhava das 7h às 17h e, quando acabava meu serviço, ela descosturava tudo e dizia que estava malfeito para me humilhar. Dizia ter carta branca pra fazer o que quisesse”, conta Gislaine. “Cheguei a ter um enfarte e tive de ser afastada. Quando voltei, 20 dias depois, retomaram as humilhações. Perdi peso, adoeci e fui ficando sem noção das coisas. Comecei a bater nas minhas filhas, deixei de ser uma pessoa alegre e me desestruturei completamente, profissionalmente e com minha família.” A situação culminou numa depressão profunda e em duas tentativas de suicídio. “Não tinha força nem para sair da cama. Só pensava em acabar com a vida”. Aos 51 anos, ela ainda vive à base de antidepressivos.

Pouco avanço

Perseguições e descaso também fazem parte da tragédia de Cláudio. Funcionário do setor de estoque de uma multinacional do ramo de tintas, ele começou a perceber que as regras de segurança não eram cumpridas. “Como eu questionava, começaram a me perseguir, dar trabalhos mais pesados.

tudo, com a minha vida, com essa dor de cabeça, eles vão parar de me humilhar’. Assim não teria mais de ir trabalhar com essas pessoas. Por isso, se minha vida acabasse hoje, tudo bem. Eles acabaram com a minha vontade de viver.” Wellington também sofre de depressão. Contratado em 2000 para trabalhar no antigo Banespa como operador de Controle de Qualidade, ele começou a ter crises nervosas. “Eu não era reconhecido. Comecei a ter convulsões, crises

nervosas dormindo. Quando isso acontece, eu não consigo me lembrar como e o que acontece. Passei por neurologista, psiquiatra e estou em grupos de apoio”, relata. “Depois de seis anos, contratavam para ser meu superior uma pessoa que não sabia o trabalho, eu tinha de ensinar e era muito cobrado. Na prática, o que eu falava era ordem, mas não tinha cargo nem salário para essa responsabilidade, tinha que ter o controle de tudo porque era uma gráfica de

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Havia funcionários que, por medo de represálias dos encarregados, nem sentavam mais ao meu lado. Me deram duas advertências só para que eu me calasse diante dos problemas e me colocaram para trabalhar numa área isolada. Comecei a entrar em pânico, a ter crises de choro, me descontrolar. A tentativa de suicídio foi pensando que assim a polícia veria o que estava acontecendo lá dentro”, conta o jovem de 29 anos. Dois anos de perseguições provocaram em Cláudio um quadro de esquizofrenia que o obrigou a ficar internado numa clínica psiquiátrica por 20 dias. “Não conseguia mais sair na rua e comecei a achar que todos estavam me perseguindo, inclusive gente da família. Eu não entendia quem mentia e quem falava a verdade. Perdi o rumo da minha vida”, lamenta Cláudio, que há um ano trabalha em outra empresa e ainda precisa de medicamentos para depressão. Para Lourival, do Sindicato dos Químicos, outro indício desse descaso está nos índices de adoecimento e de acidentes de trabalho, que engordam as estatísticas negativas do atual modelo de gestão empresarial. “Essas duas situações costumam gerar demissão e perseguição. O funcionário hoje só serve se está muito bem. Doente, incomoda, aí vêm as perseguições, numa tentativa de que eles se demitam sem direito a nada”, diz. O caso de Maria é emblemático. Depois de 20 anos trabalhando na mesma empresa, multinacional do ramo de cosméticos, começou a sentir dores crônicas e teve de passar por cirurgias. “Foram cinco nos últimos cinco anos, nas mãos, no ombro esquerdo e

segurança máxima. Para eu ir ao banheiro tinha de passar por revista, tirar o sapato. Os outros não precisavam.” Segundo ele, as humilhações o levaram a quase acabar com a própria vida: “Aconteceu numa semana que eu estava de atestado médico. A maioria das pessoas da minha equipe foi demitida e acabei indo numa reunião. Teve uma desavença muito grande, fui menosprezado, discriminado, rotulado. Fiquei muito mal. Quebrei o vidro do meu carro com o pulso,

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Pensei: ‘Vou acabar com tudo, com a minha vida, com essa dor de cabeça, eles vão parar de me humilhar’. Assim não teria mais de ir trabalhar com essas pessoas. Por isso, se minha vida acabasse hoje, tudo bem. Eles acabaram com a minha vontade de viver

quase morri. Não tenho os movimentos da mão ainda. Minha vida é no hospital. Tomo seis tipos de remédios, calmantes, antidepressivos, fico descaracterizado. Caí na escada e quebrei os pés. Estou de licença médica. No banco me chamam de Gardenal”. Para a médica Maria Maeno, coordenadora do grupo temático Organização do Trabalho e Adoecimento, da Fundacentro (órgão do Ministério do Trabalho que atua em questões de saúde), o suicídio ligado ao

Mônica, bancária

trabalho é pouco estudado no Brasil por dificuldades metodológicas. A depressão, alerta ela, tornou-se epidêmica no mundo inteiro, mas é pior nessa categoria. “O ramo financeiro talvez seja o que tenha sofrido a maior reengenharia na organização do trabalho. Com a automação, a velocidade da informação e das transações, a demanda ficou mais rápida e eles têm de responder mais rapidamente também. Todos têm de vender produtos – que não são de primeira necessidade – e cumprir

metas, independentemente de onde estejam. Quando você é pressionado, os comportamentos são os mais diversos”, explica Maria Maeno. “É preciso haver acordo entre trabalhadores e bancos. Os bancários estão vulneráveis e não reagem quando passam por essas situações. Isso não é culpa do gerente geral ou do superintendente, são as chefias imediatas as que aparecem, mas sobre elas há a pressão que vem da forma como o sistema bancário­ funciona”,­ adverte.


JOÃO CORREIA FILHO

no braço direito. Tive tendinite, rompimento nos dois ombros, e ainda não estou bem. Perdi o movimento e fiquei com deformações no braço. Dediquei toda minha vida a essa profissão e fui largada de lado”, lamenta. Maria recupera-se da última cirurgia e espera por decisões da Justiça do Trabalho e do INSS, que podem lhe render uma indenização ou a aposentadoria. Ou nada. Dependendo do resultado, ela entrará para um seleto grupo de trabalhadores que ganharam ações na Justiça por assédio moral, o que começa a ocorrer no Brasil. Existem mais de 80 projetos de lei em diferentes municípios e vários no âmbito federal à espera de votação. Na esfera estadual, desde maio de 2002, o Rio de Janeiro condena a prática. Também há projetos em tramitação em São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná e Bahia. Gislaine entrou na Justiça contra sua algoz e ganhou a causa por assédio moral. A perseguidora foi condenada a pagar 250 cestas básicas à comunidade, “entregues por mim, em locais muito pobres, algo que me lavou a alma”, diz Gislaine. Cláudio também ganhou a causa na Justiça do Trabalho e a empresa foi obrigada a pagar um ano de plano de saúde e R$ 8 mil de indenização, o suficiente para que o rapaz pagasse as contas que se acumularam enquanto esteve afastado. Muito pouco para pagar as despesas que tem com os antidepressivos. *Os nomes de algumas pessoas e empresas foram alterados ou omitidos a pedido dos entrevistados

Pesquisa feita com bancários de todo o Brasil sobre as prioridades da campanha nacional deste ano mostra que para quase 80% da categoria o combate ao assédio moral e às metas abusivas são os principais problemas nos locais de trabalho. Para a presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira Leite, o assédio tem a origem no sistema de organização do trabalho imposto pelos bancos.“Nós temos várias reclamações de gerentes-

-gerais de agência dizendo: ‘Eu não aguento, meu diretor fica ligando todo dia, tenho de me controlar muito para não repassar essa pressão para o meu quadro de funcionários’”, diz. Juvandia admite que há problema com o comportamento individual das chefias, mas considera que a organização do trabalho do banco induz a esse comportamento. “Eles querem resultados, independentemente de como a cobrança é feita. E isso até hoje ficou sem punição.”

Para ela, é importante criar instrumentos para que o banco condene formalmente essa conduta. “Ele tem que garantir que não admitirá isso. Tem de ter prazo para apurar denúncias e tomar providências. Há casos em que se demora seis meses ou mais para apurar. Tem muitos bancários afastados por causa de depressão, mas também os que não estão afastados, mas tomam remédios. Em agências, acho que no mínimo uma pessoa tem esse problema ou desenvolve sintomas.”

Só no primeiro semestre deste ano, 18 mil funcionários saíram dos bancos, metade deles pediu demissão. “O trabalho bancário hoje é muito caracterizado pela pressão, pela cobrança. É fundamental que a gente encerre a campanha salarial com algum avanço no combate ao assédio porque realmente­é um grave problema em todos os bancos, públicos e privados”, afirma a presidenta do sindicato. Por Xandra Stefanel

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HISTÓRIA

Crueldade Caía uma chuva negra. A população pensava ser óleo jogado pelos americanos, mas era uma chuva ácida, resultante da explosão com força de 21 toneladas de dinamite Por Moacir Assunção

H

aruko Yoshiga, de 88 anos, Yasuko Nishimura, de 79, e Yoshitaka Samedima, de 82, têm em comum a lembrança viva do maior horror jamais criado pelo homem: a bomba atômica. Lançada há 65 anos por aviões americanos, ela arrasou as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Os descendentes de japoneses viram nascer a maior arma de destruição em massa, cuja criação marcou um novo paradigma na história do homem, ao estabelecer que a própria raça poderia ser extinta. Yasuko, a única natural de Hiroshima, chegou ao Brasil em 1952. Haruko e Yoshitaka, de pais japoneses, são brasileiros nascidos no estado de São Paulo, que voltaram à terra de seus ancestrais no final da década de 1930 para aprender o idioma e retomar o contato com sua cultura. Com a guerra, não puderam voltar e se tornaram protagonistas de uma história curiosa e pouco conhecida de brasileiros, a dos hibakushas – pessoas afetadas pela bomba, das quais 130 vivem no Brasil.

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atômica

AFP

TERROR A decisão final sobre o uso das bombas foi do presidente dos Estados Unidos, Harry Truman. Em Hiroshima foi lançada uma bomba de urânio. Em Nagasaki, de plutônio. Muitos historiadores afirmam que detonar as bombas foi um recado à então União Soviética, pois a guerra contra o Japão já estava ganha

Haruko trabalhava na zona rural de Hiroshima, a 16 quilômetros do epicentro da explosão. Mesmo assim, as consequências foram catastróficas. “A casa desabou em cima de todo mundo, espalhando cacos de vidro para todo lado. Eu vivia com mais quatro irmãos na cidade de onde meus pais saíram para vir ao Brasil”, conta. Um irmão morreu pouco após a bomba, vítima de uma febre que não passava. Pouco tempo depois, numerosos grupos de vítimas que conseguiram sair da cidade foram para a zona rural em busca de ajuda para escapar do horror. Não era possível, entretanto, encontrar muita coisa. “Era muita gente, que alojamos numa escola, um dos poucos lugares que ficou em pé, já que tudo estava queimado e destruído. Faltava de tudo.” Pela segunda vez, a família de Haruko tomava parte de um fato histórico. Seu pai, Fusakishi Nishimura, havia sido um dos 781 pioneiros da imigração japonesa ao Brasil, onde chegaram em 1909 a bordo do navio Kasato Maru. Somente um de seus oito filhos havia nascido em Hiroshima, todos demais eram brasileiros, ocidentalizados demais para o gosto do tradicionalista Fusakishi.

DANILO RAMOS

Yoshitaka nasceu em Bauru e vive em um sítio em Suzano. Chegou a servir ao orgulhoso exército imperial japonês. Estava dentro de um navio militar em Nagasaki quando, em 9 de agosto de 1945, a bomba explodiu na cidade portuária de 240 mil habitantes – 80 mil morreram imediatamente. Em Hiroshima, estima-se em pelo menos 100 mil os mortos logo após a explosão. Os efeitos da radiação matariam ainda outros milhares de pessoas nos anos seguintes. “Lembro que o navio balançou. Saímos e estava tudo escuro. A cidade inteira estava destruída”, conta. Na sequência, os soldados saíram para socorrer as vítimas da explosão da fat man (homem gordo), nome dado à segunda bomba – a little boy (menininho) havia sido jogada antes do avião Enola Gay sobre Hiroshima. Yoshitaka ficou com manchas brancas nos braços. “Após a explosão, às 11 horas, o dia virou noite. O cheiro de morte nas ruas era difícil de aguentar. Demoramos para entrar em Nagasaki. Quando chegamos, havia sobreviventes em abrigos. O resto, até as árvores, estava tudo queimado.” O brasileiro, cujos pais chegaram ao país em 1909, voltou para São Paulo em 1960.

MEMÓRIA Mesmo a 16 quilômetros do centro da explosão, Haruko viu sua casa desabar OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Enquanto seus conterrâneos rumaram para o interior, Fusakishi ficou na capital. Vendia brinquedos de madeira feitos à mão. Alguns anos depois, conseguiu montar uma pequena fábrica no bairro da Mooca. Em de 1939, mandou os filhos de volta ao Japão. Um deles, Kenzo Nishimura, casou-se com Yasuko na cidade natal do pai. Depois da guerra, decidiram voltar. “Não tem lugar como o Brasil”, diz ela.

Saúde de ferro

A Associação dos Sobreviventes da Bomba Atômica no Brasil foi surpreendida com a existência de brasileiros natos entre as vítimas. Imaginava-se que os hibakushas eram somente japoneses e coreanos. “Como todo mundo tem traços e nomes orientais, pensávamos que não havia brasileiros. Eles são muito reservados e muitas vezes nem a família sabia o que tinha acontecido”, conta a diretora da entidade Yasuko Saito. Somente depois de um encontro há pouco mais de um ano os sobreviventes foram estimulados a falar mais de sua origem. “A história é absolutamente surpreendente porque sempre se achou que os sobreviventes eram somente japoneses e, talvez, alguns coreanos”, afirma o professor de História André Lopes Loula, diretor cultural da entidade. Em 2003, Yoshitaka Samedima conheceu Takashi Morita, de 86 anos, presidente da associação e também sobrevivente de Hiroshima, que perguntou sobre as manchas nos braços. Até então, nem a família sabia o que ele tinha vivido naquele agosto de 1945. A razão do segredo era o preconceito. “Nenhuma moça queria se casar com hibakushas. Achavam que os filhos nasceriam com deficiências”, explica. Por causa disso, muitas histórias ficaram escondidas. A Associação das Vítimas da Bomba Atômica no Brasil foi fundada em 1984, com o objetivo de congregar os sobreviventes e conseguir alguma ajuda do governo japonês para os hibakushas que viviam em outros países. Na rígida cultura nipônica, os que saíram do país passaram a ser vistos como ingratos com sua pátria. Morita, que começou a organizar o movimento, foi forçado a entrar com ações judiciais contra o Japão para ver reconhecidos os direitos dos conterrâneos. Hoje os 130 sobreviventes no Brasil recebem uma ajuda de aproximadamente R$ 500 por mês e assistência médica – antes o governo japonês só atendia as pessoas do país.

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LEMBRANÇAS Yasuko nasceu em Hiroshima, sobreviveu à bomba e veio para o Brasil em 1952

Duas vezes por ano, médicos japoneses especialistas em sequelas de bombas atômicas vêm ao Brasil para consultar os hibakushas. A maior parte, entretanto, tem saúde de ferro, apesar da idade. E ao contrário da crença popular, os filhos também nasceram saudáveis.

Uma luz silenciosa

Apesar de estar no Brasil desde a década de 1950, Morita ainda fala português com dificuldade, e atribui sua longevidade ao clima tropical. Policial militar em Hiroshima, estava a pouco mais de um quilômetro do epicentro da explosão. Enquanto muitos fugiam, ele voltou à cidade para tentar socorrer vítimas. “Nunca esqueci nem vou esquecer o que vi. Milhares de corpos queimados dentro dos bondes, crianças mortas sob os escombros, o fogo avançando sobre pessoas que pediam ajuda para não morrer dentro das casas destruídas. Era um cenário de horror, pa-

recia o fim do mundo”, descreve Morita, ainda emocionado. Na hora da explosão, ele não ouviu barulho algum, foi projetado dez metros à frente e sofreu queimaduras nas costas e nuca. O então policial atribui sua sobrevivência ao fato de estar com roupas grossas, bem alimentado e de costas para o epicentro. Só viu uma luz silenciosa, uma espécie de flash, que percorreu rapidamente todo o seu corpo. Ao conseguir se levantar, estava tudo escuro, embora fossem 8h15. Caía uma chuva negra, que a população pensava ser óleo jogado pelos americanos para provocar incêndios, como tinha acontecido em Tóquio. Não era, tratava-se de uma chuva ácida, resultante da explosão e da radiação provocada pelo artefato nuclear com potência de 21 toneladas de dinamite. Até aquele momento, ninguém imaginava que a bomba lançada era muitas vezes mais letal que as temidas ogivas incendiárias que devastaram a capital japonesa.


FOTOS DANILO RAMOS

HIBAKUSHAS Duas vezes por ano, médicos japoneses especialistas em sequelas de bombas atômicas vêm ao Brasil para consultar os sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki

Uma cena que Morita jamais esqueceu foi a de uma jovem mãe, morrendo ao lado do seu filho, que pediu ao vê-lo fardado: “Soldado, mate americanos”. No Brasil, onde chegou em 1956 ao lado da mulher, a enfermeira Ayako e os filhos Yasuko (a diretora da associação) e Tetsuji, foi relojoeiro na Rua Augusta e, depois abriu uma mercearia de produtos japoneses no bairro da Saúde, onde também funciona a sede da associação e da entidade-irmã Associação Hikabusha-Brasil pela Paz.

“Meu Deus, o que fizemos?”

CHEIRO DE MORTE Yoshitaka estava em um navio em Nagasaki quando a bomba explodiu. “O dia virou noite”

A frase de espanto com as consequências do ataque a Hiroshima teria sido pronunciada pelo co-piloto Robert Lewis. Ele estava a bordo do B-29, batizado como Enola Gay, comandado pelo coronel Paul Tibbets, de onde partiu a bomba que formou o enorme “cogumelo”, fotografado pelo sargento Bob Caron. A decisão havia sido tomada no dia 25 de julho pelo presidente dos Estados Unidos, Harry Truman. Em um gabinete improvisado no cruzador USS Augusta, no meio do Atlântico, foi Truman quem ordenou o ataque nuclear contra o inimigo que havia impingido um enorme número de baixas de americanos no ataque a Okinawa. Antes, entretanto, o Japão já analisava a sua rendição, pela primeira vez na história militar do país. O presidente americano tinha em mãos uma lista de cidades-alvo feita pelo secretário de Guerra, Henry Stimson: Hiroshima, Kyoto, Nokura, Niigata e Nagasaki. Hiroshima passou a ser um alvo prioritário por ter 40 mil soldados em sua área. No navio, Tru-

man escreveu em seu diário: “A arma finalmente será usada contra o Japão. Parece a coisa mais terrível jamais descoberta”. A decisão foi mais do que uma vingança contra a operação japonesa na base norte-americana de Pearl Harbor, localizada na ilha de Ohau (Havaí), na qual foram mortos 2.400 americanos. O ataque causou terríveis repercussões na opinião pública do país. Os Estados Unidos alegavam que sofreriam muitas baixas – até 200 mil – em um eventual­ ataque convencional ao Japão. Mas o que moveu mesmo o governo de Truman a empregar a bomba foi, segundo a maior parte dos especialistas, a intenção de dar um recado a União Soviética. Afinal, o Exército Vermelho havia destruído a máquina de guerra de Adolf Hitler – era preciso demonstrar ter em mãos uma arma mais poderosa. Hiroshima e Nagasaki teriam sido escolhidas por se situar entre vales, o que permitiria observar os efeitos da bomba em alvos reais, sem condições de a radiação se dissipar totalmente antes de cessarem seus efeitos. Seriam as primeiras (e até hoje únicas) vezes em que a poderosa arma foi usada contra alvos humanos. Era o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da era nuclear e da Guerra Fria, conflito não declarado entre as grandes potências, EUA e URSS, que se estenderia por todo o século 20. O embate com as extintas potências comunistas já não existe mais. Mas os interesses econômicos do bloco de nações ricas – inclusive os da indústria armamentista – ainda são um legado das potências capitalistas a ser desarmado pela humanidade no século 21. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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A biodiversid é nossa

O Brasil será destaque neste outubro, no Japão, em mais uma conferência que põe a temática ecológica na agenda do planeta. Desta vez, enfrentando o olho gordo de interesses nem sempre ambientais em nossos biomas Por Roberto Amado

RUSSEL MITTERMEIER/CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL/DIVULGAÇÃO

té alguns anos atrás, a palavra “biodiversidade” era quase incompreensível para a maioria das pessoas. Hoje, se ainda não chega a ser um tema que se discuta nos bares, vem se incorporando cada vez mais na sociedade em geral. Tudo indica que a variedade de espécies de plantas, animais e insetos de uma determinada área começa a ser uma preocupação geral – a ponto de a ONU considerar 2010 o Ano Internacional da Biodiversidade. Mas ainda que seja um assunto cada vez mais popular, convencer governos e sociedades de que a biodiversidade tem importância fundamental para a espécie humana e para o próprio planeta é uma perspectiva remota. Afinal, a quantidade de espécies aparentemente não influencia na vida profissional, social e econômica de quem está mergulhado nas decisões mais prosaicas do dia a dia. No entanto, essa vai ser, mais uma vez, a missão de boa parte das 8 mil pessoas – técnicos, consultores, especialistas e cientistas – que irão se reunir em Nagoya, no Japão, entre 11 e 29 de outubro, para a 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica. Além deles, estarão lá líderes políticos de cerca de 190 países incumbidos de discutir um variado cardápio de questões que envolvem o uso e a preservação da biodiversidade em todo o globo. Ou, como diz Ahmed Djoghlaf, secretário-executivo da Convenção, “desenvolver um novo plano estratégico para as próximas décadas, incluindo uma visão para 2050 e uma missão para a biodiversidade em 2020”. Talvez seja um discurso um pouco vago devido à urgência dos fatos: nunca, na história do planeta, registrou-se um número tão grande de espécies ameaçadas. Diariamente, 100 espécies entram em processo de extinção e calcula-se que nos próximos 20 anos mais de 500 mil espécies serão varridas definitivamente do globo. Tudo isso é, na maior parte, “obra” do ser humano: segundo a Fauna e Flora International, uma das organizações não-governamentais mais antigas dedicadas ao estudo da biodiversidade, cerca de 80% das florestas que originalmente cobriam o planeta foram destruídas ou degradadas nos últimos 150 anos e estima-se que, graças à intervenção humana, as espécies estão desaparecendo a uma taxa 10 mil vezes maior do que seria natural.


PAULO WHITAKER/REUTERS

idade

RUSSEL MITTERMEIER/CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL/DIVULGAÇÃO

Banco genético

SEM TETO Lar de inúmeras espécies, a Mata Atlântica já perdeu 93% de sua área natural. O mico-leão-dourado (página ao lado) é raríssimo. A arara-vermelha já desapareceu desse bioma costeiro e está criticamente ameaçada no estado de São Paulo

Ao mesmo tempo em que parece um número grande, pode também parecer irrelevante. “Hoje, conhecemos cerca de 2 milhões de espécies. Mas a estimativa é de que sejam de 15 a 30 milhões”, diz Luiz Eduardo Corrêa Lima, professor titular de Biologia da Faculdades Integradas Tereza D’Ávila, de Lorena (SP). Nessas espécies encontram-se um vasto e generoso banco genético, cuja exploração ainda engatinha, capaz de prover os mais diferentes tipos de soluções para questões humanas eminentes. Por exemplo, o desenvolvimento de uma medicação para tratar a leucemia, recentemente extraída de plantas da Floresta de Masoala, em Madagascar, na África. Ou os sistemas de refrigeração dos cupinzeiros copiados para projetar prédios com baixo consumo de energia. E até mesmo um tipo de tinta impermeável que se inspira na flor de lótus, cuja superfície não absorve água. Esses são exemplos do que a biodiversidade já está fazendo para a humanidade. Mas há casos também daquilo que já perdemos. Como uma rã típica da floresta tropical australiana (gastric-brooding frog) que guardava no estômago os ovos fertilizados pelo macho. Durante o período de desenvolvimento dos girinos, a produção de suco digestivo interrompia-se e os pesquisadores acreditam que o estudo dessa espécie poderia produzir medicamentos eficientes contra úlceras. Mas a rã está considerada extinta desde 1981. Fatos como esse poderiam constituir argumentos convincentes para a preservação das espécies e das áreas em que elas se encontram. Mas não são. Assim, o raciocínio conservacionista tem sido puramente contábil: quanto vale a biodiversidade, qual é o prejuízo que representa sua diminuição e que investimento é necessário fazer para mantê-la. Não é a forma ideal para evocar um princípio ético da única espécie capaz de pensar na preservação de todas as espécies. Mas talvez seja a saída. Segundo o documento A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade, produzido pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (Pnuma), os desmatamentos na Amazônia, por exemplo, são responsáveis por um prejuízo de até US$ 44 trilhões ao ano. Já o relatório Global Biodiversity Outlook (GBO), também da ONU, por exemplo, estima que a perda anual de florestas tenha custado entre US$ 2 trilhões OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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e US$ 5 trilhões. A pesquisa mostra, por outro lado, que a preservação desses biomas requer investimentos anuais de apenas US$ 45 bilhões. Nessa contabilidade, o que entra é um valor atribuído aos “serviços” ambientais que os biomas oferecem – como a purificação do ar e da água, o fornecimento de água doce e de madeira, a regulação climática, a proteção a desastres naturais, o controle da erosão e até a recreação. E a ONU avisa: mais de 60% desses serviços estão sofrendo degradação ou sendo consumidos mais depressa do que podem ser recuperados. Mas não é só isso. Segundo Luiz Eduardo Corrêa Lima, a importância da diversidade biológica está além do que ela pode nos oferecer como “serviços” – afinal, “é o registro genético de tudo o que aconteceu na evolução das espécies, um histórico biológico e evolutivo”.

Marcar território

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SAVANA BRASILEIRA Segundo maior bioma do país, o Cerrado sofre com os frequentes incêndios e avanço da agricultura e pecuária. Corre o risco de desaparecer até 2030

AGÊNCIA BRASIL

Seja como for, o Brasil tem enorme interesse nessa conta: é a região do planeta que apresenta maior diversidade biológica. Portanto, somos donos de um enorme tesouro, liderando o restrito grupo dos megadiversificados, compostos por outros 16 países. Em 2002, quando foi realizada a 6º Conferência das Partes sobre Diversidade Biológica, em Haia (Holanda), os países signatários definiram metas a serem alcançadas agora, em 2010, que, aparentemente, não pareciam tão distantes. Por exemplo, a redução da perda e degradação de habitats e proteção de pelo menos 10% das regiões mais biodiversificadas do planeta. Agora é hora de prestar contas e encarar a dura realidade: nenhum país conseguiu alcançar os objetivos. Segundo a secretária de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, Maria Cecília Wey de Brito, o Brasil atingiu 75% da meta mundial de criação de áreas protegidas permanentemente, o que inclui parques e áreas reservadas. Embora as instituições governamentais do planeta façam pouco pela conservação da biodiversidade, algumas ONGs têm um trabalho efetivo nessa área, produzindo e reunindo informações. Uma delas é a Conservation International (CI), que tem inclusive sede no Brasil. A CI tem trabalhado no conceito dos hotspots, criado pelo ecólogo inglês Normam Myers, em 1988, para definir as áreas prioritárias de preservação da biodiversidade. Ou seja, áreas que apresentam grande diversidade biológica, com

pelo menos 1.500 espécies endêmicas (que só ocorrem em uma determinada área) e que tenham perdido mais de 75% de sua vegetação original. Myers a princípio identificou apenas dez hotspots no planeta. A partir desse trabalho, a CI elaborou estudos que levaram a uma ampliação crescente do número de área críticas e estabeleceu a existência de 34 regiões­ (mapa ao lado) que constituem o habitat de 75% dos mamíferos, aves e anfíbios mais ameaçados do planeta. Ainda que a soma total dos hotspots represente apenas 2,3% da superfície terrestre, é neles que se en-

contram 50% das plantas e 42% dos vertebrados conhecidos. No Brasil, há dois deles: a Mata Atlântica e o Cerrado – a Amazônia, apesar de apresentar a maior biodiversidade do planeta, ainda não foi destruída a ponto de ser considerada crítica. Apesar de ter pouca visibilidade, por não se tratar de uma região com árvores exuberantes e grandes animais, o Cerrado é o segundo maior bioma do país, localizado no Brasil Central, e apresenta uma fauna e flora extremamente rica – segundo a CI, há mais de 10 mil espécies de vegetais na região.


HAROLDO CASTRO/CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL/DIVULGAÇÃO

às duras custas algumas espécies endêmicas, como o mico-leão-dourado, a onça-pintada, o bicho-preguiça e a cobra jararaca. Calcula-se que na Mata Atlântica ainda existam 1.020 espécies de pássaros, 197 de répteis, 340 de anfíbios e 350 de peixes. Ao Brasil resta, mais uma vez, tomar a frente das negociações e se envolver nesse movimento que procura dar valor monetário aos biomas e sua diversidade. Mas no âmbito da política internacional, não basta fazer isso. Afinal, por trás dessas discussões financeiras relacionadas à biodiversidade, repousa, ainda latente, uma outra, de importância fundamental para nós: a propriedade sobre as espécies. Não faltam movimentos e gestões globais que procuram dar posse internacional a esse tesouro natural – afinal, a perda dele, segundo argumentam, gera danos a toda humanidade e não apenas ao país “proprietário”. Mais uma vez, o Brasil terá de brigar por aquilo que é seu – e ter competência de saber preservá-lo.

Mas dados do IBGE confirmam que a cobertura vegetal desse bioma foi, apenas nos últimos anos, reduzida à quase metade. O Cerrado corre o risco de desaparecer até 2030 se o desmatamento prosseguir à velocidade de 3 milhões de hectares por ano. Junto com a cobertura vegetal estão sumindo espécies típicas, como a onça-pintada, o tatu-canastra, o lobo-guará, a águia-cinzenta e o cachorro-do-mato-vinagre. Já a Mata Atlântica, nosso segundo hotspot, tem histórico igualmente contundente. Originalmente, estendia-se ao longo da costa, do Rio Grande do Sul ao Piauí, superando diferentes formas de relevo e até climas. Segundo a ONG SOS Mata Atlântica, é considerada o bioma mais rico em biodiversidade do planeta. Mas cerca de 93% de sua área já foi devastada, principalmente devido ao fato de estar em regiões em que se concentram 62% da população do país, cerca de 110 milhões de pessoas, incluindo as maiores cidades e capitais. Nela, sobrevivem

Hotspots da vida na Terra Os “pontos quentes” do planeta, onde a variedade de espécies encontradas é maior do que em qualquer outro lugar, mas que já tiveram pelo menos 70% de sua área original destruída. Marcados com a bola preta, as áreas que se tornaram hotspots recentemente

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26

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8 6

9

30 33

31 1

7

1. Mata Atlântica (Brasil, Paraguai, Argentina) 2. Província Florística da Califórnia 3. Província Florística do Cabo (África do Sul) 4. Ilhas do Caribe 5. Cáucaso 6. Cerrado 7. Florestas Valdívias (Chile Central) 8. Montanhas do Arco Oriental 9. Ilhas da Melanésia Oriental

16

23

12

10. Florestas de Afromontane (África do Sul, Namíbia) 11. Florestas da Guiné (África Ocidental) 12. Himalaia 13. Chifre da África 14. Regiões da Indo-Birmânia 15. Região Irano-Anatólica 16. Japão 17. Madagascar e Ilhas do Oceano Índico 18. Floresta de Pinho-Encino de Sierra Madre (México, EUA)

17

29

24 28

19 3

19. Maputaland-Pondoland, Albany (África do Sul, Swazilândia, Moçambique) 20. Bacia do Mediterrâneo 21. Mesoamérica (Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Guatemala, Belize, México) 22. Montanhas da Ásia Central 23. Montanhas do Centro-Sul da China 24. Nova Caledônia 25. Nova Zelândia

25

26. Filipinas 27. Ilhas da Polinésia e Micronésia (incluindo Hawaí) 28. Sudoeste da Austrália 29. Karoo das Plantas Suculentas (África) 30. Sunda (Indonésia, Malásia e Brunei) 31. Andes Tropicais 32. Tumbes-Chocó-Magdalena (Panamá, Colômbia, Equador, Peru) 33. Wallacea (Indonésia) 34. Ghats Ocidentais (Índia, Sri Lanka) OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

A música me ama

Paulo César Pinheiro não tem controle sobre o que cria. As canções brotam, como que de uma nascente. Elas já renderam parcerias com gente de cinco gerações e um baú pronto para servir a outras tantas Por Paulo Donizetti de Souza 32

REVISTA DO BRASIL OUTUBRO 2010

V

ocê está numa cidade imaginária. Siga pela Avenida Baden Powell e entre na Travessa Elis Regina. No fim da viela, descanse na Praça João Nogueira, junto ao Monumento à Clara Nunes, bem no Cantinho do Sabiá, em frente ao conservatório musical Dorival Caymmi. Passe para a outra quadra, e na esquina da Rua Eduardo Gudin com a Maurício Tapajós tome alguma coisa no Bar Pixinguinha, onde não entra quem não tem caráter. É possível que Vinicius e Tom estejam por lá. Depois, caminhe pelo Bulevar Aldir Blanc. Você verá o Museu de Arte Mauro Bolacha Duarte e o Grupo Escolar Radamés Gnatalli – talvez no jardim espie a professora Luciana pastorando Lenine, Diogo, Marcel, Bena, Alice e outras crianças, observada de longe pela diretora Suely Costa. Pare no caixa automático do Banco Sivuca e saque algumas notas musicais, a moeda corrente nessa cidade, com população de mais de 2 mil composições, chamada Paulo César Pinheiro. Trata-se de um lugar sem pragas nem ervas daninhas, sem armas nem homens de mal, espécies extintas pelas cinzas de um carnaval. Nesta entrevista, concedida numa tarde de setembro no Bar Getúlio, em Copabacana, PC Pinheiro fala um pouco dessa cidade da criação, e da inexplicável inspiração que o torna o compositor da música popular de mais vasta obra de todos os tempos. Levam sua assinatura obras tramadas com parceiros de cinco gerações, de Pixinguinha, que hoje teria 113 anos, a Alice, 20, filha


LUCIANA WHITAKER

A música é uma estrela, deitada na minha cama. Ela me chega sem jeito, quase sem eu perceber. Quando me dou conta e vou ver, ela já entrou no meu peito

de Dori Caymmi. Uma pequena amostra desse acervo o poeta, de 61 anos, descreve no saboroso livro Histórias das Minhas Canções­, lançado recentemente pela Editora Leya. E como ele não consegue nem faz questão de explicar direito, em prosa, de onde vem seu poder da criação, os versos a seguir, que não estão no livro, talvez o faça: “A música me ama, ela me deixa fazê-la. A música é uma estrela­, deitada na minha cama. Ela me chega sem jeito, quase sem eu perceber­. Quando me dou conta e vou ver, ela já entrou no meu peito. No que ela entra a alma sai, fica meu corpo sem vida. Volta­ depois comovida, e eu nunca soube onde vai. Meu olho dana a brilhar.­Meu dedo corre o papel, e a voz repete o cordel que se derrama­do olhar. Fico algum tempo perdido até me recuperar, quase sem acreditar se tudo teve sentido. A música parte e eu desperto­pro mundo cruel que aí está. Com medo de ela não mais voltar. Mas ela está sempre por perto. Nada que existe é mais forte, e eu quero aprender-lhe a medida de como compõe minha vida, que é para eu compor minha morte.” (Do disco Parceria, gravad­o em 1994, com João Nogueira.)

Em meio a uma obra tão vasta, como conseguiu eleger as canções que botou no livro?

Já estou preparando o volume 2. Eu já tinha listado, a princípio, 100 histórias, só por ser um número redondo. Mas quando chegou na sexagésima eu percebi que o livro estava ficando muito grande. Eu não tinha ideia de que as histórias iam se estender. Achei por bem parar, porque se fosse fazer as 100, o livro iria para umas 600 páginas, ia ficar muito caro. A produção acabou ficando boa, a editora é muito boa. Todo mundo que me diz que leu, diz que leu numa tacada só. Eu comecei a compor até antes de Viagem – a primeira música, feita aos 14 anos (Oh, tristeza me desculpe, estou de malas prontas...). Daí em diante, fui fazendo sem nem me dar conta do que aquilo era na minha vida.

Você foi compondo as canções e elas compondo você?

Com certeza. É uma simbiose. A música começa a fazer parte da sua história, da sua vida. Música é isso: observação. É muita inspiração, mas muita observação da vida, das pessoas, dos personagens, do sentimento humano. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Era uma época privilegiada da criação musical do Brasil, né? Tudo que vinha do DNA do Caymmi, do Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Villa Lobos estava em plena ebulição na obra de sua geração.

A minha talvez tenha sido, até agora, a última grande geração de compositores do Brasil. Isso vai desembocar em algum momento em algum lugar. Mas acho que ainda são os mais atuantes.

Aliás, você...

Quem compra CD por R$ 5 em camelô não paga R$ 35 em loja. O preço devia ser mais razoável. O processo de feitura do disco é caro, mas não a ponto de ter de custar R$ 35. Tem de ter um meio-termo

Eu sou o compositor de maior obra na música popular­ de todos os tempos. Já falaram até que é caso para o Guiness­ Book. Tenho mais de 1.150 músicas gravadas e outras mil ainda na gaveta. E não parei. Tem muita gente gravando­ músicas minhas, alguns discos inteiros só de músicas minhas­. Na história da música brasileira, talvez o mais próximo disso seja o Braguinha, que deve ter umas 700. O Baden Powell foi o cara que sacou tudo isso. Eu digo sempre com gratidão e com um misto de assombro. Naquele momento, eu era parceiro do João de Aquino, que era primo do Baden, a quem conheci por meio dele. Nós éramos vizinhos de bairro, numa pracinha em São Cristóvão (zona norte do Rio). O João tocava acordeon – o pai dele era cearense –, depois aprendeu pandeiro, violão. Eu, menino ainda, já tinha muita admiração pelo Baden, que já era um nome mundial. E na década de 1960 inteira a parceria Baden-Vinícius já era muito forte. Meu assombro foi a visão do Baden diante de um menino começando a fazer música, ele já celebridade, referência de toda a minha geração. Eu tinha 16 anos quando ele me ofereceu uma parceria. “Vamos fazer música juntos?” Aquilo pra mim foi um choque, um espanto. Mas ele já estava antevendo o que ia acontecer comigo.

Você nem imaginava que ia viver da sua música?

Com certeza, perdi muitos parceiros. De minha geração e de gerações anteriores. Pixinguinha hoje estaria fazendo 113 anos, estou com 61. Teve o Radamés Gnatalli (1906-1988), o Mirabeau Pinheiro (1924-1991), Alcyr Pires (1906-1994), e outros do meu momento, Baden, Tom, João Nogueira, Mauro Duarte, Maurício Tapajós, Raphael Rabello, Sivuca... Foram morrendo meus parceiros... (pausa). Mas hoje tenho parceiros de 19 anos. Quer dizer, tenho um de 113 e um de 19 (risos).

O João Nogueira foi das mais intensas?

Foi. Começamos em 1972, foi uma parceria muito longa. Era parceiro, companheiro de farra, de boemia.

Foi ele que o convenceu a fazer um tributo à Clara Nunes.

Exatamente. [Clara Nunes morreu aos 39 anos, em 1983, vítima de um choque anafilático. Cinquenta mil pessoas velaram seu corpo na quadra da Portela. Paulo César, casado com ela desde 1975, recolheu-se a ponto de mal conseguir falar do assunto. João Nogueira insistiu que fizesse um samba-tributo. Dizia: “Só você tem autoridade pra fazer esse samba. Se não fizer, vai pintar uma enxurrada de samba ruim sobre o assunto”. E saiu Um ser de Luz: “... Mas aconteceu um dia/ Foi quando o menino Deus chamou/ E ela se foi pra cantar/ Para além do luar/ Onde moram as estrelas (...) Canta, meu sabiá, voa meu sabiá, adeus, meu sabiá/ Até um dia!”] João era meu amigo, meu compadre, sou padrinho de uma filha dele. Aliás, parceria não é só um trabalho de compor junto. É amizade, é convivência, senão não funciona.

Meu espanto pelo Baden é essa antevisão que ele teve de que eu poderia ser o que sou. Quando fizemos Lapinha eu tinha 16 anos (Quando eu morrer me enterre na Lapinha/ Calça, culote, paletó e almofadinha). Dali em diante fizemos cerca de 100 músicas. Muita coisa está na cabeça das pessoas até hoje. Baden me apresentou todo mundo.

Você ainda assina em baixo da tese do Pixinguinha, “beber só faz mal pra quem é mau caráter”...

E daí veio a ciumeira do Vinicius de Morais?

Tentei explicar o que muita gente me pergunta sempre. “Como é que você faz?” “Você precisa estar triste, ou feliz?” “Precisa de alguma coisa especial?”... Essas perguntas eu ouvi a vida inteira. Não preciso de nada disso exatamente. A música brota, não sou quem faz, ela nasce sozinha.

O Vinícius sempre foi ciumento, possessivo. Por que um homem de 52 anos, diplomata, escritor maravilhoso­, poderia ter ciúme de uma criança? O tempo botou as coisas no lugar e nos tornamos grandes amigos.

O bilhete que você recebeu dele e reproduz no livro é algo antológico na vida de alguém.

Pra você ver até que grau ia a amizade depois... (“Para o Paulinho, De pai pra filho e de filho pra pai, sem pai e sem filho, sem filho e sem pai, e com muito amor pelo filho que eu poderia ter (e não tive) mas que é como se tivesse. E aproveitando pra mandar ele pra puta que me pariu, o coração amigo, paterno, fraterno, inferno do seu Vinicius.”)

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Você compôs e conviveu com gente que participou intensamente da sua vida que já se foi. Crer que “a vida é uma missão” ajudou a suportar as perdas?

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Não é bem assim. É “beber só faz mal pra quem não tem caráter”. E assino embaixo.

Sua Trilogia no Alumbramento – as músicas Súplica, O Poder da Criação e Quando Eu Canto – explica sobre como trabalha a cabeça do compositor?

Esse lance que você diz de ter sensações, visões, ouvir vozes, foi pontual, episódico, ou é recorrente?

É recorrente. Quando eu comecei a fazer meus primeiros versos, compor minhas primeiras melodias, isso começou em mim. São histórias intermináveis, misteriosas. Não sei explicar. Mas vejo gente, escuto coisas, acontecem coisas sobrenaturais comigo.


café e escuto aquelas pessoas que estão ali. Às vezes uma frase de um bêbado me faz fazer um samba. A observação é algo muito forte em mim, e tendo tempo pra observar o seu tempo, você começa a ver na frente o que vai acontecer. A previsão da violência urbana, dos morros descendo pro asfalto, do medo do pessoal­do asfalto, das armas. Da destruição da natureza. A música As Forças da Natureza é de 1976 e já alertava: vai haver catástrofe, vai acontecer coisa ruim. Começa a passar na cabeça uma sequência de filme, e você vai até 30, 40 anos adiante. Isso desemboca na minha obra.

Quando você fala de “encomenda” não é só profissional, mas pedidos pessoais também, né?

E as novas gerações de compositores, e também de consumidores de música, estão ligadas? Estão observando o mundo ao seu redor?

Não, elas vão saindo lentamente. Da mesma forma que eu vou fazendo por fazer, às vezes eu faço por encomenda. É um filme, e pedem uma canção tema, é teatro, é novela... À medida que as pessoas vão me procurando pra perguntar se tem alguma nova, vou tirando do baú. Eu sempre tenho. Quando me procuram, só pergunto qual é o gênero que a pessoa quer (risos). “Samba-canção­? Bolero? Valsa? Samba? Choro? O que você quer? Tem, está no baú, é só vasculhar e escolher.”

É. A Elis era a rainha das encomendas.

Você menciona no livro uma cantora, nos anos 1970, que enciumou a Elis. Ela até pediu um samba (Cai Dentro) pra cutucar a concorrente. Quem era?

Ah, isso eu não posso falar.

Pô, eu juro que não conto pra ninguém.

De jeito nenhum (risos).

Você parece carregar um traço de generosidade. É característica nata, ou desenvolveu com o tempo, com as parcerias?

Nasci em berço pobre. Meu pai era operário, tinha dois empregos. Conheci meu pai praticamente com 11 anos de idade, porque antes eu nunca o via de tanto que ele trabalhava. A gente morava numa vila de operários, da Light, em Jacarepaguá (zona oeste do Rio). A família dele, paraibano, é toda nordestina. Eu visitando parentes meus via a miséria que era. Da parte da minha mãe, meu avô era pescador, com família grande. Na casa dele não tinha luz, era lampião de querosene; não tinha gás, era fogão a lenha; a água era a de um riacho do lado. A casa era uma tapera. Minha avó, por parte de mãe, é índia guarani de uma tribo que ainda existe em Angra dos Reis, Bracuí. Saído desse meio não pode dar ninguém que não seja assim. Eu sou meio índio, meio sertanejo, tenho isso na minha essência, está no meu sangue, está no gene.

Você, acolhido naquele meio criativo de sua época, também acolheu gente jovem que veio depois, como o Lenine, que não voltou pro Nordeste porque você insistiu pra ele ficar e deu no que deu.

Muita gente. Sempre fui assim.

Algumas composições suas parecem premonitórias. “O Dia em que o morro descer e não for carnaval, ninguém vai ficar pra assisitir o desfile final...”, você fez com Wilson das Neves...

É observação. A gente que não está no meio da correria­da sobrevivência a qualquer custo, pode sentar­ e observar. Eu paro num balcão de bar pra tomar um

Muita gente está. Não essa moçada da mídia. A moçada que segue a mídia não está. Mas a moçada que está ao largo da mídia, à margem da mídia, está buscando caminhos, sim. Eu conheço muita gente, muito compositor bom, que está escondido, em guetos praticamente, e que vive da música. Meus filhos, por exemplo, são compositores. A Escola Portátil, por exemplo, é um foco disso. A Lapa, que voltou a ser a Lapa de outros tempos, é o coração da vida noturna do Rio. A zona sul acabou. A Lapa foi renascendo, crescendo, se desenvolvendo e ramificando. Agora já está indo para a praça Tiradentes, para o cais do porto...

São redutos que vão além das baladas comerciais?

Exatamente. E grande parte dos músicos que sustentam essa música da Lapa está saindo da Escola Portátil.

E o que é a Escola Portátil?

É uma escola que foi criada pela minha mulher, Luciana Rabello, e pelo Maurício Carrilho pra ensinar choro, principalmente porque os nossos filhos não tinham muito ambiente musical. E foi crescendo. Conseguiu recentemente uma casa na Rua da Carioca, entre a Praça Tiradentes e o Largo da Carioca – em frente ao Bar Luís, pra ser mais específico. Era um pedido antigo ao governo do estado. Uma casa tombada pelo patrimônio, caindo aos pedaços. Eles estão com projetos, mantendo a fachada e reformando tudo por dentro. É uma casa de quatro andares, já começaram as primeiras obrinhas. As salas de aula vão estar todas ali. Vai haver um teatro, como espaço de espetáculos e para gravações. Vai haver um estúdio para gravar tudo o que vai acontecer ali. Quer dizer, as pessoas estudam ali, praticam lá em cima, num terraço, num botequim tomando cerveja, e depois fazem shows e gravam no teatro. É bem bolado. É um projeto para formar cidadão e para ele sair dali um profissional de alguma coisa da música. Não é só um projeto que vai lá, tira o menino da rua e não ensina nada de arte.

FOTOS LUCIANA WHITAKER

E as mil e poucas músicas que você ainda tem guardadas, tem planos pra elas?

A música nasce sozinha. Não preciso estar triste ou feliz, num lugar especial. Posso estar preso num cubículo que faço música. Ela extrapola qualquer tipo de ambiente, a música não é racional. É uma missão

Fale sobre as gravadoras, comparando aquela época efervescente com os dias de hoje, em que se produz tanta mediocridade. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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LUCIANA WHITAKER

Já falaram que é caso para o Guiness Book. Tenho mais de 1.150 músicas gravadas e outras mil ainda na gaveta. Na história da música brasileira, talvez o mais próximo seja o Braguinha, que deve ter umas 700

Nessa época rica a que você se refere, cada gravadora tinha cerca de 90 artistas em seus elencos. A Odeon tinha isso, a Phillips tinha por aí, a CBS, a RCA Victor. E os diretores daquela época eram pessoas de outro tipo de gosto. E às vezes até músicos. O (Roberto) Menescal foi diretor da Phillips. Hoje a atribuição dessa escolha não é artística, é do marketing, que dita as regras e opina o que vai vender e o que não vai. As gravadoras por sua vez estão acabando no Brasil. Foram diminuindo, vendendo seus estúdios, que eram maravilhosos, e reduzindo seus castings. E ferramentas novas foram chegando. A gente tem de aprender a lidar com elas. Agora, eu só acho que o direito autoral precisa ser respeitado, ainda está havendo discussão em torno disso. E acho que a internet é um sistema muito mais democrático do que o das rádios. E as rádios, continuam iguais a sempre?

As emissoras de rádio são concessões públicas, a maioria é de políticos, e a regra do jogo em rádio que toca música é ditada por esse marketing de que falei antes. Os horários estão comprometidos. Existe o famoso jabá, a compra disso. E se quem está chegando não tem como botar seu disco para tocar em rádio nenhuma, migra para a internet. Está mais democrático. A rádio toca a mesma coisa no Brasil inteiro. Música achatada e pasteurizada, não tem leque aberto. Pelo menos na internet você ouve o que você quer, busca o que você quer.

Hoje muita gente produz e vende seus próprios CDs.

Pois é, naquela época eram contratados muitos artistas... E hoje também é tudo muito rápido e passageiro. Naquela época, os diretores artísticos investiam muito nos artistas e durante muito tempo. Hoje se um artista não dá certo num disco, ele morre, acaba. Naquela época, o Milton Nascimento, para citar um exemplo, começou a ser conhecido depois do quarto disco, mas a gravadora ia arriscando, dando condições para o cara sabendo que era um artista de verdade. Então tinha mais esse tempo de desenvolvimento, que não existe mais. Hoje é tudo muito veloz. Não deu certo, joga fora, bota outro.

As novas ferramentas oferecem também uma alternativa­à indústria do disco. Como pode um lançamento­ainda custar em torno de R$ 35, R$ 40? Quem compra? E quando alguém compra, que fatia vai para o artista?

É caro. O ganho vai depender do contrato, como uma gravadora ou uma independente vai distribuir. Pode ser 10% do preço de loja, pode ser 7% ou 15%. Mas um disco custar R$ 35 é caro. Devia ser mais razoável esse preço. Por causa disso a pirataria se instala e aí esculhamba todo o resto. Quem compra um CD por R$ 5 na mão do camelô não vai dar R$ 35 na loja. O preço devia ser mais razoável, mesmo com todo o processo de feitura do disco, que é caro também, mas

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não a ponto de ter de custar R$ 35, R$ 40. Tem de ter um meio-termo. Onde você mora hoje em dia? Fale um pouco da sua cidade.

Em moro em Laranjeiras, mas eu já morei em tudo que foi canto do Rio de Janeiro. O Rio é o meu quintal. Eu nasci em Ramos, onde hoje é o Complexo do Alemão, barra pesada. Passei parte da minha infância em Jacarepaguá, na zona oeste, onde ainda havia fazendas de gado, hortas. Morei em São Cristóvão, primeiro no pé do Morro de Mangueira, na Rua Ana Neri, depois no pé do Morro do Tuiuti – minha adolescência, final de infância, foi nos morros. Por isso eu entendo bem dos morros. Depois morei em Copacabana, no Jardim Botânico, morei no Leblon, na Barra da Tijuca, morei em Jacarepaguá de novo. Estou agora em Laranjeiras, e só saio dali para o (cemitério) São João Batista.

Toc, toc, toc...

Morei em todo canto e por isso sou um conhecedor da cidade. Fazendo boemia, passei por todos os lugares, nos subúrbios da zona oeste, da zona sul, da zona norte mais distante. Conheço bem, não conheço de me contarem. Talvez eu tenha sido um dos compositores que mais falou da cidade do Rio de Janeiro.

Das pessoas da sua geração, com quem você convive mais hoje, e com quem ainda compõe?

Edu Lobo, Dori Caymmi, Francis Hime... Foram os que sobraram.

Nunca fez nada com o Chico Buarque, o Paulinho da Viola? Não são da mesma turma?

Não. Somos da mesma turma, mas eles fazem tudo. O Chico não precisa muito de parceiro. O Paulinho faz sozinho também, e tem alguns parceiros, Elton Medeiros e tal. O Chico esporadicamente faz com alguém. Fez mais com o Francis, como Edu, por trabalhos encomendados também. E aí como nós fazemos música e letra, todos... O Edu não faz tanto letra, já fez, o Dori não faz, então essa minha convivência em parceria com eles é mais por isso.

E dessa safra nova, mais jovem?

Eu sou hoje parceiro dos filhos dos meus parceiros. As minhas companhias hoje são o Bernardo Lobo (o Bena, 37 anos), Diogo Nogueira (29), o Louis Marcel e o Philippe (28 e 32 anos, filhos do Baden) – o Philippe é meu afilhado, inclusive, de batismo. A filha do Danilo Caymmi, Alice (20), é minha parceira. Então sou parceiro dos meninos que peguei no colo. Sou parceiro dos meus filhos. Isso daí é impagável. Você pegar uma criança no colo, e 20, 30 anos depois você ser companheiro de trabalho dessa pessoa, ser parceiro dessa pessoa,­é difícil explicar a sensação. Quer coisa melhor?


Atitude

T

Por Xandra Stefanel. Foto de Rodrigo Queiroz

BOM EXEMPLO

reze é o número de sorte de José Carlos Alcântara Moraes. Foi com essa idade que ele começou a ter aulas no espaço mantido na comunidade do Caju pela Fundação Gol de Letra. Criada há mais de dez anos pelos ex-jogadores Raí e Leonardo, a instituição sem fins lucrativos mantém unidades educativas também em Niterói e São Paulo­. Despertou a atenção do garoto o aspecto mais óbvio: o gosto pelo esporte que é paixão nacional. “Me interessei muito porque pensava­ que era uma escolinha de futebol. Daí fui ver que não era só isso. Tinha várias oficinas que, hoje sei, são muito importantes para mim”, afirma Zé Carlos. Ele participou de oficinas de informática, tornou-se “fanzaço” da biblioteca local – porque “ela ensina a gente a ficar mais esperto nos poemas” – e começou a praticar esportes que nunca havia experimentado, como basquete, vôlei e handebol. Foi muito além das peladas. O bairro do Caju, zona norte do Rio de Janeiro, com baixo Índice­de Desenvolvimento Humano (IDH), tem metade de sua população formada por crianças e jovens. É para esse público que a Gol de Letra desenvolve o projeto Jogo Aberto, composto­ por quatro programas: Comunidades, que presta assistência

social­para os jovens e suas famílias; Gol de Letrinhas, com aulas­ de leitura, escrita e informática; Jogos do Mundo, que busca o desenvolvimento­social, corporal e intelectual por meio do estudo­ e da prática esportiva e recreativa; e o Mensageiro da Água, que estimula a conscientização das crianças em relação à situação ambiental da comunidade. Seu bom desempenho nas aulas e oficinas fez como que fosse selecionado para uma viagem cultural de dez dias pela França. “Eles escolheram os alunos mais esforçados daqui e de São Paulo. Conhecemos­Paris, o Louvre, a Torre Eiffel, Lyon... Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Antes eu era muito tímido. Voltei mais maduro e aberto. Estou na 8ª série e já sei que quero fazer um curso profissionalizante de desenho. O que eu aprendi aqui deve me ajudar”, comemora o adolescente. Com mais experiência, sua responsabilidade agora aumentou. Ao completar 15 anos, foi selecionado para uma vaga de monitor do programa Jogo Aberto. “Durante três dias por semana ajudo os professores, faço o que eles pedem, organizo os materiais, olho as crianças. Mas o mais importante, e o que eles mais cobram de mim, é que eu seja um bom exemplo para elas.” OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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MÍDIA

Estão maltratando a

Cultura Com mau humor no comando político de SP, falta de investimentos, desrespeito aos profissionais e à qualidade da programação, canal que podia ser referência de TV pública está ameaçado Por Vitor Nuzzi

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Padre Anchieta, o economista João Sayad, que deixou a Secretaria da Cultura, causou desconforto. Esperava-se a reeleição de Paulo Markun, no comando da fundação desde 2007. Markun, indicado por José Serra, não contava com a simpatia de Geraldo Alckmin, desafeto do ex-governador no ninho tucano. Em texto publicado no seu blog em 22 de setembro, o jornalista Luis Nassif assinala que Heródoto Barbeiro foi afastado do comando do programa Roda Viva por ter feito uma pergunta sobre pedágios que teria desagradado José Serra. Ao receber um prêmio do site Comunique-se, o apresentador

até dedicou-o ao “pedágio”. Nassif conta ter ouvido de Sayad que o afastamento de Heródoto já fazia parte dos planos. Em relação à saída de outro jornalista importante do staff da emissora, Gabriel Priolli – também após uma reportagem sobre pedágios –, Sayad disse apenas que o erro teria sido a nomeação de Priolli. Já quanto à saída do próprio Nassif, houve negociação direta entre Markun e Serra. Na mídia tradicional, nenhuma reportagem ou editorial identificou alguma ameaça à liberdade de imprensa. As intrigas não se limitam aos bastidores do jornalismo. A TV Cultura passa por um período de remanejamento que afeta

JAIR BERTOLUCCI/CEDOC FPA/DIVULGAÇÃO

N

a segunda metade dos anos 1960, Abreu Sodré foi à Europa e ao Canadá conhecer experiências de TVs educativas antes de tomar posse como governador de São Paulo. Em seu livro de memórias, Sodré conta que o objetivo era criar uma emissora “custeada pelo estado”, mas independente de seu governo e do governo de seus sucessores. Em setembro de 1967, foi aprovada a lei (9.849) que autorizava a criação da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, que entrou no ar em 15 de junho de 1969, virou referência de qualidade, mas não se livrou das oscilações causadas pelas mudanças de humor político. A mais recente trouxe uma onda de inquietação. A começar de uma espécie de “fogo amigo” tucano. Em entrevista a um blog (Poder Online) em agosto, o secretário estadual da Cultura, Andrea Matarazzo, chamou a emissora de ficção. “É cool gostar da TV Cultura, mas ninguém assiste”, afirmou, a pretexto de questionar a utilidade do orçamento de R$ 80 milhões destinado à fundação pelo governo. O escritor Jorge da Cunha Lima, ex-presidente da fundação, reagiu em seu blog: “A TV Cultura não é o caos que se deseja vender. Ainda é a melhor televisão pública do Brasil (...) E ainda será melhor e mais respeitada quando os políticos respeitarem a lei que criou a Fundação Padre Anchieta, que afirma que ela tem um conselho política, intelectual e administrativamente autônomo”. A própria eleição do atual presidente da

RÁ-TIM-BUM De 1989 a 1992 e de 1992 a 1994 (já como Castelo Rá-Tim-Bum), teve no elenco Sérgio Mamberti (Doutor Victor): “Nunca foi feito mais nenhum investimento”


JAIR BERTOLUCCI/DIVULGAÇÃO

COCORICÓ Havia rumores de que o programa não seria mais gravado. Porém a direção diz considerá-lo o mais importante projeto infantil da emissora

Contradição

Para o professor da Universidade de São Paulo (USP), Laurindo Leal Filho, o Lalo, ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a Cultura convive desde o início com crises institucionais, com momentos de “instrumentalização” pelo grupo que domina a política estadual, mas nunca deixou de ser um espaço para criatividade, ousadia e experimentação: “Ela se solidificou no imaginário da população como um exemplo de televisão de qualidade, graças aos esforços dos funcionários”. Para Lalo, quando o governo intervém na emissora, inibe a produção. Mas a regra ainda são os programas de qualidade, e a audiência vem com a continuidade. “É uma falácia dizer que não produz audiência.” O jornalista e professor Gabriel Priolli também considera que a emissora não perdeu a essência. “De certa forma, sempre foi

a mesma Cultura, na busca pela qualidade e pelo respeito pela inteligência do espectador”, afirma. “Naturalmente, as organizações públicas estão sujeitas a circunstâncias políticas e tensões diferentes”, analisa. Uma política que assegurasse um orçamento mais compatível com o potencial da TV Cultura já poderia ter resolvido ou melhorado, segundo ele, questões como audiência, tratamento ou formato dos programas.

CLEONES RIBEIRO/DIVULGAÇÃO

toda a programação. Pairaram dúvidas até sobre a manutenção de programas como o Cocoricó – que a direção garante considerar o mais importante projeto infantil e que continuará em 2011.

PÉ NO CHÃO Cadão Volpato, do Metrópolis: “Emissoras privadas têm mundos e fundos, a Cultura depende de recurso público”

“(A questão financeira) É talvez o maior problema, mas não é exclusivo da Cultura”, diz Priolli. “Já existe um ambiente ultracompetitivo e a internet vem crescendo de forma avassaladora, dividindo o tempo do espectador”, observa o jornalista, com três passagens pela Cultura que somam 12 anos. A primeira, aos 22 anos, foi como “foca” (novato), em 1975, seis meses antes de o então diretor de Jornalismo, Vladimir Herzog, ser assassinado nas dependências do Doi-Codi, um dos órgãos de repressão da ditadura. Nesta terceira passagem, como assessor da vice-presidência de gestão, Priolli tem contrato até 31 de dezembro. Prefere não comentar notícias que circularam a respeito de sua saída. “A Cultura é uma das emissoras mais importantes do país, por oferecer uma alternativa ao espectador em relação às comerciais. Existe a necessidade de uma emissora de formação cultural.” Lalo entrou na Cultura meses antes de Priolli, em 1974, atraído pelo noticiário do canal. “Era um telejornal de contextualização, aprofundamento e explicação da notícia, levando ao debate e à reflexão, o que levou a perseguições”, lembra. Em 1975, o OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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REGINA DE GRAMMONT

Gigi Anhelli entrou em 1973, como estagiária, e lá ficou por 18 anos. Ela lembra das dificuldades – e do prazer – de preparar e apresentar o Bambalalão, programa infantil que fez história. “Sempre trabalhamos com pouca verba. Não pintamos de dourado. A gente mostrava que fazia algo mambembe. Um programa desses só seria possível com pessoas dedicadas”, conta a apresentadora, que até hoje se pergunta por que acabou o programa que chegou a ter 17 pontos de audiência. A equipe do Bambalalão era assediada por outras emissoras, diz Gigi, que agora apresenta o Brincando de Bambalalão na internet. Mas ela avalia que seria difícil subordinar um programa com tal padrão de liberdade de conteúdo, informação e educação à lógica das emissoras comerciais. Representante de outro marco da Cultura, o Rá-Tim-Bum, o ator Sérgio Mamberti, atual presidente da Funarte, diz que o sucesso do programa – e da emissora – chegou a incomodar as outras. “A partir dali, nunca foi feito mais nenhum investimento”, lamenta Mamberti, o doutor Victor do Rá-Tim-Bum, que mesmo anos depois chegou a dar autógrafos até “para os indiozinhos do Xingu”, que reconheciam seu personagem. O início de Mamberti na Cultura foi no primeiro ano da emissora, em 1969, com os teleteatros – adaptações de peças para a televisão, com direção de nomes como Antônio Abujamra, Ademar Guerra, Antunes Filho e Sérgio Britto. “Foi um oásis para quem fazia teatro”, lembra o ator, que fez também Curumim, pioneiro da programação infantil, dirigido por Abujamra – hoje estrela do programa de entrevistas Provocações. Para Mamberti, a TV Cultura criou um vínculo com a sociedade. “Sempre considerou a questão da formação e da cidadania de forma muito criativa. Existia sempre a dificuldade, mas havia um reconhecimento de sua importância.” Por isso, ele considera no mínimo “equívoco” um secretário de estado criticar a falta de audiência da TV pública em vez de zelar pela qualidade. Mamberti vê na Cultura diversos subprodutos com potencial para dar retorno ao canal, como a produção de cadernos, livros e peças que poderiam ser montadas, mas entende que as “galinhas dos ovos de ouro são ignoradas”.

AUGUSTO COELHO

Mambembe

BAMBALALÃO Sucesso da programação infanti, foi ao ar de 1977 a 1990. Era apresentado por Gigi Anhelli, Silvana Teixeira e Chiquinho Brandão. Gigi ficou na Cultura por 18 anos: “Sempre trabalhamos com pouca verba. A gente mostrava que fazia algo mambembe. Um programa desses só seria possível com pessoas dedicadas”

CEDOC FPA/ DIVULGAÇÃO

então secretário estadual da Cultura, o empresário José Mindlin, levou Herzog para a direção de Jornalismo.

FORÇAS OCULTAS Priolli deverá deixar a emissora já no final do ano: “Naturalmente, as organizações públicas estão sujeitas a circunstâncias políticas e tensões diferentes”


SOPHIA STEPHANIE/ARQUIVO PESSOAL/ E ALFREDO NAGIB FILHO/CEDOC FPA/ DICULGAÇÃO

Uma das fontes de receita é a prestação de serviços. Porém, o diretor do Sindicato dos Radialistas de São Paulo, Sérgio Ipoldo, diz que a emissora está encerrando contratos específicos, como os das TVs Justiça e Assembleia (em São Paulo), que absorvem aproximadamente 500 dos 1.900 funcionários da rede. “O que a gente percebe é que o governo não quer mais por dinheiro lá”, diz. “Mudanças geram ansiedade”, admitiu Sayad em artigo. “Fala-se em desmanche da TV Cultura, demissões em massa, destruição da TV tão querida. Não é verdade”, disse o presidente, pedindo paciência aos “blogueiros que difundem especulações e maldades”. Uma das apostas é trazer de volta nomes que tiveram sucesso em outros tempos. Caso de Cadão Volpato, que retornou após 15 anos ao comando do programa Metrópolis. “A TV Cultura tem um selo de prestígio que se manteve, apesar das turbulências pelas quais passou. A luta da nova gestão é retomar ainda mais essa relevância. As emissoras privadas têm mundos e fundos, a Cultura depende de recurso público e deve fazer valer cada centavo”, compara. Segundo ele, a ligação com o estado nunca causou restrição. “Agora, tenho até mais liberdade, um campo vasto de trabalho. A TV já era veloz, agora está com velocidade supersônica. O processo técni-

co está mais eficiente, com menos etapas, menos cansativo.” O veterano Luiz Noriega vê a Cultura como um laboratório. Ele lembra que nos anos 1970, quando apresentava o programa É Hora de Esporte, o canal abriu um espaço até então inédito para o esporte amador, com transmissões de tênis, vôlei e basquete, atletismo, inclusive de categorias infanto-juvenis. “Fomos precursores da Copa São Paulo de futebol júnior, criada pelo Fábio Lazzari”, lembra. “Tivemos uma participação grande na divulgação da primeira fase da carreira do (Ayrton) Senna. O vôlei cresceu, as meninas do basquete...”, acrescenta Noriega, que migrou da TV Tupi para a Cultura na Copa de 1970 e saiu em 1986. “A TV Cultura tinha um padrão de trabalho e de organização que eu nunca vi”, afirma. Noriega destaca a linguagem criada para as narrações esportivas – menos agressiva, sem gritaria, mais suave. A cobertura chegou a incluir jogos no interior e noticiário de clubes que mantinham departamentos de esportes amadores. Por isso, o locutor lamenta que o esporte tenha hoje tão pouco espaço, embora considere o Cartão Verde e o Grandes Momentos do Esporte bons programas. Hoje diretor da ESPN Brasil, José Trajano lembra de ter trabalhado em “uma época forte” da Cultura. “Foi uma administração (Roberto Muylaert) que gostava de esporte, do jornalismo, as coisas aconteciam. Cada editoria tinha um programa ou dois que se destacavam. Lamento ver de longe muita coisa que vem acontecendo, apenas notícias que não são boas.” As mudanças de administração, avalia Trajano, afetaram a Cultura, mas outros fatores contribuíram para o enfraquecimento. “O surgimento da TV a cabo prejudicou mais a Cultura do que as outras”, diz o jornalista, lembrando que a emissora

FÁBRICA DO SOM No ar de 1982 a 1984, no recém-inaugurado teatro do Sesc Pompeia, levou ao público bandas iniciantes. Tadeu Jungle foi seu apresentador: “A Cultura precisa se radicalizar, buscar raízes e antenas no mundo do século 21”

CLEONES RIBEIRO/DIVULGAÇÃO

Dependência

RODA VIVA O programa de entrevistas surgiu em 1986. Passou por várias mudanças de apresentador e de fórmula

exibia uma programação diferenciada hoje existente em canais especializados. Para o cineasta e produtor Tadeu Jungle, a Cultura está engessada. “Precisamos que ela veja o mundo com olhos livres, contemporâneos à internet e às novas formas de comunicação. Ela precisa se radicalizar, buscar raízes e antenas, no mundo do século 21”, afirma. “A molecada precisa participar, a molecada já nasce fazendo audiovisual! Os velhos mestres têm de interagir com o ímpeto desconexo da juventude. Tem de haver um processo de troca. Os garotos não veem mais TV. Tocam e trocam tudo na internet. Quem está pensando em tevezinha na sala, dançou.” Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a Cultura reflete o problema da relação da TV com o estado. Ele mesmo testemunhou, como secretário estadual (de Ciência e Tecnologia, no governo Orestes Quércia, 19871990), “hostilidade” de secretários pelo fato de a Cultura “escapar ao controle”, já que na visão de alguns a emissora deveria servir mais aos propósitos do governo. “É preciso ter muito espírito público para saber que a TV não deve servir a este ou àquele governo”, diz Belluzzo, integrante do conselho curador da fundação. Para Belluzzo, a audiência não é o quesito mais importante, como pensam alguns integrantes do conselho. “Uma emissora pública deve ter uma informação mais analítica e muito mais debate”, defende. Falta, talvez, uma dose de ousadia, como ocorreu com o programa que Tadeu pilotava no início dos anos 1980 e abria espaço para talentos desconhecidos da música, como Titãs, Ultraje a Rigor, Paralamas, Barão Vermelho, Ira!. “Foi um programa feito com emoção, coração, garra, coragem. Buscávamos a potência contida na música e na expressão de um público de auditório livre. Essa liberdade é uma das coisas que o público mais sente falta. Não advogo isso como único caminho, mas sei que este funciona”, diz o apresentador do Fábrica do Som. Leia entrevista com João Sayad no www.redebrasilatual.com.br OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CULTURA RAIZ “Na periferia, na origem do hip hop, é onde temos de estar com o amálgama preparado. Nós somos música para transformar a sociedade, a comunidade”, diz GOG, rapper de Brasília

C

om as mudanças na TV Cultura, o programa semanal Manos e Minas, voltado para a cultura hip hop, foi cancelado no início de agosto, junto com outros da grade da programação. A medida provocou uma reação em massa de pessoas envolvidas com o movimento e apoiadores por meio de blogs e redes sociais, audiências e atos político-culturais. A direção da emissora acabou recuando, e o programa reestreia em outubro. As mudanças no mercado e no mundo da música, e até mesmo a relação com a mídia, são temas recorrentes que sempre mexem no jeito de escrever, divulgar, produzir e pensar o rap nacional. Desde o tempo da São Bento, o largo que virou palco do hip hop no centro da capital paulista, até a incursão em boates, casas de shows e

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programas de TV, muita coisa aconteceu. Mas datar historicamente o início do rap no Brasil é tarefa imprecisa. Cada região tem seus protagonistas. Antes de se definir como hip hop brasileiro, as tendências do rap norte-americano influenciavam alguns artistas. Por exemplo, o apresentador de TV Carlos Miele gravou em 1979 o Melô do Tagarela, sampleando a música Rapper’s Delight, do Sugarhill Gang. E a música de Jair Rodrigues, Deixa isso prá lá, de 1964, já não tem uma pegada assim, meio rap? Para o brasiliense GOG (de Genival Oliveira Gonçalves), mais importante que identificar uma data do nascimento do hip hop é ter a noção histórica de que essa cultura é uma evolução do pensamento social e da urbanidade da música. “Augusto dos Anjos, muito antes da gente, já escrevia hip hop. Solano e Raquel Trindade, Bob Mar-

ley... Como fala o Edi Rock, ‘a música negra é uma grande árvore com várias raízes’. Então, se nasce da mesma raiz e tá no mesmo pé, é parte do mesmo corpo, da mesma árvore.” No início, as referências eram todas internacionais e falava-se de festas, mulheres, diversão. Algumas músicas já abordavam temas sociais, como o Rap da Abolição, do grupo Os Metralhas, de 1988. Mas foi somente mais tarde que o rap foi fortemente caracterizado como música de protesto. Pepeu e MC Mike, que gravaram o rap Bastião, em 1986, Dj Ninja e MC Jack, General D., Black Juniors e outros grupos passaram a agregar mais pessoas nos famosos bailes organizados por equipes de som. Foi quando surgiu o rap Bastião, de NdeeNaldinho, hoje com 41 anos. Ele se identificou com a cultura e, ao gravar o Melô da Lagartixa, inseriu-se no processo embrio-


nário do rap nacional. Sua primeira música foi lançada na coletânea Som das Ruas, de 1988, mesmo ano em que saiu o álbum Hip Hop – Cultura de Rua, com músicas de Thaíde e Dj Hum, Código 13 e outros. “A gente fazia rap naquele tempo pra dançar. Foi depois que o rap pegou sua caminhada de revolucionar, fazer as cobranças, defender o povo...”, diz Naldinho, que na época ainda era NdeeRap. “Não tinha nenhuma outra música no país que tivesse essa postura, mas isso não quer dizer que a gente não possa falar de amor, de alegria.” Edi Rock, do Racionais MC’s, lembra: “Só depois foi que o rap ficou mais sério, sócio-político. Foi uma fase de mudança muito importante. Autoafirmação, negritude, liberdade de expressão...”. Ele tinha apenas 19 anos em 1989, quando, junto com Mano Brown, KL Jay e Ice Blue, formava um dos grupos de maior referência do Brasil.

Com pelo menos três décadas de presença no cenário musical, o rap refletiu a evolução do pensamento social brasileiro e hoje rediscute seus caminhos Por Nina Fideles

As muitas rimas do

De lá pra cá

Racionais MC’s, Thaíde e Dj Hum, Ndee Naldinho, Os Metralhas, GOG e tantos outros grupos influenciaram uma nova geração na década de 1990, quando o rap nacional se fortaleceu. E ainda hoje novos nomes ganham destaque e dão sequência a essa história. Considerando o rap uma cultura relativamente jovem, o velho terá sido superado? Para GOG, 45 anos, a evolução de uma geração não está na mudança do tema, e sim na superação deles. E eles não foram superados. “Acredito nessa leitura para que

RODRIGO ZANOTTO

PAULO PEPE

HIP HOP

o novo seja uma evolução, uma caminhada, até ser uma ruptura. Quero me emocionar mais com uma nova geração. Eu me divirto muito, mas quero chorar também.” Para Thaíde, escola é tudo o que ensina. “Velha ou nova cada escola marca um período, e cada um tem sua importância”, acredita. Mas admite: “Antigamente havia a necessidade de se informar, passar as ideias para frente por meio das nossas músicas, e isso ficou em segundo plano, infelizmente”. Max B.O., apresentador do Manos e Minas, não vê somente uma velha e uma nova geração. “A gente deveria aproveitar melhor as diferenças de idade e ideias.” Max ganhou destaque com suas rimas no freestyle e começou a atuar profissionalmente em 1999. Não acha que suas letras são um protesto veemente como outras. “Mas também não faço ninguém se passar por trouxa. Acredito que tem muita coisa vazia circulando por aí.” O desenvolvimento da tecnologia e sua apropriação é um dos fatores que influenciou na atualidade do rap. O acesso a ferramentas de produção e aos meios de divulgação como sites, blogs e redes sociais ampliaram o campo de atuação e ajudaram no gargalo da distribuição. Hoje é muito comum o lançamento das mixtapes, vendidas de mão em mão em shows e eventos por preços mais acessíveis. Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, 25 anos, vendeu mais de 10 mil cópias de sua mixtape de estreia no ano passado.

QUALIDADE Ex-integrante do grupo Inquérito, Nicole acredita que rap independe de gênero. “Rap feito por mulheres não perde em nada na qualidade musical nem nas ideias” OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Particularidades no todo

Rúbia Fraga, 42 anos, se desafiou a rascunhar suas primeiras letras em 1992 e formou o grupo RPW. Para ela, fazer rap hoje é mais fácil e isso fez com que os grupos se preocupassem menos com a escrita, com a postura. “Rap é manifesto. Pode abordar,

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RICARDO CARPIN

O mercado fonográfico também mudou. Em todos os estilos musicais, caem as vendas e multiplicam-se os downloads. Antigamente, os grupos apostavam alto. Os Racionais MC’s, com o Sobrevivendo no Inferno, de 1998, ultrapassaram um milhão de cópias vendidas, marca ainda insuperável no rap nacional. De Menos Crime, com São Mateus para a Vida, de 1999, vendeu 150 mil cópias. NdeeNaldinho, com O Apocalipse, de 1999, mais de 100 mil. “Além de mudar as técnicas de produção, 50% dos militantes mudaram seus ideais e mudaram também os ativistas. Antes, o menino tinha 17 anos, hoje tem 35 e uma família pra sustentar. A dificuldade pra se manter financeiramente faz com que [o rap] seja pra poucos...”, analisa Cléber, do grupo Ao Cubo. O conteúdo das músicas não transformou apenas as letras das novas gerações. Para Edi Rock, hoje o rap está “mais livre” e ele gosta assim. Mas admite que muitos rappers, ao enxergar os Racionais como líderes e não músicos, pegaram somente a parte política e exageraram nisso. “Hoje temos caras novos, com formas e visões diferentes e isso é bom. É tempo de mudança! E acho que para melhor, senão teria sido tudo em vão.” O rapper Crônica Mendes, do grupo A Família, faz uma avaliação semelhante. “É importante manter nosso público-alvo, e conquistar outro público também, pois dentro e fora das periferias tem muita gente que compactua com a mesma ideia”, defende. Para MV Bill, que organiza com a Central Única das Favelas (Cufa) o Festival Rap Popular Brasileiro (RPB), a mutação é constante. “Tá sempre aparecendo coisa nova. Boas e ruins. O festival ajuda a revelar novos nomes e novas ideias, e a trazer um frescor à cena.” Seguindo a analogia da árvore como a música negra, eternizada na música de Edi Rock, GOG observa que hoje a árvore cresceu e continuará crescendo. “Alguns galhos, em alguns períodos, vão crescer mais e vão pensar que estão fazendo sombra para as outras pessoas. Mas todos os galhos são importantes.”

FÔLEGO NOVO Edi Rock, dos Racionais MC’s, afirma que hoje o rap tem diversas formas: “Isso é bom. É tempo de mudança! Acho que para melhor, senão teria sido tudo em vão”

sim, várias coisas, mas não pode perder o tom da reivindicação e ultimamente muitos não têm essa preocupação.” Em sua opinião, alguns mais novos não conhecem e não se preocupam com o que foi feito antes deles e alguns mais velhos não aceitam certas coisas novas. Nicole, 26 anos, é ex-integrante do grupo Inquérito. Ela segue com a produção de suas músicas e participa de outros grupos. Sobre a condição feminina, acredita que rap é rap, seja ele feito por mulher ou por homem. “Acho que rap feito por mulheres não perde em nada na qualidade musical nem nas ideias, e é importante que se mantenha assim.” Em Fortaleza, Preto Zezé, 34 anos, do grupo Comunidade da Rima, aponta que não basta colocar qualquer coisa com o

rap e dizer que é nordestino. “É preciso incorporar musicalidade, adaptar à técnica da rima, se não fica muito estereotipado, só para demarcar. Muito sotaque, estética, mas pouca essência e prática do que o conteúdo quer passar”, explica. O também cearense Francisco Igor Almeida dos Santos, o Rapadura, 26 anos, diz que seria um avanço se cada estado tivesse o rap com sua raiz e sotaque: “Consigo alcançar outros meios artísticos e outros públicos por fazer ‘rap com ritmos nordestinos’. Só assim aprenderíamos a nos respeitar e nos entender melhor”. O mercado do chamado rap gospel também tem público. Diversos grupos transitam no cenário livremente, sem rótulos, como afirma Cléber: “O fato de um dia


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alguém­ter colocado o título gospel em nosso grupo fez com que algumas portas se fechassem, mas nunca gostamos de usar esse rótulo. Quando levamos uma música numa rádio secular, dizem que nosso som é gospel; quando levamos numa rádio gospel dizem que é muito rap. Vai entender”, ironiza.

Reflexão e ação

PROTESTO Rúbia: “Rap é manifesto. Pode abordar, sim, várias coisas, mas não pode perder o tom da reivindicação”

lítica, mesmo que alguns tenham atingido para si um nível de organização pessoal. “Eu não consigo bater no peito e dizer que a cultura está muito bem, porque mais uma geração envelhece e não conseguiu ter uma estrutura de rádios, lojas, casas de shows, revistas. Isso é sinal que a gente falhou em algum momento, e não acho que a nova ge-

RODRIGO QUEIROZ

Nos últimos anos, o público das periferias brasileiras, em um primeiro momento fiel ao rap nacional, tem curtido muito o funk. Essa perda de espaço tem gerado reflexões sobre a atuação do estilo. “Quando as portas começavam a se abrir, o rap falou ‘lá eu não vou, isso a gente não faz, lá a gente não pode’. Se fechou em muitos lugares, mas ainda assim conquistou muita gente e cumpriu um papel”, avalia Naldinho. Marco Antônio, o Markão II, 38 anos, é membro do grupo DMN, e segundo ele o hip hop não construiu uma estrutura po-

RESPEITO Para Rapadura, do Ceará, seria um avanço se cada estado tivesse o rap com sua raiz e sotaque: “Só assim aprenderíamos a nos respeitar e nos entender melhor”

ração está preocupada em fazer isso. O rap vai ser mais um gênero musical como outro qualquer, sem diferença nenhuma”, declara. Durante todos estes anos, os Racionais MC’s e outros negaram inúmeros convites da grande mídia. Para Edi Rock, ver o grupo na TV vai depender muito do formato: “Eu não consigo ver o grupo na televisão, a não ser em programas que tenham a ver com a nossa cara”, afirma. Mas muitos rappers conheceram de perto essa mídia como Rappin’ Hood, Thaíde, Xis, KL Jay, RZO. Hoje, por exemplo, o carioca MV Bill tem papel em Malhação, e conta que sempre respeitou os grupos que foram avessos à mídia, mas optou por outro caminho. “Apesar de ter estagnado um pouco, o hip hop me fez gostar de comunicação, e o meu parceiro Celso Athayde me ensinou a utilizar a mídia a nosso favor e, quando possível, intervir nesta realidade”. Thaíde também “não teve medo de fazer”, como ele diz, e após deixar a apresentação do Manos e Minas se integrou à equipe do programa A Liga, da Bandeirantes. “A gente ensinou muita coisa, mas não ensinamos ninguém a lidar com a TV, com os rádios, a se profissionalizar, a ser artista. E isso também é importante”, opina. Por ter um discurso político e reivindicatório, o rap quase que naturalmente se afastou da grande mídia e se aproximou da vida política, via partidos e movimentos sociais. Vários envolvidos com a cultura já se candidataram ou assessoram e apoiam publicamente candidatos. Erlei Melo, 36 anos, rapper do grupo Face da Morte, conhecido como Aliado G, disputou vaga de deputado estadual pelo PC do B, em São Paulo. “Somos muitos e muito fortes. Acredito que entre nós podem existir médicos, engenheiros, advogados e lideranças políticas. O que temos de diferente da elite são as oportunidades”, diz. Aliado G criou o Face da Morte em 1995, em Hortolândia, no interior paulista, e como selo lançou discos do GOG, Realidade Cruel e Clã Nordestino. “Independentemente da vontade de A ou B, a arte transforma ou conserva a sociedade. A nossa transforma”, sintetiza. GOG concorda. “Lá em nossa base, na periferia, na origem do hip hop, é onde temos de estar com o amálgama preparado. Nós somos música para transformar a sociedade, a comunidade. Trabalhando contra nós mesmos, sempre sairemos derrotados.” OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

A mais alemã do Brasil Em Pomerode, a colonização germânica influencia o cotidiano da cidade até hoje Por Selma Tronco

Rota do Enxaimel: casas típicas alemãs do século 19

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FOTOS PREFEITURA DE POMERODE/ DIVULGAÇÃO

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illkommen. A placa de “bem-vindo” escrita em alemão sinaliza a chegada a Pomerode, na região centro-norte de Santa Catarina, a 33 quilômetros de Blumenau e a 165 da capital, Florianópolis. A partir da chegada, é melhor se acostumar com o idioma dos primeiros habitantes, já que quase todos os 26 mil moradores falam ou têm algum conhecimento da língua. O dialeto plattdüsch é ouvido nos pontos de ônibus, padarias, em conversas entre pedreiros ou dentro da prefeitura. As crianças têm contato com o idioma desde pequenas, pois antes de ir para a escola aprendem em casa a língua dos antepassados. Tradição que só é quebrada quando um dos pais

não tem descendência alemã. Lindorf Lemke, 74 anos, conta que apenas uma neta não domina o idioma: “A mãe dela é do Paraná e não fala alemão, então não conversam em casa, por isso ela não fala”. Nesses casos, o conhecimento da língua ocorre na própria escola, pois todas têm aulas de alemão na grade. O meio de

transporte utilizado pela garotada para se deslocar até o colégio é a bicicleta, principalmente as crianças que moram em locais mais afastados do centro. A quatro quilômetros da região central, o bairro de Testo Alto conserva uma atmosfera calma em meio às montanhas. As comidas de origem germânica tam-


bém fazem parte do cotidiano dos pomerodenses. A iguaria chamada “cuca” é presença certa no café da manhã dos hotéis da cidade. Feita com manteiga, ovos, fermento e farinha de trigo, a guloseima pode ser doce ou salgada. Marreco recheado também não pode faltar no cardápio dos restaurantes e nos almoços de família aos domingos. O fogão a lenha ainda é muito utilizado nas casas da região: “O gás é caro e lenha a gente tem, por isso usamos mais esse fogão do que o moderno”, explica a moradora Guerda Hornburg, de 66 anos. É impossível caminhar pela cidade sem perceber os detalhes que a caracterizam como reduto germânico. Uma singularidade de Pomerode são as casas construídas­com a técnica denominada de enxaimel, em que madeiras entrelaçadas formam a estrutura da residência e os vãos são preen­chidos com tijolos. As edificações estão presentes desde o início da colonização da área, em 1863. É em Testo Alto que está a Rota do Enxaimel. Os 16 quilômetros de estrada têm uma grande variedade dessas casas. A mais antiga, tombada pelo Patrimônio Histórico, é

anos, caçula de 12 irmãos, vive desde que nasceu na residência construída pelo pai em 1913. Na época em que casou preferiu ficar com o imóvel a aceitar uma quantia de dinheiro oferecida pelo pai: “Sempre gostei muito dela, preferi continuar morando aqui”, diz. Da união com dona Rovena, 72 anos, nasceram cinco filhos. E novamente essa herança ficará com o mais novo. Hoje, Rogério vive com os pais, a esposa e dois filhos no imóvel que futuramente será dele.

Tradição e tiros

As missas, em português e alemão, preservam a religião evangélica luterana. Uma das mais antigas de Pomerode é a da Igreja Testo Alto, construída em 1886. Como o catolicismo era a religião oficial na época do Império, apenas igrejas católicas podiam ter sinos e torres. Por isso, o instrumento só foi instalado no início do século 20. “Os sinos são importados da Alemanha e antigamente eram tocados uma hora antes de começar o culto para atrair as pessoas”,­ conta Adalbert Riemer, presidente da comunidade. Até o Cemitério Testo Alto II preserva a

seis ocasiões comemorativas. Uma delas é a Festa do Colono que acontece sempre no segundo final de semana de julho. No sábado tem baile e no domingo, desfile dos clubes da cidade. Nos dois dias de festa, faz-se a colheita de frutas e verduras que ficam penduradas no salão e, ao final, são levadas pelos participantes. Para quem não vive na região e tem curiosidade de testar a pontaria, uma boa oportunidade é no mês de janeiro, na Festa Pomerana. A comemoração surgiu em 1984 para celebrar a emancipação político-administrativa de Pomerode, que ocorreu em 21 de janeiro de 1959. Até então, a região era considerada distrito de Blumenau. Durante dez dias de festa, há desfiles típicos pelas ruas centrais, quando rainhas e princesas que representam os clubes locais são saudadas pelo público. Não é raro ser abordado por jovens, que oferecem copos de chope grátis durante os desfiles. Por fim, todos se dirigem ao pavilhão de eventos, onde há shows, tiro ao alvo e comidas típicas. Nessa ocasião, a cidade recebe visitantes que chegam de ônibus e lotam os hotéis. Todas essas tradições revelam o moti-

Festa Pomerana: tradição mantida

a Wachholz, de 1867, recentemente restaurada e onde, desde o início do ano, funciona uma pousada. A responsável pela casa é Ilse Lore, 62 anos, cujo marido, Ruthard Wachholz, já falecido, era bisneto do primeiro imigrante que chegou a Pomerode. A maioria dessas construções antigas passa de geração para geração. Muitas vezes são herdadas pelo filho mais novo que, quando casa, leva a esposa para morar no imóvel com os sogros. E assim por diante. É o caso da família Siewert. Wendelin, 75

tradição luterana de manter os túmulos posicionados de costas para a rua. “É por causa do costume da religião de deixar os pés dos mortos voltados para o sol nascente, como se a pessoa estivesse olhando para o leste. Na hora de velar um corpo essa posição também deve ser mantida”, explica Adir Siewert, secretário administrativo do local. Pomerode tem ao todo 16 clubes de caça e tiro, que promovem eventos durante o ano inteiro. No XV de Novembro, fundado em 1966 por Augusto Lindemann, 89 anos, há

vo de Pomerode ser considerada a cidade mais alemã do Brasil. Até o nome é derivado de palavras estrangeiras: o radical Pommern e o verbo rodern, que significa tirar os tocos, tornar a terra apta para o cultivo. A denominação também se refere à origem dos imigrantes vindos da Pomerânia, região do norte da Alemanha. Esses pioneiros que cruzaram o Atlântico trouxeram como legado uma cultura que já perpassa séculos e não mostra sinais de esmorecimento. OUTUBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CurtaEssaDica

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

Paisagens distintas marcam as cenas de Mama África

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

África muito além dos estereótipos A África é muito mais que um continente devastado pela fome, pela pobreza e pela aids. É o que mostra o documentário Mama África – O Cotidiano de um Continente pelos Olhos de Seus Filhos, lançado no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, realizado entre o final de setembro e o começo de outubro. Produzido pela Cine Internacional, braço africano da produtora brasileira Cinevideo, o filme mostra os filhos de dez países, moradores de pequenas e grandes cidades em Moçambique, Tanzânia, África do Sul, Senegal, Malawi, Marrocos, Suazilândia, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Gana. Acima de tudo, expõe muita beleza, contrastante com a imagem que geralmente se tem do continente. Um dos entrevistados diz: “É verdade que a maioria das pessoas que não são da África tem

Loucos de amor Zac (Marc-André Grondin) nasceu num dia de Natal considerado clinicamente morto. Sua mãe, católica fervorosa, jura que isso lhe deu o dom de curar as pessoas só de pensar nelas. C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor, de Jean-Marc Vallée, conta a história de dois amores: o de um pai por seus filhos e o de um filho pelo pai. O garoto é completamente diferente dos outros irmãos, mas para agradar Gervais (Michel Côté), renega ao máximo sua homossexualidade. Trata sobre a importância de aceitar as diferenças antes que seja tarde. Bom enredo, com reforço de uma trilha sonora cheia de David Bowie. Em DVD. 48

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Pierre-Luc Brillant e Marc-André Grondin

um estereótipo de que é um continente das trevas”. E não é. O diretor Alê Braga viajou por meses para mostrá-lo sob outra ótica, mais humana. A frase da escritora nigeriana Chimamanda Adichie daria uma boa sinopse do filme: “O problema com estereótipos não é que eles sejam mentira e, sim, que eles são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história”. O personagem principal do documentário é o saxofonista moçambicano Moreira Chonguiça. Mama África, que também foi selecionado no festival argentino DocMeeting e no Festival de Cinema Brasileiro no Canadá, deve ser exibido parcial ou integralmente no site da produtora: www.cinevideoproducoes.com.br. Moreira Chonguiça


Miró em Brasília

Mulher, 1969

Em busca da felicidade A russa Sophia Kovalevsky foi jornalista e romancista, mas destacou-se mesmo pela genialidade e pioneirismo na matemática. Na segunda metade do século 19, foi uma das primeiras mulheres admitidas como professora universitária em Estocolmo (Suécia). Os dias que antecedem sua morte são tema do conto que dá nome ao livro Felicidade Demais, da canadense Alice Munro, lançado pela Companhia das Letras. São histórias de mulheres diante de acontecimentos (muitas vezes trágicos) que mudaram o rumo de suas vidas. Tudo narrado com extrema delicadeza. R$ 50.

Relato de um pai Marcelo Nadur resolveu declarar seu amor pelo filho Rafael escrevendo um livro: Síndrome de Down – Relato de um Pai Apaixonado. A obra, lançada pela Editora Gaia, foge das explicações científicas e técnicas sobre a SD. O autor é professor de educação física, e não médico. Trata-se de uma lição de dedicação e amor incondicional na qual Marcelo transmite sua experiência como pai de uma criança especial e mostra como é possível superar preconceitos e ser feliz. Mesmo porque todos somos diferentes. R$ 27.

A exposição Los 24 Escalones y Joan Miró, no Museu Nacional do Conjunto Cultural da República – no Eixo Monumental de Brasília –, promove a relação entre a obra do catalão e cinco jovens artistas espanhóis contemporâneos. Pin- Proyecto del pavimento de cerámica del Pla de l’Os, Barcelona, 1976 turas, litografias, escultura, filme e livro de Miró dividirão espaço com peças de Abigail Lazkoz, Diana Larrea, Javier Arce, Juan López e Raúl Belichón, que tiveram acesso privilegiado aos diferentes espaços da Fundação Miró de Barcelona e à biblioteca do artista para realizar obras de diferentes linguagens. De terça a domingo, das 9h às 18h30. Tel. (61) 3325-5220. Grátis. Até 25 de novembro.

Pin.Up nº 148, quadro de Anton Henning

Alemanha em São Paulo O Museu de Arte de São Paulo reúne pinturas produzidas nas duas últimas décadas na Alemanha pós-Muro. A mostra Neste Tempo – Pintura Alemã Contemporânea: 1989-2010 tem 83 obras de 26 artistas que nasceram e cresceram sob as mudanças de um país dividido. São vários estilos e movimentos de artistas consagrados, como Gerhard Richter e A.R.Penck, e também de jovens talentos, como Johathan Meese, Tim Eitel, Albert Oelen e Katherina Grosse. Na Galeria Clemente de Faria, subsolo do Masp, de terça a domingo e feriados das 11h às 18h; às quintas, das 11h às 20h. R$ 15 e R$ 7. Grátis às terças. Até 9 de janeiro de 2011.

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Crônica

Por Mouzar Benedito

Ventania! Mimoso! Guaçuí!

Q

Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi

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ue nome você gostaria que sua cidade tivesse? Ventania ou Alpinópolis? Mimoso ou Luís Eduardo Magalhães? Pergunto porque há uma cultura que acho besta de querer mudar o nome de cidades, de ruas ou aeroportos para agradar aos poderosos da política local. É o caso de Luís Eduardo Magalhães. A cidade de Mimoso, no oeste da Bahia, mudou de nome para homenagear o filho do todo-poderoso ACM logo depois que ele morreu. Independentemente das qualidades ou defeitos do homenageado, isso lá é nome de cidade? E quem nasce lá, o que é? Luiseduardomagalhãesense? Mas os seguidores de ACM não se contentaram em dar o nome de seu filho a uma cidade. Mudaram o tradicionalíssimo nome do Aeroporto 2 de Julho para Aeroporto Luís Eduardo Magalhães. Em 2 de julho comemora-se a “independência da Bahia”, lembrando que nessa data, em 1823, os baianos impuseram a derrota final no estado aos portugueses, que não aceitavam a independência do Brasil. São muitos os lugares que mudaram de nome para agradar políticos. Geralmente a mudança é para pior. No estado de São Paulo, por exemplo, tem Borboleta, que mudou de nome para Bady Bassit. Não sei quem era Bady Bassit, mas eu preferiria muito mais morar num lugar chamado Borboleta do que em Bady Bassit. Minha cidade mesmo mudou de nome várias vezes. Já se chamou Santa Rita Velha e Santa Rita dos Cafés. Promovida a município, virou Vila Nova de Resende – sobrenome da família mais influente na política local na época – e finalmente Nova Resende. Vila Nova de Resende até que é um nome sonoro, bonito. Sem o “Vila”, perdeu o charme. Alguns outros lugares mudaram de nome não para homenagear alguém, mas por outras bobagens. E pioraram bastante. Em Minas, Ventania (que beleza!), virou Alpinópolis, sem graça. Barro Preto virou Conceição da Aparecida. Tuiuti virou Jureia. Cavaco virou Divino Espírito Santo (!!!). No estado de São Paulo,

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Pinhal virou Espírito Santo do Pinhal. Em Goiás, a segunda cidade fundada no estado chamava-se Meia Ponte, porque uma enchente levou a outra metade. Alguém comparou a serra de lá com os Pirineus e botou-lhe o nome feioso de Pirenópolis. E tem o caso dos preconceitos. No Rio Grande do Sul, na época da ditadura, Não Me Toques teve seu nome mudado para Campo Florido, por imposição de um prefeito. A população chiou. Caminhoneiros contavam que em todo lugar que paravam, alguém via a placa do caminhão e vinha brincar com o nome Não Me Toques, e tornavam-se amigos. Fez-se um plebiscito, e a cidade voltou ao nome tradicional. No Espírito Santo tem uma história interessante. Um distrito da cidade de Alegre emancipou-se em 1928 e ganhou o nome de Veado, nome de um rio que passa por lá. Logo depois, veado virou sinônimo de homossexual, e havia muito preconceito contra a homossexualidade. Em 1931, uma comissão de moradores foi ao IBGE, argumentou e conseguiu mudar o nome da cidade para Siqueira Campos, em homenagem a um herói das revoltas tenentistas da década de 1920, que morreu em 1930, num desastre de avião. Só que naquela época não havia o CEP, o código de endereçamento postal. Para facilitar o trabalho dos correios, quem mandava cartas para lá dava a indicação no envelope: Siqueira Campos (ex-Veado). Aí a coisa complicou, a família do homenageado não queria saber disso. Novamente resolveram mudar o nome da cidade, e em 1943 uma comissão foi procurar o apoio do ministro da Educação e Cultura, Gustavo Capanema, para ajudar os trâmites da mudança de nome. Contaram a história e ele concordou. Perguntou qual seria a nova denominação. Guaçuí, informaram. E ele deu uma bela risada. Muito culto, Capanema sabia um pouco de tupi. E explicou: a palavra guaçuí significa rio do veado. Não se importaram. Guaçuí é o nome até hoje, sem preconceitos. Dizem que é uma bela cidade.


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