Revista do Brasil nº 053

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PODE CHORAR Um bocado de tristeza não faz mal e ainda ajuda na saúde emocional

novembro/2010

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O premiado filme Bróder, de Jeferson De, ilumina a periferia de um país que decidiu continuar lutando contra a desigualdade e vencer seus preconceitos

MENOS DESIGUAL A VEZ DE DILMA A sociedade fura o cerco da velha mídia e elege a primeira presidenta do Brasil

Exemplar de associado. Não pode ser vendido.

nº 53

R$ 5,00



Índice

Editorial

RICARDO STUCKERT/PR

Brasil 8 O 2º turno mostrou que a oposição existe, sim, mas não tem projeto Mídia 12 A liberdade de imprensa da velha mídia está garantida. Falta o resto Europa 14 Os trabalhadores pagam o pato, as dívidas nacionais e o lastro do euro América Latina 16 México: se correr, o neoliberalismo pega. Se ficar, o narcotráfico come Entrevista 22 Jeferson De, do filme Bróder, e o pôr do sol mais lindo de São Paulo 28 Cidadania A discriminação ainda limita o acesso do negro ao meio científico Saúde 32 Os Narcóticos Anônimos e a terapia do espelho na recuperação do vício Cidadania 36 Uma cratera de milhões de anos onde moram milhares de famílias Comportamento 40 A tristeza, embora vista como um mal a ser tratado, pode fazer bem

Todos querem uma vida melhor. Acima do obscurantismo, o eleitor vota na esperança

Cabeças e corações

DIVULGAÇÃO

E

Viagem Química, física e biologia com muita diversão e sem traumas

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SEÇÕES Cartas 4 Ponto de Vista

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Na Rede

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Atitude 27 Curta Essa Dica

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Crônica 50

m uma eleição de infâmias, uma das maiores buscou identificar no eleitor pobre e sem escolaridade a razão da vitória de Dilma Rousseff sobre José Serra. Na base do preconceito, os reféns da ignorância tentaram criar duas categorias de voto, o certo e o errado. Desprezaram a lição básica da democracia. Os 55,7 milhões de votos que elegeram Dilma Rousseff saíram de todas as regiões, de todas as classes sociais, de pessoas de escolaridades diferentes. Saíram do povo brasileiro, pelo menos a sua maioria. Certamente, grande parte da votação da primeira presidenta brasileira pode ser explicada pela melhoria das condições de vida da população. O bolso é um fator importante em qualquer eleição. Mas não pode ser desprezado o fator esperança, também subjetivo, segundo o qual as pessoas identificam numa candidatura o caminho que consideram mais correto para que o país continue melhorando, à medida que começa a pagar não apenas a dívida com o FMI, mas a sua imensa e secular dívida social. Assim, tanto quanto a cabeça, o coração também vota. No 1º de Maio deste ano, Lula lembrava que era a última vez que ele falava naquela data como presidente da República. E lembrava que o Brasil era um país sem limites para crescer não apenas por suas riquezas naturais, mas acima de tudo por ter um povo “generoso, forte e criativo”. É o povo que vota e decide. Os que têm hoje maior poder de compra e os que ainda esperam do Estado brasileiro um tratamento mais justo, sem cidadãos de primeira ou segunda classe. Todos querem uma vida melhor, e essa será sempre a opção do eleitor, que, acima do obscurantismo, vota na esperança. P.S. – O dia seguinte à eleição mostrou também para algumas pessoas, como uma estudante de Direito que não merece ter o nome aqui escrito, que o fascismo difundido na internet – diferentemente do veiculado em certos veículos de comunicação – tem resposta imediata. Depois de postar em seu perfil no Twitter frases carregadas de preconceito e ódio contra nordestinos, a moça sofreu uma avalanche de reações. O ódio xenófobo associado a neurônios desocupados talvez não tenham permitido à moça, e outros que se manifestaram, fazer operações básicas de somar e subtrair. Se não fosse computado nenhum voto da região Nordeste, Dilma ainda assim teria vencido. NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Assistente editorial Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Joseberto Carlos Ferreira da Silva, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Vitor Nuzzi e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Fotos de Capa Gerardo Lazzari e Sergio Moraes/Reuters Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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Assédio moral Quero parabenizá-los pela matéria “Pressão Fatal”, na edição de outubro. Tenho certeza que muitos trabalhadores se identificaram com a matéria, pois já passaram ou estão passando pelo mesmo tipo de problema. Compartilho com os senhores minha própria experiência: após a mudança de gestão do Hospital Estadual Brigadeiro, em São Paulo, para a administração privada da Organização Social SPDM, as humilhações e os maus tratos, a sobrecarga de trabalho e a opressão dos funcionários públicos estaduais que ali trabalhavam, passei por momentos angustiantes, cheguei a abandonar o plantão no início do expediente e me afastei por 10 dias pela psiquiatria, tendo que tomar calmantes devido ao altíssimo estresse. Hoje superei essa angústia, me tornei delegado sindical do Sindsaúde-SP e militante na causa trabalhadora. Junto aos companheiros, direção e presidência desse sindicato, combatemos diariamente através de mobilizações e mesas de negociação com os gestores esse tipo de violência contra os trabalhadores da rede pública de saúde do estado de São Paulo. Imploro aos companheiros trabalhadores que jamais se entreguem, procurem seus sindicatos e denunciem esse tipo de agressão. Fábio Sousa, São Paulo (SP) A vez de Dilma Realmente, ganhou que fez melhor campanha. Quem não soube ser oposição nesses oito anos, também não saberia defender o mentor que proporcionou ao atual governo a possibilidade de poder se desenvolver e enfrentar a “marolinha”. Não soube defender a privatização da Vale do Rio Doce, hoje a segunda maior mineradora do mundo, e outras que não sendo mais “cabides de empregos” também evoluiram. Esperamos que a nova presidente se desvincule do seu “criador” e consiga nomear auxiliares “corretos”, que colaborem para que ela possa cumprir, pelo menos, 10% do que prometeu. Paulo Natale Penatti, Ibiúna (SP)

O povo e seu líder Quando li a seção “O povo e seu líder”, (seção Ponto de Vista, ed. 52), por Mauro Santayana, fiquei maravilhada. O senhor Santayana conseguiu escrever o que sinto em relação ao nosso presidente. Lula como pessoa, Lula como presidente e Lula como brasileiro. Solange Trigo, São Paulo (SP) Censura à edição 52 Expresso minha solidariedade à brilhante equipe da Revista do Brasil e lamento a vergonhosa decisão do ministro Joelson Dias, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, atendendo ao pedido do PSDB e do candidato José Serra, suspendeu a circulação de outubro da publicação. Pior ainda foi o pedido do PSDB para que a questão tramitasse em segredo de Justiça, numa triste analogia do que foi a campanha eleitoral de Serra. Diante das câmeras ele se diz a favor da liberdade de imprensa, por trás, retira fitas de entrevistas, briga com jornalista, ameaça e ainda faz artimanha para que uma publicação da relevância de Revista do Brasil seja censurada. Lamentável. Marcelo Santos, São Paulo (SP) Acho que essa tentativa de censura por parte do PSDB deu muito errado. Muita gente, como eu, não tinha conhecimento da existência dessa revista e agora passa a ter a partir desse fato. Herbert Pires Mandem a capa da Veja com Aécio na capa e a tecla confirma associada ao trecho que diz ser ele um “virador de votos” para o juiz que decretou a censura da Revista do Brasil. Quer dizer que propaganda de Serra pode? Ah, vamos ver o que diz a ANJ. E aí dona Judithe Brito, o que acha da censura na Revista do Brasil? Vai dizer que é diferente. Então, tá... Wanderley Dantas revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.


PontodeVista

Por Mauro Santayana

A era dos oprimidos Há quase 30 anos, em entrevista que me concedeu, Alceu Amoroso Lima profetizava que o século 21 seria o da redenção das mulheres e dos negros

A

previsão do escritor e pensador, também Amorim, seja nomeando para o seu lugar homens da conhecido como Tristão de Ataíde, era a mesma visão de mundo (como é o caso de Samuel Pide que os dois grandes preconceitos his- nheiro Guimarães), Dilma deve manter a forte presentóricos, o do racismo contra os africanos ça de nosso país no mundo. e seus descendentes no mundo, e o dos Mais importante do que a eleição de Dilma, com tohomens contra as mulheres, seriam vencidos no sécu- dos os seus méritos, é a conclusão clara e objetiva de lo que se iniciou há uma década. A eleição de Dilma que o povo brasileiro aprovou as grandes mudanças Rousseff é emblemática, como todos estão apontan- realizadas nos últimos oito anos. Não só aprovou as do, por ser a primeira vez que uma mulher chega à medidas de caráter interno, na ação econômica, como a chefia do Estado e do governo no Brasil. Nossa épo- nova postura de independência do país no mundo. Chica está rompendo com muitos dos tabus históricos. co Buarque de Hollanda a resumiu bem ao dizer que, O preconceito contra os negros e mesdurante o governo anterior, o Brasil falatiços foi quebrado no país que se nota- O povo va grosso com o Uruguai e o Paraguai, e bilizara pelo apartheid até 50 anos an- brasileiro falava mansinho com os Estados Unidos. tes, os Estados Unidos – com a eleição aprovou Hoje o tom de voz é o mesmo, seja com de Obama –, isso sem falar no caso da Washington, seja com Assunção. as grandes África do Sul, onde a situação era ainda Quando o candidato José Serra promais abominável, porque se tratava da mudanças meteu mudar a política externa brasileiodiosa­opressão de minoria branca con- realizadas nos ra, perdeu milhões de votos. Os brasileiros últimos oito tra a imensa maioria negra. decidiram, definitivamente, desmenA eleição de Dilma era esperada. Não anos. A vitória tir Nelson Rodrigues, que nos atribuía o há governos perfeitos, mas existem aque- de Dilma é complexo de vira-latas. E deram uma resles em que os saldos são positivos. O posta varonil a Fernando Henrique Carum avanço grande segredo de Lula é a sua autentidoso, que nos considerava um povo de cidade. Seu mérito foi o de, ao chegar ao definitivo caipiras e de deslumbrados com o mundo poder, não esquecer a origem, ainda que no processo desenvolvido. Deslumbrado com as luzes obrigado a conviver com representantes de real do mundo é ele. A experiência demonsdas elites econômicas e sociais do país. independência tra que, ao associar-se aos países emerTais eram (e ainda continuam sendo) do Brasil gentes, e abandonar o alinhamento autoas desigualdades sociais históricas, que mático com os Estados Unidos e a União Lula percebeu ser necessário contar com o consumo Europeia, o Brasil fez com que os países desenvolvidos dos mais pobres, a fim de ampliar o mercado inter- nos vissem com outros olhos e nos tratassem com o no. Por mais discreta que tenha sido a redistribuição respeito que nos negavam. de renda, ela teve efeito multiplicador sobre a econoOutra lição eleitoral é a de que o povo brasileiro não mia. O desemprego chegou aos menores níveis histó- engoliu as canhestras explicações para a privatização ricos no Brasil. do patrimônio público, de responsabilidade do goverOutro importantíssimo resultado da eleição é o do no anterior. As mesmas razões que levaram os mineiros equilíbrio continental. Mesmo tendo perdido o seu a votar no nacionalista Itamar fizeram com que votasgrande orientador, Néstor Kirchner, a presidente da sem agora contra Serra. Os mineiros não perdoam a Argentina, Cristina Kirchner, tem todas as condições entrega da Vale do Rio Doce. E se riem do argumento para manter excelente relacionamento com Dilma, as- de que hoje a empresa paga mais impostos, quando ansegurando o entendimento entre as duas nações mais tes, além dos impostos, os dividendos eram do Brasil. poderosas da América do Sul, no caminho para a uni- A vitória de Dilma é um avanço definitivo no processo dade continental. Seja mantendo o chanceler Celso de real independência do Brasil.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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NaRede

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Sem censura

Com a interrupção da distribuição e a retirada dos acessos pela internet, a ação de censura da edição anterior da Revista do Brasil por parte da coligação de José Serra privou os leitores de boas reportagens, inclusive, que nada tinham a ver com o ambiente eleitoral. Passada a tempestade, algumas dessas reportagens ganham agora uma republicação para que possam ser acessadas pelo site .

Quebrei o vidro do meu carro com o pulso, quase morri. Não tenho os movimentos da mão ainda. Minha vida é no hospital. Tomo seis tipos de remédios, calmantes, antidepressivos, fico descaracterizado

Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos Souza, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Vitor Nuzzi

JOÃO CORREIA

Wellington, bancário

Trabalho: humilhação pode ser fatal­ O assédio moral, prática identificada desde a década passada por estudiosos das transformações no mundo do trabalho, está chegando a um ponto de induzir muitos trabalhadores – pressionados à base de muita humilhação por desempenho e cumprimento de metas – a perder a vontade de viver. No setor bancário, cuja recente convenção

coletiva nacional de trabalho prevê ações contra esse fenômeno, médicos apontam a depressão como uma epidemia. Confira na reportagem de João Correia Filho e Xandra Stefanel os relatos de pessoas que tentaram o suicídio e a relação desses gestos extremos com seus ambientes de trabalho. http://bit.ly/rdb52_assedio_moral

Não acredite em amostra grátis

Reportagem de Cida de Oliveira revela que há quase quinze anos a população brasileira paga muito caro por uma lista imensa de medicamentos. São remédios que tiveram suas patentes asseguradas, desnecessariamente, graças a uma lei do antigo governo FHC. Por meio da lei, parte da indústria farmacêutica fatura alto ao poder estabelecer livremente o preço de seus remédios. E os cofres públicos também acabam amargando um prejuízo. Com a brincadeira, os gastos do Ministério da Saúde com aquisição de remédios para pacientes com HIV saltaram de US$ 35 milhões em 1996 para US$ 350 milhões em 1998. Para ler, digite esse atalho em sua barra de endereços: http://bit.ly/rdb52_patentes

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Haruko viu sua casa desabar

Sessenta e cinco anos depois das explosões de Hiroshima e Nagasaki, brasileiros que presenciaram o horror contam suas histórias. Eles viram como a maior arma de destruição em massa, detonada pelo governo dos Estados Unidos, deu à humanidade um recado: quanto ela se expôs ao risco da extinção pelas mãos do próprio homem. A reportagem é de Moacir Assunção­. http://bit.ly/rdb52_bomba_atomica

DANILO RAMOS

DANILO RAMOS

Luiz : farmácia popular

ANDRÉA GRAIZ

Márcia: Banco de Remédios

Sobreviventes


Estão maltratando a TV Cultura

Reportagem de Vitor Nuzzi descreve como a instabilidade política afeta a TV Cultura. E como a falta de investimentos, de respeito pelos profissionais e por um projeto que já foi considerado referência de TV pública ameaçam a emissora paulista. http://bit.ly/rdb52_tv_cultura

Se o senador eleito por São Paulo, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB), tivesse concedido a breve entrevista solicitada pelo repórter João Peres, da Rede Brasil Atual, teria evitado reações raivosas desnecessárias via imprensa e internet. O senador recusou-se de maneira grosseira a falar com Peres momentos antes do debate entre os presidenciáveis na TV Record. O repórter queixou-se da educação do senador e este explicou que não falaria com “pelego”. “Pelego e filho da p...”. O senador negou que tenha usado o palavrão. Mas em entrevisAloysio tas, reforçou o “pelego” e depois acrescentou o adjetivo “insolente”. Noves fora o que definem os dicionários, Nunes o sentido usual dos adjetivos os repele. Ou o sujeito é “pelego”, aquele que em meio à luta sindical facilita a vida do patrão e o protege, ou o sujeito é “insolente”, o atrevido, desaforado, desdenhoso, inconveniente. Pelego e insolente não dá. Aqui a palavra de João Peres: http://bit.ly/nota_joao_peres. E aqui, a do senador eleito: http://bit.ly/aloysio_responde

LUCIANA WHITAKER

O maior compositor do mundo Paulo César Pinheiro não está no Guiness Book, o livro dos recordes, mas poderia. Autor de mais de 2 mil composições, ele conta em entrevista ao editor Paulo Donizetti de Souza histórias de suas grandes parcerias, como as que fez com Baden Powell e João Nogueira, das “encomendas” de Elis Regina e dos poderes incontroláveis da inspiração e da criação. O poeta se encanta com o projeto Escola Portátil, iniciativa de sua mulher, Luciana Rabello, por onde já passaram centenas de futuros músicos, e fala do renascimento da Lapa como polo de efervescência cultural. http://bit.ly/rdb52_paulo_c_pinheiro

As muitas rimas do hip-hop RODRIGO ZANOTTO

FOLHAPRESS

Pelego ou insolente?

Nina Fideles faz um balanço de três décadas dos diferentes movimentos do rap no cenário cultural do país. http://bit.ly/rdb52_rap

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

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BRASIL

A hora da bandeira branca Os golpes baixos da campanha deixaram marcas e ressentimentos. E, se o segundo turno revelou uma oposição sem projeto, indicou também que a participação da sociedade na política é fundamental para a governabilidade Por Vitor Nuzzi

T

eve de tudo, mas quase nada de política. O Brasil assistiu a uma das mais pobres campanhas eleitorais de sua história, em termos de ideias e debates. As polêmicas alimentadas pela imprensa mais serviram para aquecer os caldeirões de maldades que para trazer o debate de diferenças. Com o fim da campanha e o advento de um novo governo, fica a dúvida sobre como restabelecer laços e o diálogo político, após meses tão tensos. Dessa resposta dependem a chamada governabilidade e a própria democracia. Até o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) espantou-se com o tiroteio. A ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha falou em “faroeste”, enquanto o presidente, Ricardo Lewandowski­, declarou que o espaço em TV e rádio é um “horário nobilíssimo, que deve ser utilizado para matéria política”. O advogado Luiz Edson Fachin, professor titular da Universidade Federal do Paraná (UFPR), observa que as democracias representativas contêm diferenças entre o que é estrutural e conjuntural. No caso desta eleição, alguns limites podem ter sido ultrapassados, pondo em risco a própria go8

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vernabilidade. “O embate, quando se dá no plano das ideias e propostas, ainda que haja algum agravamento na retórica, é conjuntural, passa. Do ponto de vista da governabilidade, é preciso que fique claro que somente um será eleito. É imprescindível o estabelecimento do limite político. Oposição se opõe ao governo, não ao Estado”, define Fachin. “Depois desta eleição, é preciso com­ preender que uma sociedade democrática é uma sociedade plural”, afirma o professor. Segundo ele, o “discurso plebiscitário” que marcou a campanha – sempre na base do contra ou a favor para tudo – ameaça essa pluralidade. Passada a tempestade, começa a engrossar o coro dos descontentes com o atual sistema político-eleitoral. Uma discussão fundamental para o próximo governo, segundo Fachin, será a reforma política. “É uma pauta tão importante que precisa de um debate com serenidade”, sustenta, lamentando a falta de informações relevantes para a população. “O eleitorado não teve muito esclarecimento sobre as divergências no plano das ideias.” “A campanha se despolitizou, tornou-se religiosa, moralista”, concorda Rena-

to Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP). Ele lamenta a “falta de capacidade de argumentação”, alerta para riscos políticos e chama a atenção para uma ironia: “Tudo isso (as hostilidades de parte a parte) vem de dois partidos que se originaram da luta contra a ditadura. Muitos estiveram do mesmo lado. No entanto, a hostilidade está enorme”. PT e PSDB, por sinal, mantêm hegemonia no período pós-ditadura. Dos 21 anos de governos eleitos pelo voto direto, 16 foram ligados aos dois partidos. Com o resultado desta eleição, até 2014 terão sido 20 anos em 25, com duas gestões tucanas e três petistas.


com a convicção de que a nação brasileira será exatamente da grandeza daquilo que nós todos, juntos, fizermos por ela.” O presidente da Fundação Perseu Abramo, o mineiro Nilmário Miranda, recorre a uma expressão comum em seu estado para defender a importância da interlocução. É preciso “deixar as ideias se confrontarem”. Passado o calor da campanha eleitoral, o ex-deputado acredita que as sequelas do segundo turno tendem a diminuir. “Houve um encolhimento da oposição, especialmente a mais raivosa, que defendia CPIs 24 horas por dia. Tem um grupo ligado a Serra e a FHC que está saindo de cena, sem falar do DEM. O PPS desidratou”, observa. “O tipo de oposição que fazia o PSDB não vai prevalecer. A oposição vai negociar mais”, acredita. Por outro lado, na opinião de Nilmário, a coligação que apoiou Dilma não é feita apenas de posições progressistas, o que exigirá muita articulação também no campo situacionista. “A revolução democrática é lenta e não se faz com eliminação de adversário. Talvez o grande papel do Lula tenha sido ensinar a se manter sempre aberto à negociação”, avalia.

Habilidade

Janine acredita que PT e PSDB consigam mobilizar interlocutores para permitir uma convivência razoável na próxima gestão. Do lado dos tucanos, em sua avaliação, essa interlocução viria principalmente dos mineiros. Mas seria preciso que o vencedor “estendesse a mão”, basicamente às lideranças moderadas do PSDB, para que o diálogo se iniciasse. “O que passa de certa forma por uma neutralização do Serra, que comandou uma campanha muito agressiva”, acrescenta. O filósofo acredita, porém, que a votação ao fim alcançada por Serra, 44%, o mantenha forte na cena política. Em seu discurso de reconhecimento da derrota, Serra demonstrou gratidão ao em-

Para a deputada federal reeleita Luiza Erundina (PSB-SP), a iniciativa para a retomada do diálogo deve partir dos vencedores. “E a mulher tem muito mais sensibilidade para isso. A iniciativa deve ser dela (Dilma), estabelecendo pontes, mas também explicitando de forma clara seu projeto de governo. Ela vai ter de explicitar metas, objetivos, prazos, responsabilidades. PAULO PEPE

MÃO ESTENDIDA No primeiro discurso após a vitória, Dilma fez acenos à oposição

BRUNO DOMINGOS/REUTERS

Projetos

penho de Geraldo Alckmin – com quem deve estreitar relações para deter um eventual voo solo de Aécio Neves a partir de Minas Gerais. No mesmo momento, o ex-governador paulista sinalizou que a derrota não o aposentará, afirmando que a despedida da batalha não será um adeus da guerra, mas um “até logo”. Já Dilma, em seu discurso de vitória, fez acenos à oposição. “Junto comigo foram eleitos novos governadores, senadores, deputados. Convido a todos, independentemente de cor partidária, para uma ação determinada, efetiva e enérgica em prol do futuro de nosso país, sempre INICIATIVA Erundina: ”A mulher tem muito mais sensibilidade para iniciar o diálogo” NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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O jornal português Público viu, no processo eleitoral, um confronto entre dois países­. “De um lado, o Brasil do povo, que vê em Lula sobretudo um líder que tirou 30 milhões da pobreza. Do outro, o Brasil das elites, que vê em Lula sobretudo um popu10

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JAILTON GARCIA

Luta de classes

GERARDO LAZZARI

E isso, a meu ver, tem de ser feito antes da posse”, afirma, calejada por ter comandado a Prefeitura de São Paulo (1989-1992) num tempo em que seu partido, na época o PT, não tinha o hábito de estender alianças fora do eixo ideológico da esquerda. O procedimento – estabelecer o diálogo a partir de projetos e metas – é válido inclusive para a base aliada, segundo a ex-prefeita. Compromissos com eleitores devem ser traduzidos em compromissos de governo, para que os partidos indiquem nomes com base em diretrizes. A oposição, por sua vez, terá de se reciclar. “PSDB, DEM e também o PPS não foram suficientemente competentes para demarcar seu campo, não têm outro projeto (alternativo ao do governo). Isso foi ruim para o país e também para a candidatura deles. A oposição terá de passar por uma reciclagem, de nomes, métodos e propostas.” A deputada acrescenta que essa clareza também precisa existir do lado governista, pois o governo Dilma não deve repetir o “equívoco” de reduzir a governabilidade apenas ao Congresso. “Não pode ser apenas uma relação de troca, fisiológica. Mesmo a base ampla do governo Lula foi em grande parte heterogênea, clientelista.” Assim, para Erundina, a relação governo-Congresso precisa ser mediada por uma terceira força: a sociedade, que deve se sentir corresponsável pelo processo político. Para pressionar pelas mudanças – “Não esperem que o Congresso faça uma reforma política” – e também para apoiar o governo, de forma independente. “A base de sustentação popular, que estava dispersa, foi quem deu a Lula condições políticas de se manter no poder”, acredita. O recado é que, sem participação da sociedade na política, não há política que se salve. E o caminho fica livre para todo tipo de exploração e difusão de informações falsas, como se viu nesta campanha. Um samba composto sob inspiração de um dos mais anedóticos episódios da política brasileira, o da bolinha de papel, lembra: “É bom que saibam que não estamos em guerra/ Que em 31 de outubro essa história se encerra”.

DERROTA DA VELHA MÍDIA Maria Rita Kehl: “Os fazedores de opinião não fizeram opinião, estavam todos contra Lula e Lula foi eleito”

FALSO DEBATE Frei Betto: “Temas que são importantes, mas não prioritários, como aborto e religião, se destacaram”


ACERVO FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

RICARDO STUCKERT/PR

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

NOVA OPOSIÇÃO Mais do que Serra e Alckmin (à direita), Aécio, por sua boa relação com Lula, poderá liderar o diálogo com o governo

OS PERSONAGENS SÃO OUTROS Nilmário Miranda: “Tem um grupo ligado a Serra e a FHC que está saindo de cena, sem falar do DEM. O PPS desidratou”

lista saloio (rústico). Cenas da luta de classes, em 2010”, definiu a jornalista Alexandra Lucas Coelho. Alexandra comentava o episódio da saída da psicanalista Maria Rita Kehl do jornal O Estado de S. Paulo após a publicação de um artigo no qual ela questionava uma tentativa de desqualificação do eleitorado mais pobre. Enquanto Maria Rita falava em demissão por “um delito de opinião”, o diretor de Conteúdo do jornal, Ricardo Gandour, refutava. “Não é uma demissão. Colunistas vão e vêm”, afirmou ao Público, assegurando que a intenção de mudar a coluna já existia. Foi mais um episódio do debate truncado, tal como a introdução de temas religiosos durante o processo eleitoral. “Lamento que numa campanha presidencial temas que são importantes, mas não prioritários – como aborto e religião –, tenham se destacado”, afirmou o escritor e religioso Frei Betto, durante um ato de juristas e intelectuais realizado na reta final da campanha.

As polêmicas renderam comentário irônico do jornalista Elio Gaspari em coluna publicada duas semanas antes das eleições. “Contumaz retardatário, José Serra conseguiu bater todas as suas marcas. Chegou com 46 anos de atraso à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que juntou 200 mil pessoas no centro de São Paulo manifestando-se contra o governo de João Goulart. (...) Quem deu musculatura à manifestação foram organizações religiosas e líderes políticos.” Na mesma entrevista ao Público, o veterano jornalista Janio de Freitas, da Folha de S.Paulo, observou que existe de fato um mal-estar nas relações entre imprensa e governo. “Criou-se na imprensa brasileira uma indisposição quanto a Lula e à continuidade do governo por intermédio de Dilma. Mas não há nenhuma indicação objetiva de que Lula fosse criar constrangimentos à imprensa. A imprensa brasileira é muito forte politicamente e é um grande poder. Quando se move, geralmente obtém o que quer.” O colunista identificou também “preconceito de classe” na relação tensa entre imprensa e Lula. “A elite brasileira é extremamente preconceituosa e há uma grande influência desse preconceito quanto a Lula, não apenas neste caso. Essa elite considera intolerável alguém que não saiu da universidade e sobretudo não tem posses. Porque essa elite não é culta, pelo contrário. A parcela culta é muito pequena”, afirmou Freitas. Na eleição anterior, em 2006, Lula também enfrentou a oposição da imprensa. “Os fazedores de opinião não fizeram opinião, estavam todos contra Lula e Lula foi eleito”, lembrou Maria Rita, para quem o maior defeito do governo “foi não ter combatido eficazmente a corrupção”. Também para Renato Janine Ribeiro, esse pode ser visto como um ponto fraco. “O PT deixou de certa forma a bandeira ética ficar em segundo plano. A preocupação com uma política rea­lista se tornou muito forte.” NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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MÍDIA

Liberdade O

presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos, exibe um exemplar da Revista do Brasil que teve sua distribuição suspensa por uma ação do PSDB: “Essa não pode”. A publicação estampava o apoio da revista a Dilma Rousseff. Na outra mão, um exemplar da revista Veja com o senador eleito por Minas Gerais Aécio Neves (PSDB), como quem apela ao mesmo tempo ao político mineiro e ao (e)leitor para que dirija seu apoio ao candidato José Serra (PSDB). “Essa pode.” Artur mostra ainda outras duas capas de Veja que abordam assuntos semelhantes, enchentes. “Para tratar das enchentes de São Paulo, a Veja saiu com a chamada ‘Por que chove tanto’. E explica: ‘Uma rara combinação de fatores atmosféricos é a causa do dilúvio que há mais de 40 dias castiga o Sul e o Sudeste do Brasil’. Em outra edição, sobre o Rio de Janeiro, traz o Cristo Redentor chorando na capa e a chamada “Culpar as chuvas é demagogia”. No último dia 27 de outubro, em uma manifestação contra a censura e pela liberdade de expressão, sindicalista usou esses exemplos de como a mídia se manifesta eleitoralmente sem cerimônia.. Para o professor e pesquisador Venício Artur de Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília (UnB), o caso é exemplar. “Se você adotasse o mesmo critério que levou à suspensão da Revista do Brasil, a revista Veja não circulava.” Para ele, a grande imprensa no Brasil goza de liberdade total, mas a liberdade que apregoa não serve para todos. “Há grupos que não podem se expressar”, alerta. Essa constatação ficou nítida na reta final, quando blogues, sites, jornais e revistas independentes sofreram uma sequência de atentados à liberdade de expressão. Além da Revista do Brasil, a representação do PSDB levou à suspensão do Jornal da CUT de setembro. O site Falha de S.Paulo, uma sátira à Folha de S.Paulo, foi acionado

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Para a velha mídia e as forças políticas a ela ligadas, liberdade de imprensa tem limite e jornalistas e publicações independentes são um estorvo Por Suzana Vier

na Justiça e seus criadores, os irmãos Lino e Mario Bocchini, um jornalista e o outro designer, estão sendo processados pelo jornal. Para não perder o humor, eles já criaram o site Desculpem a Nossa Falha. A psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida do Estadão por um artigo que desagradou a opinião do jornal. Blogues como os dos jornalistas Paulo Henrique Amorim, Luiz Carlos Azenha e Renato Rovai sofreram ameaças de multa. A TV Record foi notificada por uma reportagem depois do primeiro turno na qual demonstrava bairros de São Paulo em que Dilma e Serra foram mais bem votados. A revista CartaCapital também sofreu tentativa de intimidação. Para Juvandia Moreira, presidente do

AOS INIMIGOS, A LEI O jornal Folha de S.Paulo apoiou o candidato Serra. Seus críticos, do site Falha de S.Paulo, foram acionados pela Justiça

Sindicato dos Bancários de São Paulo e diretora da Editora Atitude, responsável pela RdB, ações como essa têm o objetivo de calar um projeto identificado com o mundo do trabalho e com os movimentos sociais, historicamente deixados de lado pela imprensa conservadora. “Os meios de comunicação têm donos e eles têm interesses. O problema não é que tenham interesses. O problema é que eles não dizem quais são.” Na avaliação do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, a censura à RdB foi “criminosa”, porque impediu a sociedade de ter acesso a reportagens que não têm espaço em outras mídias. “Eu vi uma reportagem muito boa sobre o que acontece com trabalhadores que chegam à beira do suicídio por conta de pressão absurda, meta de produção nas empresas, as humilhações que passam no dia a dia do trabalho. Conteúdo relevante para o povo brasileiro, em que revista do país, em que grande jornal alguém encontra isso?”, indaga Sérgio, também diretor da Editora Atitude.

Credibilidade ameaçada

As sucessivas tentativas de censura a profissionais e veículos de comunicação independentes fazem parte de um contexto em que os grandes veículos assumiram o papel de partidos políticos. O professor Venício lembra que o aviso veio em março. Naquele mês, a presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito, ligada à Folha, afirmou que, diante de uma oposição partidária fraca, a grande mídia teria o papel de atuar como oposição. “A campanha eleitoral exacerbou o papel de partido político da grande mídia. Mas o papel já vinha sendo desempenhado mesmo antes da campanha”, observa o professor. Na troca de papéis, quem ficou de fora foi a própria política. “A campanha se rendeu ao espetáculo e a política, com P maiúsculo, saiu da cena”, analisa.


FOTOS PAULO PEPE

limitada ESTA VALE. ESTA NÃO Artur Henrique, presidente da CUT, exibe as capas de duas revistas. A que fez campanha aberta para os tucanos circulou livremente durante toda a eleição. A Revista do Brasil, com capa da candidata Dilma, foi censurada a pedido do PSDB

Para a história entraram mesmo, nestas eleições, boatos, acusações e uma chuva de baixarias, não só pela internet como por panfletos apócrifos e mensagens via telemarketing, difundindo preconceito e ódio. Na tentativa de amplificar o alcance das “denúncias”, os grandes veículos criaram uma espécie de “dueto”, conceitua Venício. Um grande jornal ou revista apresenta uma denúncia não comprovada e no mesmo dia

a notícia é repetida por incontáveis outros meios, ganhando amplitude e força. “Um começava e outro repetia”, afirma o pesquisador, para quem a postura acabou ferindo a credibilidade da imprensa brasileira. Correndo por fora, a internet ganhou espaço na disputa com mídias tradicionais, atuando principalmente na detecção e esclarecimento de boatos e denúncias infundadas. “A internet abriu espaço para vozes

dissonantes, fundamentais para filtrar e impedir armações. A internet foi fundamental para desmoralizar o episódio da bolinha de papel, do aborto, da morte antecipada do Romeu Tuma”, descreve Renato Rovai, blogueiro e editor da revista Fórum. Na visão da professora Regina Helena Alves da Silva, do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, nestas eleições a internet – particularmente o Twitter – ratificou seu poder de disseminação de informações, mas também ajudou a exibir um lado atrasado do país, fazendo com que as tentativas de desqualificação superassem a apresentação de propostas. “Esta campanha foi pior que a anterior. O tipo de coisa que apareceu revela a sociedade que nós somos. Uma sociedade que não consegue discutir abertamente o preconceito, que não consegue viver com a diferença”, afirma. Como coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias, ela também foi uma das responsáveis pelo monitoramento do Observatório das Eleições, vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para a Web (InWeb). Para Regina Helena, o Brasil ainda tem dificuldade de discutir de fato temas relacionados a valores morais. Com isso, acontece o que ela chama de “sequestro da política”, deslocando a discussão do ambiente público para o privado. “Eu, como mulher, estou indignada com esta eleição”, diz a professora, referindo-se às seguidas polêmicas sobre o aborto. Uma discussão tão rasa que, segundo ela, fazer ou não um aborto parecia uma opção entre marcas de cerveja. Como traduziu a jornalista Maria Inês Nassif, em artigo no Valor Econômico, houve instrumentalização política de um dogma pelos setores religiosos conservadores, num cenário que excluiu a maior interessada, a mulher: “A eleição conseguiu retroceder décadas nesse debate”. Colaborou Vitor Nuzzi NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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EUROPA

O Bravo Velho Mundo

Agora, você engole duas ou três pílulas de meio grama, e pronto! Qualquer um pode ser virtuoso agora. Você pode levar pelo menos metade de sua moral num vidro. Cristianismo sem lágrimas, é isso que soma é (De um personagem de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, explicando a outro as qualidades do soma, uma droga usada para aplacar ânimos e compensar frustrações)

Por Flávio Aguiar

N

o passado, quando se imaginava uma sociedade no futuro século 21, com frequência­, como no romance de Aldous Huxley, se descrevia um mundo rigidamente administrado por uma direção implacável, totalitária e centralizadora. Quem diria! Hoje em dia, esse verdadeiro terror da ficção científica foi substituído pela dura realidade de um mundo atomizado, fragmentado, onde tudo é desregulamentado, direitos e até deveres se evaporam de uma hora para outra, e a ferocidade dos mercados financeiros a tudo devora sem nada devolver em troca – a não ser doses diárias de anestésicos para neutralizar a adrenalina desprendida pela in-

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segurança. Parece mentira: é o que se vê quando se olha o mundo a partir das sensações despertas na velha Europa neste começo de milênio. Em primeiro lugar, nesta altura do campeonato, o que é a Europa? Descontando-se a Rússia europeia, a maior parte da Europa compreende o território da União Europeia, uma associação de 27 países com tratados comuns. Essa associação começou a se constituir em 1957, com a Comunidade Econômica Europeia e a Comunidade Europeia de Energia Atômica, que abrangiam poucos países. Em 1979 elegeu-se pela primeira vez um Parlamento Europeu pelo voto direto. Em 1985 foi celebrado o Tratado de Schengen, liberando as fronteiras dos países-membros

em muitos aspectos. Em 1989-1990 a queda do Muro de Berlim, o fim dos regimes comunistas e a reunificação da Alemanha precipitaram o processo de formação do bloco. Em 1992, o Tratado de Maastricht criou a União Europeia, que passou a existir oficialmente a partir de 1o de novembro de 1993. Em 1999 criou-se o euro, unidade monetária virtual que passou a ser adotada por vários países para transações não numerárias, isto é, não pagas em dinheiro vivo. Em 2002 a moeda euro entrou em circulação, substituindo os francos, marcos, escudos, pesetas etc. Atualmente, 16 países da União Europeia compõem a chamada Zona do Euro. Outros 11 países da UE não pertencem à Zona do Euro, entre eles o Reino Unido e a Su-


PREÇO ALTO Polícia contém manifestação em Paris contra reforma da Previdência: trabalhadores e aposentados pagam o custo da estabilidade na Zona do Euro

écia. Alguns estão na fila de espera, como a Bulgária e a Romênia. Outros, em negociação ou pré-negociação, como a Islândia, a Polônia e a Dinamarca. A Turquia é um caso complicado, pois sua entrada na União Europeia abriria as fronteiras do continente para a imigração turca, que já é grande, motivo pelo qual muitos países da UE resistem a essa possibilidade. Há ainda o caso de países que não pertencem à União Europeia, mas usam o euro, como Vaticano e San Marino, Andorra, Montenegro e Kossovo, ou ainda possessões coloniais fora da Europa. Finalmente, há o caso da Suíça, que é signatária do Tratado de Schengen, mas não pertence à UE nem à Zona do Euro.

STEPHANE MAHE/REUTERS

Reviravolta

sou a crescer o desemprego e a inflação ronAcontece que a UE foi uma ideia semeada dou as portas. Quando a Grécia afundou e ao tempo em que grande parte das socieda- viu-se sem divisas para honrar pagamendes europeias eram regidas por princípios tos, nem com poder de barganha para resocial-democratas e por Estados voltados dimensionar suas dívidas, a Zona do Euro para “o bem-estar social”. No entanto, ela inteira, de Arca de Noé que era, se tornou cresceu e foi colhida num mundo onde o um Titanic. E começou a afundar, em bloco. comunismo ruíra e em seu lugar se instalaAs medidas tomadas foram um socorro à ra o império neoliberal dos mercados, além Grécia, sob a forma de novos empréstimos da filosofia do thatcherismo inglês, literal- com lastro nos países mais fortes e a formamente destruindo o poder de barganha dos ção de um fundo de proteção para o euro, da sindicatos de trabalhadores. ordem de US$ 1 trilhão. Dos empréstimos à Ao se constituir a União Europeia, cuja Grécia, 80% vão parar nos bancos credores, comissão tem sede em Bruxelas (o Parla- sobretudo alemães e franceses, cuja quebra mento Europeu tem sede em Estrasburgo também esburacaria o sistema todo. Mas, e o Banco Central Europeu, em Frankfurt), junto com as medidas econômicas, vieram grande parte de seu esforço para novas medidas de esvaziamento homogeneizar as relações inter- Crioudo Estado de bem-estar social, ou nas dos países-membros se deu se uma do que dele resta: cortes em penna direção de desregulamentar situação sões, aposentadorias, programas as economias, num sentido se- esdrúxula, sociais, investimentos. melhante ao do Consenso de porque É disso que se trata, quando Washington­, e de diminuir as cavemos as manifestações que toa moeda racterísticas trabalhistas do Estamaram conta do cenário euroeuro tem do de bem-estar social. peu, primeiro na Grécia, depois Ao mesmo tempo, criou-se um Banco na França e amanhã não se sabe uma situação esdrúxula, porque a Central onde – só se sabe que vão contimoeda­euro tem um Banco Cen- mas não nuar, porque, como quase semtral mas não tem um Tesouro; o tem um pre, são os trabalhadores que eslastro da moeda continua a ser detão pagando o pato, as dívidas Tesouro finido pelas nações. Entre elas, as nacionais e o lastro do euro. Na mais fortes são a Alemanha, a de economia França, os protestos recentes tinham por mais poderosa, a matriarca do conjunto, e móvel imediato a reforma da previdência, a França, a tia rica. Há outras remediadas, passando de 60 para 62 anos a idade mínima como a Holanda e Luxemburgo (que agrega da aposentadoria e de 65 para 67 a da apocapital, em parte, da evasão fiscal vinda dos sentadoria máxima, que é de 75% do último outros países). Ou seja, nesses últimos anos salário. Mas foram além, e tornaram-se proa UE, e em particular a Zona do Euro, foi testos contra a política econômica e social do construindo a sua periferia. E isso eclodiu, governo de Sarkozy, bem como contra a lista ou melhor, explodiu a partir da grande crise de escândalos financeiros em que o governo financeira de 2008. Outro fator de peso na acabou se envolvendo. crise foi o endividamento público. No prinDe modo que, quando se olha para o noscípio, criou-se um “cordão sanitário”: o dé- so Bravo Velho Mundo, a impressão que se ficit público de cada país-membro da Zona tem é que a luta não só continua, mas vai do Euro não poderia passar de 3%, e a dívida continuar por muito tempo e se intensificar. pública não poderia ultrapassar 60% do seu Todos os dias lê-se que a economia está mePIB. Mas isso ficou no papel. lhorando; mas como disse um sindicalista A maior parte dos países foi criando dí- da CGT francesa, Christian Pilichovski­, que vidas astronômicas. A da Grécia chegou a encontrei em Stuttgart numa conferência mais de 120% do PIB, e a de Portugal pas- sobre a crise do setor automotivo, “as empresou dos 80%. Mesmo a Alemanha e a Fran- sas vão bem, mas os trabalhadores vão mal”. ça, economias mais poderosas, enfrentam E vão melhor, como no caso da Alemanha, dívidas de 72% e 77%. Com um agravante: por exemplo, graças às exportações para a países­de economia mais fraca, como Gré- China e o Sudeste Asiático. Internamente, o cia, Portugal, Espanha, Itália, não tinham poder aquisitivo caiu. E parece que, ao conmais moeda própria para desvalorizar e trário do Novo Mundo de Huxley, nem soma tornar suas exportações competitivas. Pas- existe mais para todos. NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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O gigante e

AMÉRICA LATINA

Aos 200 anos de sua Independência e aos 100 de sua Revolução, o México enfrenta falta de alternativas ao projeto hegemônico dos Estados Unidos, enquanto sofre com a “guerra ao narcotráfico” Por Joana Moncau e Spensy Pimentel, da Cidade do México

A

ngustiado pela dureza do trabalho como capanga de um grupo de narcotraficantes no norte do México, que envolve a necessidade constante de executar adversários e traidores, o protagonista do filme El Infierno desabafa com um companheiro, a certa altura: “Não te dá medo de ir para o inferno?” “Inferno? O inferno é aqui”, ele responde. O cinismo e o humor ácido do filme de Luis Estrada não são unanimidade, mas renderam um razoável sucesso de bilheteria em plena celebração do bicentenário da independência mexicana, em setembro. Um reflexo, certamente, do atual estado de espírito do país. O patriotismo popular continua forte, mas o clima geral é de desesperança e desânimo. Ao lado dos tradicionais enfeites com as cores da bandeira nacional, não é difícil encontrar camisetas com a frase: “200 anos: nada a comemorar”. No dizer do historiador Lorenzo Meyer, um dos mais reconhecidos analistas políticos do país, em recente conferência, depois de duas décadas de implantação do projeto neoliberal no país, a partir do governo de Carlos Salinas (1988-1994), o México está completamente perdido. “Não tenho nem ideia de para onde vamos.” No fim de agosto, a imprensa mundial destacou a notícia sobre uma matança de proporções espantosas: foram encontrados 16

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72 corpos de imigrantes que atravessavam o país rumo à sonhada fronteira com os Estados Unidos, na região de Tamaulipas, ao norte. Pelo menos quatro corpos identificados até agora eram de brasileiros. O único sobrevivente do massacre, um equatoriano, relatou que os narcotraficantes executaram o grupo após se recusarem a prestar serviços. O episódio reflete o grau de violência atingido pelos cartéis de narcotraficantes. Uma violência amplificada pelo sensacionalismo da mídia. As bancas de jornais estão repletas de cenas de corpos esquartejados, queimados ou dilacerados por tiros de alto calibre, com sangue escorrendo. Nos últimos quatro anos, calcula-se que a “guerra ao narcotráfico” já fez mais 30 mil vítimas. A agressividade do conflito não poupa autoridades (foram mais de 100 ataques a prefeitos nos últimos anos, e 12 assassinatos só este ano) nem jornalistas (64 mortos desde 2000). A secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, declarou recentemente que a situação mexicana se aproxima da que se via na Colômbia 20 anos atrás e que os narcotraficantes representam, hoje, uma espécie de “insurgência”. Foi prontamente desautorizada pelo presidente Barack­Obama, mas acabou evidenciando, uma vez mais, a indisfarçável sanha americana em inventar inimigos, mundo afora, para prontamente oferecer os préstimos de suas forças armadas e de sua indústria bélica.


REVOLTA No portão da embaixada americana, o sentimento de um país invadido

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HENRY ROMERO/REUTERS

engolido

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Desastre armado

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MELANCOLIA Mexicanas deixam a festa do bicentenário. Poucos motivos para comemorar

tações, ou de uso do solo, tirando o controle das terras dos camponeses e passando-os às empresas transnacionais.” “Desde a época em que o presidente Nixon declarou guerra às drogas, nos anos 70, foram 14 milhões de prisões relacionadas à droga nos EUA. Ainda assim, hoje elas são mais populares, mais acessíveis”, critica a socióloga. “O que se precisava fazer era agir com maior rigor sobre a base econômica dos cartéis. Falamos entre US$ 19 bilhões e US$ 39 bilhões anuais. Atacar esse

MARGARITO PEREZ/REUTERS

Contando com a assistência americana, por meio da chamada Iniciativa Mérida, desde 2007, as Forças Armadas mexicanas se converteram em força policial para combater os narcos. Hoje são mais de 45 mil homens patrulhando o país. Ainda que esse combate não dê sinais de avanço, ao menos no plano político teve sucesso. Felipe Calderón, do Partido da Ação Nacional (PAN) – o mesmo de seu antecessor, Vicente Fox –, então recém-eleito após um episódio de fraude eleitoral descarada contra André Manuel Lopez Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD), hoje ostenta razoáveis índices de popularidade. Os intensos protestos populares que se seguiram à eleição, levando milhões de pessoas às ruas, acabaram por arrefecer. “É um desastre. A presença das tropas nas ruas é uma das maiores causas do grave aumento das violações aos direitos humanos e da violência no país”, destaca Laura Carlsen­, socióloga norte-americana do Centro de Relações Internacionais, na Cidade do México. “As elites é que ganham muito poder com esse processo. Estão desfazendo o tecido social. Quando se tem uma cidade como Ciudad Juarez (no norte do país), que está tão militarizada, um caos total, tudo o que unia as pessoas, como a confiança, as organizações, começa a se desfazer. As pessoas já não controlam os fios de suas vidas”, diz a estudiosa, que antes da Iniciativa Mérida pesquisou os efeitos do Plano Colômbia, modelo para a ação no México. Ela destaca que os Estados Unidos já investiram na iniciativa US$ 1,8 bilhão desde 2008 e que o plano atendeu às próprias diretrizes americanas de segurança interna, a partir da ideia de “estender fronteiras” que o governo Bush estabeleceu como forma de melhor combater a ameaça terrorista. A questão é que o grande incentivo para o tráfico no México é a gigantesca demanda americana, que não é alvo dessas políticas. Mas se a política é obviamente ineficiente, que interesses a sustentam? “A militarização caminha de mãos dadas com o aprofundamento das políticas neoliberais e, sobretudo, da transnacionalização dos recursos naturais”, responde Laura. “Há casos em que entram em comunidades dizendo que estão buscando drogas, mas na verdade a presença militar lá está facilitando a instalação de projetos mineiros, como na Sierra Madre, ou a instalação de projetos de plan-

modelo econômico não se faz por meio de violência ou militarização.” Para Laura, o momento é de “alerta vermelho”. “Se conseguirem impor esse modelo aqui no México de guerra contra o narcotráfico que militariza a sociedade de uma maneira em que não há apenas a participação, mas a direção do Pentágono, rapidamente esse modelo vai se expandir pela América Central e pode chegar a gerar um choque com os países de centro-esquerda, como Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia”, prevê.


FOTOS JOANA MONCAU

ECONOMIA DESTRUÍDA Miguel Salazar Vargas vende doces nas ruas da Cidade do México desde 1981. Seus filhos (abaixo) limpam para-brisas. A formalidade não compensa

Caos e business

Outro aspecto oculto sob a chacina de Tamaulipas é o caos social a que estão submetidos os trabalhadores mexicanos com os rumos econômicos que o país tem tomado. Ponta de um gigantesco iceberg de corrupção, violência e descaso, o episódio refletiu a situação de extrema fragilidade social dos milhares de trabalhadores que atravessam o país rumo aos Estados Unidos. Eles partem de comunidades camponesas e indígenas do México,

dos pequenos­países centro-americanos, como Guatemala, Honduras e El Salvador, afetados por políticas de ajustes macroeconômicos e abertura comercial impostas pelos braços financeiros do neoliberalismo, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). As ruas da capital mexicana estão repletas de anúncios de empregos, principalmente no setor de serviços. Mas os salários são baixos demais. Empresas privatizadas contratam terceirizadas, que por sua vez

oferecem empregos sem nenhuma proteção social. “Essa via neoliberal atua sob um conjunto de vias, como privatizações, livre comércio, terceirização, flexibilização trabalhista. Todas são componentes de uma estratégia que busca deixar o capital em maior liberdade para que mova seus interesses à custa dos trabalhadores”, analisa Hector De la Cueva, coordenador-geral do Centro de Investigação Laboral e Assessoria Sindical (Cilas). As maquiladoras – empresas que realizam a montagem de produtos a partir de componentes importados, para re-exportar o resultado a baixíssimo custo –, continuam empregando 1,2 milhão de pessoas, principalmente na fronteira com os Estados Unidos, segundo dados do Cilas. “É uma dessas ficções desse modelo. Estatisticamente, aparece como desenvolvimento do país, mas não é”, diz De la Cueva. Para ele, o modelo de livre comércio é uma espécie de “chantagem transnacional” contra os trabalhadores. “Aos trabalhadores do norte do México dizem que, se não aceitarem rebaixar suas condições de trabalho ou manter suas condições miseráveis de vida e de trabalho, seus empregos irão para o sul, a Honduras, ou à China. O mesmo dizem aos trabalhadores do sul. É uma chantagem que vai de ponta a ponta, dizendo que sempre há outro país onde se pode produzir o mesmo com menos.” O México é, hoje, um dos países com o maior número de tratados de livre comércio no mundo, segundo o Cilas. Mas os problemas vão mais longe: nos anos 1990 o país chegou a flexibilizar suas leis com o objetivo de favorecer a adoção do modelo. “Essa abertura comercial indiscriminada fez crescer a dependência e a subordinação do México. O país perdeu soberania em todos os terrenos: energético, alimentar, nacional”, analisa De la Cueva. O resultado, além de uma queda geral na qualidade dos empregos e na média salarial e de um processo de êxodo rural e desindustrialização do país, foi um boom na emigração, principalmente para os Estados Unidos – quase 500 mil pessoas ao ano, na década de 90. As privatizações também deixaram um rastro de destruição. O Cilas calcula que 95% das empresas estatais foram vendidas – gerando fortunas, como a de Carlos Slim, hoje um dos homens mais ricos do mundo –, mas alerta que o processo continua em curso, por intermédio NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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de progressivas­aberturas à participação da iniciativa privada em setores estratégicos, numa privatização silenciosa: “Setores como energia elétrica, petróleo, educação pública, patrimônio cultural, saúde, seguridade social e recursos naturais, como a água, há anos estão sendo preparados aos poucos. Fazem uma campanha sobre a ineficiência das empresas até convencer a opinião pública de que não há outra saída a não ser entregá-las”. No fim das contas, tudo se encaixa, conclui De la Cueva. “O clima de insegurança que existe no país evidentemente não pode ser terminado com uma guerra, mas mudando o modelo neoliberal. Só que o governo utiliza essa guerra contra o narcotráfico para militarizar o país, para recortar direitos, para aterrorizar a população e evitar que haja uma expressão de descontentamento. É um círculo que se fecha dessa maneira.”

Nas ruas

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VIOLÊNCIA DESMEDIDA O povo protesta contra a chamada “guerra ao narcotráfico”, que, nos últimos quatro anos já fez mais de 30 mil vítimas, entre parlamentares, sindicalistas e jornalistas. Abaixo, corpos da chacina de Tamaulipas: 72 mortos de várias nacionalidades

HO NEW/REUTERS

Nas ruas do centro da capital mexicana se constata gravado no cotidiano de uma família de vendedores informais o efeito direto de duas décadas de políticas liberais. Miguel Salazar Vargas, 50 anos, nascido na zona rural do estado de Hidalgo, conta que trabalha desde 1981 no mesmo cruzamento vendendo doces. Seus seis filhos o apoiam, trabalhando como limpadores de para-brisas. Além deles, trabalham nessa área uma cunhada e um primo de Miguel. Os Salazar Vargas vivem no bairro de Istapalapa e, diariamente, enfrentam cerca de duas horas de transporte público até chegar ao local de trabalho. Antes, Miguel trabalhava em uma empresa de marcenaria, mas certa vez, ao voltar das férias, foi demitido. Ele conta que a situação só piorou nos últimos anos. “Antes éramos 30 aqui nesse ponto de venda. Alguns morreram atropelados e outros, com a crise, foram tentar a vida nos Estados Unidos. Hoje estamos em cinco vendedores e dez limpadores de para-brisas.” Ainda que a situação tenha piorado, Miguel afirma que ainda é mais vantajosa que trabalhar em troca de um salário mínimo. Ele fatura 5 mil pesos por mês (cerca de R$ 650), enquanto o salário mínimo do país é de menos de R$ 200. Os efeitos da falta de oportunidades se estendem também pela parte rural da família: “Da minha família que vive em um povoado em Hidalgo, já foram para os Estados Uni-


JESUS TRIGO/REUTERS EDGAR MONTELONGO/REUTERS

INTIMIDAÇÃO A presença permanente do Exército perturba mais a população que o tráfico

dos cinco primos e 15 sobrinhos. Em 1996 migrou para lá o primeiro ente da minha família. O mais recente foi há seis meses. Esse já tinha ido para os Estados Unidos, voltou por causa da crise e agora vai tentar a vida novamente por lá. Eles apoiam suas famílias, mas têm de viver como ratos”. A informalidade no México abrange cerca de 12,8 milhões de pessoas, ou 28,8% dos 44,6 milhões de trabalhadores ocupados, segundo dados oficiais recentes – sem falar em 13,7 milhões que não têm previdência social, um igual número de pessoas­ sem contratos de trabalho assinado, 10 milhões de trabalhadores autônomos, 4 milhões de subempregados, 3 milhões que

não têm renda e, finalmente, 2,5 milhões de desempregados. É quase metade da população abaixo da linha de pobreza. Com a recente crise mundial, o PIB no país caiu 6,5%, depois de dois anos em que a economia patinava, com crescimentos de 1,5% em 2008 e de 3,3% em 2007. Para um país que é um dos dez maiores produtores de petróleo do mundo, um resultado vexatório. O processo de subordinação à economia americana é tão grave que as remessas dos quase 30 milhões de mexicanos e seus descendentes que vivem no vizinho de cima já são a segunda maior fonte de ingresso de capital no país (mais de US$ 20 bilhões anuais).

Em busca de saída

DANIEL AGUILAR / REUTERS/REUTERS

Apesar de abrigar na atualidade expressões à esquerda entre os que se apresentam atualmente mundialmente famosas da luta social, como o (o “Chávez mexicano”, para alguns), conseguisse zapatismo, e diversos movimentos indígenas driblar as dificuldades e, hipoteticamente, se e camponeses, o campo popular no México elegesse, Hernandez não crê que ocorreriam não foi capaz de derrotar o projeto elitista do guinadas radicais. E recorda os discursos do neoliberalismo. “As resistências ao sistema são candidato em 2006: “Ele dizia que o neoliberalismo regionais. Não se consegue articular nacionalmente era um ouriço ao qual se tinha de lixar os espinhos um movimento capaz de conquistar o poder”, diz mais afiados. Mas ele não ia além disso, nem o analista político Luis Hernandez, do diário La rompeu, nem enfrentou os Estados Unidos”. Jornada. Ele explica que Lopez Obrador, vítima de Hernandez afirma que, tanto pelo papel fraude em 2006, mantém um grande número de importante que as remessas têm hoje para as seguidores pelo país, mas não controla a direção de classes populares como pela opção que as elites seu partido, o PRD, que vem adotando alianças com fizeram de uma integração subordinada aos Estados o governista PAN. Há fortes críticas de seu principal Unidos, o país hoje está amarrado: “É por um lado pré-candidato às eleições de 2012 – enquanto um problema de visão, mas é também um problema Mesmo o candidato de esquerda as pesquisas preliminares dão a liderança das de correlação de forças. O México passou muitos Lopez Obrador não enfrenta os EUA preferências populares ao velho PRI, que governou anos olhando para o norte, em vez de olhar para o país de 1928 a 2000, quando foi derrotado pelo também conservador o sul”. E conclui: “Com exagero, diria que caminhamos para nos tornar PAN. um novo Porto Rico”, em referência ao país que tem status de “Estado Mesmo assim, ainda que Lopez Obrador, considerado o candidato mais associado” aos Estados Unidos desde fins do século 19. NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

O pôr do sol do Capão é o mais lindo de São Paulo. Vai lá, pegue um vinho, arrume uma laje e assista. Quanto mais poluído está o dia, mais bonita ainda fica a paisagem 22

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Não é bróder.

É MANO! Jeferson De reuniu em seu filme Bróder, com estreia prevista para março, Mano Brown e Daniel Filho, Capão Redondo e Globo Filmes. “Como cineasta, mostro que a gente pode ser muitas coisas além de motoboy” Por Luciana Ackermann

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ormado em Cinema pela Universidade de São Paulo (USP), Jeferson De está que não se aguenta. Bróder, seu primeiro longa-metragem, só recebe elogios por onde passa. Foi selecionado, exibido e reverenciado no Festival de Berlim, nos festivais de Paulínia e do Rio de Janeiro e fez o rapa em Gramado, onde conquistou cinco Kikitos, entre os quais os de melhor direção e de ator, para Caio Blat. A estreia do filme em circuito nacional, antes prevista para este mês, deve ficar para março. Em torno de seu projeto, Jeferson De conseguiu reunir universos e figuras díspares como Mano Brown e Daniel Filho, Capão Redondo, na periferia de São Paulo, e Globo Filmes. Em 2000, criou o manifesto Dogma Feijoada, que prevê maior participação de negros nas produções audiovisuais. De lá para cá, Jeferson De diz que amadureceu em relação às convicções raciais, mas descarta uma possível flexibilização. E, apesar de testemunhar os avanços na sociedade brasileira no que se refere à diversidade, ainda sente o peso da discriminação racial, como conta nesta entrevista. Depois do sucesso que seu filme fez nos festivais, qual a expectativa em relação à estreia no circuito comercial?

Estou na maior alegria com a recepção do filme e ansioso para ver a reação­do público. Bróder é um filme que fala da amizade, do carinho, das relações. Houve uma entrega absurda de cada um dos envolvidos. Isso dá para ver no resultado final. Fiquei com medo porque tinha a preocupação de estar falando algo que só eu entendesse. Em Berlim, deu para perceber que eles entenderam e se emocionaram com o que eu tinha a dizer.

GERARDO LAZZARI

O que o levou a filmar no Capão Redondo?

Escrevi o roteiro sem pensar em um lugar específico. A história não precisava ser na periferia, poderia ser na Mooca, no Butantã, no Brás, na Brasilândia, em Santana. Tinha de ser uma casa simples, humilde, onde ocorre o encontro de três amigos. Todas as relações apresentadas poderiam acontecer em qualquer bairro. Mas eu já conhecia muita gente no Capão e, ao conseguir os recursos NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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para fazer o filme, achei bom que fosse empregado em benefício dessa gente de lá. Além disso, quase todos os filmes sobre a periferia de São Paulo foram gravados na Brasilândia. Aquele visual já tinha enchido o saco. Ao levar o Gustavo Hadba, fotógrafo do filme, ao Capão, ele pirou. O cara é carioca, mora no Leblon, e adorou. O pôr do sol do Capão é o mais lindo de São Paulo. Vai lá... Pegue uma garrafa de vinho, arrume uma laje e assista. O contraditório é que, quanto mais poluído está o dia, a paisagem fica ainda mais bonita. Qual é a sua relação com o bairro?

Bróder gerou uma ausência de 5 anos na vida da milha filha. Tomou conta da minha vida. Sempre que ela ouvia a palavra bróder, ficava triste. No aniversário dela eu estava em Gramado. Quando voltei dei o Kikito para ela

Faz tempo que sou um assíduo frequentador. Adoro a Oscar Freire (rua no bairro chique dos Jardins), comer e beber bem, mas também adoro comer e beber bem lá no Capão Redondo. Lá tem uma feijoada maravilhosa. Sou de Taubaté (interior paulista), vim para São Paulo estudar Filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Um amigo, que fazia Ciências Sociais, morava no Capão e me apresentou o bairro. Outro fato ainda mais engraçado, que mostra como a vida dá voltas, é que quando a minha ex-mulher ficou grávida ela quis ter um parto humanizado. Fomos em busca de uma parteira, encontramos a Ângela Gehrke da Silva, uma alemã, que fazia os partos humanizados na favela Monte Azul, no Capão. A nossa filha, Joana, nasceu na casa onde a gente morava, no Butantã, com essa parteira.

E como foi o trabalho por lá?

O Paulo Magrão, da organização não-governamental Capão Cidadão, que conheço há mais de dez anos, foi parceiro. Essa ONG foi nosso braço dentro do bairro. Combinei com o Magrão que ele arrumasse todo mundo de lá que quisesse trabalhar como pintor, marceneiro, segurança para ajudar a parar a rua, explicar para a comunidade em todas as instâncias legais e ilegais que a gente estava querendo filmar lá. A comunidade abraçou o projeto. Mas havia outro problema, bem delicado. Eu não queria usar ator local. O cinema cria a ilusão do tapete vermelho. Depois, nenhum cineasta dá conta disso. Ele vai lá, faz o filme do favelado, um beijo e tchau. A vida dele continua no tapete vermelho, a do cara, não. Muitas vezes, esse cara não entende o que aconteceu. Não fica claro que ele está interpretando ele mesmo. Eu expliquei isso lá, o pessoal entendeu. Não era um filme sobre o Capão Redondo, eu estava filmando no Capão. A única exceção foi o Du Bronx, porque ele é rapper. Sabe o que é subir num palco, fazer um show, descer e continuar no mundo real. Quem o indicou foi o Mano Brown.

Você já conhecia o Mano Brown? Além de indicar o Du Bronx, qual o papel dele no filme?

O Mano Brown foi meu superaliado. Já o conhecia de shows e de se cruzar na padaria nessas minhas idas ao Capão. A gente batia papo. Eu precisava muito do apoio dele. Escrevi o roteiro ouvindo Racionais MC. Durante as filmagens, ele visitava o set, sentava do meu lado, opinava em algumas coisas. Eu praticamente paro

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o filme para homenagear o Mano Brown com a música Fim de Semana no Parque, quando os três meninos saem do Capão e vão, literalmente, passear no grande parque de diversões que são as Avenidas Paulista e Berrini, a Vila Madalena. Como o Cacá Diegues e o Daniel Filho entraram no projeto?

Primeiro, o meu roteiro foi selecionado pelo Sundance (laboratório de roteiros criado pelo ator Robert Redford e ligado ao maior festival de filmes independentes dos Estados Unidos). Passei pelo laboratório deles, no Rio de Janeiro, durante uma semana com dez julgadores detonando o meu trabalho. Um negócio totalmente teórico. Tudo em cima daquela peça de 90 páginas. Saí de lá e reescrevi o roteiro. Mandei ao Cacá Diegues, porque ele já havia assistido aos meus curtas e elogiado. Não conhecia ninguém. O Cacá tem experiência de um processo que sempre desejei para mim. Faz filmes grandes, com atores profissionais e os lança, comercialmente.

E lançamento comercial não é o forte do cinema brasileiro.

Em São Paulo, a gente fica preso ao cinema meio cabeção e de arte, nisso chega o cinema do Rio e faz o rapa aqui. Busquei um meio-termo. O Cacá me respondeu dizendo que o projeto era bom, sugeriu que eu procurasse a Columbia Pictures. Segui a orientação dele, e o Rodrigo Saturnino, presidente da Columbia, afirmou que queria fazer o filme. Em 2007, mandei para a Globo Filmes. O Daniel Filho leu, gostou e me chamou para nossa primeira reunião. Eu tremia. No fim da conversa, o Daniel me abraçou emocionado e agradeceu por eu ter levado o projeto para ele. Não entendi nada, achei muito louco aquilo, ele me agradecendo... Passei a catequizar o Daniel sobre a realidade do Capão. Mandei o livro do Ferréz, os DVDs e camisetas do Racionais MC. Hoje ele sabe tudo sobre o Capão.

Houve algum novo direcionamento depois da entrada dos novos parceiros?

O filme é meu economicamente e conceitualmente. Algumas pessoas ficam assustadas e perguntam se o Daniel Filho e o Cacá Diegues atrapalharam. Fica aquela dúvida: “Será que os caras botaram muito o dedo?” Eu só posso responder isso com as pessoas assistindo ao filme. Depois comparem se ele se parece em alguma coisa com o Chico Xavier, com Se Eu Fosse Você, Orfeu... Acho que não. O Bróder é a minha cara. O Daniel, por exemplo, discutiu muito comigo o roteiro com o objetivo de deixar o trabalho melhor. A gente levou quase um ano discutindo e melhorando o roteiro. Lembro que eu ficava ansioso, queria começar a rodar, e ele dizia: “Se você quiser filmar agora, pode filmar. Para a gente, é mais um filme. Para você, é o seu filme”. Não é à toa que Chico Xavier ultrapassou a marca de 3 milhões de espectadores. O cara sabe o que está fazendo.


São as contradições do nosso país e do cinema brasileiro. Tinha tudo para não rolar, mas rolou. Ao mandá-lo e ele ser aprovado pela Columbia e pela Globo Filmes, consegui garantir mais recursos e o lançamento comercial do filme. Para mim, é inconcebível fazer um filme para ser visto pela mãe e amigos. Conheço vários cineastas que também passaram cinco anos da vida deles se dedicando a um filme que não foi lançado. Ou, o que também é cruel, foi lançado e ficou apenas uma semana em cartaz, sem nenhuma divulgação.

Houve algum tipo de preconceito de alguma das partes nesse processo?

Aconteceu uma história chata, uma das primeiras vezes em que fui à Columbia Pictures, um prédio maravilhoso, na Berrini. Cheguei, fiz o cadastro, tirei a fotinha. Lá em cima, na recepção, uma senhorinha bateu o olho em mim, sem titubear, e disse que entrega era do outro lado. Por isso, o meu papel como cineasta é importante, consigo mostrar que, além de motoboy, a gente pode ser outras coisas. Em geral, sou mais discriminado por seguranças negros. A gente aprendeu que os jovens negros nas cidades são um perigo para a sociedade. Por isso, foi uma alegria enorme, ao voltar de Gramado, subir a Rua Joaquim Eugênio de Lima e ver na banca de jornal, na Avenida Paulista, eu e o Caio Blat na capa da revista Caras. Apesar de ter dado a entrevista para eles, nunca pensei que me colocariam na capa. O óbvio seria colocar o Caio Blat, o que para mim já estava ótimo. Ninguém tem noção de quanto isso muda a história de um monte de meninas e meninos que passam e veem um negro na capa de uma publicação sem ter feito alguma merda. Não é um negro exibido no programa do Datena como um criminoso. Fiz um esforço no filme para tirar qualquer romantismo do crime, do tráfico. Ninguém vai sair do filme achando graça em ser bandido.

Quais foram as suas referências na infância?

Meus heróis eram o Saci, um preto sem uma perna, fumante inveterado que usava um boné ridículo, e o Mussum, o bêbado que falava tudo errado. Em um filme dos Trapalhões, ele acabou abraçado com uma macaca. Olha que mudança maluca. Toda vez que a Taís Araújo estampa uma capa, há mudança na autoestima. Isso é uma sociedade de mudança. Melhorou muito. Aqui em São Paulo, tivemos o Netinho como candidato a senador e, mesmo com uma galera pegando pesado, ele recebeu 7 milhões de votos. A própria Marina. É uma negra que foi a terceira candidata mais votada à Presidência do Brasil.

O que você acha do Dia da Consciência Negra, o 20 de novembro?

É uma maneira de a gente mesmo comemorar e lem-

brar de um líder que foi fundamental, Zumbi dos Palmares. Para mim, o grande herdeiro dele é o Mano Brown. Não passo batido de jeito nenhum. Participo de passeata ou exibo meus filmes em algum lugar. Para mim, é difícil ser militante. Fazer poesia e política é demais para mim. Não dou conta. Prefiro ficar com a poesia. O melhor que eu possa fazer, historicamente falando, é continuar realizando meus filmes e levar as pessoas para o lado emocional. Quando você emociona as pessoas, fica tudo mais fácil.

FOTOS GERARDO LAZZARI

Como foi ter Daniel Filho e Mano Brown envolvidos no mesmo projeto?

Você é a favor da política de cotas?

É fundamental neste momento. Adoraria descobrir uma fórmula mais rápida e melhor. Não dá para passar mais 100 anos sem soluções. É necessário colocar esse número de meninos e meninas de pele escura dentro das universidades. Não é a forma ideal, mas é a mais eficiente por enquanto e tem dado resultados rápidos. Um país que se diz moderno e desenvolvido não pode abrir mão de tantos talentos. Ainda é pequeno o número de estudantes de pele escura na USP, uma instituição que ainda não apresentou as respostas para isso. Desde que a USP foi fundada, ela vem sendo paga por um número grande de negros e não emitiu uma resposta favorável para a comunidade negra. Precisamos ficar muito atentos ao racismo, ao preconceito e ao machismo, porque eles aparecem em momentos em que a gente pensa que está tudo resolvido. Não está. Minha função é colocar isso nos meus filmes de uma forma sutil. Parte da sociedade e da mídia não quer discutir nem abordar isso. Acho o filme Cidade de Deus, do Fernando Meirelles, maravilhoso tecnicamente, mas em nenhum momento aqueles meninos discutem por que todos são escuros. Essas construções não caem do céu. Por isso, é necessário figuras como eu, atrás das câmeras. A participação dos atores e atrizes negros no processo de criação artística é frágil. São os últimos a chegar num set. Não tem truque, é preciso escola, formação. Por que a última vez que eu vi numa sala de aula uma pessoa negra foi no primeiro ano do colegial? Depois só tinha eu de negro.

Uma das vezes em que fui à Columbia Pictures, um prédio maravilhoso, fiz o cadastro, tirei a fotinha e lá em cima, na recepção, uma senhorinha bateu o olho em mim e disse que entrega era do outro lado

O que é o Dogma Feijoada? Continua existindo?

Continua! Já são dez anos do Dogma. São sete leis de como nós, negros, poderíamos produzir atentos à cultura negra. O nome científico é Gênese do Cinema Negro Brasileiro. Um cinema com atitude. Um cinema que eu não precisasse abrir mão da minha história pessoal, que acho bem importante para o Brasil. Entre as leis que escrevi está previsto que o diretor tem de ser negro(a), o filme tem de se dirigir à cultura negra brasileira, o protagonista tem de ser negro(a), e assim por diante. Amadureci muito nesse período. Não dá mais para eu olhar a periferia e classificar as pessoas dizendo quem é negro e quem não é. Existe um dado que para mim é novo: muitos jovens com o tom de pele do Caio Blat dizem que são negros. E aí? Você vai dizer que não é negro? O filme trata disso. Não estou mais NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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GERARDO LAZZARI

Em São Paulo, a gente fica preso ao cinema meio cabeção e de arte, nisso chega o cinema do Rio e faz o rapa aqui. Busquei um meio-termo

discutindo a negritude. Quero discutir a branquitude. Hoje em dia muita gente diz que é meio negão. O conceito biológico de raça está furado.

dos raps. Concordei com a sugestão dele, tirei o Hitler da cópia que rodou os festivais, mas vou incluí-lo na do circuito comercial.

Mas, ao escolher o Caio Blat como protagonista, você não descumpriu os preceitos do Dogma Feijoada?

Com foi a experiência da premiação no Festival de Gramado?

Não, os negros estão no Bróder. A extensão do que eu chamo de negro é que aumentou. O Macu, personagem do Caio Blat, é filho de um negro, tem um padrasto negro e os amigos dele são negros. As pessoas me cobram isso. Mas quem disse que o Macu não é negro? Todo mundo sabe que o Caio é branco, mas o Macu, não. É o olhar do personagem. Para mim, não há conflito. Estou conceitualmente muito confortável com a proposta do filme. O Gaspar, por exemplo, do grupo Z’África Brasil, é um loiro, usa dreads e camiseta do Malcom X; o Eminem é black total. Nos Estados Unidos, certamente, ele não é visto como negro, mas no Brasil isso é possível. O Brasil é o único lugar onde existe meio veado, meio negro, meio gordo. Olha os eleitores da Marina, meio Dilma, meio Serra. É disso que estou falando.

O que o fez escolher o Caio Blat?

Eu tinha dúvidas sobre quem poderia interpretar o Macu. Naquele momento, o Caio havia estreado o Batismo de Sangue, do Helvecio Ratton. Fiquei impressionado com a atuação dele fazendo o Frei Tito. Mandei o roteiro para ele ler. Nisso, ele respondeu, por e-mail, que sempre quis ser negão. Era tudo o que eu queria ouvir de um ator branco, porque na minha cabeça ele iria interpretar um cara como eu. Aí nos encontramos. Na ocasião, ele me convidou para a pré-estreia do Baixio das Bestas, do Cláudio Assis, que para mim é um dos mais importantes diretores da atualidade no Brasil. Quando eu vi o filme, tive certeza total de que o Caio seria o Macu. O Caio é um cidadão muito ativo e antenado. Um dia abri o jornal e li que ele tinha se mudado para o Capão. Uma iniciativa dele que acabou envolvendo todo o elenco. Em um determinado dia, os atores ficaram vivendo como se fossem os personagens. Rolou uma feijoada e quem preparou a comida, lá no Capão, foi a Cássia Kiss, que não come carne.

Como tem sido a trajetória de exibição de Bróder?

Tem sido linda. Começou, em fevereiro, no Festival de Berlim, na Alemanha. Para mim, já foi uma emoção absurda. Imagina, meu primeiro longa-metragem estrear em um dos três maiores festivais da Europa. Quando o curador do festival assistiu ao filme, disse que estava lindo e tinha chances de ser selecionado para algumas das mostras. Depois de selecionado, o curador sugeriu uma mudança. Pensei: “Pô, ele estava querendo mexer na montagem?” Ele explicou que o público ia entender uma palavra sem compreender o contexto. A palavra em questão era Hitler, que está na letra de um

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Eu e o Caio, coincidentemente, nunca tínhamos ganhado um prêmio tão grandioso. Chegamos a conversar sobre a necessidade que a gente tinha de ser premiado. Tínhamos a consciência de que o filme é bom. Quando ouvi anunciar “melhor ator, Caio Blat”, já fiquei extremamente feliz. Ele já havia dito para mim e depois repetiu, em público, que o Bróder é o principal filme da carreira dele, que nunca tinha feito um filme com tamanha intensidade. É uma honra. Nisso, o Bróder já havia recebido as premiações de melhor trilha sonora e melhor montagem. No momento em que foi anunciado o melhor diretor e ouvi meu nome, eu flutuei. Nunca tinha recebido prêmio pela direção. Recebi prêmios de melhor filme com os curtas, mas é de toda a equipe. Já o de direção é o reconhecimento do meu trabalho. Pô, foi demais para o meu ego. A primeira coisa que veio à minha cabeça foi a ausência que o Bróder gerou, nos últimos cinco anos, na vida da milha filha, Joana. O filme tomou conta da minha vida. Todas as vezes que ela ouvia a palavra Bróder, ela ficava triste. Dos 8 aos 13 anos, ela conviveu com esse fantasma. No dia do aniversário dela, eu estava em Gramado, recebendo o Kikito. Sempre tenho no bolso uma relação de todos os patrocinadores, mas, naquela hora, apagou tudo da memória, ofereci o prêmio à Joana e puxei um Parabéns a você. Todo mundo cantou junto. Foi uma loucura. Saí de Gramado rapidinho, viajei para Porto Alegre, São Paulo e depois para Santos, onde a Joana mora, e dei o Kikito para ela.

Como surgiu o desejo de ser cineasta?

É uma história breguíssima. Meu pai era metalúrgico e técnico do time de futebol da empresa onde trabalhava, em Taubaté. Mas ele acreditava que, além de jogar, os funcionários deveriam ter mais diversão. Aí ele viajava para Caçapava (cidade vizinha) para buscar o projecionista e um projetor. Eu tinha uns 6 anos e acompanhava meu pai. Ficava no banco de trás do carro olhando aquela caixa do projetor. Ao chegarmos na quadra do clube, meu pai esticava um lençol, o projecionista arrumava as bobinas e, de repente, aquilo tudo virava aquilo que a gente chama de filme. Eu via aquilo, a reação das pessoas, mas sabia que era mentira, que estava tudo dentro daqueles rolos. Essa história eu só resgatei recentemente. Cheguei até a pensar que eu estava inventando tudo isso na minha cabeça, mas a minha mãe e meu irmão confirmaram tudo. Putz, só podia me tornar um cineasta, né? Ou jogador de futebol, que era o meu desejo, mas minha mãe não deixou. Felizmente, porque agora, aos 42 anos, eu já teria me aposentado e estaria fazendo merda na periferia.


Atitude

T

Por Xandra Stefanel. Foto de Rodrigo Queiroz

BOM EXEMPLO

reze é o número de sorte de José Carlos Alcântara Moraes. Foi com essa idade que ele começou a ter aulas no espaço mantido na comunidade do Caju pela Fundação Gol de Letra. Criada há mais de dez anos pelos ex-jogadores Raí e Leonardo, a instituição sem fins lucrativos mantém unidades educativas também em Niterói e São Paulo­. Despertou a atenção do garoto o aspecto mais óbvio: o gosto pelo esporte que é paixão nacional. “Me interessei muito porque pensava­ que era uma escolinha de futebol. Daí fui ver que não era só isso. Tinha várias oficinas que, hoje sei, são muito importantes para mim”, afirma Zé Carlos. Ele participou de oficinas de informática, tornou-se “fanzaço” da biblioteca local – porque “ela ensina a gente a ficar mais esperto nos poemas” – e começou a praticar esportes que nunca havia experimentado, como basquete, vôlei e handebol. Foi muito além das peladas. O bairro do Caju, zona norte do Rio de Janeiro, com baixo Índice­de Desenvolvimento Humano (IDH), tem metade de sua população formada por crianças e jovens. É para esse público que a Gol de Letra desenvolve o projeto Jogo Aberto, composto­ por quatro programas: Comunidades, que presta assistência

social­para os jovens e suas famílias; Gol de Letrinhas, com aulas­ de leitura, escrita e informática; Jogos do Mundo, que busca o desenvolvimento­social, corporal e intelectual por meio do estudo­ e da prática esportiva e recreativa; e o Mensageiro da Água, que estimula a conscientização das crianças em relação à situação ambiental da comunidade. Seu bom desempenho nas aulas e oficinas fez como que fosse selecionado para uma viagem cultural de dez dias pela França. “Eles escolheram os alunos mais esforçados daqui e de São Paulo. Conhecemos­Paris, o Louvre, a Torre Eiffel, Lyon... Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Antes eu era muito tímido. Voltei mais maduro e aberto. Estou na 8ª série e já sei que quero fazer um curso profissionalizante de desenho. O que eu aprendi aqui deve me ajudar”, comemora o adolescente. Com mais experiência, sua responsabilidade agora aumentou. Ao completar 15 anos, foi selecionado para uma vaga de monitor do programa Jogo Aberto. “Durante três dias por semana ajudo os professores, faço o que eles pedem, organizo os materiais, olho as crianças. Mas o mais importante, e o que eles mais cobram de mim, é que eu seja um bom exemplo para elas.” NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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RAÇA

A pobreza, a ausência de políticas públicas e o racismo impedem o acesso dos negros a cursos de maior prestígio, à pós-graduação e à carreira científica Por Cida de Oliveira

A cor da ci T elefone celular, ar-condicionado, elevador, geladeira. Indispensáveis, esses itens são parte de uma extensa lista de invenções e descobertas de cientistas negros. São tantas que a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), ligada à Presidência, resolveu promover algumas delas no estande montado na Esplanada dos Ministérios, durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, em outubro. De acordo com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, nos últimos dez anos a produ-

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ção científica nacional cresceu 200%, passando de 10 mil para mais de 30 mil estudos publicados em revistas especializadas internacionais. Mas a população afrodescendente não é contemplada por esse salto. Pesquisa da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros detectou, entre 705 entrevistados, que 82% têm formação em ciências humanas, como Educação, Sociologia, História, Letras, Geografia. Racismo, ausência de políticas públicas, dificuldade de acesso à educação pública de melhor qualidade e baixa autoestima estão entre os fatores que inibem a presença do negro em cursos que abrem as portas para a carreira científica.

O físico Ernane José Xavier Costa, pesquisador do Departamento de Ciências Básicas da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP de Pirassununga (SP), é direto: “É preciso que as instituições admitam que a ciência e a tecnologia no Brasil têm cor. E é branca, feita por brancos e para brancos”. Ele coordenou o primeiro simpósio no país sobre a população negra na ciência e na tecnologia. A ideia surgiu em uma das viagens a Angola, onde participa de um projeto em parceria com uma universidade. “Embora o Brasil tenha inúmeros projetos na África, ouvi de um africano que eu sou o primeiro cientista brasileiro negro visto por lá.”


Ernane lembra que foi preciso bater em muitas portas até conseguir apoio para o evento. E, se não fossem relações pessoais, não teria conseguido sequer espaço para divulgação na agência de notícias da universidade em que trabalha. O resultado foi muito bom, apesar de nenhum dos pró-reitores da maior universidade pública brasileira ter comparecido. Graduado em Administração Pública pela Universidade Federal da Bahia, com mestrado em Ciência Política pela Federal de Pernambuco, Carlos Augusto Sant’Anna Guimarães é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife. Para ele, o racismo

O racismo é estruturante da sociedade brasileira e o fator econômico é um fenômeno que se junta a outros. Os negros são pobres porque são discriminados, e não discriminados porque são pobres

Carlos Sant’Anna, pesquisador da Fundação Joa­quim Nabuco, de Recife

ANDREA REGO BARROS

ciência

é o principal entrave à entrada de pretos e pardos em cursos como Medicina, Ciências Biológicas e Engenharia, portas para a nata da pesquisa, como aquelas feitas em biotecnologia, células-tronco, nanotecnologia. “O racismo é estruturante da sociedade brasileira e o fator econômico é um fenômeno que se junta a outros”, afirma. “Os negros são pobres porque são discriminados, e não discriminados porque são pobres.” Para ele, acentua as desigualdades o fato de a ciência ser considerada senhora da verdade e da razão, um bem social de grande valor. E, nessa perspectiva, o cientista estaria acima do bem e do mal, porque busca a verdade e trabalha com fatos. “Em última instância, é chamado para dar a palavra final, ocupando assim posição de destaque, prestígio e poder.” O pesquisador, que não encontrou 20% de pretos e pardos durante toda a sua vida acadêmica e não lembra de ter tido professores desse grupo, conta que há apenas três pesquisadores de pele negra entre os mais de 100 que atuam na fundação em que trabalha. Como diz, a questão racial está enraizada no Brasil, em todos os espaços, trazendo implicações sociais, econômicas e psíquicas que geram um grupo de indivíduos que se sente superior a todos e outro que se sente inferior. “É preciso romper com essa ideologia racista na qual nem mesmo o negro militante percebe que está sendo alvo. E o pior é a naturalidade dos que a praticam. Ao cruzar com um negro, a pessoa logo pensa se tratar de um bandido. E ainda acha que isso não é racismo”, dispara. “Até que se prove o contrário, o branco é bom e o negro é mau, fracassado, sem cultura, sem educação, que não pode estar em determinados espaços, como a iniciação científica e a seleção para mestrado e doutorado.” A química Denise Alves Fungaro, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, tem dados que quantificam a afirmação de Guimarães. Com base num levantamento que fez para uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ela diz que, dos 6 mil doutores titulados a cada ano no Brasil, somente 1% é negro e menos de 1% das pesquisas focalizam assuntos de interesse dessa população. Em 2001, quando a USP realizou um censo, apenas 9,64% dos seus alunos eram negros, enquanto essa população no estado de São Paulo correspondia a NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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34,3%. “Estudos sobre inserção desse grupo no ensino público superior brasileiro constataram que 0,4% dos docentes em universidades públicas são pretos e pardos. Se nada for feito, a projeção para os próximos 170 anos é que esse percentual atinja, no máximo, 1%”, adverte.

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MENINO BOM DE MATEMÁTICA Dedicação aos estudos foi o caminho escolhido por Cláudio para furar o bloqueio racista. Fez mestrado, doutorado, estudou na Itália, na Nasa, e hoje dá aula na mesma universidade onde estudou

ARNALDO TORRES

Com pós-doutorado pela Universidade de Coimbra, Portugal, e sete prêmios pela pesquisa sobre tratamento de água poluída, Denise atribui seu ingresso na carreira científica à educação pública de qualidade, à renda familiar adequada e à oferta de bolsa de pós-graduação. “Desde pequena quis ser cientista. Minha sorte é sempre ter gostado de estudar.” Filha de zelador, não desprezou o privilégio de morar na região central da cidade e poder frequentar um colégio público de referência, o Caetano de Campos. Chegou ao ensino médio quando a educação gratuita entrava em crise. Com a ajuda dos pais, fez cursinho pré-vestibular durante o último ano e ingressou no Instituto de Química da USP. Se praticamente não havia negros nas fases anteriores, na faculdade menos ainda. “Ter me destacado nos estudos, sempre, me nivelou aos demais colegas. Acho que por isso nunca me senti discriminada.” A dedicação aos estudos, aliás, é a maneira encontrada para furar o cerco. O físico Cláudio Elias da Silva, professor do Instituto de Física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é filho de pai feirante e mãe artesã. Criado na Baixada Fluminense, seu currículo inclui cursos na Europa e mais de um ano e meio como pesquisador na Agência Espacial Americana, a Nasa. “Ainda criança, percebi que não me encaixava no padrão dos meninos preferidos pelas meninas. Descobri o estudo como aliado para superar essa desvantagem quando passei a dar aulas de reforço para uma menina, bonita, que só passou a olhar para mim depois que soube que eu era bom em matemática”, lembra Cláudio. Reconhecido e admirado, ele passou a estudar mais e mais. Fez colégio técnico e, durante o estágio numa empresa de telefonia, percebeu que os técnicos faziam faculdade à noite e não eram promovidos quando se formavam. Com o fim do estágio, investiu o tempo nos estudos e em aulas que dava num cursinho. Passou no vestibular da universidade onde hoje leciona e, depois de graduado­, deu aulas numa particular.

RODRIGO QUEIROZ

Questão de oportunidade

OLHOS NO CÉU E PÉS NO CHÃO Sonia Guimarães foi a primeira mulher a lecionar no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o prestigiado ITA de São José dos Campos, rompendo ao mesmo tempo o preconceito da cor e do gênero


EDUARDO ZAPPIA

PROBLEMA COMEÇA NA BASE Paulino de Jesus acredita que a escola pública brasileira, sem estrutura para lidar com as diferenças, é excludente

Fez mestrado, doutorado, estudou na Itália. Racismo, mesmo, só sentiu nos Estados Unidos. “Notei que um engenheiro que trabalhava na mesma sala não respondia a minhas perguntas quando estávamos a sós, apenas em reuniões. Além de negro, eu era o latino-americano que ameaçava seu emprego. Na Itália, talvez por causa do meu preparo acadêmico, nunca me senti discriminado e fiz muitas amizades. Quando adolescente, na Baixada, eu só via racismo quando o menino negro queria namorar a menina branca”, conta. Estudar com afinco marcou a trajetória de Sonia Guimarães, de São José dos Campos (SP). Filha de tapeceiro, ela foi a primeira mulher a lecionar no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), onde chegou em 1993. Hoje, Sonia divide seu tempo entre os laboratórios e a gerência de um projeto de um dispositivo estratégico para a defesa das fronteiras no Instituto de Aeronáutica e Espaço. Com graduação na Universidade Federal de

São Carlos (UFSCar), mestrado na USP e doutorado em Bolonha, na Itália, a pesquisadora foi recebida com desconfiança por parte de muitos colegas, principalmente de alta patente militar. “Meu currículo e a fluência em duas línguas estrangeiras pareciam não significar nada”, afirma. Para ela, faltam incentivos e facilidade de acesso para a carreira científica. E isso vale também para o branco. Na infância, a criança é desestimulada a estudar Física, por exemplo, porque não terá onde trabalhar. “O sonho já é morto logo que nasce”, diz Sonia. E depois, já na adolescência, falta apoio para o ritmo intenso de estudos e o tempo passa a ser dividido, em muitos casos, entre festas, passeios e diversão. “O estudo deixa de ser a meta principal. Como vamos conseguir ir bem no curso e obter os melhores empregos?”, questiona. “Como fazer isso indo a festas em plena segunda-feira à noite?” Para piorar, segundo ela, o Estatuto da Igualdade Racial, sancionado em julho passado pelo presidente Lula, não prevê cotas para negros em universidades, empresas e candidaturas políticas. A falta de educação pública de qualidade, bem como de expectativa de ingresso na universidade e na pós-graduação, são outros obstáculos, na opinião de Paulino de Jesus Francisco Cardoso. Vice-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e pró-reitor de Extensão, Cultura e Comunidade da Universidade Estadual de Santa Catarina, ele diz que, além dos problemas estruturais, a escola pública brasileira, sem condições para lidar com as diferenças, é mais excludente para o negro. “A cultura disseminada em festas não contempla os costu-

mes e religiões, por exemplo. E, quando isso acontece, é de maneira equivocada e preconceituosa”, afirma. “Com poucas condições de permanecer no ensino fundamental e médio, como vão pensar em universidade?”. Ele diz que o sistema de cotas é positivo mas insuficiente, uma vez que a adesão ao sistema é questão de orientação de governo e das universidades, e não política de Estado. “Devem ter entrado este ano entre 150 e 200 alunos pelas cotas na Universidade Estadual­de Santa Catarina, o que é muito pouco”, argumenta. Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com mestrado e doutorado pela PUC de São Paulo, Paulino conta que os únicos negros que vê na faculdade são africanos. O neurocientista paulistano Miguel Nicolelis é hoje um dos cientistas de maior destaque em todo o mundo. Só neste ano ganhou dois dos mais importantes prêmios concedidos pelo governo americano. Para ele, que dirige também um centro de neurociências em Natal, a séria questão racial no âmbito científico reflete principalmente a baixa qualidade do ensino público, no qual estão os negros, e é agravada pela falta de capilaridade da produção científica brasileira. “A produção está concentrada em São Paulo e não é compartilhada como deveria, indo ao interior do Piauí, por exemplo, para que a criança a conheça e se interesse”, afirma. Para Nicolelis, a ciência tem de sair do pedestal e deixar de lado o ranço aristocrático. “Pouco adianta aumentar investimentos, chegando aos 4% do PIB que queremos, se o conhecimento científico e tecnológico não for compartilhado igualmente por todos os brasileiros.”

Invenções atribuídas a pesquisadores negros Invenção Telefone celular Semáforo Ar-condicionado Câmbio automático Extintor de incêndio Freio automático a ar Máscara contra gás Elevador Cortador de grama Geladeira Guitarra

Inventor Ano Henry T. Sampson 1971 Garret Morgan 1923 Frederick M. Jones 1949 Richard Spikes 1932 T. Marshal 1872 G. T. Woods 1902 Garrett Morgan 1914 Alexander Miles 1887 J.A. Jaburr 1899 J. Standart 1891 Robert F. Fleming 1886

Fonte: Secretaria de Políticas de Promoção e Igualdade Racial (Seppir) NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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SÓ POR H

SAÚDE

À disposição A irmandade Narcóticos Anônimos tem um serviço de informação ao público pelo qual visita escolas, empresas e comunidades para divulgar suas atividades. Também oferece aos interessados atendimento telefônico para suporte à população em geral. Consulte o site www.nasp.org.br.

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HOJE O

A sociedade dos Narcóticos Anônimos atua em 130 países e, há quase seis décadas, ajuda pessoas a se livrar de casos de dependência dados como perdidos Por Roberto Amado

DANILO RAMOS

DYLAN MARTINEZ/REUTERS

grupo de pessoas é tão heterogêneo que parece não fazer sentido. Um senhor de terno e gravata conversa afetuosamente com um jovem negro, de calças rasgadas e boné invertido. Jovens se misturam com mais velhos. A moça de cabelos coloridos discute com intimidade calorosa com a senhora elegantemente produzida. Aparentemente, não há nada em comum entre eles. Mas raramente se vê um grupo tão unido em torno do mesmo objetivo. Eles são adictos. Pertencem à irmandade dos Narcóticos Anônimos e se reuniram para mais um encontro. Estão leves, descontraídos. Alguns em volta de um rapaz de cerca de 30 anos, com calças de motoqueiro. É o primeiro dia dele, hoje “a pessoa mais importante” da reunião. Ele sorri e se sente querido, mas não deixa de manifestar algum nervosismo. Olha com admiração para seu interlocutor, um rapaz que declara estar “limpo há oito anos, sete meses Se você está e 21 dias”. E só por hoje. perguntando por Na reunião quase todos falaram. Iniciaram suas partilhas que faço tudo isso, declarando o tempo que estão vou dizer... Porque “limpos”, agradecendo a ajuda funciona, simples de todos e de uma “força maior” assim. Em todo e terminando a introdução com esse tempo em uma espécie de “amém”: só por que estou sóbrio, hoje – a expressão que dá o caráter desse esforço individual e nenhuma única vez coletivo, o momento congelado, pensei seriamente a exclusão do passado e do futu- em tomar um ro. Por hoje cada um deles con- drinque ou usar seguiu manter-se longe dessa alguma droga “doença”, como definem. Eric Clapton, músico, 65 anos, “Uma doença incurável, mor- limpo desde os 42, em sua tal e progressiva”, diz o relações autobiografia públicas anônimo, mais de dez anos limpo, hoje assumindo responsabilidades dentro da irmandade. São duros consigo mesmos, procuram um olhar realista sobre o problema, cobram-se disciplina e sabem que são olhados com preconceito por boa parte da sociedade. É essa mesma consciência que permite alimentar a convicção de que a doença pode ser tratada com sucesso. NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Para isso, é preciso participar dos grupos e adotar os 36 princípios espirituais. Os 12 passos definem o caminho do tratamento; as 12 tradições definem comportamentos; e os 12 conceitos para o serviço determinam as práticas operacionais da irmandade, o correspondente a aspectos administrativos. Com uma estrutura complexa, que envolve grande quantidade de filiados e muitos eventos, a irmandade precisa de organização e objetividade. E salvo algumas exceções – profissionais específicos, como contadores e faxineiros –, todos os trabalhos administrativos são executados por adictos voluntários, que assumem cargos, como na tesouraria, em mandatos que normalmente duram um ano.

12 passos

O mais importante talvez sejam os 12 passos. Cada um deles determina o que se deve fazer para a recuperação do adicto. Entre outras mensagens, eles recomendam: o firme reconhecimento da doença; a busca pela reparação dos erros cometidos, principalmente com a família e amigos; e a aceitação da existência de uma “força maior” – que pode ser um deus de qualquer religião ou simplesmente o próprio grupo que se frequenta. Não há nenhum tipo de restrição social, espiritual ou racial, assim com não há qualquer forma de pagamento – apenas contribuições voluntárias. A única exigência é “reconhecer que é um adicto e estar disposto a se recuperar”, como diz um de seus membros, repetindo o que aprendeu há apenas 15 dias. O método dos 12 passos não é uma exclusividade do NA – na verdade, é utilizado pelos alcoólicos anônimos ou por qualquer irmandade com objetivos semelhantes. A diferença é que os Narcóticos Anônimos incluem usuários de todas as drogas, inclusive o álcool, sem distinção. Apenas o tabaco é tolerado, sobre o qual a irmandade exime-se de dar opinião. É assim desde 1953, quando foi criado no sul da Califórnia, nos Estados Unidos, por um grupo egresso dos Alcoólicos Anônimos. De lá para cá, a sociedade só tem crescido, espalhando-se por mais de 130 países, nos quais ocorrem por volta de 36 mil reuniões semanais. No Brasil, estabeleceu-se na década de 1980. As reuniões – momento mais importante do programa, em que os membros se reúnem para partilhar – são feitas por mais de 180 grupos. Não há registro da quantida-

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Minha vida com as drogas começou aos 8 anos Experimentei bebida alcoólica e não mais parei. Aos 13 anos, era praticamente alcoólatra: eu bebia todos os dias com amigos mais velhos do meu condomínio. Era uma maneira de me integrar ao grupo. Sentia-me mais sociável, me dava melhor com as meninas. Depois vieram outras drogas, e com 16 anos minha vida era dedicada às farras. Numa delas, acabei sendo preso por perturbar a ordem. Fiquei em prisão domiciliar, mas isso não me impediu de consumir drogas, todos os dias. O casamento dos meus pais entrou em crise, e eu me sentia responsável por isso. Todos os dias eu achava que seria a última vez, mas não conseguia parar. Aos 17 anos, tomei a decisão de me suicidar. Não deu certo. Desisti, pensando que nem isso eu sabia fazer direito. Minha vida continuou assim. Usava uma droga para dormir, outra para ir à faculdade e, apesar disso, minha vida estava um caos. Eu não conseguia me comunicar com meu pai e era tudo o que eu queria e precisava. Estava péssimo nos primeiros anos da faculdade. Fazia loucuras. Foram vários carros e acidentes, até hoje não entendo como escapei. Nas baladas, arrumava confusão e às vezes apanhava tanto que ficava largado na rua. Quando comecei a trabalhar como veterinário anestesista, minha vida piorou. Afinal, eu trabalhava com drogas. Se eu parava alguns dias, minha mente ficava confusa, eu suava frio, tinha dores no corpo todo. Entrei num processo terminal. Fiquei meses isolado de tudo e de todos, usando droga sem parar, definhando. Até que um dia uma colega de faculdade me resgatou à beira da morte, convulsionando, seringas vazias à minha volta. Fui internado na UTI. Quando saí, ela me apresentou ao NA. Abandonei tudo. O trabalho, os amigos. A única maneira de se manter longe das drogas é mudar radicalmente de vida. Estou há mais de dois anos limpo. Mudei de profissão, tenho novos amigos e um novo amor: eu e a colega que me salvou estamos casados. Nunca estive tão feliz. Adicto anônimo, 28 anos


Gradualmente fui entregando minha vida

DANILO RAMOS

Quando criança achava os outros melhores do que eu e estava sempre sozinho. Eu queria fazer parte de alguma coisa e para conseguir isso comecei, muito novo, a tomar drogas. No começo, eu consumia uma vez por semana, até se tornar um hábito diário. Estudei, trabalhei, casei, tive filhos. Sempre usando drogas, cada vez em quantidades maiores. Gradualmente, fui entregando minha vida. A ponto de viver para usar e usar para viver. Parei de estudar, parei de trabalhar, me separei da família e de todos. Minha vida era um caos. Não vi meus filhos crescerem, e a única pessoa com a qual eu convivia era minha mãe. Eu me considerava um vagabundo, um perdido. Cheguei ao ponto de ir morar na rua. Acho que teria ficado lá até morrer. Mas um dia uma instituição psiquiátrica me recolheu e internou. Fui apresentado ao NA e decidi que iria voltar a viver. Eu só tinha as roupas do corpo. Comecei a frequentar as reuniões todos os dias, comparecia aos eventos, pedia ajuda ao meu padrinho. Pratiquei os 12 passos, aceitei minha impotência, reconheci minha doença. Comecei a ser uma pessoa melhor. Hoje faço parte de um grupo de serviço, tenho um novo relacionamento, recuperei minha condição de pai e, há dez anos, tenho minha vida de volta. Adicto anônimo, 51 anos

de de membros, até porque não há inscrição ou nenhum tipo de controle. A sede central da irmandade, na Califórnia, apurou em uma pesquisa que 12% dos membros estão há mais de 20 anos sem consumir qualquer tipo de droga; a maior parcela, 33%, mantém-se limpa entre um e cinco anos. A recomendação da irmandade a cada novo integrante é participar de 90 reuniões­ nos primeiros 90 dias. “O começo é bem mais difícil e é o espírito de união dos grupos, essa identidade entre todos, que nos dá força para continuar em frente”, diz um membro que já ultrapassou a marca dos 15 anos e continua a frequentar quase diariamente as reuniões. A maioria dos participantes, principalmente os mais bem sucedidos no “tratamento”, é bem assídua e faz das reuniões um lugar de encontro, de troca, de amizade, de relações sociais em geral. Não são raros os casamentos entre membros. “É uma terapia de espelho”, resume o relações públicas. A principal dinâmica da recuperação é a partilha, momento em que,

por sete minutos, o membro dá o seu depoimento. Nessa hora, a pessoa fala o que quiser e muitas vezes o assunto nem passa perto do consumo de drogas. Apenas fala da sua vida, das suas preocupações, das suas alegrias. “Saber que estou falando para pessoas que entendem perfeitamente as minhas dificuldades é muito bom. Não poderia falar dessa forma com qualquer um da minha família ou amigo. Só nas reuniões é que me sinto completamente compreendido”, diz um integrante, limpo há dois anos. Quando você encontra seu semelhante, explica o relações públicas, há essa identidade, essa troca. Isso, em outras palavras, quer dizer amor. “O amor entre os semelhantes é o nosso principal remédio”, completa.

Mais que reuniões

Aqueles que querem realmente abandonar o uso de drogas precisam adquirir outro estilo de vida – mudar radicalmente o meio social que frequentam, os programas que fazem e às vezes, conforme o caso, até a profissão que praticam. Em todas as reuniões, há na lousa uma lista de “Evite” e “Procure”. Nela, recomenda-se evitar aqueles ambientes e pessoas que possam propiciar recaídas e procurar novas atividades, mais saudáveis. O tratamento não se restringe às reuniões­. Há um trabalho de suporte fora delas também para que ninguém tenha recaídas. Normalmente, cada membro tem um padrinho ou madrinha a quem deve recorrer a qualquer hora, em qualquer dia. “Tive a sorte de escolher bem a minha madrinha”, diz uma jovem, lembrando-se dos momentos difíceis que vem passando longe das drogas. “Sem ela, não teria suportado

a abstinência. Quando estive mal, a ponto de desistir de tudo, foi ela que me socorreu, conversando, me ouvindo, me orientando.” Além disso, não faltam encontros. “Nós gostamos de festa”, diz o relações públicas. Há um calendário repleto de eventos locais, regionais, nacionais e internacionais – e a frequência é sempre muito grande. Nesses eventos, ocorre intercâmbio entre membros e uma ampla socialização. Também ocorrem partilhas e exposições temáticas, quando os mais experientes falam sobre algum passo ou tradição. E também muita farra regada a sucos e refrigerantes. Todos estão unidos contra a recaída – o inimigo iminente. Sob o lema “a dor é inevitável, mas o sofrimento, opcional”, eles resistem. “Todos temos consciência de que possuímos uma doença comportamental que pode se manifestar a qualquer momento. É uma doença que tem um aspecto físico, determinado pela compulsão, um aspecto mental, que é a obsessão, e um aspecto espiritual, no qual se encontram defeitos de caráter, como o orgulho, a mentira e a manipulação das pessoas próximas”, explica o relações públicas. Faz parte do tratamento assumir essas condições. Para conseguir a droga um adicto é capaz de tudo, explica outro integrante: “Ele vende o carro do pai, engana seus amigos, trai a mulher e até se prostitui”, diz. Limpo há quatro anos, 11 meses e 28 dias, ele em breve fará a “troca de ficha”, um momento especial no grupo em que se comemoram as datas de “aniversário” dos membros. “Daqui a dois dias, vou completar cinco anos de vida”, orgulha-se. “É isso mesmo, aqui eu nasci de novo.” NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

A saga do povo da cratera Na periferia de São Paulo, uma fabulosa cratera de milhões de anos tornou-se lar de milhares de famílias Por Marina Amaral Fotos Jailton Garcia

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ram como peregrinos chegando à terra prometida, embora sequer desconfiassem seguir o rastro de um cometa que por ali passara há 10 milhões, talvez 30 milhões de anos. Desembarcaram aos magotes dos ônibus e caminhões. As panelas repletas de macarronada, arroz e feijão seguiam com as mulheres. Os homens, à frente, abriam picadas na mata a golpes de facão. À medida que avançavam, nascentes se multiplicavam. Na paisagem verde a perder de vista, ninguém duvidava que finalmente teria um pedaço de terra para criar os filhos sem medo da expulsão que marcava suas vidas – primeiro, pela seca do sertão nordestino, onde a maioria deles havia nascido; depois pelas máquinas que destruíram seus barracos a mando da Justiça.

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Desta vez eles não seriam invasores ocupando a franja da cidade reservada à especulação imobiliária. Teriam um terreno de papel passado como exigia a lei, mesmo que isso significasse meses de salários. Também não se assustavam com a perspectiva de enfrentar duas, três horas e 35 quilômetros, numa única linha de ônibus, que separam o distrito de Parelheiros do centro de São Paulo. Luz elétrica, esgoto, água encanada, escola, telefone, posto de saúde seriam conquistados depois. Até mesmo a notícia de que bem perto dali se erguia um cadeião, do qual já se avistava a torre, foi desconsiderada. Quem eram eles, sempre escorraçados pela polícia, para julgar ou temer os “vizinhos”? Para obter o título de lotes de 250 metros quadrados, 1.200 famílias cadastradas no livro da União dos Favelados do Gra-

jaú (Unifag) pagaram religiosamente seus carnês de duas parcelas no valor de cerca de um quarto do preço do metro quadrado nos loteamentos clandestinos onde antes viviam). Teriam também ar puro, cheiro de terra e flor, e a solidariedade que os unia. Não era esse o objetivo perseguido durante os quase dois anos de reuniões nas pracinhas nos confins da zona sul? Os associados não tiveram dúvidas quando a presidente da Unifag, Maria Sipriana Henrique, perguntou se apoiariam a compra daquela terra. Alguns meses depois, chegaria a escritura lavrada no dia 22 de março de 1989 no 14º Cartório de Notas da Capital – que tornava a entidade proprietária de duas glebas de terra somando 2.932.100 metros quadrados por 300 mil cruzados novos (cerca de R$ 1,4 milhão em valores corrigidos pelo Índice Nacio-


nal de Preços ao Consumidor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (INPC-IBGE)­pagos à vista a João Rimsa, empresário do mercado de capitais. O bairro Vargem Grande, até então chamado de Colônia por extensão de outro agrupamento de alemães a sete quilômetros dali, povoado por ordem de Dom Pedro II, estava por nascer.

Café com bolo FIRME A líder comunitária Francesca Gomes não acredita na “conversa do poder público” e diz que não aceita a remoção de ninguém

Dona Lucima Galdino Barbosa, 70 anos, exibe a cópia da escritura ao contar a história que a levou até ali. Cearense criada na roça, chegou aos 10 anos de idade, aboletada no pau de arara com o pai, a mãe e os 16 irmãos, depois que a seca acabou com a criação de cabras e a lavoura da família. No interior do estado, trabalharam na colheita de café, onde ela ficou até se casar com José Henrique Barbosa, aos 21 anos. O casal mudou com a filhinha de 22 dias – ela para trabalhar na casa dos donos da fazenda na capital e ele para tomar conta da granja. Foram alojados em um galinheiro “raspado e pintado” para servir de residência. Quando a segunda filha nasceu, 11 meses depois, o casal juntou as economias para comprar um lote onde hoje está o Shopping Interlagos. “A gente era meio bobo e não sabia ver documento. Logo descobrimos que era tudo falso, a prefeitura nos tirou de lá e os donos da imobiliária fugiram.” Antes de chegar a Vargem Grande, dona Lúcia do Cipó, como ficou conhecida no bairro por conta do hábito do marido de se deslocar como Tarzan na mata nativa,

sofreu com outro despejo em 1986. Daí se uniu ao povo da Unifag. Foi a 12ª associada e a segunda a ser sorteada na distribuição de lotes, conta, enquanto serve café com bolo e distribui bananas de um cacho recém-colhido para as vizinhas que se reúnem na cozinha aberta para o quintal de terra, sombreado por árvores. “No começo foi uma folia! Aqui era tão lindo, tinha macaquinho, veado, passarinho que não acabava mais”, conta. “A gente foi comprando os tijolos lá no bairro alemão e trazendo nas costas ou no carrinho de mão. As ruas eram estreitas demais para passar o caminhão, mas já eram numeradas do 1 ao 30.” Dona Lúcia e o marido não sabiam que, embora a transação registrada em cartório fosse perfeitamente legal, era proibido fazer loteamento naquela região de mananciais que alimentam a represa Billings. A Unifag foi processada por crimes ambientais e os moradores de Vargem Grande, empurrados para ilegalidade. A crise rompeu a coesão e o bairro, isolado do centro, se tornou um faroeste. A Unifag passou a negociar os lotes por conta própria, instalou uma portaria com homens armados e passou a exigir carteirinha dos “condôminos”, obrigados a pagar uma taxa mensal, embora continuassem sem luz nas ruas nem água encanada. Muitos não resistiram e foram embora, transferindo as terras, ainda em nome da Unifag, a famílias de classe média baixa que procuravam um lugar “tranquilo” para morar. Francesca Andrade Gomes,

PROTEÇÃO AMBIENTAL Apesar da compra das terras ter sido legal, ninguém sabia que era proibido lotear e habitar a região, cheia de mananciais que alimentam a represa Billings NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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hoje uma das líderes da comunidade, e o marido João, metalúrgico da Villares, estavam entre os que chegaram nessa leva, em 1992. “Foi o motorista de ônibus que falou de Vargem Grande para o meu marido. Viemos conhecer. Era longe, mas achamos lindo; fizemos dois cômodos e quando a gente abria as janelas, o beija-flor entrava”, lembra Francesca. Diante do gravador ligado, todas querem falar, exibir documentos, reiterar que pagaram por suas terras, explicar os detalhes das brigas que se estendem até hoje entre as diversas associações de bairro. Relembram o trabalho que elas e os maridos tiveram para construir a primeira escola fundamental – hoje municipal, com 1.900 alunos (há mais duas estaduais) –, abrir as ruas. Contam as muitas cobranças por mais linhas de ônibus (agora uma para o Terminal Varginha e outra para o Terminal Santo Amaro), o posto de saúde, a água encanada, a luz. Relatam inúmeras tentativas de regularizar a situação, os votos dados a políticos que prometiam ajudar, sendo que os únicos representantes do poder público a aparecer por ali fora das eleições eram da polícia florestal e da Secretaria do Meio Ambiente. Foram eles que trouxeram a notícia, em junho de 1995, de que o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat, subordinado à Secretaria da Cultura de São Paulo) havia aprovado o tombamento da Cratera de Colônia, o que dificultaria ainda mais a vida dos moradores de Vargem Grande. Para espanto geral, descobriram que, além de apontado como ameaça à Mata Atlântica e aos mananciais, o sonhado bairro havia sido assentado em cima de outra riqueza, essa geológica, datada de milhões de anos.

Vida urbana na rua 30

Circulando pela rua 30, artéria comercial do bairro – e uma das oito ruas calçadas –, sente-se claramente a distância entre o projeto turístico (leia quadro) e a realidade de Vargem Grande. Com exceção de uma quadra meio abandonada, que pelo planejamento inicial do loteamento deveria ser um parque, não há nenhuma árvore. Crianças e adolescentes divertem-se com videogames e peladas e os mais velhos se reúnem na lan house e nos bares que tocam pagode e funk nas noites de fim de semana. “Eles não percebem o lugar diferente onde moram, parecem os jovens de qualquer periferia”,

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RIQUEZA Além de ameaça à Mata Atlântica, o bairro está sobre a cratera de milhões de anos

diz a diretora de escola Reginalda Silveira. O lixo atirado nas ruas acumula-se pela falta de coleta e os córregos mal cheirosos ameaçam a saúde de todos. Ainda assim, a prefeitura tem um projeto de um parque e já começou a enviar notas de desapropriação às quase 2 mil famílias que seriam removidas para concretizá-lo. “Somos contra a remoção de qualquer um dos 56 mil moradores daqui. Afinal, todos pagaram pela terra e o poder públi-

co limitou-se a fornecer um mínimo de infraestrutura quando não tinha mais o que fazer”, diz Francesca. “Nem os comerciantes acreditam em lucrar alguma coisa com esse tal complexo turístico. Quem em sã consciência­acredita que alguém viria passear por essa periferia pobre?”, afirma a líder comunitária. Entre os donos dos 55 estabelecimentos que ocupam a rua 30, a descrença com o projeto do parque é geral. “O que queremos é


Turismo?

ERA DA INOCÊNCIA Dona Lúcia lembra dos tempos em que o bairro era habitado por macaquinhos e pássaros

REGULARIZAÇÃO Dono de um negócio próspero, Everaldo quer seu alvará

AMEAÇA A prefeitura quer desapropriar Cássia para construir um estacionamento

COBRANÇA Moradores, no local há mais de 20 anos, esperam regularização do bairro

que a subprefeitura cumpra a promessa de regularizar o bairro para que a gente possa tirar os alvarás”, diz Everaldo Silva, 39 anos, ex-confeiteiro do bairro de Moema, na zona sul, hoje dono de padaria. Com 24 funcionários, Everaldo trabalha das 6h às 22h, consome 150 quilos de farinha por dia para fazer pão e bolo e ainda não conseguiu acompanhar a demanda pelo frango assado (R$ 11) e a porção de costela (R$ 12), que sempre acabam antes do meio-dia. O sucesso permitiu

abrir mais uma mini-padaria e um lucro de 500% sobre o capital investido. Cássia, dona da única academia de Vargem Grande, com 200 alunos, já recebeu a notificação da prefeitura, desapropriando parte de seu estabelecimento. “Na maquete, essa área e mais dez casas serão ocupadas por um estacionamento. Faz sentido?”, pergunta, mostrando a rua de terra cortada por um córrego parcialmente canalizado por sua própria iniciativa.

A cratera de Colônia, com 3.600 metros de diâmetro, profundidade de 150 metros nas bordas e 400 metros no fundo, foi formada pela colisão de um corpo celeste ocorrida entre 5 milhões e 36 milhões de anos atrás. “Esse tipo de formação tem grande valor geológico por guardar marcas da evolução do planeta e da vida”, diz o geólogo Victor Velázquez, paraguaio radicado no Brasil e professor da USP, que há nove anos pesquisa a Cratera de Colônia. “O Centro de Ciência Planetária e Espacial da Universidade de New Brunswick, no Canadá, mantém um banco de dados com a relação de estruturas de impacto descobertas em todos os pontos do planeta. São 176 até agora, entre elas oito crateras brasileiras.” Análises de amostras divulgadas em 2008 pelo laboratório Genalysis, na Austrália, sustentam a probabilidade de a cratera ter surgido da colisão de asteróides da cauda de um cometa, e não pela queda de um meteorito. Velázquez explica que o fato de ser um ambiente naturalmente “fechado” traz características específicas para a flora e a fauna da região, reunindo inclusive espécies em extinção. O fundo da cratera funciona como uma “esponja” gigantesca que armazena água da chuva, contribuindo para alimentar a Billings. Para o geólogo, o ideal seria que a população ficasse concentrada na área já degradada, próxima às bordas. E que o presídio Joaquim Fonseca Lopes, “que despeja esgoto a céu aberto no Ribeirão Vermelho”, fosse desativado e usado para abrigar um centro de pesquisas. Tanto o bairro como o presídio estão em área de preservação ambiental. Velázquez cita o exemplo da Cratera de Ries, na Alemanha, uma das únicas habitadas e polo turístico que atrai gente do mundo inteiro. “Os moradores seriam recompensados pela possibilidade de explorar esse turismo, fortalecendo o comércio e oferecendo serviços de guias nas trilhas”, sonha. Mas o próprio poder público sequer cogita fechar ao presídio, onde vivem 1.300 presos, o dobro de seu limite.

Por causa da resistência enfrentada até agora, a subprefeitura de Parelheiros retirou a maquete de sua sede, alegando que está “em manutenção”, e afirma que ainda não decidiu o futuro de Vargem Grande. Aos moradores, o subprefeito prometeu visitar o bairro e verificar a viabilidade do projeto. Inconformado com a ameaça de despejo, o segurança João Pimentel promete: “Com tudo que já passamos por aqui, se tentarem nos tirar daqui, vai acontecer outra Canudos”. NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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COMPORTAMENTO

Tristeza não é doença A tristeza inspira sambas com beleza, dizia o poeta. E contribui para a saúde emocional, atestam especialistas. Mas às vezes é desrespeitada, vista como um mal a ser tratado, inclusive, com remédios Por Cida de Oliveira

LIÇÃO DE VIDA Petecada: “Projetos de vida focados no luxo e no supérfluo geralmente só trazem frustração”

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m alguns momentos, os ombros pesam e pendem para a frente. Os olhos, perdidos, parecem buscar algo no chão. O sorriso desaparece do rosto e a vontade de chorar é insistente. Assim é a tristeza, à qual todas as pessoas estão vulneráveis desde que o mundo é mundo. Nem os semideuses escapam. No épico A Ilíada, Homero narra o sofrimento de Anticlea, mãe de Ulisses, por causa da saudade do filho que lutava na Guerra de Troia. Nas palavras simples da monja Coen Sensei, missionária oficial da tradição Soto Hu Zen Budismo, com sede no Japão, “a tristeza aparece nos momentos em que perdemos alguém; quando perdemos; naquelas horas em que as coisas, as pessoas, o mundo e a realidade não são como queríamos; que não somos o que gostaríamos de ser; que não temos o que gostaríamos de ter”. Psicanalistas, psiquiatras e filósofos, que sempre buscaram entender por que e para que as pessoas ficam tristes mesmo sem motivo aparente, têm explicação parecida. “A tristeza é como uma ferida aberta por perdas afetivas e materiais, decepções, frustrações e doenças”, compara Paulo José Carvalho da Silva, pesquisador e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Engana-se quem pensa que essa ferida só tem utilidade para os poetas criarem seus versos, como Vinicius de Moraes, para quem “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”; ou Álvares de Azevedo, cuja poesia era envolta na mais profunda melancolia. Na verdade, trata-se de uma reação de proteção do aparelho psíquico, termo cunhado pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) para designar a estrutura mental composta pelo inconsciente, pré-consciente e consciente. “Tudo isso ocorre porque investimos energia psíquica no trabalho, nos relacionamentos, nos projetos pessoais. Se algo se perde ou se quebra em qualquer uma dessas esferas, a ferida se abre”, explica o especialista da PUC. “Para cicatrizar, é preciso um tempo de recolhimento, de repouso, para a sua recomposição. Exatamente como acontece no luto que se segue à perda de uma pessoa amada”, diz.

FOTOS MAURICIO MORAIS

Carga pesada

O analista de Recursos Humanos Bruno Thadeu Souza, de 26 anos, enquanto estava sem vontade de sair da cama e de comer, fez um balanço de sua vida e, em especial, refletiu sobre a causa de tamanha dor: o fim de um relacionamento amoroso que mantinha havia seis anos. Apesar dos sinais de desgaste que geralmente apontam uma separação, foi pego de surpresa. Pelo telefone, justamente no dia em que ele tinha sido aprovado numa entrevista de emprego, recebeu a notícia do rompimento. “Nos dias entre a aprovação e o início do trabalho, mal saí da cama, perdi a fome, o ânimo e as forças. O bom salário e o novo desafio não fizeram a menor diferença”, diz. Como o desânimo e o desinteresse persistiam, Thadeu não tardou em pedir demissão. Meses depois, ele conta que as lembranças ainda trazem dor, mas sabe que errou ao transferir para outra pessoa a responsabilidade pela sua felicidade. E aos poucos está se reaproximando dos antigos amigos. “Agora é encarar uma nova vida, que tem tudo para ser melhor”, acredita. A duração, a profundidade e os prejuízos que a tristeza pode trazer dependem da intensidade da causa, do afeto envolvido e da organização psíquica da pessoa. No caso da jornalista Sabrina Gisele Becker, de Novo Hamburgo (RS), não foi tão fácil superá-la. Há oito anos ela perdeu o pai – num momento em que NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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Deixe a vida fluir

Para se entristecer, porém, não é preciso sofrer na carne experiências dolorosas como essas. Muitas vezes, a notícia de uma tragédia ocorrida do outro lado do mundo, situações que mostram o sofrimento de pessoas desconhecidas, um filme ou mesmo uma música bastam. E há casos, ainda, em que a pessoa é exposta a fatores que têm tudo para deixá-la triste, mas, por alguma razão, é como se nada tivesse acontecido. É a chamada tristeza internalizada, conforme os especialistas, que fica no inconsciente e, mais cedo ou mais tarde, se manifesta – numa crise de medo, angústia ou mesmo numa doença. Pode ser o que aconteceu com o estudante de Comunicação Luciano Franklin de Carvalho, 22 anos, de Brasília. Entre fevereiro e julho, esteve em Buenos Aires para estudar. Não teve dificuldade de adaptação e conheceu muitas pessoas, fez amigos, ia tudo às mil maravilhas. Até que num dia, entre abril e maio, aconteceu de tudo: a máquina de lavar roupa quebrou, deu problema no banco em que ia tirar dinheiro, chegou atrasado à universidade por causa de uma manifestação contra o aumento do preço da tarifa de ônibus. Ficou angustiado e chorou muito. Então, se conscientizou de que estava longe da família, do seu país, da sua cultura, da namorada. Sentindo-se inseguro, ele ligou correndo, cho42

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INEVITÁVEL Sabrina: “Não esqueço a dor que sentia nos dois primeiros anos que se seguiram (à morte do pai). Mesmo com a minha criação germânica, eu vivia chorando” AUSÊNCIA Gabriel: “Quando entrei no carro do meu pai e o Lobão não estava lá, no banco de trás, como sempre estava, senti uma dor muito grande”

MAURICIO MORAIS

familiares e amigos estavam reunidos num fim de semana na praia. “Só quando cheguei ao hospital é que soube que o infarto foi fatal. Encontrei minha mãe segurando os óculos e o boné dele, sem conseguir pronunciar uma palavra”, recorda Sabrina. “Não esqueço a dor que sentia nos dois primeiros anos que se seguiram. Mesmo com a minha criação germânica, com pouco lugar para a emotividade, eu vivia chorando. Um dia, parei no sinal vermelho, deitei sobre o volante e chorei muito. Despertei com a buzina dos carros.” Segundo Sabrina, a dor era tal que tinha dúvida se valia a pena continuar vivendo. Para aliviar, ela passou a ocupar todo o tempo estudando e trabalhando. Assim a tristeza foi dando lugar à saudade. “Em nenhum momento procurei ajuda, como terapia ou medicamentos. Aprendi e amadureci com a perda. Se tivesse me anestesiado, não teria sentido o que senti nem tido a chance de me fortalecer para a vida e para outras perdas que certamente viverei”, diz. A perda do amigo Lobão, um boxer de 4 anos que sofria de convulsões, em junho passado, abalou a vida do estudante paulistano de Fotografia Gabriel Duarte, 18 anos. Toda vez que chega em casa ele tem a sensação de que Lobão está à sua espera. “Na hora que eu soube da morte, acho que entrei em choque. Fiquei sem reação. Só me dei conta quando entrei no carro do meu pai e o Lobão não estava lá, no banco de trás, como sempre estava. Senti uma dor muito grande”, relata. “Durante duas semanas eu chorava todos os dias. Até meu pai, que nunca vi chorar, chorou várias vezes.” Para Gabriel, Lobão era um amigo. “Parecia entender o que eu sentia. E ficava sempre por perto, como se cuidasse de mim.”


ANDRÉA GRAIZ

liz. “A nossa cultura não admite mais o sofrimento, que machuca, e é visto como fracasso. As coisas se passam como se o progresso, a tecnologia e o avanço científico tivessem banido a possibilidade de sofrer”, diz Chalub. “Ninguém tem de ser masoquista e gostar de sofrer, mas tem de compreender que o sofrimento, em certas situações, é inevitável e é preciso saber lidar com ele.” Por outro lado, há quem faça do estar deprimido uma moda. “Tudo deixa as pessoas deprimidas, que hoje preferem recorrer a remédios a encarar o sofrimento”, afirma Chalub. “Infelizmente, mesmo entre os médicos, é costume receitá-los como panaceia. Além do risco dos possíveis efeitos colaterais, me preocupa a ‘medicalização’ dos problemas humanos, todos transformados em doença, dificultando assim a verdadeira solução da questão.” Ele destaca que o clonazepam, princípio ativo de drogas como o rivotril, é o mais vendido e receitado. “Os remédios psiquiátricos, aliás­, são os mais vendidos porque se tornaram falsas soluções para a infelicidade humana e para o mal de viver”, afirma. “A infelicidade não é absolutamente uma doença, mas parte da nossa condição.” Lançado recentemente no Brasil, o livro A Tristeza Perdida, dos americanos Allan V. Horwitz e Jerome Wakefield, vem colocar lenha na fogueira. Seus autores constatam que a depressão é o distúrbio mais tratado por psiquiatras, elevando assim o consumo de antidepressivos. “Eles precisam identificar com precisão as pessoas com reações emocionais normais e os que sofrem de transtornos depressivos genuínos”, diz Horwitz, diretor da área de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, Estados Unidos. Segundo seus dados, a depressão atinge, a cada ano, cerca de 10% dos adultos americanos e aproximadamente um quinto da população em algum momento da vida. Entre as mulheres, as tarando, para a família. Disse que não conseguiria seguir adiante e xas são duas vezes maiores. O tratamento ambulatorial da doença chegou a se arrepender da viagem. “Fiquei jururu ainda por uns cresceu 300% entre 1987 e 1997, e houve um aumento assombroso cinco dias e acabei pegando uma gripe forte. Só não desisti de tudo da prescrição de antidepressivos. Durante os anos 1990, os gastos por causa do apoio da família, amigos, namorada e do pessoal de com esses medicamentos cresceram 600% nos Estados Unidos. Só faculdade em Buenos Aires. Eu me senti querido por quando a ciência permitir obter maior controle sobre eles também, que notavam que eu estava triste e me É normal e nossos estados emocionais teremos como avaliar se perguntavam o que estava acontecendo.” As diversas desejável a tristeza normal tem características reparadoras ou mensagens que Luciano recebeu naquele período o que se fique deve ser banida da nossa vida, concluem os autores. ajudaram a perceber que aquela era uma fase e que as triste diante Miguel Chalub enfatiza que o amadurecimento coisas iriam melhorar. E melhoraram mesmo. emocional não acontece como fatalidade biológide certas “É normal e desejável que se fique triste diante de ca. “Não somos frutos que amadurecem por lei da certas circunstâncias da vida. Anormal seria não se circunstâncias natureza. O verdadeiro amadurecimento vem da entristecer”, ressalta o psiquiatra Miguel Chalub, pro- da vida. compreensão­e do lidar com as circunstâncias da vida, fessor da Universidade Estadual e da Federal do Rio Anormal tanto boas quanto más.” Para a monja Coen Sensei, de Janeiro. Ele explica ainda que há casos em que a seria não se “mesmo a mais profunda tristeza será passageira se as tristeza é imotivada ou o motivo alegado não justifica entristecer coisas, as pessoas, o mundo, a realidade – e nós mesa intensidade do sofrimento, como sintomas físicos mos – forem vistos como parte de um processo de Miguel Chalub intensos e infinitamente maiores que os da tristeza transformação. E para que isso aconteça basta lembrar normal. Tampouco é possível estabelecer um prazo que identifique que as coisas, as pessoas, nós, o mundo e a realidade são como são se a tristeza é normal ou anormal, patológica. “Desde que se per- e que podemos apreciar o que temos, em vez de lamentar o que ceba que a vida pessoal, profissional ou familiar está prejudicada, falta. Com essa transformação, que nos inclui, haverá maior comé preciso procurar um médico”, recomenda. partilhamento e harmonia”, ensina. Já o palhaço Petecada, do Circo dos Sonhos, na capital paulisO negócio da infelicidade ta – que acredita ser uma dose de alegria sem contraindicações O problema é que na vida moderna não há tempo nem espaço nem efeitos colaterais –, tem uma receita simples. “Aqueles que para ficar triste. Tanto que nas listas dos livros mais vendidos es- acreditam sofrer demais com a tristeza deveriam buscar alívio tão sempre aqueles que pretendem ensinar o leitor a ser mais fe- nas coisas mais simples e deixar de lado projetos de vida focados NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

Ciência divertida Espaços interativos que aproximam temas científicos da realidade das pessoas quebram, brincando, o velho tabu que fez de matérias clássicas um pesadelo Por Roberto Amado

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quações, fórmulas, nomes complicados e fenômenos pouco compreensíveis, ensinados na superfície plana de uma lousa, para muita gente constituem aulas indigestas, pouco produtivas e às vezes traumáticas. Esse é o risco de limitar o conhecimento científico ao universo nem sempre participativo das aulas de química, física, biologia ou matemática. Romper barreiras é um dos objetivos das instituições voltadas para a difusão das ciências clássicas que cada vez mais se proliferam no país: explorar sua grandeza oferecendo ao público seus aspectos mais lúdicos e instigantes.

“Aprendi aqui, em uma tarde, o que nunca tinha aprendido em todos os meus anos de ensino médio e faculdade”, diz Laura Mendes Menezes, 27 anos, estudante de Arquitetura. Tão entusiasmada quanto ela ficou sua filha, de 6 anos, que passou uma tarde “muito legal”, interagindo com os instrumentos da Estação Ciência, centro criado pela Universidade de São Paulo (USP) com objetivo de popularizar e promover a educação científica de forma prazerosa. A Estação, no bairro da Lapa, na zona oeste, é pioneira no país com essa proposta. Foi criada em 1987 e atende 400 mil pessoas por ano, entre grupos organizados de escolas e público avulso.


“Todos temos a impressão de que as ciências­são extremamente complexas, mas, por meio de experimentos simples, é possível compreender muitos dos seus processos”, diz ela, que está diretamente envolvida com o projeto da Estação Ciência. Para a pesquisadora, uma característica importante desses centros difusores de ciências é que não há a intermediação da escola entre quem aprende e quem ensina. O conhecimento vem de onde é gerado – a universidade – diretamente para o público, o que resulta, segundo ela, numa abordagem com maior qualidade e precisão e numa exploração do conhecimento com maior fidelidade às ciências. “Enquanto na escola esse conhecimento é fragmentado, nesses espaços há uma grande diversidade concentrada com interações dinâmicas, o que permite uma imersão total nos conteúdos.”

BRUNO TODESCHINI/DIVULGAÇÃO

MARCOS COLOMBO/DIVULGAÇÃO

O que atrai tanta gente é a possibilidade de passar algumas horas em exposições temáticas e interagindo com instrumentos de diversas áreas: física, biologia, astronomia, matemática, entre outras. Monitores, normalmente estudantes da USP, incumbem-se de conduzir o manejo e propor experiências. O local oferece ainda um planetário e sessões de teatro e música temáticas. Não muito longe dali, foi inaugurado no ano passado o Catavento Cultural e Educacional. As instalações ocupam os 4 mil metros quadrados do antigo Palácio das Indústrias, no Parque Dom Pedro II, no centro. Por elas, é possível ouvir o som das estrelas, tocar em um meteorito, conhecer o corpo­humano e entender como funciona um gerador­de energia. “É o que se chama, na educação, de ação”, explica Sueli Furlan, do Departamento de Geografia da USP.

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ELIZABETH LEE/DIVULGAÇÃO

INTERATIVIDADE O Museu de Ciências e Tecnologia da PUC de Porto Alegre oferece ao público 750 equipamentos

PIONEIRA A Estação Ciência, em São Paulo, foi criada pela USP em 1987 e recebe 400 mil visitantes por ano NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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É essa a proposta da Casa da Ciência, no Rio de Janeiro – onde há também uma preo­ cupação de promover a integração entre a ciência e as artes. Palestras científicas que estimulam a imaginação, exibição de filmes que instigam debates e outros recursos de audiovisual compõem o menu da instituição – combinadas com poesia e literatura. A Casa procura ainda público nas ruas, promove eventos de natureza científica em praças, bares, ruas e escolas. Uma de suas atrações mais procuradas é um roteiro turístico, educacional e científico em cidades do estado por onde passou Charles Darwin, idealizador da Teoria da Evolução das Espécies­, em 1832. Santo André, no ABC paulista, não fica atrás. Lá foi construído, em 2007, o Sabina – Escola Parque do Conhecimento, um dos maiores centros de ciência, arte e tecnologia do Brasil, instalado numa área de 24 mil metros quadrados. O visitante chega a levar um susto, logo na entrada, com um enorme esqueleto de dinossauro, única réplica existente na América Latina do tiranossauro rex, com quase 13 metros de comprimento, capaz de se movimentar e 46

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emitir sons – o que faz a alegria da criançada. O Sabina é voltado para o aprendizado de crianças a partir de 4 anos de idade, que se esbaldam com os 23 pinguins de Magalhães, instrumentos musicais gigantes, simuladores e mais de 60 experimentos de física. O projeto procura mostrar que imaginação, criatividade e intuição não são atributos apenas ligados à arte.

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JÚLIO BASTOS/DIVULGAÇÃO

O MAIOR Além da réplica do dinossauro que se mexe, o Sabina, de Santo André, tem simuladores e mais de 60 experimentos de física

O ensino da ciência já vem há algum tempo procurando se aproximar de alunos e do grande público. Essa preocupação também está presente nas feiras de ciências, atividade já incorporada praticamente por todas as escolas do país. Há até mesmo eventos internacionais do gênero, como a Feira Brasileira de Ciência e Engenharia (Febrace), que ocorre anualmente na USP.

REFERÊNCIA O Espaço Ciência de Olinda tem até simuladores de terremoto. Se destaca também pelo atendimento à comunidade de baixa renda


BETO GARAVELLO/DIVULGAÇÃO

A maior referência nesse assunto é o professor Luiz Ferraz Neto. Leo, como é chamado, físico e mestre em Ciências Experimentais pela USP, participa frequentemente como jurado de feiras de ciências e é consultor para a promoção desse tipo de evento. “Tanto as feiras quanto esses centros difusores de ciência oferecem um elemento lúdico para que as pessoas adquiram o conhecimento necessário e possam tirar suas próprias conclusões”, diz o professor. A proliferação dos centros de ciência interativos começaram a se expandir no país na década de 1990. Embora a maioria delas esteja concentrada nas regiões Sul e Sudeste, não faltam bons exemplos no Nordeste. É o caso do Espaço Ciência, em Olinda (PE). Instalado no Parque Memorial Arcoverde, numa área de 120 mil metros quadrados, já é referência no país e recebe cerca de 100 mil visitantes por ano. O público circula por um cenário repleto de experimentos e aparelhos: uma míni-hidrelétrica, um planetário, um gigantesco vulcão, aparelhos simuladores de terremoto – além dos laboratórios nas áreas de química, física, matemática, biologia e informática.

O Espaço Ciência também atua nas comunidades­de baixa renda na região metropolitana­de Recife, com cursos e atividades ligados à área. Em 2009, atendeu mais de 5 mil pessoas nessas condições e, graças a esse trabalho, muitos alunos prosseguiram os estudos e até conseguiram colocação­ profissional. Do outro lado do país se destaca o Museu de Ciências e Tecnologia da PUC de Porto Alegre. Inaugurado em 1998, oferece ao público 750 equipamentos interativos que abordam de forma lúdica aspectos do cotidiano – incluindo um giroscópio humano e um elevador a vácuo. Neste ano, o museu explora um tema extremamente atual, a biodiversidade, com atividades e exposições temporárias, e já é considerado um ponto turístico “obrigatório­” a visitantes de todo o país.

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INTEGRAÇÃO A Casa da Ciência, no Rio, traz arte para seu espaço e promove eventos em praças, bares, ruas e escolas

Resgatar as ciências clássicas como temas de interesse não só de estudantes como do público em geral é uma missão mais do que necessária, tendo em vista as lacunas de aprendizado que o sistema educacional gerou nas últimas décadas, principalmente relacionadas a assuntos mais áridos e técnicos. Os centros difusores de ciência cumprem um papel exemplar ao criar, desde cedo, uma cultura de interesse pelo aspectos científicos mais fascinantes. “Mas é importante que o público, sejam crianças, sejam adultos, procure se aprofundar um pouco sobre os temas apresentados para que o programa não seja só um passeio à quermesse”, diz o professor Leo, hoje aos 71 anos, aposentado, com dedicação quase exclusiva para orientar alunos e professores a construir e ensinar ciências.

Programe-se para ter experiências ao vivo n Casa da Ciência. Rua Lauro Müller, 3, Botafogo, Rio de Janeiro (RJ), tel. (21) 2542-7494. De terça a sexta, das 9h às 20h, e sábados, domingos e feriados, das 10h às 20h. Grátis. www.casadaciencia.ufrj.br n Estação Ciência. Rua Guaicurus, 1.394, Lapa, São Paulo (SP), tel. (11) 3871-6750. De terça a sexta, das 8h às 18h, e sábados, domingos e feriados, das 9h às 18h. R$ 4. www.eciencia.usp.br n Espaço Ciência. Complexo de Salgadinho, Olinda (PE), tel. (81) 3301-6140. De segunda a sexta, das 8h às 12h e das 13h às 17h, e sábados e domingos, das 13h30 às 17h. Grátis. www.espacociencia.pe.gov.br n Catavento. Palácio das Indústrias, Parque Dom Pedro II, São Paulo (SP), tel. (11) 3246-4048. De terça a domingo, das 9h às 17h. R$ 3 (meia) e R$ 6. www.cataventocultural.org.br n Sabina. Rua Juquiá, altura do nº 135, Bairro Paraíso, Santo André (SP), tel. (11) 4422-2000. De terça a sexta, das 8h30 às 17h30. Sábados, domingos e feriados, das 9h às 17h30. Grátis para alunos e professores das escolas municipais de Santo André, para menores de 5 anos e pessoas com deficiência. Demais visitantes: R$ 5 (meia) e R$ 10. http://bit.ly/sabina_santoandre n Museu de Ciências e Tecnologia da PUC/RS. Av. Ipiranga, 6.681, prédio 40, Partenon, Porto Alegre (RS), tel. (51) 3320-3521. De terça a domingo, das 9h às 17h. R$ 2 a R$ 16, conforme a atração. ww.pucrs.br/mct Fontes: Espaços citados. Recomenda-se conferir preços e horários antes de se programar. NOVEMBRO 2010 REVISTA DO BRASIL

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CurtaEssaDica

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

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Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

Luiza Mariani, como Ângela

Sem perder a esperança Léo (Cauã Reymond) é um jornalista que nunca gostou da profissão, vive de bicos e tem um monte de contas sem pagar, inclusive a empregada, que não recebe salário há meses. E ainda tem de dividir o apartamento com Ângela (Luiza Mariani), depressiva e compulsiva, que não cuida nada bem do filho. É na noite paulistana que Léo conhece a figura andrógina de Marcin (Caroline Abras) e Wilson (João Miguel), que topa qualquer parada para pagar o aluguel absurdo de seu táxi. Marcin tem bons contatos e elabora planos para sair da pior e ajudar os novos amigos. A única coisa que eles não sabem é que caminho tomar se tudo der errado. O último filme de José Eduardo Belmonte, Se Nada Mais Der Certo, mostra como é ser (e sentir-se) ninguém numa cidade qualquer. Em DVD.

Afoxé Oxum Odolá

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Cauã Reymond, como Léo

Cultura afro em Fortaleza O Centro Cultural Banco do Nordeste-Fortaleza promove neste mês, sempre às sextas-feiras, uma série de atrações que têm como pano de fundo a riqueza das manifestações culturais africanas. Na sexta-feira 12 de novembro, a Praça José de Alencar receberá o Projeto Quebra Mola, às 17h. Ele reúne atividades lúdicas e oficinas culturais dirigidas a pessoas de baixa renda, com o objetivo de promover a inclusão social e despertar a expectativa profissionalizante em jovens talentos. No dia 19, às 17h, ocorre a lavagem da entrada do CCBNB-Fortaleza, acompanhada de um cortejo liderado por Mãe Taquinha, que desenvolve ações culturais afrorreligiosas baseadas na Umbanda. No dia 26 serão duas atrações: às 17h, na Praça José de Alencar, o espetáculo Afoxé Oxum Odolá, movido a muitas cores e ritmos; e às 18h30, no CCBNB, a encenação Quilombo retrata, em vários quadros, desde a captura dos negros na África até a luta pela liberdade e o nascimento da Capoeira. O CCBNB-Fortaleza (Rua Floriano Peixoto, 941) e a Praça José de Alencar ficam no centro da cidade. Informações: (85) 3464-3108. Todos os espetáculos têm classificação indicativa livre e acesso gratuito.


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O besouro que virou lenda A primeira montagem da peça Besouro Cordão de Ouro ocorreu em dezembro de 2006 e, de lá para cá, não parou de percorrer o país, ganhar prêmios e se estabelecer como uma das mais bem contadas histórias de Manuel Henrique Pereira, o Besouro, personagem baiano que se tornou lenda. Depois de quatro anos de andanças, a montagem – tendo seu cenário como ponto de partida – inspirou a exposição instalada este mês no Sesc Madureira, no Rio. O evento é uma celebração da cultura negra, assim como a peça escrita e musicada por Paulo César Pinheiro, com direção musical de Luciana Rabello e direção de João das Neves. O espetáculo tem apresentações previstas na mesma unidade do Sesc nos dias 25 e 26 de novembro. Besouro nasceu em Santo Amaro da Purificação e ficou conhecido não apenas pelo domínio das técnicas da capoeira, como por ser politicamente ativo e temido pelos coronéis e jagunços habituados a comandar a comunidade à base da força, no início do século 20. Besouro Cordão de Ouro – num palco que é uma grande roda de capoeira, com seus instrumentos de percussão e ritmos – revela a formação cultural do Brasil com a riqueza da dança, da música e dos rituais afros. O Sesc Madureira fica na Rua Ewbanck da Câmara, 90, tel. (21) 3350-7744. A exposição vai até 27 de novembro, de terça a sexta-feira, das 13h30 às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 9h às 18h. Grátis. Além de Lapinha – que ganhou uns versos a mais especialmente para a trilha do espetáculo, a peça tem outras canções, todas feitas para cada um dos toques do berimbau: Jogo de Dentro, Jogo de Fora; São Bento; Angola; Cavalaria; Benquela; Barravento; Iúna; Samango; Santa Maria e Besouro. E saem agora reunidas no CD Capoeira de Besouro, com lançamento previsto também para este mês de novembro pelo selo Quitanda, da gravadora Biscoito Fino.

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Crônica

Por Mirta Castedo

De longe, para Kirchner A

Mirta Castedo é professora da Universidade Nacional de La Plata, Argentina

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notícia chegou enquanto eu tomava um avião para uma cidade do interior de meu país. Estou longe de onde eu gostaria de estar, na Praça de Maio. Primeiro tive raiva, muita raiva. A morte sempre me traz raiva, e esta me trouxe ainda mais. Por que agora, por que neste momento? Por que ele? Por que tantos militares e civis genocidas ainda vivem impunes e sem arrependimento? Depois me veio o medo. Ou pior, o terror. Para quem já se deparou com o terror, é difícil não evocá-lo ante um pequeno movimento da realidade. Tive medo, mais um vez, de nossa temida, bem-organizada e eficiente direita. Imaginei suas faces, seus passos, seus movimentos precisos. O fato é que o sentimento dessa perda coletiva quase não permitiu conectar-me com a dor da perda individual, do homem. Somente depois pude chorar pelo ser humano, pensar em seus filhos, em Cristina (a mulher, não a presidenta), em sua irmã, em seus amigos íntimos. Mas a raiva e a dor foram se transformando quando o povo desta cidade interiorana onde me encontro começou a se juntar e a se reunir. As pessoas cantavam, agitavam bandeiras, iam chegando e se abraçando. Parecia um grande reencontro, com as pessoas reconhecendo-se umas nas outras. Rostos morenos, rostos claros, velhos – como que velhos militantes –, crianças e jovens, muitos deles. Jovens e seus filhos que um dia serão adultos. A imagem do movimento que une o diverso é desconjuntada, e inclui o impossível; porque hoje é mais impossível continuar excluindo do que tentar abraçar as diferenças. A mesma imagem da Praça de Maio na TV será com certeza a mesma em muitas cidades do

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interior e entre muitos povos. Durante muitas horas estiveram batendo os dentes de frio e agitando bandeiras, sorrindo por estarem juntas, e chorando ao mesmo tempo. E aposto que não se trata de uma multidão apenas de peronistas. Meio sem querer, o poeta uruguaio Mario Benedetti me veio ao ouvido: “Onde estiveres/ Se é que estás/ Será uma pena se Deus não existir.../ Mas haverá outros/ Claro que haverá outros dignos de receber-te...” E se desta vez não fosse para pior? E se agora a dor se transformasse em compromisso? Como dizia a maior das bandeiras: Cristina, nem um passo atrás!


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