RIO DE JANEIRO Sem política social efetiva, ação militar em morros será em vão
nº 55
janeiro/2011
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Operária na linha de montagem da Mercedes
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I SSN 1981-4283
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O NOVO ABC
R$ 5,00
Ao voltar para casa, Lula vai morar numa região que, com forte cultura do trabalho, supera crises e integra as cidades para resolver seus gargalos
JUSTIÇA A incansável luta pelo reconhecimento dos crimes da ditadura militar
Índice
Editorial
RICARDO STUCKERT
Capa 8 Que ABC o sindicalista de 30 anos atrás encontra ao voltar pra casa Brasil 14 Estaria o Rio de Janeiro usando as armas certas para construir a paz? Economia 20 Aos 80 anos, Maria da Conceição Tavares ainda dá os seus pitacos Mídia 22 Sindicatos latino-americanos articulam rede de comunicação Opinião 25 Laurindo Lalo Leal Filho analisa mais um capítulo da série BBB Ambiente 26 A Conferência de Cancun esquenta a tese do outro mundo necessário Mundo 28 Irlanda acorda do sonho de madame Thatcher com uma big dor de cabeça Cidadania 32 Revitalização para a especulação imobiliária e polícia nos sem-teto Ditadura 36 Os torturadores não contavam com essa incansável busca por justiça Perfil 40 Mariana Caltabiano, um caldeirão de animações e um 3D made in Brazil
Lula e Marisa voltam a São Bernardo depois de uma temporada de oito anos no Alvorada
O Brasil e seus caminhos
A
ARGELY SALAZAR/REUTERS
Pirâmide maia em Chichen Itza
Viagem 44 É possível descobrir Cancun sem cair nas rotas dos predadores SEÇÕES Cartas 4 Ponto de Vista Na Rede Curta Essa Dica
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Crônica 50
pós oito anos, o governo Lula sai de cena com saldo muito positivo, e um novo governo começa com a esperança em alta. Cada leitor certamente saberá avaliar onde avançamos e onde ficamos devendo. Algumas questões saltam aos olhos. A começar, o reajuste de 62% auto-concedido pelos parlamentares no final de 2010. Ainda que argumentem sofrer uma “defasagem”, eles com certeza não representam a parcela da sociedade mais necessitada de aumento salarial. Sobretudo no momento em que se discutia um novo valor do salário mínimo, com equilíbrio entre o desejável e o possível. O método do autorreajuste é um sintoma de um Congresso que ainda não superou antigos vícios. A nova presidente já sentiu as dificuldades que vai enfrentar não apenas nessa questão, como nas articulações para a escolha do novo presidente da Câmara, com algumas doses de fogo amigo. De cara, Dilma terá de enfrentar desafios como as reformas tributária e política, sempre tão faladas, mas nunca levadas adiante. Mas ela herda um governo com praticamente 90% de aprovação, fato inédito em todos os tempos, tanto entre os brasileiros quanto externamente. O presidente uruguaio, José Mujica, chegou a chamar Lula de “senhor Mercosul”, refletindo a importância que o governo brasileiro deu ao diálogo com outras áreas antes deixadas em segundo plano pela política externa, habituada a priorizar Estados Unidos e Europa. O agora ex-presidente retornou à região do ABC, de onde surgiu para o movimento sindical e para a política. Verá que se a integração é boa para o continente, é boa também para uma área metropolitana com municípios e realidades distintas. A região enfrentou crises, manteve a força econômica, buscou avançar num planejamento integrado e descobriu que os trabalhadores, além de reivindicar melhorias, podem assumir as rédeas tanto de gestões municipais quanto de empresas falidas, conforme destaca esta edição. Que traz ainda o Brasil ainda às voltas com memórias que teimam em vir à tona, enquanto alguns teimam em esquecer páginas infelizes de sua história. Clandestina, Dilma lutou pela volta da democracia. Presidente, deve ter a democracia como aliada na batalha para que este país se preocupe, em primeiro lugar, com quem de fato necessita. E, com todos os avanços, ainda clama por justiça e repudia privilégios. JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo e Josiberto Carlos Ferreira da Silva Capa Foto de Paulo Pepe Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa
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REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2011
Vocacional A reportagem sobre os colégios vocacionais (“Aprender a aprender”, edição 54) atingiu e esclareceu diversos pontos. Em nome da GVive, agradeço por terem trazido o nome do vocacional e sua história a público. Com certeza, a reportagem colocará o assunto em debate. Que o vocacional foi importante, renovador e moderno, já não se discute. Mas como nada de novo surgiu desde então, achei bem oportuno retomar o tema. Luiz Carlos Marques, São Paulo (SP) Cor da Ciência Essas publicações são muito importantes, contribuem para explicitar o que a sociedade tenta negar. Sou estudante do curso de Licenciatura em Física na Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), e ao término da minha graduação pretendo pesquisar sobre a contribuição do povo negro para a ciência (“A cor da ciência”, edição 53). Irineu Santos, Salvador (BA) Excelente reportagem (“A cor da ciência”). Que esse seja mais um passo para o reencontro com a nossa história, para que ela seja passada a limpo e para que novas agressões aos direitos humanos jamais se repitam. Severino Isidoro Fernandes Guedes, secretário Municipal de Saúde de Goiana (PE) Narcóticos anônimos Sou membro do Narcóticos Anônimos há 12 anos. Já fiz parte do subcomitê de informação ao público do Vale do Paraíba (SP), por isso posso comentar com propriedade: essa reportagem (“Só por hoje”, edição 53) ficou ótima, foi uma das mais fiéis ao programa que já li nos anos em que estive presente no serviço da irmandade. Parabéns a todos os companheiros envolvidos e, principalmente, aos profissionais da Revista do Brasil pela fidelidade da reportagem. Rogério MCR, Taubaté (SP) Agradeço a atenção e o carinho por divulgarem a reportagem “Só por hoje”, da edição de novembro. Rodrigo Cotet, São Paulo (SP)
México O retrato apresentado na reportagem “O gigante engolido” (edição 53) seria o do Brasil de hoje se José Serra tivesse ganhado a eleição em 2002. Estatais privatizadas, Alca e o país na miséria, totalmente dependente dos americanos. Itamar Chewanko, São Paulo (SP) Assédio moral Quero parabenizá-los pela matéria “Pressão fatal” (edição 52), por trazer ao debate um tema que não é tão corriqueiro, mas que acaba cada vez mais com famílias, com sonhos dos trabalhadores e os reduz a nada. Há algum tempo, tive o desprazer de conviver com esse tipo de problema. Trabalhava em uma empresa terceirizada, onde fui perseguida por uma chefia despreparada e sem o mínimo senso de respeito ao próximo. Comecei a receber ofensas que me descaracterizavam perante os meus colegas e, constantemente, ouvia ameaças de demissão. Tomo cinco tipos de medicamentos controlados, sofro de depressão profunda e às vezes me pergunto: a quem iria fazer falta caso me ausentasse deste mundo? É triste, mas é real. Que isso soe como um apelo para quem pode fazer algo para mudar, para coibir esses abusos, que a cada dia crescem mais. Sônia Maria da Silva, Mauá (SP) WikiLeaks A prisão e o assalto oficializado das contas do fundador do WikiLeaks é maracutaia, assim como essa acusação de crimes sexuais. Não acredito nisso, apesar de não o conhecer. Os políticos eu conheço, e sei muito bem do que são capazes para esconder suas tramoias. Mexeu nas feridas deles, a fedentina se espalha. Emmanuel Aquino Pereira revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.
PontodeVista
Por Mauro Santayana
Um mundo sem segredos O Wikileaks revela como é conduzida a política externa dos EUA e mostra que a nação é governada por uma classe política de reduzida inteligência, amedrontada diante de inimigos reais e imaginários
O
mundo, em seu espanto com as revelaA segunda grande vitória americana, na Primeira ções dos segredos diplomáticos e milita- Guerra Mundial, foi parecida. Depois de muita hesires do governo dos Estados Unidos, ain- tação, o presidente Wilson decidiu acudir a Europa. da não avaliou bem as consequências dos Seus soldados só chegaram ao solo europeu em março fatos. As grandes revoluções ocorrem de 1917, levaram meses se adestrando e entraram em sem que seus contemporâneos as percebam. Durante combate quase no fim do ano (a guerra acabou em oucerto período, os observadores continuam com as mes- tubro de 1918). A Segunda Guerra Mundial foi ganha mas ideias anteriores. É o que ocorre quando desper- pelos soviéticos. Os aliados ocidentais esperavam que tamos de um sonho, agradável ou não: levamos alguns os alemães vencessem os russos, para negociar uma segundos para perceber que as sensações não eram re- paz em separado com os nazistas. Só desembarcaram ais, que estamos na cama, e não voando sobre monta- na Normandia em 1944, quando os soviéticos, após nhas e mares. fantástica e inesperada resistência, já haviam empurGregório, bispo de Tours (539-594), conta que um rado os alemães de seu território, e avançavam em dialto servidor do Império Romano, enviara de sua pro- reção a Berlim. víncia, o filho ao imperador Rômulo AuOs soviéticos tiveram, entre soldagusto, com uma carta, pedindo-lhe que Os EUA nunca dos e civis, quase 20 milhões de moraceitasse o jovem em sua corte a fim de enfrentaram tos na guerra. Os Estados Unidos não ali iniciar carreira. Gregório observa que invasão tiveram de enfrentar, até hoje, uma inas elites do Império não entendiam que estrangeira em vasão estrangeira em seu território. Mas a estrutura do poder de Roma já estava no imaginário do mundo, graças ao conseu território. erodida. O poder de Rômulo Augusto trole das informações e da indústria do durou apenas 11 meses, entre outubro Mas no entretenimento, eles eram vistos como de 475 e setembro de 476, quando foi de- imaginário do invencíveis e invulneráveis. posto pelos invasores e terminou o Im- mundo, graças O grande mérito do Wikileaks, ao repério Romano do Ocidente. Não obstan- ao controle das velar como é conduzida a política exte as evidências, as elites não percebiam informações e terna norte-americana, é mostrar que o atropelo da história. os EUA são governados por uma clasda indústria do Os sinais da queda do sistema munse política (na definição dos estudiosos dial de domínio, sob a hegemonia norte- entretenimento, italianos Mosca e Pareto e sua teoria -americana, têm sido evidentes para os eram vistos das elites) de reduzida inteligência esobservadores que conhecem a mecânica como tratégica e amedrontada diante de seus do mundo. O controle internacional das invencíveis inimigos, reais ou imaginários. Agora informações e da indústria do entretenisabemos o que os policy makers nortemento (fórmula sofisticada de manipulação da reali- -americanos pensam dos outros povos e o que pendade e de cooptação mental) deram ao mundo a ideia sam de nós, brasileiros. de que os anglo-saxões são invencíveis e invulneráveis. Quando redigíamos este texto, uma comunicação Não tem sido exatamente assim. divulgada pelo Wikileaks mostrava a preocupação A grande vitória americana sobre a Espanha Colo- norte-americana com a possibilidade de que Brasínial, na América e na Oceania, se deu no momento lia fosse atingida por choques de aviões contra seus em que Madri se encontrava entregue a um governo edifícios públicos. O objetivo é nos obrigar a adotar débil, sem apoio popular, e com o trono ocupado pela legislação antiterrorismo, e criar inimigos onde não rainha Maria Cristina de Habsburgo, regente do trono os temos. Somos um povo pacífico, de vocação ecuem nome do filho, que só receberia o cetro em 1902. mênica, uma maioria cristã que se dá bem com muA rainha não dispunha de pulso para enfrentar o con- çulmanos, judeus e budistas. Nessa conduta está nosflito, que durou só algumas semanas, até a capitulação. sa segurança.
Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980
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Público com o privado
BRUNO KELLY/REUTERS
NaRede
Desmatamento menor, mas ainda alto
NA RÁDIO
Diversidade
Os episódios de homofobia e violência no final do ano mostram que o projeto de lei que criminaliza a discriminação relacionada à orientação sexual precisa ser debatido. Ativistas defendem medidas ligadas à educação para lidar com o problema. http://bit.ly/rba_homofobia
MEGAFONE
Marcio Pochmann
O governo Lula sagrou-se o de maior popularidade da história do país. Entre os motivos, estão o bom momento econômico brasileiro e a opção política pelo crescimento, com presença do Estado investindo e intervindo no mercado. Em entrevistas ao programa Jornal Brasil Atual, Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e Artur Henrique, presidente da CUT, criticam a agenda defendida pela equipe econômica do governo federal. http://bit.ly/jba_pochman_ipea e http://bit.ly/jba_artur_cut
Motosserra de ouro
ANTONIO CRUZ/ABR
Ajuste fiscal numa hora dessas?
GREENPEACE/DIVULGAÇÃO
Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Vitor Nuzzi
A divulgação de índices de desmatamento na Amazônia revela que o Brasil atingiu um novo nível na preservação do meio ambiente. Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) consolidam a visão de que o país está no caminho correto na luta contra o desmatamento. Ambientalistas afirmam que as pequenas propriedades são as responsáveis pela maior parte da devastação atualmente, embora atividades como a pecuária preocupem. http://bit.ly/rba_desmatamento
Projeto do ex-governador de São Paulo Alberto Goldman prevê destinar 25% dos leitos de hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) a pacientes particulares e de convênios médicos. A proposta foi duramente criticada por sindicatos e ativistas, que defendem a garantia do direito à saúde pública. Até tucanos são contra. http://bit.ly/rba_sus_privada
Durante a 16ª Conferência das Partes (COP-16) sobre Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), em Cancun, a líder da bancada do agronegócio no Congresso Nacional, senadora Kátia Abreu (DEM-TO), recebeu a “Motosserra de Ouro”. A premiação é organizada por movimentos sociais e ONGs aos personagens da sociedade que, na avaliação deles, mais colaboraram para o desmatamento. http://bit.ly/rba_katia_motosserra
A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.
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REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2011
A moradia deve permanecer como desafio para a presidente Dilma Rousseff. Três capitais do país assistiram a ações policiais para tirar famílias de sem-teto de prédios abandonados. Em São Paulo, dois edifícios foram alvo, resultando em um acampamento em frente à Câmara Municipal. No Rio de Janeiro, para liberar um edifício do INSS, a polícia Reintegração no Rio exagerou, segundo os ativistas, com uso de gás de pimenta e nenhuma conversa. Em Salvador, moradores sofreram ação de reintegração que beneficiou proprietário que sequer tem escritura do terreno ocupado. Leia reportagem sobre a situação em São Paulo à página 32 desta edição e confira também outras coberturas na rede. http://bit.ly/rba_semteto_bahia
THAÍS MORELLI
Sem-teto pelo país
WikiLeaks, a nova fronteira da comunicação A jornalista Natália Viana vê o WikiLeaks como uma ferramenta com força para democratizar a informação por meio da internet. A representante no Brasil da organização que divulga documentos confidenciais e sigilosos do governo dos Estados Unidos explicou, em entrevista a Anselmo Massad, da Rede Brasil Atual, os critérios para publicação. Confira abaixo trechos da entrevista e a versão mais completa aqui: http://bit.ly/rba_natalia_wiki Qual a sua avaliação sobre o alcance dos documentos vazados no Brasil?
A repercussão está ótima. O Brasil, afora os países centrais, é o que está mais engajado na discussão. É o único em que o presidente apoiou o Julian (Assange) quando ele foi preso. Os países da África e da América Central e do Sul vão demorar para receber os dados, porque estão ainda negociando com veículos locais.
Houve alguma definição de critérios para divulgar antes este ou aquele documento?
Naquela primeira semana de divulgação, a estratégia da organização foi começar a tratar de temas de relevância internacional. Até hoje o que predomina na pauta são os temas internacionais, porque quem está pautando é o site. Agora, como O Globo e a Folha estão com os documentos, eles vão elaborar a própria pauta do dia. Por que o Brasil tem dois jornais envolvidos, enquanto no resto do mundo apenas cinco veículos recebiam o material? Quais foram os motivos da escolha?
O Brasil está sendo privilegiado. O WikiLeaks tinha acordo com cinco grandes jornais no mundo. O Brasil só entrou porque fui convidada e porque topei. O Julian em pessoa se empenhou no projeto para que saísse no Brasil. Aqui, não quiseram garantir exclusividade. Isso tem de ficar claro: o objetivo é garantir que seja divulgado do melhor jeito possível. Os dois veículos estão sendo muito respeitosos.
Há muitos documentos ainda a serem divulgados?
O total de documentos é grande, cerca de 3 mil. Embora tenha uma grande quantidade, eu poderia dizer que metade deles não rende reportagem. Documentos relevantes, tem muito mais para sair. As pessoas querem saber se tem mais furo, mais escândalos... Tem várias histórias bem interessantes, coisas que acontecem no nosso país e a gente não sabe. A de hoje (segunda-feira, 13 de dezembro), por exemplo, sobre como os americanos se interessaram pelo pré-sal para fazer lobby, o embaixador se encontrando com representantes da indústria petroleira, é uma história super-relevante que ninguém tinha publicado antes em detalhes. Qual o impacto do Wikileaks sobre a cobertura da imprensa?
O WikiLeaks é um representante de uma nova mídia espontânea. O acesso à informação muda de perspectiva. Apesar de os jornais terem acesso aos documentos, todos eles vão para a web, estão na web. Qualquer pesquisador, qualquer jornalista pode fazer sua própria leitura. Isso é extremamente democratizante. No Brasil, em um momento em que se discute um novo marco regulatório para a mídia, é muito importante ficar atento a isso. Não é só o vazamento, não só os segredos das embaixadas, não só que o Julian foi preso. É uma nova fronteira de democratização da comunicação usando a internet como meio.
Ter um blogue é uma decisão sua ou em outros países isso também ocorre?
É uma decisão minha, mas tenho total liberdade para isso. Em outros países, os jornalistas escrevem em seus blogues, dão entrevistas, escrevem artigos. Optei por isso porque a informação sobre o Brasil é muita e a repercussão também. E eu só posso publicar no WikiLeaks um número limitado, também em inglês. No blogue, posso por vídeo, teve a entrevista com o Julian, coisas que não caberiam no WikiLeaks. É um trabalho pessoal. JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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CAPA
Lições do ABC Há 30 anos ex-dirigente sindical, hoje ex-presidente da República, Lula retorna à região que tem no mundo do trabalho – não só nas fábricas, mas nas ruas e nos movimentos – as raízes de seu desenvolvimento Por Vitor Nuzzi e Cida de Oliveira
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REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2011
C
ena 1: durante a greve dos metalúrgicos do ABC, em 1980, um ministro (Camilo Penna) diz que o movimento está infiltrado por estrangeiros, para aumentar os custos de produção. Outro (Murilo Macedo) vê a presença de comunistas. Líderes são presos, sindicatos sofrem intervenção. Empresários reclamam que o sindicalismo “selvagem” afugenta investimentos. Cena 2: três companhias aeronáuticas – dos EUA, França e Suécia – disputam um espaço para instalar-se em São Bernardo; o prefeito, Luiz Marinho, é um ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos. A investida está relacionada à escolha, pelo governo brasileiro, de uma nova aeronave para a Força Aérea. Entre um episódio e outro, passaram-se 30 anos. O principal líder sindical da região participa da formação de um partido, é deputado constituinte, disputa o governo estadual uma vez e a Presidência da
MAURICIO MORAIS
República cinco vezes. Vence duas e, a partir de 1º de janeiro, ao deixar a residência no Palácio da Alvorada para se fixar em seu apartamento em São Bernardo, reencontra uma região em plena transformação. Com a vocação industrial preservada, mas com um forte setor de serviços que emprega 50% da mão de obra e espaço para experiências de economia solidária. Precavido após anos de crise, entre as décadas de 1980 e 1990, o ABC – constituído de sete cidades e 2,5 milhões de habitantes – se articula de forma conjunta. O Consórcio Intermunicipal, que reúne as administrações das sete cidades, discute um plano estratégico para os próximos dez anos. No final de novembro, a Prefeitura de São Bernardo também apresentou propostas para discutir a cidade até 2021. No mesmo período, foi lançado o Fórum Mauá 2025. A cidade é a 11ª do estado em número de habitantes e a 10ª mais pobre. Em 1954, ano da emancipação, tinha 10 mil habitantes. Hoje, 400 mil. “Faltou planejamento, e isso faz diferença. Planejar significa que a população entenda essa realidade para buscar soluções”, diz o prefeito de Mauá, Oswaldo Dias. Ciente das dificuldades, Dias vê um amadurecimento do ABC, com a consolidação da visão regional, além de avanços políticos e econômicos. “Em 1980, vivíamos ain-
da sob uma ditadura. Trinta anos depois, vivemos em plena democracia. Do ponto de vista da economia, na década de 1990 se falava muito do Custo Brasil e do Custo ABC. Mas o ABC resistiu. São mudanças sedimentadas.”
Da fábrica ao gabinete
Muitos líderes políticos no ABC surgiram do movimento sindical. O PT elegeu em Diadema seu primeiro prefeito, o ferramenteiro Gilson Menezes, em 1982. “Nós não tínhamos nenhuma pretensão política”, lembra o atual vice-prefeito, hoje no PSC. “Com os movimentos, o surgimento do PT, tivemos de assumir o compromisso de sair candidatos para iniciar a vida política do partido”. Gilson liderou a greve considerada marco das transformações do sindicalismo, em maio de 1978, na Scania. “Já fui perseguido em fábrica, comi feijão azedo, marmita fria... Disputar a prefeitura seria mais um enfrentamento. Valeu a pena, porque não tinha a cultura de as pessoas se entregarem a um processo mais articulado. O povo queria participar tanto que me dava dedo em riste.” Hoje, ele vê a região mais estruturada e com mais recursos, principalmente após a reforma tributária ocorrida com a Constituição de 1988. “As condições dos
Deixa com eles Em 1998, a Conforja, que foi a maior forjaria da América
Latina, estava prestes a deixar na mão 600 trabalhadores. Com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos, uma parte deles arrendou a fábrica e, no ano seguinte, lutou para que as instalações, em Diadema, não fossem lacradas pela Justiça. Nascia assim a Uniforja, composta por três cooperativas: um laboratório e duas unidades fabris. Não há no Brasil experiência mais bemsucedida de trabalhadores que assumiram uma fábrica falida. Recentemente, a Uniforja honrou direitos trabalhistas daqueles 600 empregados. “Estamos fazendo história. A legislação não consegue fazer as empresas pagarem os trabalhadores”, ressalta o engenheiro João Luis Trofino, presidente do empreendimento.
População
1980 2010
Diadema
228.660 386.039
Mauá
205.740 417.281
Ribeirão Pires
56.532
113.043
Rio Grande da Serra
20.093
44.084
Santo André
553.072
673.914
São Bernardo
425.602
765.203
163.082
149.571
São Caetano Total
1.652.781 2.549.135
Área total do ABC
Cidade de São Paulo
841 km2, sendo 472 km2 em
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mananciais hídricos
4
2
5 6
1
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1. São Bernardo do Campo 2. Diadema 3. São Caetano do Sul 4. Santo André 5. Mauá 6. Ribeirão Pires 7. Rio Grande da Serra
Fonte: IBGE JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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PIB per capita (2008) Diadema Mauá Ribeirão Pires Rio Grande da Serra Santo André São Bernardo São Caetano São Paulo/estado São Paulo/município
R$ 23.618,26 R$ 13.752,84 R$ 13.347,20 R$ 8.536,14 R$ 20.018,82 R$ 37.267,11 R$ 67.361,35 R$ 24.457 R$ 32.493,96
Recuperação
A indústria automobilística instalada ali a partir dos anos 1950 explica em parte a força econômica da região, que concentrava mais de 180 mil metalúrgicos no início dos anos 1980. A base do principal sindicatoda
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REVISTA DO BRASIL
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DANILO RAMOS
municípiosmelhoraram. Em 1983, nosso orçamento era de US$ 30 milhões. Com a reforma, a receita foi para US$ 75 milhões. Hoje, o orçamento anual é de pelo menos U$ 300 milhões. O governo Lula foi muito municipalista”, diz. Mesmo sendo berço do PT e de Lula, o ABC está longe de ser unanimidade em relação a seu político mais conhecido. No segundo turno das eleições, Dilma Rousseff ganhou em Diadema, São Bernardo, Mauá e Rio Grande da Serra e perdeu em Santo André, São Caetano e Ribeirão Pires. O reduto operário concentra também uma classe média emergente e de perfil mais conservador. Na soma dos municípios, Dilma recebeu 769 mil votos (53,2%) e Serra, 678 mil (46,8%). Uma diferença de seis pontos percentuais, metade da nacional. A nova classe média concentra quase 80% das famílias e a região é o terceiro maior polo consumidor do Brasil. O presidente da associação local de construtores, Milton Bigucci, diz que o ABC trocou as casas pelos apartamentos em condomínios fechados. “Não se constrói mais casa térrea ou sobrado. Busca-se a segurança total”, afirma. Além da questão da segurança, a falta de espaço leva à verticalização, como em São Paulo. O poder aquisitivo também aumentou. “O apartamento mais vendido este ano é o de três dormitórios”, conta Bigucci. Segundo ele, o custo por metro quadrado está, em média, 10% menor que na capital, diferença que já foi superior a 30%.
ROBERTO PARIZOTTI
Fonte: Fundação Seade
O lixo do futuro
A ideia era montar um ferro-velho, mas na incubadora da Fundação Santo André surgiu a orientação para que aquele grupo de trabalhadores, que não encontrava oportunidade para se recolocar no mercado formal de trabalho, abrisse uma cooperativa de catadores de recicláveis. Isso foi há 11 anos. Na época não havia sequer uma lei que autorizasse a prefeitura a firmar algum acordo facilitador para a criação da Cooper Limpa. O empreendimento funciona num galpão cedido pela Prefeitura de Diadema, que fornece também água, eletricidade e um caminhão uma vez por semana para coletas em creches, e paga R$ 55,95 por tonelada de resíduos recolhidos em residências e órgãos públicos da cidade. Os 19 cooperados recolhem INSS.
categoria, que reúne hoje quatro dos sete municípios do ABC, entrou em 1990 com mais de 120 mil trabalhadores e saiu com 80 mil. Após uma trajetória de recuperação iniciada em 2004, chega-se agora ao maior número (103,5 mil) desde 1995. A crise, iniciada ainda nos anos 1980 e tornada mais aguda na década seguinte, acendeu o sinal de alerta e levou à formação do Consórcio Intermunicipal Grande ABC. “Quando o Celso Daniel criou o consórcio, passávamos pelo nosso pior momento econômico”, afirma Clóvis Volpi, atual presidente do consórcio e prefeito de Ribeirão Pires, referindo-se ao ex-prefeito de Santo André, morto em 2002. “Chegávamos a quase 20% de desemprego, havia desestabilização da indústria, o PIB embicou para baixo. Ali começaram as grandes discussões.” Hoje, a região vive situação privilegiada, segundo Volpi. Pelos dados do IBGE di-
vulgados em dezembro, cinco municípios do ABC (pela ordem, São Bernardo, Santo André, São Caetano, Diadema e Mauá) estavam, em 2008, entre as 100 cidades brasileiras com maior participação no PIB nacional. Em agosto, Volpi e Mário Reali, vice-presidente do consórcio e prefeito de Diadema, abriram o processo de elaboração do Planejamento Regional Estratégico (PRE) para os próximos dez anos. “É o nosso plano de governo”, define Volpi, que cita como prioridades o combate às enchentes e a integração do transporte público. Para o atual presidente, ainda é preciso amadurecer um “pensamento regional” entre os prefeitos e abrir mão de diferenças políticas. “O prefeito deve ter a sensibilidade de pensar regionalmente. Temos formação política heterogênea”, observa. O PT está à frente de três administrações (Diadema, Mauá e São Bernardo), o PTB
Pós, inglês e alemão Ronaldo Souza quase dormiu na rua em sua
primeira noite em São Bernardo, em 1977. Saiu de Blumenau (SC) em busca de estágio, depois de fazer curso técnico. Entrou na Volkswagen. Recebia 1.100 cruzeiros e pagava 800 de pensão. Seis meses depois, foi efetivado. Casou em 1981 e teve duas filhas, que já trabalham. “Passei fases difíceis, facões. Na época da inflação alta, faltava leite”, lembra. Hoje mora em um bairro nobre de São Bernardo e tem padrão de vida confortável. Na fábrica, que já teve 40 mil funcionários e hoje tem 13 mil, muita coisa mudou. “Entrei com curso técnico. Depois fiz faculdade, pós, falo inglês, alemão. Hoje é preciso ter pelo menos mais um idioma para entrar”, observa o engenheiro Ronaldo, 52 anos, 33 de fábrica.
Desafios do polo
DINO SANTOS/ DIVULGAÇÃO SQABC
No início de 2010, a Unipar anunciou a venda para a Braskem da fatia dos 60% que detinha da petroquímica Quattor. A operação que criou a maior companhia petroquímica das Américas, embora tenha aspectos econômicos positivos, preocupa o presidente do Sindicato dos Químicos do ABC, Paulo Lage. O receio é que o monopólio – aliado à criação de outros dois polos, no Rio de Janeiro e em Pernambuco – afete investimentos no ABC. O setor responde por 70% do ICMS em Mauá e 35% em Santo André. Reúne 14 empresas produtoras de matérias-primas para a fabricação de resinas, borrachas, tintas e plásticos. “De uma forma geral, toda cadeia produtiva tem como princípio o setor petroquímico. O polo precisava duplicar sua capacidade de produção”, observa Lage, para quem devem ser avaliados possíveis impactos do pré-sal para a região. Há 30 anos, aos 14, Lage trabalhava no comércio em São Bernardo: “Vira e mexe vinha a notícia de que era para fechar a porta porque a passeata estava vindo”.
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Educação em alta Alunos matriculados no ensino superior
104.171 101.358 103.983
70.567
35.783
1991
2001
2006
2007
2008
Fonte: Inep/MEC
Público e gratuito Ao retornar ao ABC, Lula encontra a realização de um sonho antigo: a oferta de ensino superior público e gratuito. “É a vitória em uma luta histórica”, avalia Rosana Denaldi, pró-reitora de planejamento da Universidade Federal do ABC, funcionando desde 2006. “A instituição tem um projeto pedagógico diferenciado, interdisciplinar, voltado para atender às demandas regionais no ensino e pesquisa de tecnologia.” Em 2007, a Universidade Federal de São Paulo instalou campus em Diadema.
“Precisamos de organização metropolitana” Para o prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da CUT e ex-ministro do governo Lula, trabalhadores e empresários aprenderam a negociar e evoluíram com a democracia. “O ABC está mais maduro”, diz o prefeito, que cobra maior presença do estado de São Paulo na Região Metropolitana. Quanto à disputa entre a sueca Saab, a francesa Dassault e a americana Boeing pelos caças da FAB, Marinho – que tem em sua mesa réplicas de modelos das três companhias – acredita que a definição sairá em breve. Já se disse que o sindicalismo do ABC era selvagem e afugentava investimentos. Hoje, empresas disputam para se instalar aqui. O que mudou?
O Brasil padeceu por um longo período de uma economia que andava de lado e com guerra fiscal entre estados e municípios. O ABC padeceu com isso, assistiu a desemprego e violência crescentes, problemas habitacionais, ocupações desordenadas, ausência de planejamento. Lula cresceu lutando contra isso. O governo Lula criou condições para empresas disputarem novos segmentos industriais na região, coisa impensável alguns anos atrás. Mais de uma vez, a imprensa escreveu que o ABC deixaria de ser uma região industrial para ser uma região de serviços, do terceiro setor. Eu defendi que o ABC era uma região que receberia de forma
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tardia, inclusive, investimentos em serviços e comércio, mas não deixaria de ser industrial por sua vocação. Até os anos 90, não havia uma consciência na região de que era preciso somar esforços para buscar soluções conjuntas?
É uma consciência crescente. O instrumento regional tinha suas fragilidades, porque não havia no Brasil uma legislação que desse respaldo. O governo também buscou aperfeiçoar esse instrumento, dando condições ao consórcio de se tornar público. Estamos nessa transição, permitindo às sociedades compreender melhor como fazer melhor projetos partilhados, tornando mais efetivas algumas políticas públicas. Agora, temos um problema que é a ausência de organização metropolitana. O estado precisa coordenar a região pra valer, destinar recursos, fazer projetos que possam ser assimilados pelas cidades, que deem conta de amenizar o problema do trânsito, da segurança, da saúde. Eu vejo como uma necessidade a integração de tarifas, de linhas, dessa malha viária que temos no transporte público. Não será por corredor de ônibus que vamos resolver o problema de transporte. O corredor tem de se complementar com a malha de metrô e trem, que precisam ser o grande transporte de massa, para que no futuro as pessoas possam deixar o carro na garagem, ou num bolsão de estacionamento, de forma a melhorar a qualidade de vida nas cidades.
de duas (Santo André e São Caetano), o PV, de uma (Ribeirão Pires) e o PSDB, de outra (Rio Grande da Serra). O próximo presidente do consórcio deve ser Reali, a partir deste mês.
Cinturão
“O ABC era um distrito, transformou-se em um único município, assistiu a vários movimentos de emancipação para chegar às sete cidades e descobrir que é um ser só”, diz o jornalista e historiador Ademir Médici, com seus 60 anos vividos na região. Ele identifica no início dos anos 1980 uma transformação de princípios e de mentalidade, com os vários movimentos sociais se organizando, inclusive no empresariado. Do ponto de vista econômico, Ademir lembra que até os anos 1970 o ABC possuía um “cinturão verde”, fornecedor de frutas, verduras e ovos para São Paulo e Santos. “Esse cinturão não existe mais, abriu espaço para novos bairros de uma população que foi migrante, primeiro do interior de São Paulo e posteriormente do Nordeste.” O professor Luiz Roberto Alves, diretor da cátedra de Gestão de Cidades na Universidade Metodista, em São Bernardo, considera a cultura do trabalho um ícone do ABC, na passagem, usando termo do edu-
dendo como tais culturas não só o chamado chão de fábrica, mas as ruas, os movimentos reivindicatórios e as manifestações de solidariedade. As greves do final dos anos 1970 e início dos 1980 seriam o “parto da democratização” – mas o traço inconformista da região antecede essa época. “Estou aqui desde 1967, e esses lugares chamados de exclusão já não eram silenciosos. Se o enfrentamento (dos anos 70-80) não ocorresse, estaríamos despreparados em 1990”, avalia. Ele vê os grupos A e B diminuindo na universidade e os grupos C e D crescendo. “Eles (trabalhadores) formaram seus filhos. Agora, é o momento de gestão do bem comum.” Amigos e militantes prepararam uma recepção para a “volta” de Lula ao ABC. Com tempo livre e fã de futebol, ele poderá assistir a um campeonato paulista que pela primeira vez reunirá na elite os “grandes” da região: São Bernardo, São Caetano e Santo André. Ainda em janeiro, o São Bernardo receberá o Corinthians. Lula poderá ver seu time de coração e matar a saudade do cenário que o projetou para o mundo, o estádio de Vila Euclides, hoje denominado 1º de Maio. Ele já avisou a pessoas próximas que quer assistir ao jogo da arquibancada.
Mercado de trabalho Distribuição dos ocupados
50% Serviços 27% Indústria 14% Comércio 9% Outros* * Inclui construção civil e serviços domésticos. Fonte: Fundação Seade e Dieese/2009
cador Paulo Freire, do imigrante “ingênuo” para a formação de uma consciência crítica, a partir dos anos 1950. Assim, seria “o lugar onde o trabalhador se encontrou mais cedo com o mundo”, devido à grande presença de multinacionais. “Uma moderníssima cultura do trabalho sedimentou as conquistas, por meio de fóruns, conselhos, consórcios, com novos atores nessa relação tripartite de governança”, afirma. “As culturas do trabalho foram a ponta de lança do desenvolvimento. A região deve muito a elas”, diz Luiz Roberto, compreen-
Antes empresários reclamavam que os sindicatos iam afugentar empresas. Depois, houve a fase das negociações. Como foi essa transição, esse aprendizado?
Qual a diferença entre as gestões sindicais?
ROBERTO PARIZOTTI
Quando fui presidente do sindicato, me perguntaram quem estava errado: se O Brasil passou por um estágio de ausêneu, Lula, Vicentinho e Meneguelli (oucia de relacionamento, que se dava na base tros ex-presidentes)? A questão era sodo “eu mando, você faz”. A ditadura reprobre quantidade de horas trabalhadas duzia o papel das chefias nas empresas, a por ano e greves. Eu disse: nenhum deponto de muito militar da reserva ter poder les. O Vicentinho já iniciou um procesde mando nas empresas. Como romper com so de transição, compondo mais. Se o isso? O opressor não deixa de ser opressor Lula buscasse fazer as composições que por livre e espontânea vontade. O processo eu fazia, ele estaria errando. Da mesma de rompimento da opressão vem por conforma, eu erraria se buscasse conduzir a quista. Passa por conflitos. Eu lembro, quancategoria para o conflito o tempo todo. do iniciamos esse processo, que as cúpulas Luiz Marinho: “O opressor não deixa de ser Os conflitos eram exatamente conquisdas empresas aceitaram que era preciso criar opressor por livre e espontânea vontade. tar instrumentos de conversa e de comO processo de rompimento da opressão um relacionamento democrático. Eles fala- vem por conquista” posição. Não era desejo do Lula e dos vam: olha, vocês têm de ter paciência, portrabalhadores fazer greve de 41 dias. À que as chefias acham que o sindicato está tirando poder delas, en- medida que as greves quebram barreiras, não tem mais a necestão elas vão reagir, e nós temos de construir o aprendizado dos dois sidade de recorrer ao conflito. No passado, o que os governantes lados. O aprendizado dos sindicatos, dos trabalhadores, que vão ouviam de trabalhadores? Hoje, estão presentes nos conselhos, ganhar poder, e o aprendizado das chefias, que vão perder poder. nas conferências.
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Os dilemas do Rio PRESENÇA A favela é continuação da cidade e não outra cidade
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Comunidades, autoridades e especialistas analisam os efeitos das ações nas favelas. O caminho para superar uma história de corrupção e violência policial, de capitulação para o crime e de omissão do Estado ainda é longo
defensora pública Maria Lúcia Pontes. Para ela, sob o rótulo de guerra se perdem limites. “Vira regime de exceção e permite-se violar qualquer coisa. Policiais podem subir atirando, arrombar casas, decretar horário para entrar e sair”, afirma. Embora a operação tenha sido aclamada como “vitoriosa” pelo governo e parte da mídia – e aplaudida por setores da população –, moradores denunciaram abusos da polícia. Não seria de estranhar. De 2003 a 2009 foram mortas 7.854 pessoas por ação policial no Rio de Janeiro. Mais de 65% delas se caracterizam como execuções extrajudiciais, a maioria de negros, jovens e favelados. A Secretaria de Segurança relaciona o início da ação com a queima de ônibus na cidade nos dias que a precederam: “Após os ataques a veículos no estado, a Inteligência da secretaria identificou que as ordens saíamda região da Penha e do Alemão, e, em tempo recorde, uma grande operação foi montada, desarticulando a quadrilha com apoio efetivo das Forças Armadas, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal”. Para o governo, os atentados seriam resultado da insatisfação das organizações criminosas que controlavam territórios hoje ocupados pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). O antropólogo Luís Eduardo Soares, em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura, afirmou não acreditar na versão. “Não faz sentido (o crime) jogar a população nos braços do governo, viabilizando uma grande união.” Luís Eduardo contou que está em curso uma investigação sigilosa, da qual podem sair surpresas, sobre a origem dos atentados aos ônibus. Não é impossível que a origem esteja em disputa entre traficantes e policiais pelo valor do “arrego”, a quantia volumosa paga à polícia para que não atrapalhe.
Para o cientista social Alexandre Magalhães, da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, o governo aproveitou para fazer o que queria há tempos no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro: convocar o reforço das Forças Armadas para o que chamou de guerra nas favelas. “A partir da metáfora da guerra articula-se a prática: primeiro você precisa identificar o inimigo, os traficantes de drogas e, por tabela, as comunidades. Depois, um segmento da sociedade e meios de comunicação exigem resposta rápida. As favelas, então, se transformaram na fonte de todos os medos da cidade”, analisa.
Repercussão
A estudante de Letras Bianca Sampaio vê como positiva a ação policial. “As medidas deviam ter sido tomadas há muito tempo, pois evitaria a guerra que houve no Rio de Janeiro.” O porteiro Lindomar Ribeiro, morador de São Cristóvão, zona norte do Rio, também aprovou. “Foi uma boa resposta, eles nunca pensaram que ia acontecer”, opina. O economista Vinícius Marques de Oliveira, morador da zona sul, pondera: “O governo demorou. Mas, ao mesmo tempo, a gente sabe que tem muito policial corrupto. Então o problema não está só no morro”. Sandra Vergete, secretária da Federação dos Professores do Rio de Janeiro, diz que a ação mostrou que “quando eles querem, eles podem”, mas que houve muitas fugas e “só os pequenos foram presos”. Gabriela Gomes, mestranda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), questiona o êxito da operação. “A mídia diz que a violência no Rio é consequência do tráfico, e o poder público tem de dar uma resposta.” Para Gabriela, a violência no Rio e no Brasil tem relação com direitos não garantidos, como educação, saúde, moradia, lazer. “As drogas têm de ser tra-
FOTOS FRANCISCO VALDEAN
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o final de novembro passado, o Brasil inteiro viu pela TV a ocupação do conjunto de favelas da Vila Cruzeiro e do Alemão, onde ficam 14 comunidades e vivem 400 mil pessoas. A ação reuniu três esferas da polícia – Militar, Civil e Federal – e as Forças Armadas. A transformação do episódio em “guerra do Rio”, em espetáculo, foi criticada por especialistas. “Guerra pressupõe dois lados com poderio parecido, o que não existe”, afirma a
JOEL SILVA/FOLHA PRESS
QUEM É QUEM Policial faz revista em casa no Complexo do Alemão: operação cercada de dúvidas
André: “A UPP tira o poderio bélico dos traficantes, mas não acaba com o tráfico”
Gabriela: “As drogas são uma questão de saúde, e não apenas de segurança” JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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tadas como questão de saúde, e não apenas de segurança. Como seria se a invasão das casas em busca de drogas fosse nos apartamentos da zona sul?”, questiona. Outro ponto que tem mais de uma versão no episódio é a fuga de alguns traficantes dentro de carros da frota policial. Há quem considere que foi uma tática para evitar a carnificina que se avizinhava. Outros acreditam que eles simplesmente pagaram aos policiais para sair da área e se refugiar em locais como a Maré. A existência de associação entre policiais e traficantes é quase unanimidade entre especialistas. E da insatisfação com a divisão do butim teriam surgido as milícias, que dominam a vida de comunidades de modo mais violento e rigoroso. Formadas por policiais, agentes penitenciários, bombeiros e até por guardas municipais, elas controlam o transporte, o comércio, a venda ilegal de terra – e até o tráfico de drogas – na maioria das favelas do Rio. “As milícias se articulam mais efetiva e eficazmente do que os traficantes”, afirma o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro José Cláudio Souza Alves. Operam com maior facilidade por fazer parte da estrutura do estado, e os traficantes perdem terreno, segundo o pesquisador. Para ele, a mídia tenta passar a ideia de que há uma luta entre o bem (o governo/polícia) e o mal (o tráfico). “Isso é uma falácia. O que existe é essa reorganização da estrutura do crime.”
CONTROLE SOCIAL Fiell, do morro Santa Marta: “O policial tem de ir à favela para coagir o tráfico, e nada mais. É preciso fiscalização civil para vigiar esses policiais”
Com a implantação gradual das UPPs, o governo conseguiu o apoio de especialistas respeitados na área de segurança. Para o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Ignácio Cano, a UPP não muda a relação entre polícia e comunidades pobres de um dia para o outro, que é conflitiva há séculos. “Mas abre-se a possibilidade de denúncias. Antes as pessoas eram torturadas, exterminadas, jogadas na vala. E morriam de medo de denunciar”, disse o professor em recente entrevista. Ele lembra que as polícias foram criadas no Brasil no século 19 com a função de controlar escravos e trabalhadores pobres. O rapper e cineasta MC Fiell, do morro Santa Marta, onde foi instalada a primeira UPP, chegou a ser preso por 12 policiais da unidade na madrugada de 22 de maio passado. Autor de uma cartilha sobre a abordagem policial nas favelas, Fiell realizava
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TASSO MARCELO/AE
Pacificação
OCUPAR ESPAÇO Silvia Ramos: “O objetivo da UPP é mudar um aspecto específico da violência no Rio. Chama-se controle armado de território”
FOTOS FRANCISCO VALDEAN
um evento no bar de seu sogro quando os policiais invadiram o espaço, desligaram o equipamento de som e o prenderam. “O policial tem de ir à favela para coagir o tráfico, e nada mais. É preciso fiscalização civil para vigiar esses policiais”, afirma o MC. Tendo esse papel fiscalizador como parte de sua missão, o grupo Visão da Favela Brasil, do qual Fiell é fundador, criou, com outros grupos da comunidade, a Rádio Comunitária do Santa Marta. Muitos moradores reconhecem as melhorias, mas a solução não é definitiva. “Alguns serviços passaram a ser realizados à noite. Agora, por exemplo, quando a energia acaba de noite, a companhia sobe, o que antes não acontecia”, afirma André Luiz, o Che, do Morro da Babilônia, na zona sul. “Para mim, a ideia da UPP tira o poderio bélico dos traficantes, mas não acaba com o tráfico”, avalia André, para quem faltou ao programa um braço social. Valdinei Medina, da Associação de Moradores do Chapéu Mangueira, no Leme (zona sul), concorda. “Hoje a UPP faz um trabalho importante, mas não precisamos só de polícia. O que mais precisamos é de investimento so-
cial, como creches, hospitais etc. Temos de aguardar o que vem pela frente, e batalhar por essas melhorias.” “A UPP Social vem para consolidar o processo de pacificação, que é iniciado com a retomada do território dominado por grupos armados ilegais”, diz Silvia Ramos, subsecretária estadual de Integração de Projetos Sociais da Secretaria de Ação Social. A meta do governo é chegar a 40 UPPs até 2016, número considerado suficiente para o programa alcançar a escala necessária para torná-lo mais efetivo, segundo Silvia. “O objetivo é mudar um aspecto específico da violência no Rio. Chama-se controle armado de território.” Também não é política de combate ao tráfico. “A lógica de que para vender drogas tem de controlar território é carioca, fluminense agora. Você não vê isso em Recife, não vê isso na Bahia, onde estão as piores taxas de violência do país”, afirma Silvia. Ou seja, segundo ela, “a UPP é um projeto que tem foco territorial” e vem para “quebrar a cultura de que se vendem drogas controlando território”.
Autonomia
É nesse aspecto, da mudança de cultura, que as UPPs Sociais pretendem atuar. “Não é um projeto de combate à pobreza ou de desenvolvimento social, apenas. Se fosse, não estaria concentrado nas favelas, porque há regiões mais pobres no estado”, argumenta Silvia. As unidades atuam organizando fóruns para estabelecer canais de diálogo entre os moradores da favela e o estado, a iniciativa privada e a sociedade
Leia mais no site Esta reportagem e a entrevista com Itamar Silva, nas páginas seguintes, são fruto de um trabalho do Núcleo Piratininga de Comunicação (www. piratininga.org.br) exclusivo para a Revista do Brasil. O NCP reúne comunicadores, professores e artistas em apoio a projetos de comunicação popular. Esta é uma versão resumida. A reportagem completa – que consumiu alguns dias de vivência no conjunto de favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro e traz um apanhado crítico dos moradores, da ação da Defensoria Pública e de autoridades do estado, ONGs e especialistas sobre os acontecimentos de novembro e dezembro – está no site: www.redebrasilatual.com.br/revistas/55
civil. “A ideia é consolidar essa lógica de que a favela é continuação da cidade. Não é outra cidade.” Esse é um grande desafio para comunidades acostumadas, por décadas, a uma relação com o poder público que oscilou entre o conflito e o clientelismo. Silvia reconhece a dificuldade. “O poder público e os moradores não estão acostumados a ter uma relação de igual para igual. Por isso, os dois lados têm de mudar. A gente está criando fóruns em que a interlocução é entre os moradores e líderes locais com os gestores públicos”, diz. Também há um esforço de qualificar as demandas da favela por meio da produção de diagnósticos e mapeamentos que contem com a participação efetiva dos moradores. A expectativa dos idealistas da UPP Social é que a própria comunidade conquiste autonomia e poder para se defender do assédio dos grupos armados. Enquanto ela não for capaz de “se comunicar direto com a cidade, com os meios de comunicação, com os poderes públicos, vai precisar ter polícia lá”, observa Silvia. Mas essa integração passa diretamente pelo mercado. As medidas incluem formação empreendedora para os donos das biroscas e outras formas de apoiar a integração dos atuais moradores à economia formal. A tese de que os grupos armados atuam na ausência do Estado é simplista, na visão da subsecretária. “Você pode ter o melhor trabalho social, mas enquanto tiver garoto armado de fuzil tomando conta da favela, vai haver altas taxas de homicídio, injustiça e crueldade. E uma regulação da vida privada extremamente perturbada por aquela presença”, avalia Silvia. “Como pesquisadora, sempre fui muito crítica à polícia, mas tenho de reconhecer: quando entra a polícia e tira essa garotada armada – ou esses homens de arma que são os milicianos – dá um alívio, cria outra ambiência para a chegada dos serviços públicos.” Silvia oferece exemplos: se o marido bate na mulher, ela não pode nem dar queixa, porque o tráfico não deixa chamar a polícia. Para ela, no estado de guerra em que essas comunidades viviam efetivamente, a ação do poder público só podia ser deficiente, parcial ou inexistente. Com reportagens de Ana Lúcia Vaz, Claudia Santiago, Gizele Martins, Sheila Jacob e Tatiana Lima, do Núcleo Piratininga de Comunicação JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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ENTREVISTA
O mercado sobe o morro Para Itamar Silva, morador da comunidade de Santa Marta, favela é gente, é cultura, é história, são as tensões. “Não é cidade cenográfica.” Por Ana Lúcia Vaz
C
oordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e do grupo Eco, criado em 1976, Itamar Silva nasceu e mora na favela Santa Marta, no morro Dona Marta, na zona sul do Rio de Janeiro. Desde os anos 1970 participa dos movimentos sociais e chegou a ser diretor e presidente da Associação de Moradores ao longo da década de 1980. De fala calma e comedida, só altera o tom ao comentar o Jeep Tour, que leva turistas para visitar a favela: “Coisa meio de zoológico, com a qual eu tenho uma implicância absoluta!” Nesta entrevista, ele observa que a discussão da UPP Social – de prever a elaboração sistemática de políticas públicas que satisfaçam as demandas das populações dos morros historicamente abandonados pelo Estado – é uma contribuição das comunidades. Por intermédio da pressão organizada, a política das Unidades de Polícia Pacificadoras deve evoluir para algo que efetivamente funcione na construção da paz nos ambientes dominados pela violência, dos bandidos e da polícia.
Houve alguma mudança no perfil da mobilização comunitária com a chegada da UPP no morro Dona Marta?
Quando você quer fazer um trabalho com autonomia, a tensão é permanente. Com o tráfico e com a polícia. Se você quer trabalhar a cidadania dos moradores de favela, o direito de expressão, você vai bater sempre nas regras estabelecidas.
A mídia diz que a postura da comunidade mudou, está mais colaborativa com a polícia. Existe mesmo essa mudança?
Eu acho que é uma perversidade com os moradores, nesse momento, você usar e maximizar isso. Eles pegam depoimentos de apoio à polícia e apresentam como um marco de apoio e colaboração absoluto com a polícia. Eu desconfio disso. O morador nunca teve rejeição à polícia. Ele convive com a dinâmica do tráfico, e
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percebe que a polícia, ao longo dos anos, fortaleceu essa dinâmica. O tráfico não é o grande mal. O mal é essa dinâmica, em que a polícia é parte dela. Mas houve mais colaboração na invasão do Complexo do Alemão.
Eu não tenho elementos para falar do que acontece no Alemão. Minha hipótese é que, dessa vez, convergiram para o Alemão muitos traficantes que não eram dali. Então o medo fica muito maior. E, ainda vendo pela televisão a construção de um cenário de carnificina, o morador ficou refém desse medo. Eu imagino que quem mora lá dentro não tinha certeza se ia sobreviver. Então, você diz “amém” para qualquer coisa que venha para estabelecer uma ordem, um cotidiano. Por isso esse apoio mais explícito à polícia. Isso não significa apoio incondicional. A história da polícia na favela, de desrespeito a direitos, é muito longa. Não existe mágica para, de uma hora para outra, os moradores acharem que a polícia é solução. Mas morador também quer segurança. Então, se a polícia promete essa segurança, e não houve a carnificina que se anunciava, o morador tem que apostar nisso. Se não, qual a alternativa?
Mas há muitas denúncias de abuso da polícia por lá. No Dona Marta, vocês fizeram uma cartilha sobre abordagem policial. Parece um problema comum.
A cartilha foi muito importante. Uma iniciativa do Fiell (rapper e cineasta), que o grupo Eco apoiou. Chamava a atenção dos moradores para o fato de que a gente tem direitos, como cidadãos, que devem ser respeitados pela polícia. Tinha a ver com a forma de o policial se dirigir ao cidadão, de fazer a revista, trazendo esse debate do direito para dentro da favela. Claro que a polícia ficou meio pau da vida com isso. Mas foi interessante porque jogou luz sobre a importância da forma de a polícia se comportar na favela. Não há como ter um policiamento constante na favela sem tensão. Porque a festa, a juventude, a vida não estão subordinados à lei do quartel. Essa tensão é parte do processo, mas diminuiu bastante.
E a UPP Social?
No Santa Marta, ainda não entrou. Como foi a primeira, tem uma enxurrada de projetos que chegaram lá. Eu acho que a UPP Social é uma resposta à crítica que a gente fez muito fortemente, no início da UPP. Junto com outras favelas, começamos a fazer uma discussão sobre qual é o papel da polícia, porque eles estavam juntando tudo no mesmo saco. Só que a polícia não é assistente social. A pressão foi pra tirar o social desse guarda-chuva. A UPP Social foi uma resposta a isso.
Você concorda que onde não há UPP é difícil a atuação do Estado?
É mentira. O Estado está presente nas favelas desde a década de 80. Só que está de forma fragmentada, desarticulada, clientelista e descontinuada. Pode ser que, agora, o Estado queira entrar sem negociação. Mas o Estado sempre entrou e negociou com o tráfico. Isso é duro de dizer, mas é isso. E, de certa forma, fortaleceu o poder do tráfico nesses territórios. Quantos candidatos aceitaram que o tráfico fechasse o morro pra eles?
Em algumas favelas ocupadas, fala-se no risco de exclusão dos pobres desses territórios.
Acho que é uma ameaça real. Qual é a política para as favelas? Controle e redução do território. O Santa Marta é um exemplo acabado dessa política: isolamento, controle, delimitação e redução do território. Se você junta isso ao que eles estão chamando de formalização da favela... Em dezembro de 2008, entra a UPP no Santa Marta e a primeira iniciativa é construir o muro “para a favela não invadir a mata”. Depois veem as câmeras de segurança. Agora, o projeto de urbanização prevê a remoção de parte dos barracos que estão na parte mais alta do morro para fazer um parque florestal. E, finalmente, a formalização. Acabaram com o gatonet e a Sky está vendendo a rodo, porque sem uma assinatura (de TV a cabo) o sinal é muito ruim. A Light aproveitou a carona. Em Janeiro de 2011, os moradores começam a pagar a energia elétrica,
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O Estado sempre entrou e negociou com o tráfico. E, de certa forma, fortaleceu o poder do tráfico nesses territórios que é uma das tarifas que mais subiram nos últimos anos. Daqui a pouco chega o IPTU. Agora, está se tentando tirar da informalidade o comércio local, as biroscas que estão lá há décadas. Eu não sei até que ponto moradores e comerciantes vão suportar a pressão. Entra a UPP e entra o mercado.
É essa a lógica. A ideia é que “os pobres têm direito ao mercado”. Não sou contra a formalização, contanto que você crie mecanismo para manter o morador lá. Não existe essa discussão. Porque a lógica é jogar para o mercado: o mercado resolve.
E as atividades culturais que estão entrando?
Isso é um outro dado. Por exemplo, um bloco do Leblon chamado Espanta Neném aluga a quadra da escola de samba, uma vez por mês, para um evento chamado “Morro de Alegria”, patrocinado pela Ambev. Levam artistas de nome, como Mart’nália, Dicró... Vem gente de tudo que é lado. Só classe média! Não tem ninguém do Santa Marta. Mas o apelo é o Santa Marta. Aí eles dizem: “Não, a gente quer fazer trabalho social também”. Na verdade é um tipo de negócio, um uso da imagem da localidade para expandir a lógica do mercado. Isso é água de morro abaixo, você não segura. A minha preocupação é a favela cenográfica. A favela, pra mim, é gente, é cultura, é a história, são as tensões. De repente você vai ter um cenário, sem conteúdo. Você coloca qualquer coisa por cima. JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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ECONOMIA
Conceição e o futuro
Aos 80 anos, uma das economistas mais importantes do país ainda é um chafariz de ideias respeitáveis e referência de peso para os formuladores do futuro Por Hylda Cavalcanti
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ara que o Brasil de 2020 erradique a miséria e caminhe mais próximo dos países desenvolvidos, é preciso que se faça o controle da inflação e do crédito e que os governos garantam políticas efetivas de defesa soberana interna. Esse foi o principal alerta dado pela economista Maria da Conceição Tavares na 1ª Conferência do Desenvolvimento, promovida em novembro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em Brasília. Desafiadora e sempre se fazendo ouvida por especialistas dos mais diversos setores, Conceição, aos 80 anos, foi a grande convidada do evento do Ipea (do qual é conselheira). E disse que para garantir o desenvolvimento do país com vistas aos próximos dez anos é preciso a conscientização, por parte de técnicos e governantes, de que nem sempre crescimento significa distribuição de renda. Ela alerta para o fato de que o desenvolvimento brasileiro deve continuar sendo norteado por políticas universais de educação, saúde e de transferência de renda, mas sem que o novo governo deixe de lado o eixo econômico. “Se não houver melhoria na indústria, por exemplo, vamos virar um país exportador primário de quinta categoria”, acentuou. Outros pontos destacados pela economista foram a questão cambial e o incremento da atual política industrial e tecnológica brasileira, que considera fundamentais para o desenvolvimento nacional 20
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de longo prazo. E, também, a necessidade de fazer uma reforma tributária – tarefa, de acordo com ela, que ainda não saiu do papel porque os ricos e grandes proprietários não querem pagar impostos; quem realmente paga é a classe média. A verdade é que a dificuldade de uma reforma tributária ser aprovada decorre do fato de essas pessoas (ricos e grandes proprietários) serem as que elegem a maior parte do Congresso.
Crise global
Em relação ao momento observado na economia mundial depois da crise econômica de 2008, Maria da Conceição Tavares afirmou que o Brasil precisa ficar preocupado e fazer o controle de quantitativos para combater a inflação, como aumentar o compulsório e controlar o crédito. “Só não pode puxar a taxa de juros, por conta da situacão fiscal e do balanço de pagamento”, ressaltou. De acordo com ela, não é possível deixar o equilíbrio e o desenvolvimento do país voltados para as tendências do mercado. O governo precisa ter uma política macroeconômica que desvalorize lentamente o real para evitar choque de juros e de câmbio, o que poderá fazer com que o Brasil seja um país independente e soberano nos próximos anos – “Não apenas para o exterior, mas com políticas de defesa soberana interna”, assegurou. Em tempos de discussões sobre os possíveis cortes no Orçamento da União para 2011, a economista foi além. Disse que a
política fiscal de cortar gastos sociais utilizando como argumento a necessidade de investir, a seu ver, não faz sentido. “O que se precisa é cortar aquelas despesas consideradas irrelevantes, como os salários de juízese parlamentares, não os gastos sociais. O Congresso Nacional não gera receita nem justiça, logo não tem direito de criar despesa”, acentuou. A economista ainda recomendou ao governo que, para manter o crescimento econômico sem risco inflacionário, faça um “realinhamento cambial lento” e ao mesmo tempo baixe os juros, iniciando um controle dos capitais que “entram só para ganhar nos juros e na Bolsa”, com a permissão da legislação brasileira. Conceição defendeu a recriação da Con-
levaro conhecimento a todos os segmentos da sociedade, promovendo inclusão social e digital. Isso exige a transformação do Brasil em um país de alto conteúdo humano interagindo com inovação e tecnologia.” Para Reis Veloso, o Brasil fez opções erradas no passado, sobretudo por ter deixado de implementar algumas reformas, como a tributária. “Para tornar o país desenvolvido em duas ou três décadas, é preciso sonhar e criar uma mobilização por um modelo com grande geração de empregos”, acrescentou, para alertar: “Se não fizermos essa opção, seremos a geração perdida”. O presidente do Ipea, Marcio Pochmann, acentuou que o planejamento do desenvolvimento exige sabedoria para enfrentar questões que conectam os brasileiros ao passado e os ligam ao futuro. E destacou que o Brasil ainda não é um país desenvolvido por três fatores: por não ter cultura democrática, por ter demorado na transição para uma sociedade urbana e industrial e pela inversão na trajetória dos direitos sociais, que, no Brasil, não acompanharam os direitos políticos.
Se não houver melhoria na indústria, por exemplo, vamos virar um país exportador primário de quinta categoria Maria da Conceição Tavares
AILTON DE FREITAS/AGENCIA OGLOBO
Qualidade
tribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – o conhecido imposto do cheque, cujos recursos eram destinados à área da Saúde. E também a atual política de reajuste do salário mínimo, que acompanha a inflação mais o crescimento da economia de dois anos antes. Apesar disso, ressaltou que consideraria mais eficaz se os reajustes misturassem o crescimento passado com uma expectativa de crescimento.
Brasil de 2020
A conferência do Ipea teve a proposta de estudar os rumos de desenvolvimento do país para a próxima década e traçar, de certa forma, o que seria o início de um novo pensamento desenvolvimentista até o ano
2020, do ponto de vista do planejamento, da economia e das políticas sociais e de educação. Um dos expositores, o economista e educador Cândido Mendes, lembrou que um dos avanços dos últimos anos foi o fato de o Brasil ter saído do chamado Consenso de Washington. “Isso permitiu que tivéssemos um modelo econômico claro de produção com distribuição de renda, com a oportunidade de manter e desdobrar o desenvolvimento”, afirmou. João Paulo dos Reis Veloso, um dos criadores do Ipea, propôs um modelo de desenvolvimento para o país baseado no conhecimento. “Na dimensão econômica, é preciso levar o conhecimento em todas as suas formas para todos os setores da economia e, na dimensão econômico-social,
Durante o evento, o instituto divulgou o mais recente relatório sobre o Índice de Qualidade de Desenvolvimento (IQD), que avalia vários indicadores da população. O trabalho constatou que, de 2003 até hoje, o único índice que mostrou melhora contínua foi o que se refere à qualidade do bem-estar dos brasileiros. O que, conforme os pesquisadores, se reflete nas constantes quedas observadas na desigualdade e na pobreza do país ao longo do período – além de maior formalização no mercado de trabalho. O ponto fraco, entretanto, foi o chamado índice de qualidade da inserção externa, que mostrou um comportamento volátil e ficou, durante a maior parte do período estudado, em patamar abaixo do registrado pelos outros índices, levando à observação de que ainda é frágil a inserção externa da economia brasileira. Segundo o Ipea, a evolução do IQD permite concluir que a crise econômica global de 2008 interferiu nos indicadores de desenvolvimento brasileiros, embora estes tenham apresentado recuperação rápida. Boa parte dessa performance, apontou o documento, foi conseguida em razão do bom desempenho das reservas internacionais do país, da massa salarial e da redução da taxa de desemprego. JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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MÍDIA
Para democratizar a palavra Sindicalistas de 27 países da América articulam rede de comunicação para dar voz ao mundo do trabalho. A iniciativa deve mexer na política e no orçamento das entidades Por Leonardo Severo 22
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que há em comum entre o drama dos mineiros soterradosno Chile, os cortes de salários e programas sociais na Irlanda, a política de valorização do salário mínimo no Brasil e a exploração eleitoreira de uma bolinha de papel? E entre o aumento da idade em dois anos para o recebimento de pensões e aposentadorias na França e a recente decisão pela redução – em até 10 anos – para o acesso aos mesmos benefícios sociais na Bolívia? Além da óbvia opção sobre distintos projetos de sociedade e de país, são fatos que impactam a vida de milhões de pessoas e nos são contados por meios de comunicação de acordo com os interesses políticos de seus proprie-
IVAN ALVARADO/REUTERS
tários. São emissoras de rádio e televisão, portais de internet, jornais e revistas que interpretam a realidade conforme sua visão de mundo – e a distribuem como verdade. Em espanhol, há um verbo que expressa a desconsideração total, o menosprezo pelo outro e sua transformação em ninguém por parte das grandes empresas comerciais de comunicação: ningunear. Cansados de se ver e ouvir por fontes que consideram desinformativas, sindicalistas, intelectuais e representantes de movimentos sociais de 20 países têm trabalhado para conformar uma nova rede de comunicação. “Michel Foucault dizia que o poder se exerce em rede. Se isso é certo, acrescentamos que o poder se constrói em rede. E a isso vamos”, afirma Victor Báez, secretário-geral da Confederação Sindical dos Trabalhadores das Américas (CSA), entidade organizadora da iniciativa, que ganhou vida em Montevidéu em novembro passado. A CSA congrega 59 centrais de 27 países e mais de 50 milhões de trabalhadores. Conforme Báez, a experiência dos mineiros chilenos demonstrou como o monopólio dos meios pode impactar diretamente a vida dos trabalhadores. “Naquele episódio, os meios privados se concentraram apenas na ação de resgate. Com isso, conseguiram ocultar as verdadeiras causas do desastre, ou seja, a falta de investimentos em segurança por parte da empresa e a ausência de fiscalização por parte do governo.” Apesar do alerta dos sindicatos, a denúncia ficou isolada e a notícia não se difundiu. “Esse fato nos fez recordar o ocorrido no México, em Pasta de Conchos, onde 65 trabalhadores estiveram enterrados a 490 metros de profundidade, sem nenhum tipo de auxílio da empresa. Ali morreram. O líder sindical que denunciou o acidente, devido à falta de condições de segurança, teve de se exilar no Canadá, perMEIAS VERDADES seguido pela empresa e pelo próprio governo No acampamento mexicano”, relata. A soma desses descalabros da mídia, em Copiapó, no Chile, virou fermento de ideias e foi vitaminando a jornalista observa articulação da rede. foto do bilhete Sem reunir as mínimas condições de sedos mineiros soterrados: gurança, e com risco iminente para os opeespetacularização rários, outras 18 minas acabaram sendo fedo resgate ocultou chadas no Chile pelo Serviço Nacional de as péssimas condições de Geologia e Mineração, após intensa mobilitrabalho e de zação sindical e da própria sociedade, emosegurança na mina, cionada pelo drama. Nas notificações, realias denúncias do sindicato local e zadas após o escândalo, foram evidenciadas o dinheiro gasto violações das normas mais elementares de pelo governo segurança, como a inexistência de pelo meno salvamento porque a empresa nos duas rotas de fuga, a falta de chaminés responsável não de ventilação e mesmo de abrigos subterrâtinha recursos neos. O leitor deve ter visto a superficialidade da tal cobertura “jornalística”: nenhuma palavra a respeito da falta de pagamento dos salários ou do dinheiro público que precisou entrar para que os mineiros pudessem sair, já que a empresa alegou não dispor de recursos para o socorro. Nas palavras do jornalista basco Unai Aranzadi, transmitidas em vídeo aos participantes da Conferência Sindical sobre Democratização da Comunicação, que lançou Rosane Bertotti: as bases para a rede, muita determinação é ampliar a democracia
Vázquez: sindicatos devem romper monopólios
Victor Báez: uma rede para dividir o poder
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necessária, pois as “frentes de guerra número um, dois e três estão nos meios de comunicação e no controle da opinião pública”. Segundo Aranzadi, padrões de manipulação e de silêncio impostos pelos conglomerados privados “prostituem a informação” em troca da liberdade de empresa e do discurso único do “partido do capital”. Entusiasta da iniciativa, o uruguaio Aram Aharonian, fundador da emissora Telesul e dirigente do Observatório Comunicação e Democracia, da Venezuela, lembra que há três décadas, para impor-se um modelo político-econômico, se recorria às armas, com um saldo de milhares de mortos, desaparecidos e torturados. “Hoje, os meios de comunicação de massa levam o bombardeio da mensagem hegemônica diretamente à sala de nossa casa, 24 horas por dia.” Para Aharonian, as grandes corporações manejam um “latifúndio midiático” e criam imaginários coletivos virtuais. “Elas decidem quem tem a palavra, quem é o protagonista e o antagonista e trabalham para que as grandes maiorias sigam mudas e invisíveis.” A aprovação da nova Lei de Pensões apresentada pelo governo de Evo Morales, em conjunto com a Central Obrera Boliviana (COB), rebaixa a idade da aposentadoria de 65 para 58 anos, restabelece a contribuição patronal de 3% – desde 1996 os empresários não contribuíam com a previdência –, elimina as administradoras privadas de pensões, que estavam concentradas no grupo suíço Zurich e no espanhol BBV, e cria uma única administradora e gestora dos benefícios, de caráter público. Para os bolivianos, um “presente de Natal”. Para a imprensa do continente, um exemplo a ser riscado do mapa. Compreensível: a nova lei rompe com o processo neoliberal. Mas essa experiência de “reforma” não vira manchete, pois mais de 80% das informações que chegam da Bolívia são produzidas e distribuídas por agências de Santa Cruz de la Sierra, onde se concentra a oposição de direita, capitaneada pelos barões do sistema financeiro, do agronegócio e da mídia. A atual batalha pela “democratização da palavra” busca modificar uma norma que foi útil para a doutrina de segurança nacional das ditaduras e para as políticas neoliberais que as sucederam. De acordo com o jornalista Mariano Vázquez, responsável pela comunicação da Central dos Trabalhadores da Argentina (CTA), a rede de comunicadores sindicais tende a romper a censura dos monopólios midiáticos, encabeçados pelo grupo Clarín. “A luta no campo das ideias e na mobilização popular se conjuga com a decisão política do governo de Cristina Kirchner, que há dois anos enviou ao Parlamento um projeto de lei que dê a palavra a todos.” Vázquez sublinhou que a nova legislação democratiza o acesso à informação definido como “direito universal”, em concordância com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A secretária nacional de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti, lembrou que várias medidas oxigenadoras foram debatidas pela sociedade brasileira e aprovadas na Conferência Nacional de Comunicação, devendo agora ser tiradas do papel. Muitas delas, aliás, fazem parte do arcabouço legal, mas nunca foram regulamentadas, como o princípio da complementaridade entre os sistemas de radiodifusão público, privado e estatal, contido no artigo 23 da Constituição Federal. “A democratização da comunicação é um passo essencial para o aprofundamento da democracia”, resume Rosane, reforçando a necessidade de investimento na rede. A CUT tem
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GASTON BRITO/REUTERS
Presente boliviano
LONGE DAS MANCHETES Na Bolívia de Evo Morales, a previdência voltou a ser pública, restabeleceu-se a contribuição patronal e a idade de aposentadoria foi reduzida de 65 para 58 anos. Para a mídia tradicional, foi um mau exemplo
ampliado recursos na estruturação de seus próprios canais de TV e rádio, com produção e divulgação de conteúdos que coloquem os trabalhadores como protagonistas, e também apoiado sistematicamente iniciativas como a Rede Brasil Atual e a TVT. O processo de revisão das leis sobre os meios de comunicação na América Latina, em especial rádio e TV, é natural e irreversível, segundo o diretor nacional de telecomunicações do Uruguai, Gustavo Gómez Germano. “Trata-se de um processo de re-regulação, porque o sistema anterior habilitava e fomenSe não tava a concentração dos meios de comunicação dizemos nas mãos de uns poucos e criava obstáculos de nossa acesso às grandes maiorias”, observa. Para Gómez, cada Estado nacional deve adequar suas própria legislações para impedir a formação de monopalavra, e oligopólios no setor. “Se o Estado não os outros pólios desempenha um papel ativo, a democratização a dizem não será possível, o livre jogo da oferta e da depor nós manda não diminuirá os abismos existentes em Osvaldo León nossas sociedades”, acrescenta. Representante da Agência Latino-Americana de Informação (Alai), Osvaldo León acredita que o momento é favorável à concretização de redes que impulsionem a democracia: “Os grandes oligopólios midiáticos agridem o verdadeiro papel e a responsabilidade dos meios de comunicação. Pluralidade e diversidade não entram nesses meios que aí estão. Reconhecemos a necessidade de investir e de contar com instrumentos próprios. Se não dizemos nossa própria palavra, os outros a dizem por nós”. A iniciativa vai mexer na política das entidades e também em seus orçamentos.
Opinião
Por Laurindo Lalo Leal Filho
O telespectador aprisionado Todo começo de ano é a mesma coisa: tem Big Brother na TV. Com muito dinheiro dos anunciantes, milhares de candidatos e audiência garantida
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ais que audiência, o Big Brother garante tes se inscreveram voluntariamente, passaram por uma em larga escala o que há de pior nas re- seleção e podem, se desejar, deixar a casa a qualquer lações humanas. São momentos em que momento. Quem está preso, na verdade, é o telespechomens e mulheres abandonam séculos tador, controlado cientificamente com base em pesquide evolução cultural para se apresentar sas e vigiado diariamente pelos índices de audiência. ao público dotados apenas de instintos naturais, como o Esses índices estabelecem mudanças de rumo de trasexo e a luta pela sobrevivência. O que escapa desses ins- mas e resultados dos jogos, com o objetivo de não pertintos reduz-se a comportamentos marcados por egoís- der nenhum telespectador. Este se torna presa ainda mo, falsidade e preconceitos. mais fácil, à medida que se julga livre para escolher ouNo Brasil, a primeira versão do que ficou conhecido tro programa. É uma ilusão, uma vez que as alternativas como reality show apareceu há dez anos oferecidas, em especial na TV aberta, são com o No Limite. Os participantes eram Quem do mesmo nível em termos de conteúdo, obrigados a chegar aos limites da sobre- acompanha o mas tecnicamente menos sedutoras. Não vivência comendo, por exemplo, ratos no Big Brother é há escolha real. Mar da China, na versão da CBS, nos EsÉ uma situação curiosa. Faz lembrar submetido a tados Unidos. Por aqui, comeram olhos de uma observação de Marx a respeito dos cabra. A primeira edição chegou a 56 pon- uma coerção homens que “sob o domínio da burguetos de audiência. A segunda edição não cultural que sia são idealmente mais livres do que andespertou tanta atenção. Em 2002, veio o vai além tes (no feudalismo), pois suas condições Big Brother Brasil, formato da empresa ho- da própria de vida lhes são fortuitas: na realidade, landesa Edemol espalhado pelo mundo. porém, são menos livres, pois estão subtelevisão. É Na Europa, esse tipo de programa surà coerção das coisas”. Quem uma ideologia metidos giu com o aparecimento das televisões coacompanha o Big Brother é submetido merciais. As emissoras públicas sempre privilegiadora a uma coerção cultural que vai além da foram mais cuidadosas com a qualidade do consumo própria televisão. Ela é apenas uma das da programação. Big Brothers, portanto, e do peças de um tripé do qual fazem parte são produtos da desregulação das econo- individualismo um sistema educacional ainda deficiente mias. No Brasil, caiu como uma luva. June uma ideologia privilegiadora do contou jogos e novelas. Programas de auditório, desde o sumo e do individualismo. início da TV brasileira, levaram ao ar competições com No livro A Dinâmica dos Reality-Shows na Televiprêmios e participação de torcedores – ingredientes são Aberta Brasileira, o pesquisador Cláudio Ferreirefinados pelo Big Brother. ra mostra como o Big Brother aborda outros valores Tudo combinado com o melodrama da novela. Can- sociais. “Temas como sexo, namoro, homossexualididatos são selecionados para papéis previamente esti- dade e racismo são tratados a partir de parâmetros pulados. As tramas são desenvolvidas de acordo com conservadores, mesmo que haja pressões, por parte as tendências do público. A diferença está na forma de dos participantes da competição, para que atitudes eliminar personagens. Nas novelas, o autor os mata de mais liberais sejam permitidas. Antes de se balizar forma repentina. No paredão do Big Brother, o público pela vontade dos concorrentes, a emissora leva em participa da execução. Outra característica é a forma conta a postura do telespectador médio.” Aquele deseriada. Sempre fica para o dia seguinte algo não resol- tectado nas pesquisas. vido – e novos conflitos surgem a cada dia, até o grande Está claro que a tal realidade vendida ao telespecmomento em que se escolhe o vencedor. tador é uma farsa. Trata-se de uma cuidadosa maniAí se percebe a principal contradição. Trata-se de pulação de um pequeno grupo de pessoas elaborada um formato estruturado sob a lógica do confinamento para prender à frente dos televisores uma multidão de pessoas monitoradas por dezenas de câmaras de te- desprovida de alternativas menos nocivas de lazer e levisão, como se estivessem presas. Mas os participan- entretenimento.
Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da ECA/USP; diretor e apresentador do programa VerTV, da TV Brasil e da TV Câmara; autor dos livros A Melhor TV do Mundo e A TV sob controle, da Summus Editorial; e ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação
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AMBIENTE
Outro mundo é necessári Conferência no México confirma que discussões sobre as mudanças climáticas são o novo foco do altermundismo Por Joana Moncau e Spensy Pimentel
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e 1999 a 2001, entre manifestações contra o livre comércio em Seattle e Gênova e o nascimento do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, o mundo viu o surgimento do lema “Um outro mundo é possível”. De lá para cá, muitas coisas mudaram. Uma onda vermelha varreu a América Latina, e iniciativas como a Área de Livre Comércio das Américas e negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) foram enterradas. Uma crise mundial ainda faz cambalear os países do Norte. E o mundo se vê às voltas com o que parece ser o grande efeito colateral da falta de freios do capitalismo: o aquecimento global. Em Cancun, México, durante a 16ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP-16), em dezembro, nas manifestações de milhares de representantes de movimentos sociais e ONGs ecoou a frase que parece marcar a nova etapa do altermundismo: “Um outro mundo é possível, necessário e urgente”. Uma vez mais, os países ricos empurraram com a barriga a decisão sobre a renovação das metas do Protocolo de Kyoto – o qual impõe que os países ricos diminuam suas emissões dos gases de efeito estufa. Também mantiveram abaixo do esperado suas ofertas de ajuda para combater os efeitos do aquecimento – US$ 100 bilhões anuais, mais uma doação inicial de US$ 30 bilhões, para o chamado Fundo Verde, quando o G77, grupo dos países em desenvolvimento, pedia US$ 600 bilhões. E abriram caminho para ampliar a utilização de instrumentos de mercado nas ações de enfrentamento das mudanças climáticas, com a aprovação do mecanismo REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) – o qual poderá permitir a inclusão da preservação de florestas no chamado mercado de créditos de carbono. Parte da sociedade civil que participa dos debates critica a adoção desse modelo. “Quando se abre para o mercado, a tendência é que se peça algo em troca”, resume Maureen Santos, da ONG brasileira Fase. “A solução é os países do Norte diminuírem suas emissões. O resto é hipocrisia”, emenda Marlon Sanches, da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). “O mercado não é o espaço capaz de assumir a responsabilidade sobre a vida no planeta”, dizia, em 2009, a Carta de Belém. “Os países poluidores têm a obrigação de transferir recursos econômicos e tecnológicos para pagar a restauração e a manutenção dos bosques e florestas”, reforça o Acordo dos Povos, de Cochabamba, Bolívia, de abril de 2010. A próxima reunião da COP deverá se realizar na África do Sul em 2011, e em 2012 a conferência Rio+20, que celebrará no Rio de Ja-
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neiro os 20 anos da ECO-92, também deverá aumentar as atenções sobre o tema. Ou seja, a tendência é que as discussões decisivas sejam realizadas nos países do Sul, com um nível de pressão popular que, ao que tudo indica, deve crescer.
Na própria pele
O debate público sobre as mudanças climáticas só tem se ampliado desde a divulgação do quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), em 2007, o qual alertou o mundo para a velocidade alucinante com que o problema tem evoluído e jogou no colo das nações do Norte a responsabilidade de tomar providências imediatas – já que, historicamente, elas foram as principais emissoras de gases causadores do efeito estufa. Mas quando um evento como esse é realizado em plena América Latina, os rostos indígenas, negros e camponeses se impõem. Cada participante carrega uma história que mostra as consequências ambientais do avanço desenfreado do capitalismo. “Hoje, o Haiti vive uma situação de desordem climática. Às vezes, temos de seis a sete meses de seca e, na sequência, uma semana de inundação”, conta Chavannes Jean-Baptiste, diretor do Mouvement Paysan de Papaye (MPP, uma associação de agricultores), do Haiti. Filho de camponeses, ele segue vivendo no campo, na região de Inche. “O camponês haitiano não entende esse conceito de ‘mudança climática’, mas vê que há muita praga nas plantas, sente a seca, as inundações.”
io. E urgente
Boff: “Desta vez não há arca de Noé”
SALVEM VIDAS Mensagem na praia de Cancun
Leonardo Boff
Há anos, o teólogo brasileiro Leonardo Boff tem se dedicado à causa ecológica. Observador privilegiado do evento oficial, em Cancun, ele pôdedividir com os participantes dos eventos organizados pela sociedade civil sua frustração pela indiferença dos países ricos com a urgência do tema. Logo após discursar para uma plateia formada por indígenas, camponeses e ativistas urbanos de todo o mundo, Boff falou à Revista do Brasil.
REUTERS
O senhor falou na necessidade de se prestar atenção à dimensão divina envolvida nessas questões. Está faltando Deus na discussão dos governos sobre as mudanças climáticas? Acho que eles têm um deus, o deus dinheiro. Eles organizam tudo para manter sua riqueza, e nunca colocam a questão de qual é o futuro da vida, do planeta, de como vamos socorrer os milhões e milhões de vítimas do aquecimento global. Eles vivem a idolatria fantástica do deus dinheiro e, a seguir esse caminho, vamos ao encontro do pior. Por isso é importante que os movimentos sociais populares, que têm uma visão humanística e espiritual de respeitar as pessoas, de se ajudarem, se transformem numa resistência.
A indígena boliviana quíchua Julia Ramos Sánchez chegou a ser ministra de Desenvolvimento Rural e Terras de seu país até 2009. Hoje milita na Bartolina Sisa, organização de mulheres indígenas e camponesas. “Estamos combatendo as mudanças climáticas ao lutar por nossas próprias políticas de desenvolvimento, que valorizem os conhecimentos ancestrais”, diz. Ela conta que, em sua comunidade – Ancon Grande, na fronteira com a Argentina –, vivem 50 famílias, todos pequenos agricultores, que atualmente sofrem pela seca e pela falta de terra. “Está ocorrendo uma enorme migração climática por conta das secas, que inviabilizam a produção. As comunidades estão ficando vazias, os jovens se vão porque não há água, os rios estão desaparecendo, os arroios secando, os animais morrendo.” “Na seca que tivemos em 2009 perdemos 70% do rebanho da minha comunidade, entre vacas e ovelhas. A seca tem sido severa, não há água, não há grama, não há pasto”, relata a masai Nanta Mpaayei, da organização Mainyoito (MPIDO), do Quênia. “Antes, tínhamos a água e os rios. Agora minha mãe tem sorte de poder comprar água. Outras mulheres têm que andar mais de 20 quilômetros para conseguir 20 litros”, continua. “Quando eu era criança, meus parentes podiam prever quando a próxima seca aconteceria. Agora não. Quando pensam que vai chover, vem o sol. Quando era para vir o sol, vem a nuvem de chuva. Está uma bagunça a vida nas comunidades. Sabíamos que a cada 10 anos vinha uma seca forte. Mas agora é contínuo: em 2006 tivemos uma, depois 2007, 2009, 2010.”
Estamos condenados a um desastre? Creio que o problema é global e, se ele não for resolvido, todos serão afetados, inclusive eles. Porque quando a água chega ao nariz e passa da boca, ou a pessoa muda, ou morre. A crise está se agravando cada vez mais e vai afetar as grandes empresas. Chega um momento em que eles se dão conta que a solução deles não é solução, é uma falsa solução na tentativa de salvar privilégios. Espero que a sabedoria comum da humanidade triunfe. A consciência é essa, que desta vez não há uma arca de Noé que salve alguns e deixe a perecer os demais: ou nos salvamos todos ou perecemos todos. Dez anos atrás, começou a onda de governos de esquerda na América Latina, pela qual passou a solução da ameaça do livre comércio. Mas agora vemos que a solução está para além dos Estados nacionais. Como resolver? A figura dos Estados nacionais não é mais adequada para problemas globais. Temos de chegar a uma governança global. No fundo, é dizer o óbvio: temos esse pequeno planeta, superpovoado, empobrecido e velho. Para sobreviver juntos, temos que repartir. Dentro de pouco tempo, seremos todos socialistas. Ou fazemos isso, ou vamos assistir a dizimação de milhões de pessoas, desastres ecológicos de grande magnitude, e aí as pessoas vão aprender pelo sofrimento.
Leia mais em www.redebrasilatual.com.br/revistas/55 n Na página da Revista do Brasil na internet, leia a entrevista
completa de Leonardo Boff.
n Leia também entrevista com Suzana Kahn-Ribeiro, presidente
do comitê científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. “É necessário chamar a atenção das pessoas sobre suas responsabilidades individuais, como consumidoras. Mas não é suficiente. É preciso pressão popular para que determinadas ações sejam tomadas.” n E também com o ativista basco Paul Nicholson, da coordenação internacional da Via Campesina: “A conferência se realizou num hotel chamado Moon Palace – Palácio da Lua. São senhores lunáticos, falando de seus negócios”.
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MUNDO
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O tigre virou porquinho Os irlandeses caíram na farra capitalista, tomaram um porre neoliberal e agora amargam uma das ressacas mais brabas da Europa Por Adriana Cardoso, de Dublin
FOTOS ADRIANA CARDOSO
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lguns jornais europeus criaram um neologismo para referir-se à Irlanda: “Direland”, uma junção das palavras dire (muito sério ou muito ruim) e Ireland (Irlanda). Sim, os últimos dois anos não têm sido fáceis para esse pequeno país de 4,5 milhões de habitantes, que viveu seu auge econômico de 1995 a 2007, quando ficou conhecido no mundo como “Tigre Celta”, numa alusão aos países asiáticos cujas economias bombaram nos anos 1990. Hoje, porém, junto com Portugal, Grécia e Espanha, a Irlanda integra o “Pigs” (porcos, em inglês), grupo de países da União Europeia (UE) cujas economias estão em grave crise e põem em xeque o futuro do bloco e do euro. A crise de 2008 e o colapso dos setores imobiliário e bancário irlandeses, somados aos casos de pedofilia cometidos por padres e bispos católicos por anos a fio, mas só recentemente divulgados, puseram na berlinda valores morais e capitais que pautaram o país durante seu auge. Pela primeira vez, o governo irlandês precisou pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional e à UE, que colocaram à disposição € 85 bilhões para ajudar a cobrir o rombo. A ajuda terá preço: juro de 5,8% ao ano e uma cartilha de corte de custos e reformas no setor bancário. Bravo por natureza, o povo irlandês, orgulhoso de sua nação construída debaixo de muito sangue e violência durante os séculos de colonização inglesa, está descontente e desconfiado. Sabe que terá de pagar a conta. O frio e a neve pesada, incomuns para um mês de novembro, não impediram que mais de 50 mil irlandeses fossem às ruas protestar, no dia 27 de novembro passado, contra o pacote. Uma multidão voltou às ruas em 7 de dezembro, bradando palavras de ordem, enquanto o Parlamento aprovava o orçamento de 2011, com corte de gastos de € 6 bilhões. O pacote afeta programas sociais, salários de novos servidores públicos, pensões e amplia as faixas salariais com descontos de imposto de renda na fonte, que vão de 20% a 40%. Nem o alto escalão do Estado escapou. O primeiro-ministro, Brian Cowen, terá redução de € 14 mil (5%) em seus rendimentos anuais. O futebol também pagará seu preço. A federação irlandesa de futebol propôs e o técnico da equipe, o italiano Giovanni Trapattoni, aceitou reduzir em 5% seu salário que, especula-se, está na casa de R$ 1,8 milhão ao ano.
ORGULHO FERIDO Depois de uma década de sonho neoliberal, os irlandeses acordaram...
Capitalismo em xeque
ADRIANA CARDOSO
CATHAL MCNAUGHTON/REUTERS
ROJÃO Para não dizerem que ficou impune, o primeiroministro, Brian Cowen, teve corte de 5% do salário
...de mau humor, xingando bancos e políticos e gritando o popular bordão: “Fora FMI”
De economia relativamente pobre nos anos 1980, a República da Irlanda viu seu mundo ficar mais colorido quando aderiu à UE. O ingresso no bloco permitiu que o país recebesse investimentos e, com isso, pudesse desenvolver suas bases, devidamente paramentadas no conceito neoliberal, “sem se preocupar com um desenvolvimento sustentável da economia”, avalia Ben Nutty, 39 anos, mestre em História e Estudos Europeus e doutor em Educação. Ex-membro do Green Party, partido que integra a coalizão do governo irlandês – e, apesar do nome, não tem nada de ecológico –, Nutty diz que um dos grandes erros do governo foi “relaxar nas regras de concessão de crédito pelos bancos”. Com impostos e taxas para concorrência nenhuma botar defeito, a Irlanda tornou-se atraente e muitas empresas vieram para cá, ampliando o mercado de trabalho. Com emprego, crédito fácil e o guarda-chuva dos inúmeros programas sociais, o Estado virou um paizão, os irlandeses fizeram a festa e se endividaram até não poder mais. “Nos anos 90, os bancos emprestaram dez vezes o capital disponível, enquanto deveriam ter emprestado 2,5”, conta Nutty. Um dos motores da economia, o setor da construção, provocou o efeito dominó que se viu dois anos atrás. O governo incentivou e os bancos emprestaram muito, aos construtores e aos compradores. O mercado aquecido levou o preço dos imóveis a níveis estratosféricos. Com a crise de 2008, muita gente perdeu o emprego, a bolha do setor estourou e bateu no mercado financeiro, coração da economia capitalista. O setor bancário irlandês, totalmente nas mãos de acionistas privados, precisou recorrer ao governo, que, em troca de ações, injetou recursos e virou quase 100% dono de alguns bancos. Ao olhar para as máquinas paradas da Gleeson Concrete, uma fornecedora de suprimentos para o setor da construção civil localizada em Donohill, no condado de Tipperary, interior do país, Micheal Gleeson, de 37 anos, diretor da empresa, lembra quando se viu pela primeira vez completamente perdido, sem saber que passo dar. “Foi um período muito difícil, com a redução no volume de negócios, a queda de preços e a dificuldade para receber de nossos compradores.” JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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De lá para cá, teve de cortar em 25% o número de empregados e reduzir o volume de horas trabalhadas. Também não adquiriu novos equipamentos e não planeja realizar novos investimentos neste ano. Na opinião de Gleeson, um dos grandes erros do governo foi superestimar o número de unidades residenciais necessárias no período de 2002 a 2007, num país com pouca terra e pouca gente. “O governo falhou muito ao deixar o setor imobiliário sem controle, permitindo que se operassem preços altíssimos. Esse é um legado que o povo irlandês terá de pagar por gerações”, critica o relações públicas Darragh Rea, de 30 anos. “Agora, a Irlanda possui centenas de casas e condomínios fantasmas, que ninguém comprou, ou comprou e não pode terminar de pagar”, completa. No fim de 2008, Darragh comprou um sobrado de meio milhão de euros, financiado por 30 anos, com juros de cerca de 12% ao ano. “Embora meus rendimentos tenham sido reduzidos, eu e minha namorada conseguimos manter o emprego.” A leis irlandesas permitem redução de salários. Foi o que ocorreu com Darragh e muita gente. O índice de desemprego triplicou em três anos. Chegou a 13,6% em outubro passado. No mesmo período de 2008, quando a crise comecou, era de 7,6%. Um ano antes, em 2007, estava em 4,7%. Muitos negócios faliram, empresas trocaram o país por outro, lojas estão fechando aos domingos porque não têm dinheiro para pagar os funcionários, situação muito visível quando se caminha pelas ruas da capital. A dificuldade para arranjar um emprego está forçando os cidadãos, especialmente os mais jovens, a aceitar trabalhos antes destinados a imigrantes, como em lojas ou supermercados. Um dos setores mais sensíveis é o bancário, que conta basicamente com seis instituições: Allied Irish Bank (AIB), Bank of Ireland, Ulster Bank (Irlanda do Norte), Permanent TSB, National Irish Bank e Anglo Irish Bank. Os maiores são AIB e Bank of Ireland. O governo deve adquirir o controle de quase a totalidade de seus papéis. As instituições vão encolher. “Os empregados estão angustiados, sabem que podem perder o emprego”, diz Oliver Gleeson, 32 anos, que trabalha no setor de investimentos do AIB. “Ser bancário na Irlanda é desconfortável hoje em dia. É difícil ficar orgulhoso quando você vê a situação como está.”
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REVISTA DO BRASIL
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ADRIANA CARDOSO
Desemprego
EXPECTATIVAS DESANIMADORAS Oliver Gleeson: “Os empregados estão muito angustiados porque no ano que vem sabem que podem perder o emprego”
Oliver não teve redução de salário, mas enfatiza que ganhar bônus ou participação nos lucros está fora de questão. “Antigamente, ganhávamos nossa participação nos lucros em ações. Lembro que, uma vez, precisei vendê-las e ganhei um bom dinheiro. Valiam € 23. Hoje valem € 0,40.” Aine Nolan, 28 anos, gerente financeira de uma empresa, diz que ainda não teve nenhum corte de salário, mas conta que seus rendimentos estão congelados há dois anos, assim como as possibilidades de ascensão. “Mudar de área ou ser promovida é coisa do passado”, salienta. Para ela, o grande erro do governo na crise foi ser fiador incondicional de todos os débitos dos bancos. “Essa garantia é claramente desastrosa”, avalia. Agora, ela vê que o povo vai pagar a conta.
Imigrante
Na época das vacas gordas, a Irlanda virou eldorado de muita gente. Poloneses, chineses e muitos brasileiros vieram para cá em busca de euros. O ingresso era facilitado pelo governo. Criou-se um boom de escolas de inglês, já que uma das exigências para o ingresso e a permissão de trabalho era estar matriculado em uma. Cláudia Oliveira da Silva, de 37 anos, formada em Comércio Exterior e moradora da zona sul da São Paulo, chegou à capital, Dublin, em 2006, com emprego de babá garantido. Ficou só seis meses, mas nunca sem trabalho. A exemplo dos irlandeses, ela provou o lado bom de ter crédito fácil. “Fiz um empréstimo no Banco da Irlanda assim que cheguei, uma linha destinada a estudantes, pagando juros de 0,25% ao mês. A moleza, agora, acabou.”
Uma das vítimas foi o designer Diego Danilo Santana de Souza, de 27 anos. Vindo de Cotia (SP), e há quatro meses na cidade, Danilo foi atacado por um bando de desocupados à procura de encrenca num sábado à noite. Foi surrado duas vezes, próximo de uma das ruas comerciais mais caras do mundo. Estava em seu primeiro dia de trabalho numa pedicab, bicicleta-táxi que aluga por € 80 semanais para conduzir especialmente turistas. “Um casal me socorreu e chamou a polícia, que me levou para casa e prometeu investigar.” Ao chegar em casa, Danilo teve uma crise de pânico. “Ele teve um apagão e começou a chorar. Não se lembrava de nada, nem de meu nome”, conta Talita Salgado, 24 anos, namorada do rapaz. Foi levado ao hospital e, como não havia médico de plantão na madrugada, as enfermeiras o mandaram para casa. Assustados, ambos não veem a hora de voltar ao Brasil, mas pretendem terminar o curso de inglês.
ADRIANA CARDOSO
Futuro
RACISMO E XENOFOBIA Danilo foi agredido por um grupo. Ele e a namorada Talita não veem a hora de voltar para casa, mas antes querem terminar o curso de Inglês
Há dois anos, Cláudia trabalha numa loja de produtos brasileiros e afirma que a crise não chegou a atingi-la diretamente, mas há uma diferença no clima da cidade. “Sinto que há mais gente pedindo dinheiro na rua, mais gente deixando o carro em casa para pegar ônibus. Também vejo mais irlandeses fazendo compras em supermercados populares, onde antes só os imigrantes compravam”, observa. “Vejo mais desemprego entre brasileiros, gente indo embora, comprando menos produtos aqui.” Apesar disso, não pensa em voltar, porque se sente mais segura em Dublin e por achar que aqui administram-se as contas mais facilmente que no Brasil. O jornalista Márcio Roberto do Prado, de 39 anos, que veio de Jundiaí (SP) e viveu na Irlanda mais de quatro anos, estava voltando
para o Brasil em dezembro. Não por causa da crise, mas porque está cansado. Não descarta, porém, voltar. Em Dublin, ele sempre trabalhou muito, muito pesado, e acha que nunca lhe faltou serviço porque “nunca disse não” à chefia. Virou faxineiro, trabalho honestamente recompensado. Chegou a passar noites trabalhando e diz que nunca faltou dinheiro, enquanto no Brasil “sempre andava duro”. Veio para juntar, e juntou. Mas não aconselha ninguém a cair na lábia das agências de intercâmbio e vir para cá pensando em ganhar dinheiro. A abertura do país para imigrantes trouxe novos elementos para a sociedade irlandesa que, antes, vivia num mundo à parte: o racismo e a xenofobia. Não são incomuns ataques a chineses, coreanos, brasileiros e negros nas ruas da capital.
Darragh Rea considera o pacote “um remédio amargo” a ser tomado, mas também atribui aos irlandeses a atual situação. A opinião é compartilhada por Micheal: “A população tomou emprestado mais do que podia pagar”. Ele critica o comportamento do irlandês, que agiu como um “carneirinho” quando seguiu as recomendações do governo de que teriam de “adquirir logo a casa própria antes de os preços subirem ainda mais”. Ninguém acredita que o pacote vá funcionar, tampouco aponta outra solução. “O governo não tem condições de pagar esse dinheiro de volta. É necessário que se repense a economia do país, criando bases sólidas para um desenvolvimento sustentável, sem consumo desenfreado e respeitando o planeta”, observa Ben Nutty, um dos membros de um novo partido, o Fis Nua (New Vision), cuja bandeira é ambientalista. Atualmente, o governo tem a maioria no Parlamento, mas especialistas acreditam que o cenário deve mudar. Para o bancário Oliver, pode ser a chance de o irlandês recuperar sua autoestima como nação. “Somos um país pequeno e fraco economicamente, pelo qual ninguém se interessa. Precisamos, dentro das dimensões do que somos, que o mundo esteja saudável para que sejamos saudáveis também.” JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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HABITAÇÃO
Capital da contradição Dados do IBGE mostram que o número de casas vazias no país é maior do que o de famílias sem teto – essas que, em cidades como São Paulo, com 290 mil imóveis desocupados, ainda são tratadas como criminosas Por Leandro Melito
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o final do ano passado, em 25 de novembro, a Avenida Ipiranga, no centro de São Paulo, acordou com assovios, apitos e barulho de garrafas pet vazias chocando-se contra as sacadas do prédio localizado no número 895. Os 15 andares estavam ocupados por 840 famílias prestes a serem desalojadas. Semanas antes, o proprietário, HM Engenharia, empresa do Grupo Camargo Corrêa, havia obtido na Justiça direito à reintegração de posse. O advogado dos sem-teto, Manoel del Rio, afirma que a propriedade não cumpre função social.
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“Da forma como o proprietário utiliza o prédio, ele não é bom para a cidade. O Judiciário não atendeu ao nosso pedido para que houvesse uma audiência sobre o imóvel com as partes envolvidas”, diz. Procurada, a HM informou por meio da assessoria que não se pronunciará até que tenha resposta para um projeto de habitação popular para o prédio, apresentado à prefeitura. Exatamente um ano antes, as mesmas famílias foram desalojadas do terreno Alto Alegre, no bairro de São Mateus, periferia leste da cidade. Na ocasião, foram informadas da reintegração no exato momento de sua execução e retiradas de forma brutal.
No dia 25 de novembro de 2009, acordaram com o barulho dos tratores, tiveram as casas derrubadas e incendiadas e perderam seus pertences. “A gente não foi nem avisada que teria reintegração. Acordamos por volta das 4 da manhã e os policiais já estavam lá. Mal conseguimos tirar a roupa de dentro dos barracos”, conta Maria do Planalto, coordenadora do Movimento Terra de Nossa Gente. Na Avenida Ipiranga, as famílias saíram de forma pacífica. Foram até a Câmara Municipal, onde se encontraram com famílias que já estavam ali acampadas, após a reintegração de um prédio na Avenida Nove de
FOTOS DANILO RAMOS
ABANDONO Objetivo das ocupações é fazer com que imóveis tenham finalidade social
DESAPROPRIAÇÕES Osmar Borges: queremos acelerar processos
Julho, propriedade do INSS, realizada em até o quinto andar. O eletricista Domingos 18 de novembro. Essas ocupações foram si- Martins fez a instalação elétrica nas escadas multâneas a outras duas, nos edifícios nas e corredores. Faltou fiação para completar avenidas Prestes Maia, 911, e São João, 88. dois andares. O problema maior foi a falta Coordenados pela Frente de Luta por Mo- de água. No quarto dia, eles encontraram um radia (FLM), 3.800 sem-teto ocuparam os poço artesiano e três caixas d’água. quatro prédios em 4 de outubro. “A ideia Martins trabalha com comunicação vidas ocupações é acelerar processos de de- sual, faz letreiros e está há 12 anos na luta sapropriação na região para fazer habitação por moradia. Vive no bairro Colorado, na de interesse social”, informa Osmar Borges, zona leste. “Aqui a gente está bem, é cinco coordenador do movimento. estrelas (risos), tem quarto até com carDados do Censo 2010 divulgados pelo pete. O sonho maior de um trabalhador IBGE mostram que existem no Brasil mais é um lar. Ele tira do salário, mas sabe que de 6 milhões de domicílios vagos. O núme- está construindo alguma coisa para ele e ro supera em cerca de 200 mil os 5,8 mi- para os filhos.” lhões de famílias brasileiras que não vivem Dagmar Maria de Jesus, que ganha R$ 500 em locais considerados adepor mês como diarista, dividiu quados. O cálculo é do Sindica- Os imóveis um quarto com quatro famíto da Indústria da Construção desocupados lias. Raimunda Oliveira dos Civil do Estado de São Paulo do centro de Santos, também diarista, tem (Sinduscon-SP) com base na São Paulo três filhos e dois netos. Com Pesquisa Nacional por Amos- ocultam 53 anos, não consegue trabatra de Domicílios (Pnad), do lho com carteira. “Eu não vou um jogo de IBGE. São Paulo, segundo o deixar meus filhos na rua.” RoSinduscon, tem 1,112 milhão especulação binson Xavier de Oliveira paga de domicílios vagos e 1,127 imobiliária e R$ 300 de aluguel em um barmilhão de famílias sem casa concessão raco na favela com o seguroadequada. Portanto, bastariam do espaço -desemprego. “Em vez de alu15 mil novas moradias para re- público para guel, eu poderia pagar uma solver o déficit habitacional do coisa minha e da minha faexploração estado. mília.” Edvania Florentino da Para a urbanista Ermínia Ma- de empresas Silva, desempregada, tem dois ricato, criadora do Laboratório privadas filhos e morava de favor. “Chode Habitação e Assentamentos rei quando vi a reportagem da Humanos da Faculdade de Arquitetura e Ur- Globo. Eles tratam a gente como bandido.” banismo (FAU) da USP, os movimentos orNo dia seguinte à ocupação, os sem-teto ganizados prestam um serviço à cidade ao foram impedidos por policiais de receber chamar a atenção para o número de imóveis água ou alimentação. Patrick Wilken, pesociosos, que não cumprem a função social quisador da Anistia Internacional, afirma da propriedade, prevista na Constituição que a polícia agiu de forma ilegal. “Nessa sie no Estatuto da Cidade. Ela afirma que o tuação, a polícia tem de dialogar, não pode poder público induz a população a ocupar impedir as pessoas de entrar ou sair do préáreasperiféricas. Nas proximidades das re- dio.” Ele visitou as quatro ocupações e se presas Billings e Guarapiranga vivem cerca reuniu com a superintendente de Habitade 2 milhões de pessoas. “Se um imóvel no ção Popular da prefeitura, Elizabete França. centro é ocupado, o Judiciário concede limi- “A prefeitura não está oferecendo uma resnar rapidamente. Quando é área de proteção posta adequada aos problemas seríssimos ambiental na periferia, que deveria ser cui- dos moradores de baixa renda. Oferece só dada pelo Estado, nada acontece”, afirma Er- uma resposta emergencial para um problemínia, secretária de Habitação e Desenvol- ma que existe há muito tempo”, critica, revimento Urbano da Prefeitura de São Paulo ferindo-se a uma bolsa-aluguel de R$ 400 de 1989 a 1992. concedida às famílias. Segundo Maria do Planalto, quando as Violação de direitos famílias foram desalojadas do terreno do Na ocupação do prédio da Ipiranga, uma Alto Alegre começaram a receber o auxíequipe foi na frente para cuidar dos eleva- lio, cortado após o terceiro mês. Em reudores e evitar acidentes. As famílias subiram nião realizada em abril com a Secretaria de JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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FOTOS MAURICIO MORAIS
VIOLÊNCIA Avenida Ipiranga, centro de São Paulo: a tropa de choque chega para fazer cumprir a decisão judicial de desocupar o...
Habitaçãode São Paulo, o Ministério das Cidades, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado e a Caixa Econômica Federal, foi acertado que as famílias receberiam a bolsa num primeiro momento e, em seguida, seriam integradas ao programa Parceria Social, que concede auxílio de R$ 300 mensais por 30 meses, até serem encaminhadas para uma moradia definitiva. Maria afirma que o acordo foi quebrado. Em 18 de novembro, após a reintegração de posse do antigo prédio do INSS, as famílias acamparam numa praça em frente à Câmara. Na tarde do dia 22, caía uma chuva forte em São Paulo e, enquanto tentavam se proteger embaixo das lonas, elas foram surpreendidas por uma ação violenta. A Guarda Civil Metropolitana usou bombas de gás, cassetetes e sprays de pimenta para forçar as famílias a deixar a praça. Dez mulheres e sete homens foram feridos. O estudante Jonatan Silva tentou registrar a ação, mas foi agredido e teve sua filmadora danificada. “Eles me deram dois tapas, um soldado pegou minha máquina e jogou debaixo do viaduto”, conta. As famílias da Ipiranga permaneceram 12 dias acampadas em frente à Câmara. Foram proibidas de amarrar as lonas das barracas nas grades da casa legislativa ou nas árvores da calçada, “para não depredar 34
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o patrimônio público”, e também de utilizar seus banheiros. No início de dezembro, lideranças apresentaram à prefeitura uma lista de 357 famílias, e o governo se prontificou a atender 111 pelo Parceria Social. Foram firmados compromissos de inclusão das demais no programa Minha Casa, Minha Vida e de participação do movimento no processo de desapropriações e reformas de 53 prédios no centro da cidade a serem destinados à moradia popular.
Revitalização para quem?
A prometida desapropriação será feita com verba do Fundo Municipal de Habitação. Mas a prefeitura ainda não indicou como será a destinação desses prédios, informa Kazuo Nakano, urbanista do Instituto Pólis. “Os critérios de atendimento e participação dos movimentos por moradia estão completamente obscuros. Falta aprofundar a utilização justa desse patrimônio, que será reaproveitado com
Solução ao alcance Depois de tomar conhecimento do programa Morar no Centro, em 2002, o proprietário do edifício Joaquim Carlos, localizado no bairro paulistano do Belém, procurou a Secretaria de Habitação. O imóvel foi adquirido em 2004 por R$ 1,7 milhão, valor referendado pela Caixa federal. O prédio antes abrigava 120 unidades do tipo sala-quarto, predominando apartamentos com área útil inferior a 37 metros quadrados. O projeto de reforma criou 48 quitinetes, 42 apartamentos com um dormitório e três unidades adaptadas para deficientes físicos, com áreas entre 40 e 57 metros quadrados. Foram atendidas famílias com renda entre três e cinco salários mínimos, ligadas ao movimento de moradia União de Lutas dos Cortiços e outras cadastradas pela prefeitura. A gestão do condomínio é terceirizada – uma
comissão formada por 11 moradores acompanha os trabalhos e orçamentos apresentados pelas administradoras. Alguns deles, segundo suas aptidões, fazem trabalhos de manutenção, contribuindo para manter um valor baixo do condomínio, R$ 120. As prestações variam de R$ 195 a R$ 290. O empreendimento, entregue em 2007, encontra-se em ótimas condições, com todas as unidades ocupadas. Foi prevista uma área de lazer no mezanino com mais de 200 metros quadrados, que ainda abrigará sala de computação e biblioteca. Nos fundos, há um grande salão de festas com cozinha e sanitários. Para reduzir prazos e custos, foi essencial o empenho do proprietário no processo de negociação, principalmente na regularização da matrícula do imóvel.
dinheiro público. Será muito grave se a prefeitura usar esses prédios para favorecer negócios imobiliários”, alerta. Nenhum dos prédios identificados para desapropriação está dentro do perímetro reservado para o projeto Nova Luz, anunciado pela prefeitura como de revitalização do centro. “Isso quer dizer indiretamente que a vida que existe ali não interessa, embora seja o lugar da cidade que tem mais vida, mas que não dá lucros para o mercado imobiliário”, afirma João Whitaker, urbanista da FAU. Antes de iniciar a revitalização, a área teve a imagem degradada pelo fortalecimento do rótulo de criminalidade. Andrea Matarazzo, subprefeito da Sé e secretário de Coordenação das Subprefeituras (2005 a 2009), estigmatizou a região da Luz como cracolândia. A manutenção do espaço (coleta de lixo, varrição de ruas, restauração da sinalização viária, sinalização de pedestres) também deixou de ser feita da mesma maneira como é realizada em outras regiões. Em agosto de 2009, o prefeito Gilberto Kassab fez um corte de 20% nos contratos de varrição de ruas e recolhimento de entulho, e em outubro anunciou corte de 10% nos contratos com as empresas de coleta de lixo. Segundo Ermínia Maricato, isso faz
DANILO RAMOS
...imóvel da construtora Camargo Corrêa. Abandonado pelos donos, o prédio havia se transformado em lar de centenas de famílias
SEM AVISO Maria do Planalto acordou com o barulho dos tratores derrubando os barracos do terreno onde morava
parte da construção das “novas centralidades” engendradas pelo mercado imobiliário. “Primeiro, tem-se a construção da degradação, e depois a construção de uma nova centralidade.” O processo de revalorização inflaciona o preço dos imóveis e expulsa do centro as pessoas de baixa renda. “Os imóveis ficam vazios por interesses especulativos do mercado”, afirma Whitaker. Na execução do projeto Nova Luz, pela primeira vez o governo municipal irá
transferir para a iniciativa privada uma prerrogativa que constitucionalmente é do Estado: o grupo que ganhar a licitação terá o direito de fazer as desapropriações que julgar necessárias para realizar as obras de revitalização. Em seguida, quem vencer outro processo, de concessão urbanística, poderá desapropriar e explorar economicamente os espaços público e privado do perímetro. “Chegamos no limite da configuração do espaço urbano unicamente como uma mercadoria e não como território de efetivação de direitos”, sentencia Nakano. A Central de Movimentos Populares (CMP) acompanha diversos projetos que têm provocado remoção da população, além do Nova Luz: a requalificação das marginais do Tietê já removeu 18 favelas; o projeto do Parque Linear do Tietê, na zona leste, vai remover mais de 20 mil famílias; a obra da Operação Urbana Águas Espraiadas, na região do Jabaquara e Americanópolis, mais de 10 mil; e o projeto de requalificação do Parque Dom Pedro II. “Não temos nada contra melhorar a cidade e fazer a recuperação do patrimônio histórico. Mas isso tem que atender a população de baixa renda e não expulsá-la”, reivindica Benedito Roberto Barbosa, o Dito, coordenador da CMP. JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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DITADURA
DOUGLAS MANSUR
AGULHA NO PALHEIRO Vários profissionais trabalharam durante cinco dias nas buscas em Vila Formosa
A operação de busca pelo corpo de Virgílio Gomes da Silva, morto pela ditadura, reacende esperança entre as famílias e suspeitas sobre o real empenho do Estado na reparação dos erros do passado Por João Peres
Espera longa ou
interminável? F oi uma semana longa, arrastada. Que chegou ao fim com um desconfortável adiamento. E a certeza de que restam mais algumas longas semanas de espera pela frente. No mês que vem, serão retomadas as buscas pelo corpo de Virgílio Gomes da Silva, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), assassinado em 1969 por agentes da ditadura militar. Entre o fim de novembro e o início de dezembro, foi realizada no Cemitério de Vila Formosa, na zona leste de São Paulo, uma busca que pode ser vista como um êxito parcial ou uma falha preocupante.
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REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2011
Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Polícia Federal, Ministério Público Federal (MPF) e Instituto Médico Legal de São Paulo empreenderam uma operação conjunta que, ao fim de cinco exaustivos dias, teve como balanço a localização de um ossário que não figurava nos registros do cemitério e a exumação de uma ossada que pode ser de Sérgio Correia, também militante da ALN morto em 1969. O problema é que a questão central, a localização da ossada de Virgílio, não foi levada a cabo pelos agentes da PF, o que levantou dúvidas sobre o real empenho da instituição. O comandante Jonas, como
era conhecido, foi responsável pela coordenação do sequestro, em 1969, do então embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, e sua família foi a grande “provocadora” da ação apresentada ao MPF pelo Sindicato dos Químicos de São Paulo e pelo Grupo Tortura Nunca Mais. “É graças aos familiares que isso ainda está sendo feito, porque realmente as autoridades do passado optaram por uma política de esquecimento”, assinala Eugênia Gonzaga, procuradora da República em São Paulo. Perto do fechamento da semana de buscas, havia a certeza de que a abertura da possível vala de Virgílio seria feita, mas a
sexta-feirachegou e, com ela, a frustração. A equipe de serviço forense da PF informou que havia dúvida quanto ao local exato de sepultamento e o melhor seria fazer um detalhamento de dados técnicos para, em fevereiro, voltar ao trabalho de campo. Ivan Seixas, consultor da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, deixou clara a insatisfação com a notícia. “Não foi feita a abertura da vala do Virgílio por um critério com o qual não concordo. Não aceito. É muito precioso que se cumpra o foco da operação”, afirmou, acrescentando que lhe causa espanto que PF e familiares de vítimas não consigam, em tempos de democracia, caminhar na mesma direção: “Não é uma suspeita ao profissional, mas ao processo como um todo”. Marlon Weichert, procurador regional da República, não escondeu que nem tudo saiu como imaginado, mas evitou criar polêmica.
DOUGLAS MANSUR
DOUGLAS MANSUR
ANSIEDADE Familiares e Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos acompanharam de perto cada passo da operação
“Claro que a gente sempre tem uma certa ansiedade, uma vontade de ter resultados conclusivos o mais rápido possível. Mas diante do grande número de dificuldades técnicas, é melhor uma recuada e uma reanálise para que a gente tenha possibilidade maior de sucesso na hora da exumação.”
Contra a acomodação
O caso do comandante Jonas é revelador dos atuais movimentos em torno da ditadura. De um lado, setores da sociedade anseiam por uma solução para os crimes cometidos pelos agentes da repressão. De outro, segmentos do Estado brasileiro tentam manter tudo como está sob a tese de que mexer no passado irá, em vez de fechar feridas, suscitar novos problemas. Em dezembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu a espera-
da sentença sobre o caso da Guerrilha do Araguaia (1972-75). Dentro das expectativas, a entidade integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Estado brasileiro, obrigando-o a indenizar as vítimas da repressão e determinando que se levem adiante esforços para combater a tortura, o que depreende, entre outras coisas, a necessidade de que se julguem os agentes do regime totalitário. Com isso, foi aberta a possibilidade de revisar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, no primeiro semestre de 2010, defendeu a tese de que a Lei da Anistia, de 1979, é fruto de um amplo acordo da sociedade e, como tal, não há possibilidade de que se condene no âmbito penal os torturadores daquele período. “Até hoje não tivemos decisão judicial que tenha incriminado pessoas que mataram JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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de torturadores que não fizeram a conversão à vida democrática.”
MAURICIO MORAIS
Transição
DIFICULDADES O procurador Marlon não escondeu que nem tudo saiu como imaginado
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do Rio de Janeiro e novas expedições ao Araguaia. Este último caso é de uma complexidade ímpar: a área de atuação da repressão na região amazônica é imensa e a identificação dos locais de sepultamento depende, basicamente, da ajuda dos militares. Estes, obviamente, não têm grande interesse em colaborar, o que levou o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos Paulo Vannuchi a emitir um apelo para que se indique, sob anonimato ou não, a localização dos cemitérios clandestinos ou das valas existentes nos cemitérios legais. “Infelizmente, há ainda uma mentalidade raivosa, de ódio, e torturadores e comandantes
DOUGLAS MANSUR
e torturaramoutras em nome do Estado, e por isso famílias seguem angustiadas e sem direito ao luto”, lamenta a diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), Beatriz Affonso, que espera ver a reversão da decisãodo Supremo. O Judiciário foi entrave para outro passo importante na busca por reparação dos erros da ditadura. No ano passado, o presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Roberto Haddad, cassou liminar que definia o prazo de até 180 dias para a identificação das ossadas encontradas no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona oeste paulistana. O desembargador aceitou o argumento apresentado pela Advocacia Geral da União de que o orçamento anual demandado para a formação de uma equipe, R$ 3 milhões, resultariaem “excessivo ônus ao Estado brasileiro” em um caso no qual impera a “inexistênciade interesse público”. No mérito da ação, ainda sem data para ser julgado, o Ministério Público Federal pede a responsabilização de diversas autoridades, entre elas o ex-prefeito Paulo Maluf e o ex-chefe do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Dops) Romeu Tuma, senador falecido em novembro último. Por fim, graças à parceria firmada entre MPF, Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e PF, estão sendo feitas identificações de duas ossadas. A mobilização social é a chave para garantir que sejam levadas adiante buscas em outros lugares. A expectativa da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos é estabelecer um calendário para missões em cemitérios
Como lembrou Vannuchi, enquanto os familiares não puderem fechar essa ferida, o Brasil não será capaz de concluir sua transição para a democracia. No caso de Vila Formosa, em São Paulo, há uma grande dificuldade em reconstituir a antiga disposição do cemitério. Imaginando futuras buscas, os militares se empenharam em promover a descaracterização da área de 763 mil metros quadrados, o maior cemitério da América Latina: quadras foram renumeradas ou encurtadas e árvores foram plantadas sobre sepulturas. Funcionários de longa data relataram detalhes do processo de alteração. “Tinha só duas árvores aqui. Em poucos anos foram plantadas mais de 17 mil”, informa um senhor que aceitou falar sob a condição de anonimato. “Ali era a quadra 11. Por que você acha que construíram um ossário no meio da quadra?”, acrescenta. À ação dos militares somou-se a desorganização do cemitério, que chegou a receber centenas de sepultamentos ao dia nos tempos da ditadura – a maioria sob a identificação de “indigente”, expediente usado por forças autoritárias para ocultar mortes violentas. Sem nenhum cuidado na conservação dos arquivos, Vila Formosa se transformou numa trama difícil de desvendar, que só se tornou menos obscura devido aos
CENÁRIO MAQUIADO Maior cemitério da América Latina, Vila Formosa foi meticulosamente desfigurado pela ditadura, que previa futuras buscas
DOUGLAS MANSUR
HOMENAGEM O Sindicato dos Químicos rebatizou seu clube de campo com o nome de Virgílio
Nascido no Rio Grande do Norte em 1933, Virgílio Gomes da Silva encontrou a militância política ao fugir da miséria do Nordeste. Morador da zona leste de São Paulo, entrou no Sindicato dos Químicos e se integrou à ALN. Em 1969, depois de comandar o sequestro do embaixador Elbrick, Virgílio acabou preso e levado para o DOI-Codi, entrando para a história da ditadura como o primeiro morto durante a tortura no aparelho repressivo. Um dia após a prisão de Virgílio, sua esposa, Ilda, também foi detida. A filha mais nova,
Isabel, com apenas 4 meses, ficou afastada da mãe, sofreu desidratação e acabou internada por quase 30 dias. “Faz pouco tempo que fiquei sabendo que colocavam eles (os filhos) nos carros e perguntavam pras famílias se queriam adotar porque os pais eram bandidos.” Ilda, após exílio em Cuba, voltou para o Brasil no início da década de 1990, ainda em dúvida quanto à sobrevivência de Virgílio. Gregório Gomes da Silva, o primeiro a retornar ao Brasil, não deixou de aprender em Cuba sobre a importância do pai.
trabalhos da família de Virgílio e dos grupos que atuam no setor. A solução, agora, depende da ação de agentes do Estado. Só eles poderão, no próximo mês, dar fim ao sofrimento de familiares que esperam há mais de 40 anos pelo desfecho. “Sem o contato com os restos mortais, não se cumpre o ritual fundamental, um direito que qualquer ser humano tem, que é velar seus entes queridos”, lembra Marco Antônio Rodrigues Barbosa, presidente da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
“É um herói brasileiro. É um herói que não se calou. Que ofereceu o melhor que tinha, a vida, contra a arbitrariedade que estava ocorrendo.” Em 2004, descobriuse a existência da ficha 4.059/69 do Instituto Médico Legal, o que deu à família a certeza da morte. Em dezembro, o Sindicato dos Químicos homenageou Virgílio ao rebatizar seu clube de campo com o nome do militante. “É muito importante que os trabalhadores, principalmente os jovens, conheçam a história de vida de Virgílio e se inspirem com ela”, diz o diretor Osvaldo Bezerra.
Mesmo que se encontre alguma ossada durante a nova semana de operações, será necessário avaliar em que condições estará. É possível que, devido aos longos anos de exposição à terra e à umidade, o material genético tenha se perdido, inviabilizando a comparação com o DNA dos familiares de Virgílio. ,0 Pensando nisso, os grupos envolvidos no trabalho já negociam a construção de um memorial em homenagem às vítimas da ditadura enterradas no Vila Formosa. Gregório Gomes da Silva, filho de Virgílio, con-
MAURICIO MORAIS
De retirante a guerrilheiro
Ilda: esposa também foi detida e afastada da filha
sidera que a busca pelo corpo de seu pai é fundamental, por mais difícil que seja. “Quero ter essa esperança. Não é pela ossada, pelos restos mortais, isso não vai mudar aquilo que penso sobre ele. É mais como uma simbologia, é importante para o país.” Ilda Silva, esposa do militante, considera a construção do memorial uma alternativa para que, enfim, cada um possa chorar seus mortos. “Conforto nunca será. Seria se ele estivesse aqui conosco. Mas, de toda maneira, é um lugar para colocar uma flor, ter uma lembrança.” JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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PERFIL
Quanta animaçã Mariana Caltabiano terá três filmes exibidos quase ao mesmo tempo em 2011, entre eles o primeiro longametragem nacional feito e exibido em 3D Por Xandra Stefanel
na queda do Fokker 100 que fazia o voo 402 da TAM, de São Paulo ao Rio de Janeiro, em 31 de outubro de 1996. “Poderia ter sido eu, pegava sempre esse voo. E comecei a pensar: se fosse o último dia da minha vida, era isso que gostaria de estar fazendo...”, lembra Mariana, que passou a se dedicar ao público infanto-juvenil a partir de então.
Montou um livro encapado com resina e doces de verdade (que guarda até hoje no congelador da casa dos pais), e a editora Brinque-Book aceitou publicar. Mas não era suficiente. Mandou o livro com cartas a vários apresentadores de programas televisivos e, para sua surpresa, a produção do programa da Xuxa pediu que Mariana levasse sua turma de bonecos para os baixinhos. Às pressas, mandou fazer o figurino dos personagens, encomendou uma trilha para seu professor de música e o resultado foi uma exposição de 10 minutos no programa. “Foi uma surpresa tão grande! Eu não conhecia ninguém na TV e, de repente, eu estava lá. Alguém do SBT viu e gostou. Dirigi e produzi 120 episódios de Zuzubalândia, a primeira produção independente nacional comprada pela emissora”, recorda. Um ano depois do lançamento de seu livro, voltou à Globo para escrever e dirigir a Turma da Garrafinha, que ficou no ar por três anos. Fez também a novela ecológica
RELAX Personagem de Brasil Animado, que chega aos cinemas este mês
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FOTOS DANILO RAMOS
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a coleção de revistas em quadrinhos de Mariana Caltabiano, a da turma da Mônica valia mais que a do Mickey. Depois ela aprendeu a gostar de Mafalda, Snoopy e Calvin e Haroldo. Só não imaginava que, adulta, trabalharia com desenhos animados. Tudo começou com uma mentirinha do pai, quando lhe perguntou sobre a profissão do ídolo Mauricio de Sousa. “Eu achei estranho meu pai dizer que o Mauricio era publicitário, mas eu via o elefantinho dele na lata de molho de tomate e cresci com essa ideia. Claro que mais tarde descobri que não era bem isso, mas daí a semente já estava plantada”, ri. Mariana entrou na agência DM9 aos 19 anos, se formou e foi para a agência Talent e em 1995, durante um curso de cinema em Nova York, quis escrever um livro infantil. Trouxe na mala Jujubalândia, a história de um reino encantado todo feito de comida. Continuou na agência até receber a notícia de que um colega de trabalho havia morrido
ção!
Flora Encantada, estrelada pela apresentadora Angélica, e Bigode e Bicudo. Mas produzir e dirigir atores em séries diárias de bonecos lhe consumia muito tempo e energia. “As pessoas não têm ideia do que é dirigir uma pessoa que está com uma fantasia enorme, tem de se mexer, fazer expressões e ainda ler o texto. Fazer Zuzubalândia e Garrafinha foi uma aula! Mas fiquei esgotada.” Foi quando surgiu o convite para desenvolver o IGuinho, área infantil do portal IG, que dirige desde 2000. Criou os personagens Gui e Estopa, uma dupla de cães com personalidade de meninos que, mais tarde, foi parar no canal infantil Cartoon Network, onde estão até hoje. As Aventuras de Gui e Estopa foi o primeiro longa-metragem de animação brasileiro comprado pelo canal a cabo. Mariana voltou para o SBT e reformulou a programação infanto-juvenil, lançou mais livros, dirigiu curtas-metragens animados e, em 2005, criou, entre tantos ou-
mas com informação. Aos 6 anos, meu filho já sabia como combater a anemia.”
Disseminar educação DUPLA Com Gui e Estopa, personagens do primeiro longa brasileiro exibido pelo Cartoon Network
tros, o Super V, jogo que foi a forma que ela encontrou para ensinar os filhos Isabela e Felipe (hoje com 10 e 8 anos) a comer. Na brincadeira de Super Vitamina, ela fez os vilões, que são as doenças, e os heróis, combinações de alimentos: o Espijão, feijão com espinafre, enfrenta a anemia; Limorola e Cenorola, a gripe. “É um game de combate,
Muito do que Mariana Caltabiano faz está no site www.marianacaltabiano.com. br. Em seu primeiro longa, não se prendeu a nenhuma distribuidora para ter a liberdade de levar seu filme aonde não há salas de exibição. A parceria com uma rede de cinemas fez com que As Aventuras de Gui e Estopa fosse exibido no Projeto Escola, que leva filmes nacionais e estrangeiros para alunos do ensino fundamental e médio por um valor reduzido. Segundo Mariana, a aceitação foi tão boa que a rede o estendeu ao circuito comercial. Séries que faz para o canal a cabo também vão para a internet. Esta parece ser sua filosofia de trabalho: “Algumas prefeituras pedem os jogos para por no site delas, e eu JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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DIVULGAÇÃO
NO SBT Em 1998, Mariana criou, dirigiu e produziu Zuzubalândia
libero sem custo. Acho o máximo o cara estar preocupado em ensinar a criança a não jogar lixo na praia, por exemplo”, raciocina. “Eu quero mais é que isso se espalhe. Como temos muita audiência no IGuinho, são 3 milhões de visitas por mês, grandes anunciantes viabilizam isso.” A cineasta critica a ideia de proibição de comerciais para crianças: “A gente não pode criar a criança dentro de uma bolha. Se proibir, você acaba com os canais infantis. Para mim, cabe aos pais preparar as crianças para o mundo e, inclusive, prepararem para ver TV”.
O mentiroso virou filme
TV aberta na casa de Mariana, só para os adultos. Aliás, foi assistindo ao programa de Amaury Jr. na Rede TV! que a publicitária e empresária despertou para seu primeiro projeto voltado ao público adulto: o livro Vips – Histórias Reais de um Mentiroso. O apresentador contava como havia sido enganado por Marcelo Nascimento da Rocha, que fingiu ser filho do dono da companhia aérea Gol num badalado evento em Recife. Ela foi atrás de Nascimento na prisão
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e conseguiu que ele contasse sua história, autorizasse a produção do livro e de filmes. Quando lhe ofereceu cachê e participação na vendagem do livro, Nascimento não quis. Disse que tiraria proveito da história para entender seus atos. Quando ela voltou para começar a entrevista e a filmagem, ele havia mudado de ideia: queria uma participação, e maior do que ela oferecera. Mesmo depois de ser enganada por ele – e sabendo que o moço já tinha se passado por oficial do Exército, líder do PCC, fiscal da Receita, guitarrista e olheiro da seleção, entre outras coisas, a cineasta acreditou que poderia ajudá-lo. “O livro foi lançado em 2005 e ele realmente ficou na cadeia até 2009 – dizia que só sairia depois de ter cumprido a pena. Mas ele acabou fugindo. Foi preso tentando comprar, com nome falso, um computador. Minha frustração foi enorme. Fui muito ingênua.” Se serve de consolo, Mariana conseguiu emplacar o livro na lista dos 10 mais vendidos durante cinco semanas, dirigiu um documentário e vendeu os direitos para a produção de um longa de ficção para a pro-
dutora O2, de Fernando Meirelles. Os dois filmes devem ser lançados agora em 2011. A ficção, dirigida por Toniko Melo e estrelada por Wagner Moura, recebeu os principais prêmios do Festival do Rio 2010 (melhor longa-metragem de ficção, melhor ator e atriz coadjuvante). “A gente brinca que talvez o grande golpe dele seja esse filme, que é produzido pelo Fernando Meirelles, com Universal Pictures, Wagner Moura... Com esse time de peso, provavelmente ele vai ficar famoso no mundo todo. Se era isso o que ele queria, de certa forma conseguiu”, afirma Mariana. Foi a Nascimento que Mariana recorreu para tentar entender e superar a perda dos dois irmãos em outro acidente aéreo que marcou sua vida, o do Airbus da TAM em julho de 2007. Ex-piloto de avião, ele tentou decifrar o que podia ter acontecido e, segundo Mariana, ofereceu interpretações que faziam muito sentido. “Marcelo é muito inteligente. Quem fala a verdade, quem fala a mentira, quem deveria estar preso. São várias questões que eu quis levantar no documentário. Não é apenas um filme sobre um cara que dá golpes”, explica. Até hoje Nascimento paga pelos crimes que cometeu. E Mariana, por sua vez, continua colhendo o sucesso que plantou. Este mês chega aos cinemas Brasil Animado, o primeiro longa brasileiro com captação e exibição em 3D. No filme, que mistura animação e imagens reais, Stress e Relax estão à procura da árvore mais antiga do país, o grande jequitibá-rosa. Trata-se de uma viagem ao que o Brasil tem de melhor e mais bonito. “Nosso país é tão incrível! Como pode, em um mesmo país, você ter um lugar completamente diferente do outro. Tem a Amazônia, Foz do Iguaçu, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais... É uma loucura. É como se fossem vários países juntos. Quando eu vi tudo isso junto no filme, fiquei surpresa. Caramba, eu sou brasileira e não conhecia isso! Imagina só os gringos vendo que não somos só o lado violento do Rio de Janeiro”, comemora Mariana, que fez o filme com um orçamento de R$ 3 milhões e viajou com uma equipe de apenas sete pessoas. Os efeitos em três dimensões são um charme a mais para as cores e as histórias
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dos lugares que o filme apresenta. Quando a coprodutora Globo Filmes sugeriu que o longa tivesse essa plataforma, Mariana ficou preocupada com a inevitável comparação com Avatar.. “Daí o Relax me falou: ‘Relaxa, bicho! Não tem nada a ver’, e decidi fazer”, graceja com a voz de seu personagem. Como Brasil Animado também foi filmado em formato convencional, a cineasta garante que o levará ao público que não tem condições de pagar pelo ingresso do cinema – ainda mais caro nas salas que exibem em 3D. “A gente vai fazer o que fiz no Gui e Estopa: exibições em lugares carentes, aonde o cinema não chega.” E ela não para: seus próximos trabalhos são o longa-metragem Zuzubalândia,, baseado em seu primeiro livro, e os novos episódios de Gui e Estopa para o Cartoon Network, que, além dos desenhos de Mariana, apresenta os de seu mestre, Mauricio de Sousa. Turma da Mônica, sua inspiração desde criança, e sua dupla de cachorros continuam sendo as únicas animações brasileiras no canal infantil americano.
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ARTESANAL Todos os projetos de animação de Mariana Caltabiano Produções são feitos à mão e, depois, coloridos no computador
BONECOS Bicudo e Bigode ficaram no ar em 2000 e 2001 na TV Globinho
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VIAGEM
FOTOS SBASTIEN BOISSE/AFP
Zona hoteleira de Cancun: turismo de massas
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Entre gringos e maias A
zona hoteleira da cidade surge aos sentidos como uma Ilha da Fantasia. As construções têm aparência de zero quilômetro, não só pela expansão desenfreada do turismo de massas ali, mas também porque boa parte dos prédios teve de ser reconstruída ou reformada depois da passagem do furacão Wilma, em 2005. “Ninho de cobras” é a tradução mais aceita para cancun, palavra de origem maia. Termo adequado, diriam alguns, ao tipo de reunião que o governo mexicano costuma promover na cidade: em 2003, foi a 5ª Conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC). Mês passado, a COP-16. Para manter afastados os protestos contra os ambientes cinco estrelas dos debates a portas fechadas, a cidade é perfeita. Só
Pirâmide de Kukulcan, em Chichen Itza
para chegar à muralha de metal que a polícia ergueu para proteger os participantes do evento oficial, manifestantes tiveram de percorrer mais de 20 quilômetros. Quando se consegue fugir dos pacotes convencionais, surgem surpresas, como a própria cidade de Cancun. Ultrapassada a zona hoteleira, parece uma cidade mexicana comum, com seus problemas – incluindo a violência do narcotráfico – e virtudes como a culinária, o artesanato, um calendário incessante de festas nacionais, regionais e locais. Para começar a conhecer esse México real, nada melhor do que uma visita a um típico mercado – o 28 é o mais conhecido. As numerosas ruínas de cidades da Península de Yucatan, segundo os arqueólogos, atingiram seu apogeu no chamado período clássico da Mesoamérica – como é conhecida a região que abrange todo o sul do México e segue até parte da Costa Rica –, entre JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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CRIS BOURONCLE/AFP
Em tempos de internet e TV a cabo, o que dizer sobre uma viagem a Cancun? Muito, se a escolha for uma viagem alheia à indústria do turismo Por Joana Moncau e Spensy Pimentel
Templo maia em Tulum: inspiração para Fellini
HUGHES HERVÉ/AFP
Mergulho de snorkel na Laguna de Xel-Ha
250 e 900 d.C. Diz uma anedota que um turista perguntou ao guia: “Onde foram parar as pessoas que ergueram esses monumentos tão impressionantes?” “Estamos aqui até hoje”, responde o guia, que facilmente poderia ser um dos 2 milhões de falantes, só no México, de alguma das dezenas de línguas do grupo maia. As atuais comunidades maias, e as ruínas das antigas cidades, estendem-se por toda a península, seguindo ao sul até Belize e Guatemala, e a oeste até o estado mexicano de Chiapas, a quase mil quilômetros de
A boa pedida está mais ao sul de Cancun, em lugares como Playa del Carmen e Tulum. Há Cancun – muitos se esquecem de que são maias (das etnias tzotzil, tzeltal e tojolabal) os famosos rebelados do Exército Zapatista de Libertação Nacional. A rebeldia maia vem de longa data: a conquista espanhola na região só foi completada mais de 200 anos depois do início da colonização. Cenas como as do filme Apocalypto, de Mel Gibson, ou os cultos new age que pregam uma versão delirante do famoso calendário criado por esses povos não são as melhores referências da cultura maia. Não é nada fácil decifrar os milhares de inscrições em monumentos – até hoje, pesquisadores experientes do mundo todo se debatem para entendê-las. Mas não é preciso 46
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ir muito longe de Cancun para conhecer as antigas cidades. A algumas dezenas de quilômetros estão sítios impressionantes, como Chichen Itza, Coba e Tulum. Esta última fica em plena costa caribenha e foi uma das inspirações do cineasta italiano Federico Fellini para compor Viagem a Tulum, roteiro nunca filmado, mas depois transformado em história em quadrinhos pelo também italiano Milo Manara. Cancun entrega o que vende. Não se pode ignorar que boa parte das pessoas desembarca na cidade seduzida pelas promessas de ver um oceano azul-turquesa, capaz de conceder uma visibilidade quase única aos numerosos seres marinhos que habitam as
barreiras de corais. Pelos brasileiros, águas comparadas frequentemente às de Fernando de Noronha. A região é considerada uma das melhores do mundo para o mergulho e, mesmo com um snorkel, os mais despretensiosos amadores se encantam. De quebra, há os misteriosos cenotes, poços que são, na verdade, cavernas cujo teto desabou. Existem aos milhares pelo solo calcário da região – às vezes formando redes subterrâneas que se conectam com o mar. Muitos deles estão dentro das próprias ruínas de antigas cidades: eram palcos de sacrifícios humanos feitos por maias. Hoje são procurados por mergulhadores do mundo todo. À beira do Caribe, todos en-
Playa del Carmen
GARDEL BERTRAND/AFP
STEVE ALLEN/AFP
GARDEL BERTRAND/AFP
À beira do Caribe, todos entendem Caymmi: “O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito”
Cenote de Dzitnup, próximo a Tulum
cabañas à beira da praia, em que se paga modestamente para dormir ao som das ondas tendem Caymmi: “O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito”. A questão é que não há muito a acrescentar sobre esse ponto. Tudo isso pode ser encontrado facilmente na internet, com uma busca pelas palavras-chave: Xel-Ha, Xcaret, Cozumel, Isla Mujeres etc. O que mais dizer ante a concreta possibilidade de nadar com tartarugas-marinhas e arraias gigantes, ou acariciar os manatis e golfinhos num desses parques? Enfim, é por esse tipo de sonho que a região é famosa na indústria do turismo como um lugar para passar a lua de mel. Pelo que se vê nos folhetos, os shows típicos apresentados em Xcaret dão uma imagem distorcida dos verdadei-
ros maias, mas recém-casados não estão necessariamente muito preocupados com isso. Para quem prefere a tranquilidade, a boa pedida está mais ao sul de Cancun, em lugares como Playa del Carmen e Tulum. O ambiente é ideal para descansar das pesadas discussões multilaterais: as cabañas à beira da praia, em que se paga modestamente para dormir ao som das ondas, são construções rústicas, com teto de palha, às vezes, paredes de taboca e, quase nunca, banheiro privado e chuveiro quente. Esse tipo de acomodação é encontrado pelas praias de quase todo o país, mas, na região de Cancun, o turismo de massas está, pouco a pouco, acabando com ele.
Pelas areias brancas das praias da região, pode-se encontrar bandos de turistas gringos, que nesta época do ano – inverno no Hemisfério Norte – migram para lugares mais quentes. Brasileiros, por aqui, são raros. A explicação vem na forma da pergunta de um canadense: “Brasil? O que você está fazendo tão longe? Vocês não têm praia por lá?” O principal motivo que arrasta tanta gente para Cancun tem, no fim das contas, algo de prático. Ou seja, mesmo aos olhos dos estrangeiros que frequentam a região, não valeria a pena vir para tão longe, tivessem eles um pouco mais de calor no próprio país. Enfim, quem sabe agora, com o aquecimento global, eles consigam. JANEIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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CurtaEssaDica
Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)
Os autores: carinho e horror
Obras de Vik Muniz
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
Dignidade
Lixo Extraordinário, que estreia em 21 deste mês nos cinemas, é um dos 15 finalistas para concorrer ao Oscar de Melhor Documentário em 2011, além de vencedor de prêmio da International Documentary Association. Com direção conjunta de João Jardim (Janela da Alma e Pro Dia Nascer Feliz), Karen Harley e da inglesa Lucy Walker, o filme acompanha o trabalho do artista plástico Vik Muniz, criador da abertura da novela Passione, em um dos maiores aterros sanitários do mundo, no Jardim Gramacho, periferia do Rio de Janeiro. Vik fotografa um grupo de catadores e revela a dignidade e o desespero frente à proposta que faz aos personagens para que se imaginem fora dali. Arte e transformação são os resultados que chegam às telas para o público.
Capital em verso e prosa
Para homenagear os 50 anos da capital do Brasil, seis escritores se reuniram para falar (em poemas, contos e crônicas) sobre a cidade: o cotidiano, a história, os calangos, políticos e de seu céu mais que azul. 50 Anos em Seis – Brasília, Prosa e Poesia (Editora Teixeira) trata, com carinho e horror, de uma cidade normal, cheia de virtudes e defeitos que, à medida que se misturam à rotina, passam despercebidos. Os textos são de André Giusti, Fernanda Barreto, José Rezende Jr., Liziane Guazina, Nicolas Behr e Pedro Biondi. A partir do trabalho, os autores criaram também um blogue literário: http:// brasilia50anosem6.wordpress.com. Pedidos podem ser feitos pelo e-mail brasilia50anosem6@gmail.com. Caio Blat, Maria Ribeiro e Luz Cipriota: diversão leve
Imaginação fértil Zeca (Caio Blat) é um jovem escritor travado que vive no mais profundo ócio. Sua mulher, Julia (Maria Ribeiro) é professora de Belas-Artes, linda e bem-resolvida. O relacionamento não vai lá muito bem porque ela sabe
o que quer (fazer mestrado e estudar em Paris) e ele, não: vive perambulando pelas ruas em busca de ideias geniais para seu romance. Quando ele começa a desconfiar que Julia o trai com Carol (Luz Cipriota), sua imaginação voa longe. Histórias de Amor Duram Apenas 90 Minutos, de Paulo Halm, é leve e divertido, retrato de uma geração que arrisca muito pouco e não dá a cara para bater. Em DVD.
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CORNELL CAPA - MAGNUM PHOTOS
Paris, 26 de agosto de 1944: população comemora fim da ocupação nazista
Diário de guerra O fotógrafo húngaro Robert Capa escreveu um diário de sua passagem pela Segunda Guerra Mundial. Publicado
pela primeira vez em 1947, chega ao Brasil pela editora Cosac Naify. Em Ligeiramente Fora de Foco (296 páginas, R$ 60), Capa, com uma ótima e bem-humorada narrativa, conta sobre suas bebedeiras, jogatinas, romances e seu esforço para tornar-se um correspondente de guerra. As cerejas do bolo são as fotos do período.
Mestre-sala dos mares
Aventura moderna
Painel de Henri Matisse
O Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, apresenta até 27 de fevereiro De Picasso a Gary Hill. Com cerca de 50 obras, a exposição exibe a aventura da arte ocidental moderna no século 20. Conta com peças de 35 artistas, entre eles os que dão nome à mostra: Salvador Dalí, Paul Klee, Marc Chagall, Henri Matisse, Antoni Tàpies e os brasileiros Aldemir Martins, Antônio Bandeira e Letícia Parente. Aberto de terça a domingo, das 10h às 18h. Mais informações: (41) 3350-4412 ou 3350-4469. R$ 2 a R$ 4.
O Núcleo de Ação Educativa do Arquivo Público de São Paulo apresenta a exposição virtual A Revolta da Chibata, que lança um olhar atento sobre o contexto histórico, os motivos e desdobramentos do episódio. São sete “salas” que resgatam essa história e seus personagens, como João Cândido, que liderou o que na época ficou conhecido também como Revolta dos Marinheiros. www.arquivoestado.sp.gov. br/exposicao_chibata
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Crônica
Por Mouzar Benedito
Revolução silenciosa
“A
Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo. Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci, ilustrado por Ohi
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Bolívia não é um país, é um acampamento”, disse certa vez, durante a ditadura brasileira, o general Golbery do Couto e Silva. E teria dito também que seria bom dividir esse “acampamento” entre os países vizinhos, de maneira que o país sumisse do mapa. Não haveria muito de novidade nisso. Na época de sua independência, há 201 anos, a Bolívia tinha 2,3 milhões de quilômetros quadrados – hoje tem menos de 1,1 milhão. O Brasil foi o que mais garfou. O Chile tomou a fatia de litoral e deixou o país sem acesso ao mar. E são terras ricas em minérios. Peru, Argentina e até o Paraguai têm territórios conquistados da Bolívia. Essa perda sucessiva de território sempre teve a ver com maus governantes e com militares corruptos. Todos eles descendentes de europeus. Os índios, de diversas etnias, entre elas a aymara e a quechua, nunca tiveram vez. Eram considerados não cidadãos. Até que um índio, vencendo todos os preconceitos, chegou ao governo. Era nisso que eu pensava enquanto traduzia, admirado, parte do livro A Potência Plebeia – Ação Coletiva e Identidades Indígenas, Operárias e Populares na Bolívia (Boitempo Editorial), de Álvaro García Linera, que além de sociólogo e matemático é vice-presidente do país.
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Linera é um grande intelectual, nascido em família mestiça de classe média. E teve papel importante na eleição de Evo Morales, pois foi um fator de atração da classe média urbana, que torcia o nariz para a possibilidade de um presidente índio. Se no Brasil, como vemos quase cotidianamente lembranças na imprensa, havia o “complexo de vira-latas”, no dizer de Nelson Rodrigues, imagine a autoestima dos índios bolivianos! Não eram levados em consideração nem mesmo pela esquerda tradicional, que tinha o operariado como protagonista das transformações, e pronto! Índio não fazia parte das expectativas revolucionárias dessa esquerda. E o que vemos agora? A Bolívia se enriquecendo, distribuindo renda, cuidando da saúde do seu povo, acabando com o analfabetismo (e, nisso, é preciso lembrar que a maior parte da população fala aymara ou quechua, mas há vários outros idiomas indígenas). A autoestima indígena está mais alta que os Andes. O operariado, representado pelos mineiros, agora é configurante no processo de transformação. Falando em mineiros, algo acontecido em quase toda a América Latina: um líder com um passado respeitável se convertendo em capacho internacional. Na Bolívia foi Victor Paz Estenssoro, que liderou uma revolução popular em 1952, nacionalizou as minas (principal fonte de renda do país), foi eleito novamente em 1985 e fez um governo neoliberal criminoso: entregou o patrimônio do país aos estrangeiros e jogou seus operários no desemprego e no desespero. Linera pode ser considerado um ideólogo do governo Morales. No livro, uma coletânea de ensaios (o primeiro deles sobre a atualidade do Manifesto Comunista, que pode ser pulado por quem quiser entrar diretamente no assunto Bolívia), conta todo esse processo, desde sua gestação até o esperneio da elite branca da atual parte rica da Bolívia, o leste, que não se conforma em perder o poder, mas não tem projetos consistentes nem líderes capazes de retomar o poder. Os índios experimentaram o sabor de estar no comando. E gostaram. E inovam: em vez de um país com uma única etnia com direitos, como havia antes, propõem um país multiétnico, pluricultural. Mas não aceitam submissão, estão conscientes de seu poder e reafirmam sua identidade. Com as bênçãos de Pachamama (Mãe Terra), em suas festas tremulam as whiphalas, bandeiras multicoloridas dos povos andinos, com cada cor simbolizando algum aspecto da cultura indígena (a terra, a energia, o tempo, o espaço cósmico etc.). Uma revolução sem holofotes acontece ali.
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