BASTA DE VIOLÊNCIA Entrar na universidade é razão de festa, não de barbárie
nº 56 fevereiro/2011 www.redebrasilatual.com.br
METRÔ DE SP Obras bilionárias, trens quase parando, plataformas lotadas e pessoas em risco
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I SSN 1981-4283
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PEGOU FOGO O povo foi às ruas e pôs em xeque a tirania de alguns países árabes caros ao Ocidente
R$ 5,00
José Lino, em Nova Friburgo há 26 anos
PONTO ZERO
Força e determinação na região serrana do Rio. Para milhares, reconstruir é começar do nada
CINEMA Entrevista com Fernando Meirelles e um passeio pela 14ª Mostra de Tiradentes
VOCÊ JÁ COMBATEU A DENGUE HOJE? Todos os anos milhares de brasileiros pegam dengue, uma doença séria que pode ser evitada com medidas simples. Reúna amigos, parentes e vizinhos e ajude a eliminar os focos do mosquito. Com todos unidos, conseguiremos vencer essa luta.
Mantenha a caixa d’água bem fechada. Coloque também uma tela no ladrão da caixa d´água.
CUIDE DA SUA CASA.
Não deixe água acumulada sobre a laje.
FALE COM SEUS VIZINHOS.
Encha de areia até a borda os pratos das plantas ou lave-os semanalmente com escova.
CONVERSE COM A PREFEITURA.
O BRASIL CONTA COM VOCÊ. www.combatadengue.com.br
Coloque o lixo em sacos plásticos e mantenha a lixeira bem fechada.
Índice
Editorial
LARISSA JANUZZI
Justiça 10 Ninguém foi julgado pela chacina de Unaí (MG), sete anos depois Trabalho 14 Movimento sindical, empresários e OIT na busca do trabalho decente Cidadania 16 Por que o metrô de S. Paulo é cada vez mais caro, lento e inefeciente Capa 22 A dura reconstrução dos municípios da região serrana do Rio de Janeiro Mundo 28 Multidões do Egito e vizinhos nas ruas contra a pobreza e a tirania Entrevista 32 Fernando Meirelles e suas ideias sobre a arte de fazer bons filmes Cultura 36 14ª mostra de cinema de Tiradentes abre o calendário de novidades Comportamento 40 Cerco ao fascismo e à estupidez dos trotes universitários violentos História 44 O segundo livro de Moraes Moreira e a eletrificação do Carnaval baiano
Machismo, sexismo, humilhação, violência. Qual, afinal, é o propósito do trote universitário?
À sombra da impunidade
E
JOÃO CORREIA
Fachada do MAO
Viagem 46 O Museu de Artes e Ofícios de BH é um passeio pelo talento das mãos
SEÇÕES Cartas 4 Ponto de Vista
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Na Rede
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Atitude 27 Curta Essa Dica
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Crônica 50
nquanto esta edição era produzida, cenas constrangedoras do trote promovido por veteranos da Universidade de Brasília corriam o país. Alunas e alunos recém-ingressados na Faculdade de Agronomia e Veterinária eram coagidos a praticar simulações públicas de sexo oral. Num momento que marca o início de uma etapa no processo de formação do indivíduo – e que coincide com a transição da adolescência para a vida adulta –, em vez de celebração com festa, cultura e criatividade, jovens são submetidos a rituais que desprezam noções de dignidade e direitos humanos. Nesse início de ano letivo, a revista recupera momentos lamentáveis da história de algumas faculdades para lembrar que os trotes violentos, ainda que em decadência, não acabaram. Em parte porque o caráter violento de quem os pratica está presente também naquele calouro que aceita a baixaria na ânsia de reproduzi-la depois, fragilizando o poder de reação dos que a desaprovam. Cabe às faculdades assumir mais responsabilidades para dar fim a esse ciclo. E estimular a vítima a denunciar agressões físicas e psicológicas, e o agressor a perder a sensação de impunidade. Nos momentos finais desta edição, o engenheiro Ricardo Martins morreu ao receber descarga elétrica em obra do Metrô de São Paulo. Martins trabalhava para uma empresa terceirizada contratada pela Alstom, integrante do consórcio responsável pela obra. A poucas quadras dali, há quatro anos, sete pessoas morreram ao cair numa cratera aberta em obras de escavação. Como é possível uma pessoa em serviço se aproximar tanto de uma linha de altíssima voltagem ou uma escavadeira avançar num subsolo sujeito a sugar casas e pessoas são questões que ficam para a história, mal contada, do Metrô paulista, cuja situação de lentidão, superlotação e suspeitas de superfaturamento também é abordada. Ainda ao final desta edição, ditaduras do mundo árabe, como a do Egito, ruíam diante da revolta popular. A uma revista mensal, ainda que com o ônus de mergulhar em fatos sem desfecho definido, resta a tentativa de ajudar o leitor a entender um momento que pode ser crucial em um ambiente que exibe ilhas de tirania e riqueza cercadas de pobreza. Também não se dispunha do saldo final dos prejuízos materiais e emocionais da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro. Ficam, então, os registros da reação de empresas, poderes públicos e pessoas anônimas – muitas envoltas num mundaréu de destruição que pode lhes ter tirado até a própria identidade, mas não a esperança e a vontade de se reconstruir. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica de Souza, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo e Betto Ferreira Capa Foto de Rodrigo Queiroz Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa
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REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2011
Rio de Janeiro A reportagem “Dilemas do Rio” (edi ção 55) é sensacional. Sou carioca e às vezes tenho vontade de voltar para o Rio, mas o medo fala mais alto. Com referência às tais Unidades de Polícia Pacificadora, tenho minhas dúvidas, pois o meio policial sempre foi corrupto. Não acredito que o governador do Rio, Sérgio Cabral, tenha controle para impor moral e manter policiais capacitados nessa área. Acho que realmente passou da hora de a Anatel e o Ministério das Comunicações reverem melhor a situação das concessões de rádios, em especial das comunitárias, pois vejo de real utilidade o desempenho que cada comunidade possa ter, dentro dos limites, com o bom funcionamento delas. Gostei muito do depoimento do rapper e cineasta MC Fiell. Jose Aguiar, São Paulo (SP) Santa Marta A entrevista do Itamar Silva (“O mercado sobe o morro”, edição 55) é ponderada, analítica e nada ingênua, como é tão ao gosto da grande mídia brasileira. Parabéns. Ricardo Moreno, Rio de Janeiro (RJ) Itamar Silva demonstra, mais uma vez, sua incrível capacidade de compreender a realidade em que vive. Pessoas como ele merecem grande visibilidade, pois nos ajudam a pensar e a olhar de modo crítico tudo o que acontece à nossa volta. Adorei a entrevista. Vania Cury, Rio de Janeiro (RJ) Remédios e patentes Não vi na reportagem (“Não acredite em amostra grátis”, edição 52) nenhuma menção à Central de Medicamentos (Ceme), criada com o propósito de distribuir medicamentos ao povo. O Collor fechou o órgão, pressionado pelas farmacêuticas, com base na notícia da Folha de S.Paulo, sempre ela, de que lá havia roubalheira – o que nunca foi provado. O mal é deixar tudo como está... Além de se permitirem remédios que não curam para que sejam comprados sempre. Graccho Maciel
Leonardo Boff Isso não tem absolutamente nada a ver com Deus (“Desta vez não há arca de Noé”, entre vista com frei Leonardo Boff, edição 55). O entrevistador tenta indicar que “falta Deus” nas discussões climáticas. Isso é o que há de mais conservador. Deus não tem relação nenhuma com isso. Vale dizer que os países capitalistas tiveram sempre estreitas ligações com protestantes e, logo, com o dinheiro. A ética do capitalismo e o espírito protestante de Max Weber ressaltam justamente a influência do calvinismo na construção da sociedade capitalista americana. Os capitalistas são religiosos, não falta Deus no coração deles porque, na visão protestante/teologia da prosperidade, se você ganha dinheiro, você é um bom fiel. Não coloquem Deus nisso tudo. Somos dotados de inteligência para resolver nossa situação sozinhos. Deus está morto. Eduardo, São Paulo (SP) Sem-teto Parabéns pela reportagem “Capital da contradição” (edição 55), por ter trazido a visão sobre o que é o problema habitacional. Ronaldo Richieri, São Paulo (SP) Privatizações A revista de setembro do ano passado fez menção às privatizações em uma reportagem (“Estado para quem precisa”, edição 51). Pois é, em novembro fez dez anos que o Brasil perdeu um de seus símbolos, imponente e charmoso, localizado no centro de São Paulo. A torre do Banespa, um dos monumentos históricos do país, simbolizava o desenvolvimento. Hoje é um edifício vazio. Simboliza a traição. A privatização foi um prejuízo para São Paulo e para o Brasil. Recursos que antes financiavam universidades, por exemplo, agora vão embora para a Espanha. José Roberto Cordeiro de Souza, Mauá (SP) revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.
PontodeVista
Por Mauro Santayana
O mito dos 100 dias A história política é perturbada por lugares-comuns que pouco têm a ver com a realidade. Alguns acreditam que os primeiros dias de um governante definem o desempenho posterior
A
expressão nasceu dos famosos “100 dias A melhor advertência à conduta governamental é o de Napoleão”, que na verdade foram 114, contato direto com a população, e não somente mede 1º de março, quando retornou à Fran- diante as informações dos ministros. É conhecido o ça depois de fugir da Ilha de Elba, a 22 de estratagema do primeiro-ministro Potemkim, de Cajunho de 1815, quando abdicou do trono tarina, a fim de iludi-la durante uma visita ao Rio pela segunda vez. Napoleão reconquistou o trono com Dnieper. Potemkim montou ao longo do rio aldeias de exemplar coragem, mas o perdeu porque a correlação fachada, com moradias coloridas como cenário, diande forças militares na Europa já não o favorecia. Desde te do qual camponeses saudavam a soberana do impéa retirada da Rússia, em 1812, seu destino estava sela- rio russo (de 1762 a 1796), feliz com o “bem-estar” de do. A um de seus secretários de então – Henry Beyle, seus súditos. Eram as famosas aldeias de Potemkim. famoso com o pseudônimo de Stendhal – ditou decre- O chefe de Estado deve estar em contato, sempre que tos de promoção de oficiais, depois de possível, com o povo. derrotado em Moscou, e assinou “Pom- O perfil de Além dos problemas internos, Dilpeu”. Era a assunção antecipada da der- Dilma é de ma é convocada da mesma forma a rota definitiva, como a sofrida por Pom- alguém que manter contatos pessoais com os chefes peu contra César. de governo estrangeiros. Lula avançou se dedica Os 100 primeiros dias de um govermuito na diplomacia do corpo a corpo, nante podem mostrar seu caráter, mas exaustivamente e o mundo se acostumou com essa prenão significam êxito ou malogro do ao trabalho. É sença brasileira, que se marcou pela almandato. Quando o governante encon- uma grande tivez sem arrogância, pela firmezasem tra o país em crise grave, como ocorreu vantagem para impertinência. a Roosevelt em 1933, a atuação tem de quem chefia um ser contundente e imediata – o que ele Exemplo para todos os dias governo, mas fez com o New Deal, a intervenção fulNa abertura de seu livro Economics minante do Estado nas atividades eco- não basta para for a Civilized Society, Greg e Paul Danômicas. Nesse caso, os primeiros dias quem chefia vidson mostram que a sociedade se são decisivos. Outra é a situação de Dilma um Estado torna “civilizada” diante de catástrofes. Rousseff. Ela é conhecedora da realidade democrático As pessoas se sentem tocadas pelo sonacional e dos mecanismos do poder, pela frimento quando há incêndios, terreexperiência de sua carreira de administradora. Provavel- motos, inundações. Por que, perguntam os autores, o mente não encontrará situações desconhecidas, embora mesmo não ocorre na vida de todos os dias? As cenas o poder sempre reserve surpresas: o caráter das pessoas de solidariedade na busca de sobreviventes e de mornunca é exposto nas linhas da face. tos nas encostas da serra, em Petrópolis, Teresópolis e A presidenta tem o desafio de arbitrar os interesses Nova Friburgo, mostram um povo exemplar. No entanto, contra as catástrofes sociais de todos os em disputa do poder. Isso não lhe será difícil, mas exigirá permanente atenção. Seu perfil é de alguém que dias não há a mesma disposição, exceto de uma muise dedica exaustivamente ao trabalho. É uma grande to pequena parcela da população. Todos os dias, adovantagem para quem chefia um governo, mas não basta lescentes são empurrados para a prostituição e para o para quem chefia um Estado democrático. Ela atendeu crime; desabrigados e sem-teto adoecem e morrem nas os grupos empresariais, ao convocar o industrial Jorge calçadas das grandes cidades do mundo. As pessoas Gerdau para assessorar o governo. Espera-se que essa olham de lado. Há pouco tempo para que a sociedade presença não venha a significar retorno do pensamen- se civilize e adote modelo econômico que a salve das to neoliberal na condução ideológica do Estado, como catástrofes sociais devastadoras. É preciso que o sentimento humanista ocupe o mundo. nos tempos de Fernando Henrique.
Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980
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NaRede
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Atravessando o samba
NACHO DOCE/REUTERS
Piove, piove, fa tempo che pio ve qua (chove, chove, faz tempo que chove aqui), cantava Adoniran Barbosa em seu Samba Italia no. Ou seja, chuva em São Paulo não é exatamente uma novidade. Mas as ações para prevenir enchentes atravessam o samba e o tempo. No final de 2010, a CPI das Enchentes da Câmara Municipal paulistana identificou redução de recursos e má aplicação do dinheiro disponível em ações de prevenção, como manutenção de piscinões e bocas de lobo. http://bit.ly/chove_chuva_sp. A atuação do governo estadual não é melhor. http://bit.ly/chove_tiete_sp e http://bit.ly/chove_kassab_sp
A tarifa nas ruas Aos poucos, os jovens conseguiram dar visibilidade à questão do transporte público. Os protestos contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo e contra o prefeito Gilberto Kassab ganharam as ruas e conseguiram mais adeptos. As manifestações, organizadas pelo Movimento Passe Livre – nascido em 2005, durante o Fórum Social Mundial –, reuniram milhares de pessoas, inclusive em outras capitais, como Vitória e Salvador. http://bit.ly/rba_onibus_sp e http://bit.ly/rba_onibus_vitoria
O golpe está nu
Em 2009, o presidente Manuel Zelaya foi derrubado do governo de Honduras. O pretexto para o golpe foi sua proposta de alteração na Constituição para poder realizar um referendo sobre a reeleição. Acabou tirado à força do cargo e setores da imprensa brasileira fizeram vista grossa, alegando que o “erro” de Zelaya em querer fazer uma consulta popular justificava o golpe. Agora em janeiro o Congresso hondurenho aprovou reformar a lei para que seja permitida a realização de um referendo sobre reeleição presidencial. Pasme. A imprensa calou-se. http://bit.ly/rba_honduras_golpe 6
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Zelaya
KENA BETANCUR / REUTERS
O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, estreou no cargo anunciando em alto e bom som a intenção do governo de ampliar o quanto antes a oferta de banda larga. A desoneração de impostos, proposta que desagrada à Telebrás, foi apresentada como Paulo um dos caminhos para atingir Bernardo esse objetivo. Bernardo disse ter expectativa de “um grande arranjo institucional” para impulsionar o Plano Nacional de Banda Larga. http://bit.ly/rba_bandalarga_sim O furor não foi o mesmo em relação ao novo marco regulatório das comunicações. Bernardo afirma que, se tais questões, “extremamente sensíveis”, não forem debatidas com a sociedade, elas podem ser engavetadas. http://bit.ly/rba_regulamidia_nao
JÉSSICA DE SOUZA
A banda e os meios
MARCELLO CASAL JR/ABR
Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Guilherme Amorim, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Vitor Nuzzi
De novo, mais uma vez: Jardim Pantanal debaixo d’água
KAREN FACCHINETTI/DIVULGAÇÃO
Guta do Pandeiro
Chorando no ar
Clube do Choro de São Paulo vai ao ar aos domingos, às 8 horas, com reprises às 14 e às 20, mostrando aquele que talvez seja o mais brasileiro dos ritmos. O programa é produzido e apresentado por Gustavo Simão, o Guta do Pandeiro. http://bit.ly/rba_clubedochoro_radioweb
NA TV
BLOG DO VELHO MUNDO
Outra economia acontece
BERNARDO REBELLO/DIVULGAÇÃO
Como reunir um grupo de trabalhadores e organizar coletivamente um empreendimento e democratizar a gestão? Qual a importância das políticas públicas de crédito, capacitação técnica e administrativa, que ajudem também a garantir o escoamento da produção e a promover o compartilhamento dos resultados? São esses alguns dos desafios da economia solidária, movimento Paulo que faz frente ao modo hegemônico de Okamoto organização capitalista que tem crescido muito no Brasil. O programa da TVT Melhor e Mais Justo vai mergulhar nesse assunto, junto com os presidentes do Sebrae, Paulo Okamoto, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann, e Marcelo Gomes, da agência de viagens Unisoli, que discutem como contribuir para potencializar um desenvolvimento sustentável e socialmente responsável. A edição vai ao ar no dia 17 de fevereiro. O Melhor e Mais Justo é um programa que traz sempre temas e ideias para um mundo melhor – todas as quintas-feiras, às 19h30, na TVT. Como sintonizar a TVT: canal 48 UHF (ABC e Grande São Paulo); canal 46 (Mogi das Cruzes e Alto Tietê); ECO TV, canais 96 (analógico) e 9 (digital), da NET (ABC); TV Aberta SP, canais 9, da NET, e 72 (analógico) e 186 (digital), da TVA; e na internet: www.tvt.org.br
O Brasil espanta
O Brasil deu certo. Deu certo? Como assim? O espanto, segundo observação de Flávio Aguiar, é do pensamento conservador que circula em Davos, na Suíça, palco do Fórum Econômico Mundial. O motivo de tamanha estupefação está no fato de um país dar certo sem seguir as fórmulas tidas por eles como mágicas. Mas nunca é tarde para tentar enquadrá-lo. http://bit.ly/rba_velhomundo_davos
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POLÍTICA
Passo em falso Centrais reclamam e pedem manutenção da política de aumentos reais para o salário mínimo. Temporada de reivindicações começou
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DERRAPADA Mantega: interrupção na política de valorização do mínimo
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o início do ano, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, chegou a declarar que o governo barraria qualquer proposta de reajuste do salário mínimo que superasse o valor de R$ 540. O Dieese alertou que o aumento ficava aquém da variação da inflação (INPC) em 2010. Os R$ 540 representariam 5,88% de reajuste, enquanto o INPC fechou o ano com alta de 6,47%. Ou seja, significaria uma interrupção na política de aumentos reais estabelecida na gestão Lula. Com isso, as centrais deram os primeiros sinais de impaciência com os vaivéns do governo. “É frustrante acompanhar o ressurgimento da tese de que os salários deterioram as contas públicas, especialmente porque esse ideário não fez parte do programa com o qual a presidenta Dilma foi eleita”, disse o presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Wagner Gomes. Já o presidente da CUT, Artur Henrique, viu no impasse uma tentativa de impor ao país uma “agenda dos derrotados” na eleição. Pelos critérios negociados, a política permanente de reajuste inclui o INPC do ano anterior mais a variação do PIB de dois anos antes. Ou seja, o reajuste do atual mínimo teria de levar em conta a inflação de 2010 e o PIB de 2009 – que no entanto não cresceu, foi negativo (-0,6%). Passadas as esperadas reclamações, o mesmo Mantega anunciou que o mínimo iria para R$ 545 a partir de 1º de fevereiro. Um aumento real mínimo. As centrais, que reivindicam R$ 580, reclamaram novamente, e em 18 de janeiro reuniram algumas centenas de pessoas em protesto na Avenida Paulista, em São Paulo. A pauta discutida com o governo inclui a correção da tabela do Imposto de Renda. Os sindicalistas argumentam que, sem isso, parte dos reajustes salariais seria perdida.
Valores do mínimo Período Abril/2002 Abril/2003 Maio/2004 Maio/2005 Abril/2006 Abril/2007 Março/2008 Fevereiro/2009 Janeiro/2010
Valor (em R$)
Aumento real (em %)
200 240 260 300 350 380 415 465 510
1,23 1,19 8,23 13,04 5,10 4,03 5,79 6,02
De 2003 a 2010 Reajuste nominal: 155% Inflação (INPC): 66% Aumento real: 53,6% Fonte: Dieese
Em 26 de janeiro, os sindicalistas foram recebidos pelo secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. As negociações continuariam em fevereiro e caminhavam para um acordo, talvez distante do que esperavam as centrais. Dois dias depois do encontro, a presidenta Dilma Rousseff endureceu: “O que queremos saber é se as centrais querem ou não a manutenção do acordo. Se querem, o que nós propomos para este ano é R$ 545”. O governo argumenta que não está descumprindo o acordo e acena com um reajuste mais polpudo em 2012. Como as projeções para o crescimento do PIB de 2010 estão em torno de 7,5% e se espera uma inflação perto de 5,5%, o mínimo poderia atingir R$ 618 no ano que vem, tendo como base os R$ 545. Com o costumeiro arrendondamento, ficaria em R$ 620, o que representaria reajuste de 13,76% – aumento real de 7,83%. Mas como fica o aqui e agora? O mínimo abre a temporada de reivindicações de 2011. A expectativa é que, agora, outras discussões vinguem, como a da reforma tributária. “O tema já foi bastante debatido no segundo mandato do governo Lula. Hoje, há um consenso a respeito de sua necessidade e até mesmo de sua urgência, mas não sobre seu conteúdo”, afirma o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) Antônio Augusto de Queiroz. Ele observa que a disputa entre “o contribuinte e o governo” se dá em três níveis do Executivo (federal, estaduais e municipais), “cada um querendo aumentar sua parte da receita”. Mesmo assim, Queiroz vê mais condições de acordo – devido, entre outros fatores, à presença de uma oposição “menos virulenta” e com governadores mais dispostos ao diálogo.
TRABALHO
PAULO PEPE
DEFESA DO TRABALHADOR Cordeiro (Contraf), Antonio Carlos Schwertner (banco HSBC) e Juvandia (bancários de São Paulo), durante assinatura de acordo. RdB de outubro alertou para gravidade das humilhações no trabalho
O fim do silêncio D Bancários assinam acordo pioneiro de combate ao assédio moral emorou anos e custou muito sofrimento, mas a conclusão pode representar um avanço considerável no setor financeiro – além de repercutir em outros setores profissionais que batalham por relações de trabalho decentes. Em 26 de janeiro, 51 sindicatos ligados à Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT) e nove bancos inauguraram um programa de combate ao assédio moral. O acordo, um aditivo à convenção coletiva nacional da categoria, tem adesão de Bradesco, Bic Banco, Caixa Federal, Citibank, HSBC, Itaú Unibanco, Safra, Santander e Votorantim, o que representa um universo de mais de 400 mil funcionários – se incluídos os do BB, que desde 2009 tem acordo prevendo um comitê de ética para apurar conflitos nos locais de trabalho. “Trata-se de uma das principais conquistas da campanha nacional dos bancários de 2010”, declarou à Rede Brasil Atual o presidente da Contraf-CUT, Carlos Cordeiro. “Os bancos aplicam metas abusivas para a venda de produtos aos clientes, muitos desnecessários para a vida das pessoas, apelando para situações de pressão, constrangimento e humilhação no trabalho, que trazem estresse, adoecimento e depressão.”
Para a presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região, Juvandia Moreira, é um momento histórico, resultado de muitos anos de luta da categoria. “Vamos precisar da participação de todos os bancários, que devem denunciar os casos de assédio moral para que possamos cobrar dos bancos a apuração das denúncias e a solução dos problemas, dentro dos prazos previstos no acordo. Resolver essa questão é bom para os trabalhadores e para o banco.” Qualquer trabalhador exposto a situações humilhantes ou constrangedoras (ameaça de demissão, sobrecarga de trabalho, ofensa e desmoralização pública constantes) deve denunciar pessoalmente em seu sindicato. Para isso, ele precisa se identificar, e tem garantia de sigilo. Cada sindicato terá 10 dias úteis para apresentar a reclamação ao banco, que por sua vez terá 60 para esclarecer o caso. O Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região receberá também denúncias pelo site www.spbancarios.com.br A Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) classificou o acordo de inovador, para prevenção de conflitos no ambiente de trabalho. “Nesse caso, se o trabalhador não se sentir atendido no estabelecimento ou pelo seu gestor, tem um canal para manifestar sua insatisfação diretamente no banco ou
por meio do sindicato”, afirmou em nota o diretor de Relações do Trabalho da entidade, Magnus Ribas Apostólico. “Com isso, teremos um ambiente de trabalho mais saudável, mais cooperativo e, consequentemente, mais produtivo. Ganham os bancos, ganham os bancários e ganha a sociedade.” O assédio moral já saiu do silêncio do constrangimento e tornou-se realidade na Justiça do Trabalho, que vem recebendo mais denúncias. O vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), João Oreste Dalazen, diz que o assédio se caracteriza como dano moral. “Em última análise, agride direitos personalíssimos do cidadão, do empregado”, disse em entrevista. No início deste ano, a Quinta Turma do TST rejeitou recurso do Bradesco contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) do Espírito Santo, que condenou o banco a pagar R$ 35 mil a um ex-empregado por danos morais. O laudo técnico, de acordo com o TST, comprovou que o trabalhador “sofreu transtornos psicológicos decorrentes do tratamento discriminatório que recebia do seu superior hierárquico, combinado com o estresse decorrente da sobrecarga de trabalho a que foi submetido, apresentando quadro de depressão, com intensas ideias de morte (suicídio)”. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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JUSTIÇA
Quatro mortos, nenhum culpado E
Chacina de Unaí (MG) completa sete anos, até agora sem julgamento Por Vitor Nuzzi 10
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2011
les não tiveram chance. Emboscados em uma rodovia vicinal por volta das 8 horas, os três auditores fiscais do trabalho e o motorista que dirigia a picape foram alvejados na cabeça com tiros de revólver calibre 38 e de uma pistola 380. A operação foi rápida e classificada como profissional. Ao completar sete anos do assassinato em 28 de janeiro, ainda não foram a julgamento os envolvidos na chamada cha-
cina de Unaí, noroeste de Minas Gerais. As vítimas eram servidores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Os fiscais Eratóstenes de Almeida Gonçalves, o Tote, de 42 anos, João Batista Soares, 50, e Nelson José da Silva, 52, vistoriavam as condições de trabalho e moradia dos colhedores de feijão. Ailton Pereira de Oliveira, 52, dirigia o veículo. Ele ainda conseguiu conduzir o carro por alguns quilômetros e ser socorrido, morrendo horas depois.
“O ambiente lá já era tenso”, lembra João Coelho Frazão de Barros, à época presidente da Associação dos Auditores Fiscais do Trabalho de Minas Gerais (AAFT-MG), hoje vice-presidente. “Subestimamos o perigo. Achávamos que era algo impossível de acontecer.” Frazão observa que um dos fiscais (Nelson) chegou a trabalhar acompanhado de um segurança durante algum tempo. Segundo relatos, Nelson já tivera desentendimentos com o proprietário
à Justiça Eleitoral somou quase R$ 19 milhões. No segundo turno das eleições presidenciais do ano passado, José Serra (PSDB) recebeu em Unaí 53% dos votos válidos e Dilma Rousseff (PT), 47%. No último dia 15 de janeiro, durante a comemoração pelos 67 anos de emancipação de Unaí, o prefeito lembrou de sua chegada à cidade, há três décadas, vindo do Paraná: “Fomos recebidos de braços abertos. Quem recebe flores tem de dar flores. Quem recebe carinho tem de devolver carinho, é isso que eu tento fazer”.
Antério Mânica está em seu segundo mandato
PAHLEVAN FOTOGRAFIAS
SÉRGIO LIMA/FOLHAPRESS
Unaí fica a 170 quilômetros de Brasília e a 600 de Belo Horizonte. Tem 78 mil habitantes e economia baseada no agronegócio. É o principal produtor brasileiro de feijão e também se destaca em milho e soja. O tucano Antério Mânica, natural de Espumoso (RS), venceu as duas últimas eleições para prefeito. Em 2004, ano do assassinato, chegou a ser preso durante a campanha. Mas recebeu 72% dos votos. Em 2008, teve 59%, liderando coligação com PSDB, PR, PP, PHS, PV e PSB. A declaração de bens de Mânica
PAULO H. CARVALHO/AE
Um dos acusados é o prefeito
SELVAGERIA Policiais retiram da picape do Ministério do Trabalho o corpo de um dos fiscais assassinados
DEMORA Manifestação em frente ao TRF de Minas em 28 de janeiro cobrou julgamento
rural Antério Mânica, um dos acusados. Eleito prefeito em 2004 e reeleito em 2008, Antério tem direito de ser julgado em foro especial. Em 2004, ele chegou a ficar preso, mas obteve um habeas corpus. Em relatório de 2003, Nelson informou ter sido ameaçado por Norberto, irmão de Antério. Segundo denúncia que consta em relatório da Procuradoria Regional da República da 1ª Região, de 2006, “Norberto, sentindo-se prejudicado pela ação da fisca-
lização trabalhista em suas fazendas, prometeu matar o fiscal do trabalho Nelson”. O valor combinado entre o contratante dos pistoleiros e os executores do crime teria sido R$ 25 mil. Os Mânica sempre afirmaram não ter nenhuma relação com a morte dos servidores.
Processo e impunidade
Existe a expectativa de que o julgamento ocorra este ano. O processo corre em segreFEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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PERIGO REAL Frazão: “Achávamos que era algo impossível de acontecer”
do de Justiça no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Minas. Três anos atrás, uma decisão suspendeu o processo contra o suposto mandante, a pedido do Ministério Público. Essa decisão implica que os outros oito acusados devem ser julgados antes. Todos os recursos ajuizados naquela instância já foram julgados. Dois acusados pediram – sem sucesso – ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulação da decisão que os levará a julgamento. O processo está pronto para retornar a Minas Gerais. Dos nove incluídos, entre mandante e executores, quatro estão soltos. Frazão conhecia bem três dos servidores mortos. “O João Batista era um cara alegre, de bem com a vida, gostava de curtir o sítio dele. Tote era uma pessoa esforçada, de ori-
gem humilde, trabalhadora. O Ailton era extremamente educado. Senti como colega e como amigo. Sinto até hoje.” A Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE, ex-Delegacia Regional do Trabalho) de Minas preocupa-se com a demora no julgamento. “Essa sensação de impunidade pode estimular a ação de maus empregadores, tanto na área urbana como rural”, diz o chefe de Saúde e Segurança da SRTE, Ricardo Deusdará. Segundo ele, depois de 2004 todas as fiscalizações passaram a ser acompanhadas de escolta policial. Em 2009 foram feitas 19 inspeções na regional de Paracatu (onde fica Unaí) e no ano passado, 90. Hoje 15 dos 180 auditores fiscais de Minas atuam na região. Em uma das ações, em outubro, o Grupo
de Fiscalização Rural da SRTE-MG, com apoio da Polícia Rodoviária, resgatou 131 trabalhadores em condições degradantes na região. Oito eram menores. Os fiscais faziam vistorias em lavouras de feijão. Os trabalhadores não tinham água potável, alimentação, instalação sanitária, equipamentos de proteção e assistência médica. Vários “moravam” em barracos de lona. No final de 2008, Antério Mânica recebeu uma medalha da Assembleia Legislativa mineira, o que causou protestos. Titular da DRT à época do crime, Carlos Calazans devolveu medalha semelhante que já havia recebido. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, Durval Ângelo (PT), diz que o fato até hoje desmoraliza o poder público. “Existem dois Brasis, o dos que detêm o poder econômico e político e o dos despossuídos. A Justiça é reflexo disso.” Na opinião do parlamentar, quem matou os fiscais e o motorista foi o poder político representado não só pelo prefeito, mas pelas forças que o sustentam, como o agronegócio. “Não há nenhum tipo de dúvida de que ele (Antério Mânica) é o mandante. Ele praticamente confessou o crime na audiência da Comissão de Direitos Humanos. Entrou em várias contradições.” A impunidade é motivo de constrangimento: “O que vamos dizer para os familiares e amigos dos assassinados? A gente sente vergonha”, afirma o deputado, que também não vê razões para postergar o julgamento. “Se não há mais recursos, por que o júri não é marcado? É como se a cada momento esses fiscais fossem assassinados novamente.”
“Tive medo, mas quis ficar” “Pensei em sair de Unaí, tive muito medo, mas quis ficar. Com o tempo, as pessoas acabam abrindo o bico”, diz com firmeza Helba Soares da Silva, 47 anos, viúva do fiscal Nelson José da Silva. “Já tinham ameaçado o Nelson. A gente tinha medo. Achava que eles podiam entrar em casa e matar aqui mesmo.” As ameaças continuaram. Depois da segunda prisão de Norberto Mânica, pessoas passavam em frente à sua casa e da pequena que ela mantinha e tiravam fotos. Ela não tem dúvidas. “Nem eu, nem a imprensa, nem a polícia. Só de você olhar para os advogados deles...”, diz Helba. Ela acredita que o tempo pode ter ajudado. “Vai fazer eles pagarem caro por esse atraso no julgamento. Muita coisa mudou. O que importa é que haja um julgamento sério e justo.” Segundo o vice-presidente do Sindicato dos
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Trabalhadores Rurais de Unaí, Manoel José de Faria, após a chacina de 2004 a fiscalização “ficou um pouco distante” da região e foi retornando aos poucos. O principal problema ainda é falta de registro em carteira dos trabalhadores. Manoel conta que a presença de “gatos”, agenciadores irregulares de mão de obra, ainda existe, principalmente na lavoura do feijão. “O sindicato não tem dificuldade de entrar em nenhuma propriedade. Às vezes, o patrão nos trata bem, mas tem o gerente que vai lá e contrata um gato”, relata. A situação melhorou com as cooperativas formadas pelos produtores. “Nos condomínios, não trabalha clandestino.” Manoel assumiu a presidência do sindicato apenas 28 dias antes da chacina de 2004. “Aquilo foi muito triste. Cabeça de gente, a gente não sabe o que passa dentro.”
ESPERANÇA Helba: “Julgamento sério e justo”
Opinião
Por Laurindo Lalo Leal Filho
Novo Congresso, velhas dívidas Nada impede a concentração dos meios de comunicação. Só a Globo controla 340 empresas em todo o país
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cabam de tomar posse deputados fede- oligopólio.” Nada impede a concentração. Só a Globo rais e senadores eleitos no ano passado. controla 340 empresas. Em outros setores, a fiscalização Você lembra em quem votou? Se não, está é rigorosa para evitar o controle do mercado por poucas na hora de puxar pela memória. Só as- empresas. Na comunicação, isso não existe. sim será possível cobrar promessas e um “Artigo 221 – A produção e a programação das emiscompromisso com o aprofundamento da democracia. soras de rádio e de televisão atenderão aos seguintes No caso das comunicações, a dívida do Congresso com princípios: I – preferência a finalidades educativas, ara sociedade é enorme. Alguns dispositivos da Consti- tísticas, culturais e informativas.” Onde está a educação, tuição de 1988 ainda não foram regulamentados, ou- a arte, a cultura ou a informação em programas como tros sofreram tantas modificações que se descarac- o do Ratinho, no qual mulheres brigam esperando reterizaram e há ainda aquelas “leis que não pegaram”. sultados de testes de DNA, ou o da Xuxa, com desfiVejamos alguns: les de crianças, em poses sensuais, que sonham vir a “Artigo 220, parágrafo 3º – Compete à lei federal: ser modelos? I – regular as diversões e espetáculos públicos, caben“II – promoção da cultura nacional e regional e estído ao Poder Público informar sobre a natureza deles, mulo à produção independente que objetive a sua dias faixas etárias a que não se recomendam, vulgação.” Não há regras para nenhuma locais e horários em que sua apresentação Um projeto dessas determinações. Um projeto de lei se mostre inadequada.” O poder público de lei que que estipula cotas para a veiculação de levou 19 anos para estabelecer uma clas- estipula produções nacionais, válido apenas para sificação indicativa para programas de TV. cotas para a as televisões por assinatura, tramita desde As entidades dos radiodifusores a chamasob forte bombardeio. veiculação de 2007 vam de censura. Ainda assim, foi aprova“Artigo 224 – ... o Congresso Nacional da com a condição de ser feita pelas emis- produções instituirá, como órgão auxiliar, o Consesoras, restando ao Ministério da Justiça a nacionais, lho de Comunicação Social, na forma da válido apenas Lei.” Nesse caso, a lei até existe, mas não possibilidade de contestá-las. “II – estabelecer os meios legais que ga- para as pegou. Graças a uma barganha com os rantam à pessoa e à família a possibilidade televisões por representantes parlamentares das emisde se defenderem de programas ou prosoras, interessadas naquele momento na assinatura, gramações de rádio e televisão que conabertura de 30% de suas ações para o catrariem o disposto no Artigo 221 (respeito tramita pital estrangeiro, o Conselho foi emposaos valores éticos, entre outros), bem como desde 2007 sado em 2002 e funcionou bem em sua da propaganda de produtos, práticas e ser- sob forte primeira gestão, mas foi sendo asfixiado. viços que possam ser nocivos à saúde e ao bombardeio Em 2007 se reuniu uma vez e desde 2008 meio ambiente.” Até agora nada foi feito. a mesa do Senado não indica novos inE quando se aponta a necessidade da criação de um tegrantes. A situação faz lembrar o sociólogo Sérgio órgão regulador, capaz de operacionalizar a defesa da Buarque de Holanda. Quase ao final do clássico Raí “pessoa e da família”, empresários de rádio e TV repe- zes do Brasil, escrito em 1936, ele diz: “As constituitem o mantra da censura. ções feitas para não serem cumpridas, as leis existentes “Parágrafo 4º – a propaganda comercial de tabaco, para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e tera- e oligarquias, são fenômeno corrente em toda a hispias estará sujeita a restrições legais e conterá, sempre tória da América do Sul”. que necessário, advertência sobre os malefícios decorSó em anos recentes essa situação melhorou um pourentes de seu uso.” Perto de escolas, bares anunciam a co em alguns países do continente. Mas no Brasil não. venda de cigarros; crianças e adolescentes são bombar- Os “indivíduos e oligarquias” seguem firmes impondo deados por mensagens que associam sucesso pessoal à as leis que lhes interessam. Parlamentares precisam ser ingestão de cerveja e remédios. lembrados da dívida do Congresso com a sociedade “Parágrafo 5º – os meios de comunicação não podem, brasileira. A eles cabe tirar o Brasil do atraso institudireta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou cional em que se encontra na área da comunicação.
Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da ECA/USP; diretor e apresentador do programa VerTV, da TV Brasil e da TV Câmara; autor dos livros A Melhor TV do Mundo e A TV sob Controle, da Summus Editorial; e ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação
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TRABALHO
Além do consenso
Movimento sindical discute com empresários e governos o trabalho decente nas Américas e exige justiça social nas políticas de combate à crise Por Tadeu Breda, de Santiago
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Organização Internacional do Trabalho (OIT) escolheu Santiago, no Chile, para realizar, em dezembro, sua 17ª Reunião Regional Americana. O encontro ocorre a cada quatro anos e reúne representantes de governos, trabalhadores e empresários para, conjuntamente, discutirem os mais variados temas relacionados ao mundo do trabalho e emprego no continente. A maioria dos debates se pautou pelos efeitos da crise internacional na América Latina. “A crise chegou quando a região concluía um ciclo econômico positivo, o que a ajudou a suportar melhor os altos e baixos do mercado”, analisa o diretor-geral da OIT, Juan Somavia. “Mas também foram cruciais as medidas baseadas no investimento público, na manutenção dos postos de trabalho e dos salários e nas iniciativas de proteção social destinadas a diminuir o impacto da crise sobre as famílias.” A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) estima para a região uma média de crescimento em torno de 5% em 2010 – e isso apenas dois anos depois de a crise alastrar-se pelo mundo. Para o diretor-geral da OIT, porém, só o crescimento não basta para trazer desenvolvimento. “As economias podem estar indo melhor, mas, enquanto as pessoas não tiverem emprego e salário suficiente, a recuperação não será real nem sustentável.” Entre 2002 e 2008, o número de pessoas em condições extremas de pobreza na região baixou de 97 milhões para 71 milhões 14
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e os pobres passaram a somar 180 milhões, em vez dos 221 milhões no início da década. Contudo, os dados se referem ao período imediatamente anterior à recessão. “Os avanços são limitados, e é provável que tenham ocorrido retrocessos por causa da crise”, avalia Somavia. Para o movimento sindical, o caminho para seguir reduzindo as desigualdades é a implementação dos direitos já reconhecidos e consagrados, no papel, pelo consenso entre trabalhadores, empresários e governos no âmbito da OIT. Entre os principais problemas apontados durante a reunião, figurava justamente o descompasso entre a realidade do trabalho no continente e o conteúdo das convenções internacionais, sobretudo nos temas liberdade de associação sindical, negociação coletiva de contratos de trabalho e seguridade social. De acordo com a Confederação Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras das Américas (CSA), a América Latina é a região mais perigosa do mundo para o exercício do sindicalismo. Colômbia, Honduras e Guatemala, onde nos primeiros dez dias de 2011 já se registrou o assassinato de um sindicalista, são os países mais mortíferos para a luta dos trabalhadores. No ano passado, o Panamá assistiu à morte de dez manifestantes que protestavam contra um projeto de lei que restringia a atuação dos sindicatos. O massacre de Bocas de Toro foi chancelado pelo governo do presidente Ricardo Martinelli e deixou ainda um saldo de 700 feridos e centenas de prisões. Assassinatos, ameaças, torturas, agressões
EXAUSTÃO Na Costa Rica, trabalhadores costuram durante horas cada uma das bolas usadas na bilionária liga de beisebol americana
e demissões abusivas são riscos inerentes ao exercício de alguma atividade sindical. A OIT reconhece que a sindicalização e a negociação coletiva são instrumentos essenciais para avançar por uma via de desenvolvimento com equidade, mas não parece haver consenso sobre a questão na América Latina. Com poucas exceções, como Brasil, Argentina e Uruguai, os sindicatos de base nos demais países apenas podem ser organizados no âmbito das empresas, o que limita a capacidade de diálogo entre trabalhadores e patrões. “O modelo de organização sindical por empresa é débil, e queremos superá-lo”, diz Victor Báez Mosqueira, secretário-geral da CSA. “Muitas legislações nacionais, porém, não respeitam integralmente a Convenção 98 da OIT, que estabelece os direitos de sindicalização e negociação coletiva.”
JUAN CARLOS ULATE/REUTERS
Sustentável e decente
Os dados latino-americanos sobre saúde e segurança no trabalho também assumiram papel central, ainda mais porque a reunião foi realizada no Chile, onde recentemente 33 mineiros passaram mais de dois meses presos a 700 metros de profundidade. “Neste continente existem 30 milhões de acidentes de trabalho ao ano, que resultam em 240 mil mortes”, pontuou o secretário-geral da CSA, lembrando que na localidade mexicana de Pasta de Conchos, em 2006, um acidente semelhante sepultou 65 mineiros sem que os poderes público ou privado se mobilizassem para o resgate. De discussão em discussão, a 17ª Reunião Regional Americana deixou transparecer uma diferença crucial no pensamento de trabalhadores e empresários no que se refere ao reconhecimento – e cumprimento – dos direitos trabalhistas. E essa diferença se revela com mais clareza nos conceitos de “empresa sustentável” e “trabalho decente”.
Empresa sustentável nada mais é do que um negócio que dá lucro e, assim, se sustenta financeiramente dentro do sistema econômico. Já a noção de trabalho decente se pauta pela existência de empregos de qualidade, protegidos pela legislação e pelo sistema de seguridade social, em condições adequadas e ambientes saudáveis. A OIT acredita que as ideias de empresa sustentável e trabalho decente são complementares, e portanto a melhor maneira de um empresário prosperar é respeitando os direitos de seus empregados. Os representantes dos trabalhadores afirmam ser impossível haver empresa sustentável sem trabalho decente. Os empresários fazem raciocínio inverso e argumentam que não pode haver trabalho decente sem empresa sustentável: primeiro o lucro, depois os direitos. “A globalização econômica estabeleceu uma regra fundamental: a competitividade, que é a oportunidade de cada pessoa buscar no mercado internacional os produtos e serviços mais adequados a seus inte-
resses”, argumenta Dagoberto Lima Godoy, representante dos empresários. “Daí surge a necessidade de criar entorno institucional e infraestrutura para que nossas empresas sejam competitivas e possam agregar valor. Só então terão condições de oferecer melhores salários aos trabalhadores.” Numa época em que países desenvolvidos (Espanha e França, por exemplo) estão cortando direitos trabalhistas como forma de reagir à crise, o movimento sindical reunido em Santiago manifestou contrariedade à ideia de repetir nas Américas as medidas adotadas na Europa. Para os sindicalistas, os trabalhadores não são responsáveis pela recessão, originada no mercado financeiro. Ao falar sobre a recuperação econômica na América Latina, o diretor-geral da OIT segue o mesmo raciocínio. “É um requisito indispensável que os empregos gerados sejam produtivos e de qualidade e as trabalhadoras e os trabalhadores possam ocupá-los em condições de liberdade, igualdade, segurança e dignidade humana”, defende Juan Somavia. “A promoção do trabalho decente é uma ferramenta insubstituível para o combate à pobreza.” O resultado da reunião regional da OIT foi avaliado como positivo pelo sindicalismo das Américas. O documento final reafirmou a importância dos direitos à livre associação sindical e à negociação coletiva e reconheceu que as políticas de proteção social foram fundamentais para enfrentar os efeitos da crise. Os empresários, por sua vez, fizeram constar entre as conclusões o compromisso conjunto pelo fomento à competitividade na economia e às empresas sustentáveis e o respeito à propriedade privada – a qual, segundo Dagoberto Lima Godoy, “está consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas muitas vezes sofre contestações e agressões na América Latina”. “Depois de muitos conflitos, contradições e disputa com os empresários, conseguimos elaborar um documento que espelha nossas vontades”, avalia João Felício, secretário de Relações Internacionais da CUT. “Nas Américas há uma enorme exclusão do movimento sindical nos processos de negociação, e o documento expressa a necessidade de respeitar as convenções da OIT e estabelecer o diálogo social para fortalecer cada vez mais os sindicatos na região.” FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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CIDADANIA
PANELA DE
Muito tempo, poucos quilômetros Linhas 1. Azul 3. Vermelha 2. Verde 5. Lilás 4. Amarela
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Início das obras 1968 1976 1987 1998 2004
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Término das obras 1974 1988 2010 incompleta incompleta
Extensão 20,2 km 22 km 14,7 km 8,4 km (em 2002) 3,7 km (em 2010)
PRESSÃO Picos de 10 passageiros por metro quadrado, lentidão, falhas técnicas e opções arriscadas são o retrato do metrô paulista Por Marina Amaral
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FOTOS MAURICIO MORAIS
astam-se em média três horas para ir ao trabalho ou à escola e voltar para casa na Grande São Paulo, onde vivem 19 milhões de habitantes. Há décadas, a região convive com o deslocamento da expansão demográfica para as periferias e momentos de crescimento econômico – como o dos últimos anos –, desacompanhados de planejamento urbano e de investimentos em infraestrutura de transporte coletivo. As pessoas moram cada vez mais longe do emprego. Na cidade mais rica do país, as cenas de plataformas repletas e passageiros revoltados com as condições degradantes dos trens tornaram-se rotina – quase todas as sete linhas da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) apresentam média de usuários superior a seis por metro quadrado, o máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde. A novidade é que o metrô, que já teve fama de eficiente, confortável e rápido, cada vez mais se assemelha ao “primo pobre”. O número de passageiros por metro quadrado nas Linhas 1 (Azul) e 3 (Vermelha), responsáveis por 80% das viagens, já supera o das linhas mais lotadas da CPTM (com até 8,4 por metro quadrado) nos horários de pico: na Linha Vermelha a lotação chega a 9,8. Na hora do rush, o tempo das viagens é triplicado por paradas e velocidade reduzida. “A demanda pelo metrô cresceu com o aquecimento da economia e por sua capacidade de integração com os outros meios de transporte, impulsionada pelo bilhete único”, diz
CARO E INSEGURO Metrô de SP é um dos mais caros e lotados do mundo. Desconforto e riscos são rotina nas plataformas e vagões FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp, com tese sobre transporte público de São Paulo. “Mas era um aumento previsto: há 20 anos a demanda já atingia picos acima de 2 milhões de passageiros por dia (hoje são mais de 3,7 milhões).” A superlotação traz mais do que desconforto no “metrô mais caro e mais lotado do mundo”, segundo Fagnani. Cerca de 40 falhas são percebidas por dia pelos funcionários do Centro de Controle Operacional do Metrô, principalmente na Linha Vermelha, devido sobretudo, de acordo com os próprios metroviários, à superlotação dos trens, que interfere no fechamento das portas nas estações e dificulta a manutenção. No ano passado, pelo menos dez dessas falhas ganharam destaque no noticiário, envolvendo problemas em portas, freios, fornecimento de energia e ventilação. Seis delas tiveram duração de mais de 30 minutos e em alguns casos o trem teve de ser esvaziado. No episódio mais grave, em 21 de setembro, três horas de paralisação na Linha Vermelha prejudicaram 150 mil pessoas e provocaram a depredação de 17 trens. Tudo começou com a parada de um trem fora da plataforma no horário de pico da manhã. Presos por até 50 minutos nos vagões sem ventilação – nos trens mais novos as janelas não abrem –, passageiros acionaram a abertura de emergência das portas e saíram caminhando pelos trilhos, forçando o desligamento do sistema elétrico. Segundo o metrô, a paralisação do primeiro trem deu-se porque o sistema de sinalização indicava portas abertas em um dos vagões, o que teria sido provocado por uma blusa. Mas o laudo do Instituto de Criminalística, divulgado semanas depois, não ratificou esse argumento. Metroviários e especialistas explicaram: houve uma pressão sobre as portas por excesso de passageiros. “O mecanismo é sensível justamente para dar segurança ao sistema e, naquele ponto, o trem faz uma curva para a direita em um trecho inclinado, o que empurrou os passageiros contra as portas”, diz o engenheiro Jaime Waisman, professor de transportes públicos da USP que atuou como projetista do metrô nos anos 1980. “Qualquer sistema que opera no limite está sujeito a falhas, e isso, com certeza, vai 18
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se repetir”, frisa o engenheiro Sérgio Ejzenberg, também da USP. “Somos a metrópole com o metrô mais acanhado do mundo, com o menor número de linhas e o mais lotado. No mundo inteiro, o metrô é a solução para as metrópoles por ser o único sistema com capacidade de transportar 100 mil passageiros hora/sentido e permitir várias linhas em paralelo. As linhas se interligam e o embarque é pulverizado, sem necessidade de grandes estações. Aqui, em vez de uma rede de metrô, temos apenas três linhas superlotadas”, avalia. Como comparação, Ejzenberg observa que entre 1967 e 2000 a Cidade do México criou uma rede de 200 quilômetros de metrô, enquanto o de São Paulo, que começou a ser construído em 1968, tem 69 quilômetros. “O nosso cresce em um ritmo de dois quilômetros por ano. Barcelona construiu 80 em cinco anos para sediar os Jogos Olímpicos de 1992”, diz.
RAFAEL FIRMINO/AE
Segundo o americano Wall Street Journal, documentos da Justiça suíça comprovavam o
REAÇÃO EM CADEIA Em setembro do ano passado a superlotação fez uma composição parar fora da estação. A falha paralisou o sistema e gerou tumulto
o pagamento de propina da Alstom para fornecer equipamentos ao Metrô e à Eletropaulo
MOACYR LOPES JÚNIOR/FOLHAPRESS
Lentidão e suspeita
MAURICIO MORAIS
MAIS DINHEIRO PÚBLICO... A fabricante francesa de trens Alstom, investigada na Europa, firmou contratos milionários durante o mandato Serra
...PARA NEGÓCIOS ESTRANHOS O Metrô quer colocar mais trens no mesmo espaço, aumentando as riscos de falha e acidentes. O ex-presidente José Jorge Fagali fala em “panela de pressão”
Inaugurado em 1974, o metrô de São Paulo entrou no Guiness, em 1994, por ter a maior demanda por quilômetro quadrado. Mario Covas assumiu o governo do estado, em 1995, prometendo acelerar as obras e criar a Linha 4 (Amarela), àquela altura já tida como imprescindível. A linha vai do sudoeste ao centro da cidade, conecta-se à Vermelha (leste-oeste), na estação República – até hoje gigantesca e ociosa –, à Azul (norte-sul), na Luz, e ainda à Verde (região da Avenida Paulista), dividindo o movimento em direção ao centro. Covas morreu em março de 2001. Quando foi substituído pelo vice, Geraldo Alckmin, dois meses antes, o metrô tinha crescido apenas 3,5 quilômetros na Linha Azul e 4,1 na Verde. Nada na Amarela, cuja licitação foi aberta no final daquele ano, com previsão de conclusão em 2004, o que não ocorreu até hoje. Em outubro de 2003 o governo assinou contratos de R$ 1,8 bilhão com empreiteiras para começar a obra. Os recursos viriam de empréstimos do Banco Mundial, Bank of Japan e BNDES. A parceria público privada (PPP), que deveria financiar metade da obra, só foi assinada no final de 2006 com o consórcio Via Quatro, encabeçado pela CCR, concessionária que já explorava comercialmente as principais rodovias estaduais. O contrato dá à empresa privada a concessão da linha por 30 anos – empreendimento seguro, uma vez que o metrô de São Paulo é o único do mundo a dar lucro operacional, de acordo com José Jorge Fagali, presidente da companhia até o final de 2010. Quem mais coloca dinheiro no negócio, porém, é o contribuinte paulista. Até o momento, a Companhia do Metrô investiu R$ 2,4 bilhões dos R$ 3,8 bilhões previstos para por a primeira fase em operação até o final deste ano, com seis estações entre Butantã e Luz – a obra completa prevê 11 estações até 2014. Mas o único trecho efetivamente entregue por Alckmin, depois de seis anos de gestão, foi o da Linha Lilás, que liga o Capão Redondo, na periferia da zona sul, ao largo Treze de Maio, em Santo Amaro, a 18 quilômetros do centro. Inaugurada em outubro de 2002, essa é a única linha razoavelmente vazia, já que está fora da rede, integrando-se apenas com linhas de ônibus e uma linha de trem da CPTM.
Outra construção, um trecho de 11,5 quilômetros entre Santo Amaro e a Estação Klabin – quando a Linha Lilás se ligaria à rede do metrô pela Linha Verde –, teve a licitação, iniciada no governo Serra em 2008, suspensa por fraudes. O orçamento de R$ 6 bilhões indica um custo por quilômetro (R$ 500 milhões) bem maior que o estimado por especialistas como Ejzenberg e Fagnanin, com base em preços internacionais (R$ 290 milhões).
Gestão duvidosa
Os atrasos sucessivos para entregar as linhas do Metrô trazem prejuízos à imagem do governo, mas favorecem a farra dos “aditivos”, que inflam o valor e os prazos previstos nos contratos iniciais. Foi o que aconteceu no primeiro trecho da Linha Lilás: o contrato firmado em 2000 pela CPTM – então responsável pela obra, depois transferida ao Metrô – com a francesa Alstom, a alemã Siemens e a espanhola CAF, no valor de R$ 527 milhões, foi alterado diversas vezes, resultando em um preço final de R$ 951 milhões e um prazo de entrega ampliado de 30 para 56 meses. Esse é o maior dos mais de 20 contratos da Alstom com o governo paulista investigados pelo Ministério Público. Contratos suspeitos celebrados com o Metrô somam R$ 1,37 bilhão. O primeiro inquérito do Ministério Público sobre a Alstom foi aberto em maio de 2008, depois de o Wall Street Journal revelar que a multinacional francesa era investigada na Suíça e na França por suposto pagamento de propinas a agentes públicos do Brasil, da Venezuela e de Cingapura. A Justiça suíça tinha documentos que comprovavam pagamento de US$ 6,8 milhões de propina em um dos contratos suspeitos, justamente o da Alstom para fornecer equipamentos ao Metrô e à Eletropaulo. As investigações levaram a prisões de intermediários estrangeiros e ao bloqueio de contas de dois brasileiros no banco Safdié, de Genebra: Robson Marinho, conselheiro do TCE desde 1997, ex-tesoureiro da campanha do PSDB e chefe da Casa Civil de Covas; e Jorge Fagali Neto, irmão de José Jorge Fagali (presidente do Metrô entre 2007 e 2010) e sucessor do hoje senador tucano Aloysio Nunes Ferreira na Secretaria Estadual de Transportes Metropolitanos em 1994. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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O promotor acusa as empreiteiras de ignorar sinais de instabilidade do solo constatados A conta atribuída a Fagali Neto em Genebra recebeu US$ 10,5 milhões; a que seria de Marinho, R$ 2 milhões. O Tribunal de Contas do Estado também considerou irregulares contratos de R$ 556 milhões entre o Metrô e a Alstom. Em um dos negócios, de 2007, o então governador José Serra ressuscitou uma licitação de 1992, que pela lei das licitações teria caducado em 1997, para comprar 16 novos trens da multinacional francesa. Como os preços estavam defasados depois de 15 anos da celebração do acordo, o governo realizou uma pesquisa na internet para atualizar o valor de uma compra de meio bilhão de reais. Pagou mais de R$ 31 milhões para cada um dos trens, quantia considerada abusiva pelo TCE. Outro contrato para modernizar o Centro de Controle Operacional (CCO), assinado em 1994 – ano em que Covas concorria ao governo do estado e Fagali Neto, suspeito do caso Alstom, era presidente do Metrô –, recebeu 12 aditivos ao longo do tempo, o que fez o valor inicial saltar de R$ 17 milhões para R$ 56 milhões. Um parecer de 14 de setembro de 2004 do conselheiro Edgard Rodrigues anota: “Ora, não é de se supor que o Metrô esteja funcionando a todo esse tempo sem o CCO. Ele está lá. É de se estranhar que para implantar um CCO se levem dez anos”. De acordo com operadores do CCO, a reestruturação ocorreu em 1999 e até hoje os equipamentos fornecidos pela Alstom para o “cérebro tecnológico” do superlotado metrô não têm a qualidade esperada. Citam um exemplo singelo: o software instalado nos computadores provoca quedas constantes do sistema, que deveria estar permanentemente em funcionamento.
Ganância x segurança
Em 12 de janeiro de 2007, pouco depois de Serra assumir o governo do estado, a escavação de um túnel na estação Pinheiros, da Linha Amarela, provocou um desabamento. A cratera aberta sugou uma van – com motorista e passageiros. Sete pessoas morreram e mais de 200 foram desalojadas.
Tocada pelo consórcio Via Amarela – Camargo Corrêa, Odebrecht, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez e Alstom –, a obra deveria ter sido fiscalizada pelo Metrô. Mas isso não ocorreu, segundo os promotores que moveram na Justiça uma ação criminal e outra civil. Se condenados, os 14 réus da ação civil – que inclui as construtoras e o
A lenta construção a cada governo (em km) A construção do metrô começou em 1968, durante a gestão do governador Abreu Sodré (1967 a 1971), nomeado pela ditadura militar Governos da ditadura (12 anos) 10,4 Laudo Natel (1971 a 1975)
20
6,3
PMDB (12 anos) 7,2
0,8 3,6
Paulo Egydio Paulo Maluf Martins (1979 a 1982) (1975 a 1979) José Maria Marin (1982 a 1983)
REVISTA DO BRASIL FEVEREIRO 2011
13,3
PSDB (16 anos) 1,8
5,8
8,4
Orestes Quércia Mario Covas Geraldo Alckmin (1987 a 1991) (1995 a 2001) (2001 a 2006) Franco Montoro Luiz A. Fleury (1983 a 1987) (1991 a 1995)
11,4 José Serra e Alberto Goldman (2007 a 2010)
total de 69km
TUCA VIEIRA/FOLHAPRESS
em medições, prosseguindo as obras em ritmo acelerado com a cumplicidade do Metrô
COBIÇA E OMISSÃO Promotores do caso do acidente nas obras da Linha 4 (janeiro de 2007) acusam as empreiteiras de economizar onde não deviam e o Metrô de não exercer seu papel fiscalizador
presidente do Metrô na época, o engenheiro Luiz Frayse David – terão de indenizar em R$ 240 milhões as famílias das vítimas e o estado. E serão proibidos de assinar contratos com o poder público por cinco anos. A argumentação feita pelo promotor Saad Mazloum – que está no blog da promotoria – fundamenta-se nos documentos da ação criminal, que pede a condenação dos réus por imprudência e negligência. Mazloum aponta como responsáveis pelo acidente a “desenfreada caça ao lucro, a ganância e a cupidez” das empreiteiras e o “total e deliberado desrespeito à lei e aos mais elementares princípios administrativos” por parte do Metrô. Apoiado em laudos do Instituto de Criminalística e do Instituto de Pesquisas Tec-
nológicas, o promotor acusa as empreiteiras de não fazer estudos e sondagens geotécnicos complementares e de ignorar sinais de instabilidade no túnel e de rebaixamento do solo constatados em medições e relatos técnicos, prosseguindo com as obras em ritmo acelerado. Tudo com a cumplicidade do Metrô. O objetivo, na opinião do promotor, era economizar custos, uma vez que, por exigência dos financiadores da obra, o contrato foi assinado em modelo turnkey – preço fechado – para impedir os malfadados aditivos. Em meio ao escândalo provocado pelo acidente, a Secretaria de Transportes Metropolitanos demitiu o então presidente do Metrô e o substituiu por um engenheiro com muitos anos de casa. José Jorge Fagali ostentava o crachá funcional número 2 e era gerente de custos, em 1994, quando seu irmão, Fagali Neto, assumiu a secretaria. José Jorge concedeu entrevista à Revista do Brasil agora em dezembro, dias antes de deixar a presidência, sem comentar o bloqueio da conta atribuída ao irmão na Suíça – sobre isso preferiu divulgar nota negando envolvimento no caso. A reportagem questionou os problemas que afetam diretamente os usuários: a superlotação e as falhas técnicas, fatores que, segundo ele, não estão relacionados. O executivo reconheceu a demora na entrega da Linha 4 (Amarela), que teve apenas duas estações postas para funcionar parcialmente no ano passado, a poucos meses da eleição. E garantiu que as seis estações da primeira fase da linha estão prontas, atribuindo o atraso da entrada em operação aos testes do novo sistema de sinalização – CBTC –, implantado pela Siemens, que dispensa a presença de condutor no trem. Depois do escândalo provocado pela investigação suíça, o Metrô assinou pelo menos mais um contrato com a Alstom, de R$ 706 milhões, justamente para fornecer o mesmo sistema de sinalização de trens para as linhas já existentes. “Os testes demoram porque antigamente havia um sistema de sinalização que era mais simples, mas o trem parava a 150 metros um do outro; nesse sistema o trem pode parar a 15 metros do outro. Com isso, o intervalo entre eles diminui e é possível colocar mais composições na linha, carregando mais
passageiros”, afirmou, citando dois exemplos de implantação do sistema, uma linha em Barcelona e duas em Paris (com rede de 212 quilômetros de metrô). “Quem não precisa não troca de sistema. Por que estou substituindo? Para aumentar a oferta de trem. Sem aumentar a oferta nas linhas que estou operando não há como enfrentar a demanda”, disse José Jorge. Atualmente, o metrô de São Paulo tem o terceiro menor intervalo do mundo entre trens: 115 segundos (Moscou tem 90 segundos; Paris, 95 segundos). Com a mudança, o Metrô espera reduzir o intervalo para 75 segundos. A ideia de resolver a superlotação colocando mais trens preocupa os funcionários da companhia, acostumados às falhas técnicas das linhas, quase sempre resolvidas pela operação manual dos condutores. Qualquer usuário do horário de pico está acostumado a ter a viagem prolongada por redução de velocidade e sucessivas paradas anunciadas pelos alto-falantes “para aguardar a movimentação do trem à frente”. Como seria se as linhas tivessem mais trens? José Jorge admitiu que a redução do intervalo é uma solução arriscada para o pequeno e lotado metrô: “Você tem razão, mas é preciso entender o plano como um todo, que tem a parte de expansão também. Se não fechar a rede, não botar mais linhas, chegaremos num ponto em que não tem mais o que fazer”. “Vira uma panela de pressão?”, questionou a reportagem. “Isso, com certeza”, confirmou. Naquele momento, 22 de dezembro de 2010, o Metrô previa uma expansão de 66,7 quilômetros de linha até 2014. Duas semanas depois, Jurandir Fernandes assumiu a pasta dos Transportes Metropolitanos, a qual já havia ocupado na gestão anterior de Alckmin, período em que se concentra o maior número de contratos investigados no caso Alstom. No dia 10 de janeiro, o secretário anunciou o cancelamento dos planos de expansão, exceto da Linha Amarela – ainda ela –, que seria entregue até a Copa de 2014. O investimento previsto para o metrô será direcionado para a instalação de trens-bala, tecnologia em que a Alstom é uma das maiores fornecedoras mundiais, ligando a capital paulista aos municípios de São José dos Campos, Campinas, Sorocaba e Santos. É melhor que os visitantes fiquem longe da “panela de pressão”. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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CAPA
ERGUIDOS DA L E
nquanto continuam as buscas por vítimas e por lugares onde alojar quem perdeu a casa, empresários e agricultores voltam à atividade na região serrana do Rio de Janeiro. Com a construção de pontes provisórias pelo Exército e a desobstrução de estradas, o caminho está livre e os empreendedores precisam fazer dinheiro para recuperar os prejuízos. As três principais cidades apostam em seu potencial turístico. Em Petrópolis e Teresópolis, atrações como o Centro Histórico e o Parque Nacional da Serra dos Órgãos não foram afetadas. Em Nova Friburgo, a situação é mais grave. Pontos importantes foram destruídos e o turismo de compras precisa superar o medo dos consumidores de subir a serra. Jéssica Amaral é gerente de uma loja de moda íntima no bairro da Ponte da Saudade, em Nova Friburgo. Sua loja, como quase todo o comércio da cidade, ficou fechada por dez dias. “Ficamos sem luz, telefone e água e quase faltaram comida e gás de cozinha. Na primeira semana ninguém trabalhou, não tinha acesso nem transporte. E muita gente estava desalojada ou procurando parentes desaparecidos”, relata. Nova Friburgo é um polo industrial com empresas de vários segmentos, com destaque para confecções – a cidade é conhecida como capital da moda íntima. Estima-se que 70% das empresas do ramo sofreram prejuízos. Em algumas, o estoque foi arruinado; outras perderam matéria-prima, máquinas foram danificadas. Embora as confecções maiores tenham esquemas de distribuição eficientes e algumas até exportem, o comércio de lingerie depende do turismo. A cidade recebe sacoleiras e lojistas, que compram por atacado, e também pessoas que vão a passeio. O fluxo de turistas foi interrompido pela tragédia e as empresas lutam para atrair novamente os consumidores. “Estamos ligando para nossos clientes para avisar que estamos funcionando e não há mais perigo. Acho que as pessoas vão esperar até fevereiro para começar a vir novamente”, acredita a gerente.
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Salada comprometida
Em Teresópolis, que abastece de hortaliças a região metropolitana do Rio, é difícil calcular as perdas. A região rural sofreu com a enxurrada, a falta de energia, a obstrução de estradas e a queda de pontes. Parte das plantações foi levada pela água e também houve destruição de estufas de produção hidropônica e de mudas. “O que ficou não foi colhido e estragou, porque as pessoas estavam preocupadas em se salvar e procurar seus familiares. Também houve prejuízos por falta de energia elétrica para acionar as bombas de irrigação. Até o que foi colhido se perdeu, pois não foi possível escoar a produção”, conta Fernando Mendes, secretário de Agricultura do município. A secretaria não tem números exatos, mas faz estimativas. “Um hectare produz cerca de 5.000 caixas de alface, cada uma com 18 pés. Teve comunidade que perdeu 30 hectares, outra perdeu 20”, informa a agrônoma Ana Paula Pegorer, da Secretaria de Agricultura. Além das perdas dos agricultores, há prejuízos em cascata. “Os lojistas estão com pilhas de cheques que não serão pagos. Os produtores levam equipamentos e insumos e só pagam depois de vender a produção. Logo, não têm como pagar.” O recomeço é difícil por vários motivos. Existem áreas totalmente cobertas de areia, do tipo que se usa para construção. Em outras, todo o solo foi levado, ficou só pedra. “Nesses lugares, não tem como plantar”, diz Ana Paula. Mesmo onde o estrago foi menor, há dificuldades. Houve mudança na composição do solo e é preciso corrigi-lo para replantar. “A secretaria já está analisando amostras da terra, mas a correção leva tempo”, informa o secretário Fernando Mendes. O replantio exige recursos, o que impõe mais uma dificuldade, já que muitos agricultores perderam tudo. Para a maioria, nem o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) pode ajudar. Muitos não são donos da terra, e assim não têm acesso às linhas de financiamento.
TRABALHO ÁRDUO Em Petrópolis, a fábrica de móveis de Nádia ficou dois metros debaixo d’água. Em duas semanas foram tirados 60 caminhões de lama
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GIANNE CARVALHO
LAMA
Os habitantes da região serrana do Rio tentam retomar a vida depois da tragédia de janeiro Por Renata Silver
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Na localidade de Benfica, em Petrópolis, há perdas em outra atividade forte na região: a movelaria. A Itacenter Móveis, que produz peças com madeira de demolição e restaura móveis antigos, foi atingida pela cheia do Rio Santo Antônio. A água chegou a 2 metros de altura, revirou móveis, quebrou objetos de porcelana e cristal, danificou máquinas. Muita mercadoria pode ser recuperada, já que a água baixou rápido e a madeira de lei resiste, e boa parte do maquinário também será consertada. “Em duas semanas, tiramos 60 caminhões de lama daqui. Vamos fazer a limpeza, consertar máquinas, deixar a loja bonita novamente”, diz Omar Laskoski, gerente. “Vou ter de ser uma fênix, vou renascer”, declara com os olhos marejados Nádia Isabela Rosa, a proprietária, enquanto revira cadernos tentando recuperar as informações. Destruição maior ocorreu no Vale do Cuiabá, em Itaipava, mas outros bairros também foram atingidos. Uma cervejaria e uma fábrica de sementes tiveram perdas – a última, que já havia enfrentado problemas em outra ocasião, ameaça deixar a cidade. Os petropolitanos estão aliviados porque a enxurrada poupou a região central, mais populosa. Famosa pelas pousadas luxuosas e pela gastronomia, Itaipava atrai turistas o ano todo, mas, mesmo na alta temporada, o movimento é maior nos fins de semana. “Tudo aconteceu numa quarta-feira, ou a tragédia teria sido maior, com muito mais vítimas”, avalia o prefeito Paulo Mustrangi. O centro de Petrópolis, onde estão o Museu Imperial, o Palácio de Cristal, a casa de Santos Dumont e as demais construções históricas e atrações turísticas, não foi atingido. Mesmo em Itaipava a maior parte dos hotéis, pousadas e restaurantes está em pleno funcionamento. “Apenas 5% da estrutura hoteleira do município foi afetada. Quem quiser demonstrar solidariedade ao povo petropolitano, venha visitar Petrópolis. Isso garante o emprego das pessoas”, pede o prefeito.
ESPERANÇA José Lino volta às ruínas do que foi sua casa em busca de seus pertences
O governo federal anunciou a liberação do Fundo de Garantia para habitantes da região – o limite individual é de R$ 4.500. Em seguida, liberou recursos para duas parcelas extras do seguro-desemprego para as vítimas. Dias depois, o governo do estado e as prefeituras dos municípios atingidos firmaram convênio para pagar aluguel social aos desabrigados.
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RODRIGO QUEIROZ
Crédito e solidariedade
DE VOLTA AOS SEUS LUGARES Máquinas retiram o barro e redefinem ruas e córregos
GIANNE CARVALHO GIANNE CARVALHO
RODRIGO QUEIROZ
IR E VIR Ponte em construção pelo Exército vai ajudar na locomoção em Teresópolis
A VIDA CONTINUA Parte do comércio de Nova Friburgo, conhecida como capital da moda íntima, não foi atingida
A situação emergencial levou a Caixa Federal, que gere o FGTS e o seguro-desemprego, a organizar um esquema especial. Funcionários de todo o país que se ofereceram como voluntários foram deslocados para as cidades atingidas e a estrutura foi montada. Também foram abertas contas para o depósito do aluguel social. O Banco do Brasil vai intermediar um volume de R$ 400 milhões liberados pelo BNDES, seguindo modelo usado em 2010 para socorrer Alagoas e Pernambuco: juros de 5,5% ao ano, 24 meses de carência e 10 anos para pagar. Para o pequeno produtor rural, o banco anunciou linha de R$ 60 milhões, via Pronaf. Petrópolis preocupa-se ainda com os microempresários informais, sem acesso a recursos do BNDES. A prefeitura criou uma linha de microcrédito, por meio do Banco do Povo. “Isso ajuda a cabeleireira que teve cadeiras e secadores estragados, a costureira que perdeu as máquinas, o mecânico que ficou sem ferramentas”, observa Mustrangi. Após estudos de risco, com verba do Ministério das Cidades, houve demolição de 168 residências construídas em áreas perigosas e desapropriação de terrenos para a construção de casas populares. Já há 57 prontas e 72 apartamentos serão construídos em uma área desapropriada pela prefeitura. Até a verba destinada às escolas de samba será usada para desapropriações. Comida, água, roupas, colchões e outros itens que chegam de todo o país se acumulam em centros de doações. Há também
contribuições em dinheiro, e a preocupação com sua destinação levou a prefeitura de Teresópolis a criar o Fundo Especial de Combate à Calamidade Pública. Lançado no final de janeiro e mais conhecido como Fundo de Combate às Enchentes, seu saldo já superou R$ 19 milhões, distribuídos em duas contas. A verba será gerida pela administração municipal e um comitê fiscalizador vai acompanhar sua aplicação. Sindicatos dos bancários, do pessoal do comércio, OAB e Movimento Nossa Teresópolis integram o comitê. A CUT local e diversas entidades contribuíram com depósitos em contas abertas pelos sindicatos de bancários em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. No Rio, o sindicato organizou caravanas nas agências para estimular doações. E a confederação nacional da categoria, Contraf-CUT, negocia com as instituições financeiras iniciativas como a antecipação da PLR para os bancários das cidades atingidas pela tragédia e ajuda aos terceirizados dos bancos.
Entre fotos e figurinhas
O metalúrgico José Lino da Silva, de 59 anos, está desempregado e não pode reconstruir a casa de dois andares e 136 metros quadrados, que construiu há 26 anos, engolida pela avalanche de terra que desceu sobre Nova Friburgo na madrugada do 12 de janeiro. A família inteira – o irmão, a cunhada, uma sobrinha, seu filho e ele – foi salva pelo pedido de socorro de uma vizinha por volta da meia-noite. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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GIANNE CARVALHO
Todos correram ao local e tudo estava terra abaixo. Os moradores vizinhos, 11, escaparam ilesos. Ali passaram a noite em vigília. Por volta das 5 horas, José Lino foi até sua casa e a encontrou destruída. Não fosse o telefonema, todos teriam sido soterrados durante o sono. “Saímos de casa com a roupa do corpo. Quem poderia imaginar o que estava para acontecer?” Passado o impacto inicial, ele voltou para remexer nos destroços e encontrou alguns documentos, roupas e poucos pertences. Perdeu toda a mobília, mas escapou do pior. Pouco acima do morro, 13 pessoas ficaram soterradas. José Lino está hospedado na casa de amigos e acredita que o problema se amenizará com o aluguel social, cujo valor desconhece. Religioso, ele diz que só Deus pode dar força para recomeçar. Também tem fé nas promessas de que o governo vai refazer as moradias destruídas. E sem aumentar o drama, diz: “A vida não vai parar por uma casa”. Pelo menos a casa o bancário Max Bezerra, que morou a vida toda em Bom Jardim, vizinha a Nova Friburgo, conseguiu salvar. O Rio Grande, que divide a cidade, inundou até áreas consideradas seguras. Primeiro, a água entrou nas moradias próximas às margens, e as pessoas tiveram de ser resgatadas pelos bombeiros. O nível subiu e Max, sua mulher Sílvia e os dois filhos foram retira-
PREVENÇÃO FUGAZ A casa de Max foi construída sobre pilotis, mesmo assim a água entrou e a família perdeu quase tudo
dos de casa, de bote, às 4 da manhã. Salvaram também o cachorro. Max financiou a compra do terreno e a construção pela Caixa. O banco exige laudos que atestem que o imóvel não fica em área de risco. A casa está alguns metros além da distância exigida, e foi construída sobre pilotis, a 3,5 metros do nível do terreno. A água ainda subiu 80 centímetros pela casa.
Roupas, eletrodomésticos, móveis e objetos pessoais foram perdidos. Estão todos abrigados na casa dos pais de Max. O município ficou isolado, sem telefone, internet nem energia. Todas as pontes foram destruídas. Quedas de barreiras e desmoronamento de trechos da pista interromperam a ligação alternativa de energia. “Quando a luz voltou, passamos a acompanhar as notícias pela TV. Mas não tínhamos como saber o que estava acontecendo com amigos e parentes que moram do outro lado do rio”, relata Raul, de 19 anos, filho de Max. O jovem participou da limpeza. Retirado o barro, a casa ficou em pé. “Testemunhei a dificuldade que foi para construir”, conta Raul. Para ele, uma perda mais que material foram álbuns de figurinhas, completos, das três últimas Copas do Mundo. As fotografias, preocupação de Sílvia, não se perderam. “Salvamos quase tudo. Só o álbum do nosso casamento ficou danificado, mas vai dar para recordar.” Muitas famílias bom-jardinenses tiveram a casa destruída, e a prefeitura já informou que vai demolir construções às margens do rio e em áreas de risco. “Vendo as imagens na TV, nos sentimos afortunados, porque não perdemos parentes nem ficamos sem ter para onde ir. Vamos reconstruir. Vai demorar, mas vamos conseguir”, acredita Max.
Relatório do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, baseado em verificações feitas dois dias depois da tempestade, concluiu que a tragédia poderia ter sido bem menor. Embora o fenômeno climático em si tenha causas naturais, a destruição maior foi causada pela degradação ambiental e pelas construções em áreas de risco. Para o agrônomo Agostinho Guerreiro, presidente do Crea-RJ, é preciso reavaliar o que é ou não área de risco. “O desmatamento nas cabeceiras de rios continua, o corte de matas ciliares também. Às vezes temos uma área que não era de risco e, com o tempo, pelo desmatamento e pela ação cumulativa da própria natureza, torna-se perigosa”, avalia. Quem não entende do assunto acha exagerada a importância que se dá ao desmatamento, mas a explicação é simples. “Quando há árvores, o impacto da chuva no solo é amortecido. A água bate na copa e escorre pelos galhos e pelo tronco. Se a chuva bate direto no chão, a terra vai se soltando mais rápido. E, quando se tem floresta, há mais matéria orgânica no chão, a água infiltra mais lentamente no solo. Se houver pouca matéria orgânica, a infiltração é acelerada, e isso também faz a terra se soltar com maior facilidade”, esclarece o agrônomo. Com mais de 800 mortos, milhares de desabrigados e desalojados e uma área imensa para reconstruir, o saldo da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro é impossível de calcular. Situações como essa expõem, como sempre, falta de planejamento e descuido de autoridades com um problema que, se não pode ser evitado de todo, pode receber medidas preventivas. Ambientalistas acreditam que catástrofes como
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BRUNO DOMINGOS/REUTERS
Preservação para proteger vidas
IRREPARÁVEL Covas em Teresópolis: a dor pode estimular o debate a do Rio podem se repetir em outras regiões, caso o Congresso aprove as mudanças no Código Florestal defendidas por ruralistas. A dor pode estimular autoridades, especialistas e sociedade a fazer um debate sério e profundo sobre o tema. Discutir e aprender a preservar a natureza e a vida humana. Leia mais sobre esse tema no site, por esses atalhos: http://bit.ly/rba_riscos_1 e http://bit.ly/rba_riscos_2.
Atitude
Por Evelyn Pedrozo. Foto de Rodrigo Queiroz
O craque do morro
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idemar Ferreira Lima não é apenas mais um adolescente apaixonado por futebol. Aos 14 anos, bom de bola, sério e dedicado, é o capitão do time. “Demar” sua na quadra e alivia a pressão da mãe. Dona Maria Liduína faz de tudo para mantê-lo longe do perigo. Há nove anos matriculou o filho no projeto social da Mangueira, no Rio de Janeiro. Maria não dá a mínima para Carnaval, mas tem na escola de sua comunidade referência de segurança para a vida de Demar. Ele treina seis horas por semana no projeto Vila Olímpica. Para fazer parte do grupo, precisa ir bem na escola. A ação social na Mangueira projeta a escola para além dos minutos de desfile na Marquês de Sapucaí. Oito mil pessoas são atendidas durante o ano todo em atividades culturais, esportivas e educacionais.
No Vila Olímpica, são 3.540 integrantes. A iniciativa tem 23 anos e já recebeu prêmio da BBC de Londres de melhor projeto social da América do Sul. Um modelo de combate à pobreza, à desigualdade social e à exclusão. No morro, Demar sabe de amigos que já trilharam outros caminhos, mas quer sua vida longe de encrencas. “Meu sonho é ser jogador profissional”, diz. A mãe ocupa o tempo do garoto com atividades saudáveis. “Ele vai da escola pro futebol e de lá pra natação.” Empregada doméstica, só às vezes encontra um tempinho para assistir aos jogos de seu craque. Maria tem outros dois filhos, já casados, que vivem na mesma comunidade. Seu sonho, agora, é a pacificação do morro, prevista para março. O lugar ainda é um dos redutos de organizações criminosas que têm entre suas atividades recrutar crianças para o tráfico. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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MUNDO
Erupção nas arábias Em uma das regiões mais ricas do mundo, com uma das populações mais pobres, a tirania de regimes estrategicamente importantes para o capitalismo ocidental está em xeque Por Flávio Aguiar
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mitirá o transporte de gás do Egito e Iraque para Jordânia, Síria, Líbano e Turquia – e talvez, no futuro, possa ir mais longe ainda. Vários de seus países são produtores de petróleo. O maior é a Arábia Saudita. O Egito, que também produz petróleo e gás, gerencia o Canal de Suez, por onde passa o “ouro negro” para a Ásia, a Europa e outros continentes. A região – que conta com algumas das civilizações mais antigas do mundo – explora ainda o turismo, e, no momento, tem presença significativa no mundo das telecomunicações, com empresas como a Orascom e a Etisalat, além da agência de notícias Al Jazeera, com grande penetração no mundo árabe e também no Ocidente. Tudo isso mostra uma região tão rica quanto prenhe de contradições. Quase todos os países têm problemas de abastecimento agrícola. O Egito é um exemplo notável: importando grande parte de produtos de alimentação (inclusive do Brasil), entre os quais o trigo, e com uma população em crescimento de grande proporção, é presa fácil das oscilações dos preços das commodities no mercado internacional. A parte sul do Sudão, fértil para a agricultura, era considerada “o celeiro” do mundo árabe. Além de as sucessivas guerras civis terem devastado esse “celeiro”, o recente plebiscito em que a divisão do país ganhou no sul por esmagadora maioria joga o futuro na incerteza. Um país independente no sul do Sudão dificilmente permanecerá na Liga Árabe. A recente elevação dos
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um país, a Tunísia, a erupção devastou um governo, o do ditador Ben Ali, depois de 23 anos de despotismo. Noutro, o Egito, estremeceu um regime, o implantado a partir da presidência de Anwar el-Sadat (1970-1981) e consolidado por seu sucessor, Hosni Mubarak, desde 1981. Outros países do mundo árabe registraram tremores mais ou menos significativos, como na Argélia, no Iêmen, em Omã, na Jordânia e na Líbia. Em toda a extensão da Liga Árabe – que reúne 22 países desde o leste do Atlântico até o Golfo Pérsico –, ditadores, monarcas, sultões e emires estão com as barbas de molho, na expectativa do que está por vir. Além das injunções políticas, que são herança de todos os imperialismos que ali encontraram terreno fértil, da Guerra Fria depois de 1945, e das disputas locais, alguns números e fatos econômicos ajudam a entender o apetite das potências ocidentais pela região (no passado, o da finada União Soviética e, hoje, o da China). A Liga Árabe compreende 14 milhões de quilômetros quadrados e uma população que já passou de 360 milhões, com um PIB anual de US$ 2 trilhões. A União Europeia, com 27 países, tem 500 milhões de habitantes e PIB de US$ 14 trilhões. A comparação desses números evidencia o enorme poderio econômico da região – para as potências ocidentais ou à revelia delas, o que provoca nelas sonhos e pesadelos. Um exemplo desse potencial é a construção do Gasoduto Árabe, que per-
DEMOCRACIA DE VERDADE Nas ruas do Cairo, opositores enfrentam a polícia numa batalha contra o regime arquitetado pela burocracia norte-americana há décadas FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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30 ANOS É DEMAIS Menino carrega cartaz de Hosni Mubarak pintado como vampiro traidor
preços das commodities, não compensada primeiro país a entrar em erupção, 42%, e pelo aumento do preço do petróleo, combi- na Jordânia, 54%. Isso não quer dizer, nanada com a grande pobreza da maioria da turalmente, que a região esteja vivendo o população, ajuda a explicar o porquê dos seu “maio de 68”. O dado mais significatilevantes começados neste janeiro contra o vo é que uma grande proporção desses jogoverno de Mubarak. vens é de desempregados e vive na pobreza, Mas não explica tudo. Durante décadas, sem perspectiva de futuro enquanto a polío jogo pesado das potências do Ociden- tica de seus países permanecer como está. E te ajudou a montar nessa região uma ex- mais: esses jovens, como geração, não têm tensa rede de déspotas – a maioria deles maiores compromissos com aquela cadeia não esclarecida –, sob a forma de monar- de governos autoritários e ditaduras que foi quias, emirados ou repúblicas de fachada, montada quando a maioria nem tinha nasda que o regime ditatorial de Mubarak é cido ou, no máximo, tinha acabado de vir apenas um exemplar, embora ao mundo. dos mais eloquentes. O último O jogo Quando a ditadura da Tunía ser cooptado foi Muammar pesado das sia caiu (ou melhor, levantou al-Gaddafi, da Líbia, outrora potências voo do país, parece que levanferoz inimigo, hoje caríssimo do Ocidente do 1,5 milhão de toneladas de amigo. ouro para a Arábia Saudita), fiajudou a Um dos objetivos dessa cou claro que a erupção ia se montagem – que agora pode montar estender, e o Egito seria a bola se revelar um dominó ou um nessa região da vez. Assim mesmo, de púcastelo de cartas a perigo – era uma extensa blico, nada aconteceu. De Davencer a Guerra Fria, o que foi rede de vos, cidade suíça que sedia o alcançado. Outro era garan- déspotas Fórum Econômico Mundial, a tir o abastecimento de petróWashington, nos Estados Unileo, o que teve curso. O terceiro era manter dos, criou-se um clima de consternação e, uma vasta quantidade da população mun- ao mesmo tempo, de “grande descoberta”. dial, vista como potencialmente hostil, em É como se os líderes das hegemonias ecoposição submissa, que é o que agora está nômicas do mundo dissessem em coro: a perigo. “Nossa, Mubarak é um ditador, quem diMas a região mudou o seu perfil, o que ria, hein?” talvez tenha escapado aos analistas e arauPassaram também a mobilizar o argutos do império do Ocidente: uma maioria mento de que algum movimento radical daqueles 360 milhões de habitantes é de jo- islâmico poderia assumir o governo do vens com menos de 30 anos. No Egito, a po- Egito, como a Irmandade Islâmica. Essa pulação sub-25 representa 52%; na Tunísia, Irmandade, que atua em muitos países, e 30
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não só no mundo árabe, foi fundada em 1928 e sempre lutou contra os movimentos laicos promovidos pelos militares nacionalistas, como Gamal Abdel Nasser, no Egito. Envolveu-se no passado em atentados contra governantes, como na Síria, e em levantes que custaram milhares de mortos, além dos que mergulharam na clandestinidade, como no Egito. Mas essa é uma hipótese distante, pelo menos no momento. O movimento de protesto contra Mubarak, no Egito, começou à revelia da organização islâmica. E, segundo analistas, pode estar acontecendo o contrário, pelo menos no Egito: a revolta popular também se reflete no interior da Irmandade, promovendo novas lideranças distanciadas da velha-guarda fundamentalista. De todo modo, a única coisa certa, por ora, é que o mundo árabe está pegando fogo e tão cedo essa inquietação não vai se extinguir.
NASSER NURI/REUTERS
CHOQUE Enquanto a política não é alterada, países veem surgir geração sem perspectiva
No tabuleiro da Guerra Fria A Liga dos Estados Árabes, ou Liga Árabe, foi fundada em 1945, surgindo paralelamente ao desenrolar da Guerra Fria – o embate que, na segunda metade do século passado, opôs o mundo capitalista ocidental ao bloco liderado pelo comunismo soviético. Seus membros fundadores foram o Egito (sede), o Iraque, a Transjordânia (hoje Jordânia), o Líbano, a Arábia Saudita e a Síria. A estes se juntou o Iêmen. Com as sucessivas adesões, até reunir 22 estados em que, sem exceção, o árabe é a língua oficial (às vezes com o francês), a Liga Árabe hoje vai do Marrocos, no Atlântico, aos Emirados Árabes e a Omã, seus membros mais a leste, junto ao Golfo Pérsico e diante do Irã, na outra margem (que não é membro da Liga e cuja população majoritária não é árabe). No caminho, reúne gigantes como o Egito (80 milhões de habitantes, o maior) e o Sudão (o maior em área, pelo menos antes da sua divisão a partir do plebiscito de janeiro de 2011) e pequenos países, como o Catar (840 mil). A ela pertencem também países como Argélia, Líbia, Iraque, Marrocos e Tunísia, além da Autoridade Palestina entre outros. E conta ainda com quatro países observadores: a pequena Eritreia, ao norte da Etiópia, a Índia, a Venezuela e o Brasil, onde a população árabe passa de 1,2 milhão.
Países integrantes da Liga Árabe estão marcados em tons de azul
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ENTREVISTA
Um brasileiro
internacio Para o diretor Fernando Meirelles, o cinema brasileiro nunca esteve tão bem. E medidas como a instalação de salas em cidades pequenas e a criação do vale-cultura podem ajudar a resolver a falta de público Por Roberto Amado
O
s mais velhos provavelmente se lembram do histriônico Ernesto Varella, o repórter “representado” por Marcelo Tas que fez sucesso na TV dos anos 1980. Os mais novos não podem deixar de lembrar dos personagens mágicos do Castelo Rá Tim Bum, programa ainda hoje reprisado na TV que já deu até nome a um canal a cabo dedicado exclusivamente a crianças. O que poucos sabem é que por trás desses programas sempre esteve o dedo de Fernando Meirelles, considerado um dos cineastas brasileiros mais conhecidos e bem cotados no mercado internacional do cinema – dois de seus filmes, Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel, já estiveram no palco do Oscar, concorrendo a prêmios. Paulistano, 55 anos, Meirelles é formado em Arquitetura, mas nunca exerceu a profissão. Desde muito jovem aventurou-se em produzir programas em vídeo – o que, na década de 1980, era uma novidade –, fazendo programas independentes para a TV com a produtora Olhar Eletrônico. O tempo passou, Meirelles entrou no mercado publicitário com sua nova produtora, a O2 Filmes, e apesar de bem-sucedido no setor nunca abandonou sua verdadeira vocação: os programas de TV e, principalmente, o cinema. Hoje, premiado, com uma carreira sempre brilhante, Meirelles é um diretor de cinema convidado por produtoras internacionais. Mas, apesar da fama e da projeção, é receptivo e nunca perdeu um certo ar de inocência, quase juvenil, o qual algumas vezes o faz parecer assustado com seu inegável sucesso. Esta entrevista foi feita em janeiro, por e-mail e por telefone. Meirelles estava em Viena, na Áustria, onde deve permanecer até maio dedicando-se a um novo filme. “Os produtores me pedem para não divulgar nada”, disse. Mas não se furtou a falar de planos para 2011 e de suas ideias sobre o cinema brasileiro. Você está produzindo, pela O2, um filme sobre o Parque Nacional do Xingu. Fale sobre esse projeto.
Conta a história dos irmãos Villas Bôas e sua luta pela defesa dos povos indígenas, que culminou na criação do Parque Nacional do Xingu, durante o governo do Jânio Quadros, onde vivem hoje 15 etnias. É uma história impressionante de resistência e determinação e discute um tema muito atual, que os irmãos já discutiam há 50 anos: a importância da preservação das florestas e das culturas indígenas. Neste momento em que acabamos de eleger uma presidenta que segue a política desenvolvimentista dos últimos oito anos, na qual “crescimento” foi a palavra mágica e incontestável, vale pararmos para pensar se os rumos da nossa sociedade são de fato tão razoáveis e inquestionáveis assim. Se não fossem os irmãos Villas Bôas lutando contra a lógica que prevalecia nos anos 50, aliás exatamente a mesma de hoje, o governo brasileiro teria repetido o desastre acontecido nos Estado Unidos ou nas colônias africanas onde os brancos impuseram sua cultura e religião, acabando com várias nações locais. O filme é dirigido pelo Cao Hamburger, tem no elenco João Miguel, Felipe Camargo, Caio Blat e Maria Flor e será um dos grandes lançamentos de 2011, quando o parque completa 50 anos.
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DIVULGAÇÃO
Nunca pensei em qual seria meu mercado, apenas conto histórias que me tocam
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Qual foi seu envolvimento com o filme José e Pilar, o documentário sobre o escritor português José Saramago, o Nobel de Literatura, morto no ano passado?
Um filme leva no mínimo uns dois anos para ser feito, o que significa que, se eu tiver sorte, consigo fazer mais uns oito ou nove. Isso faz com que cada decisão se torne uma angústia
Conheci o diretor Miguel Mendes quando ele estava acompanhando os passos do escritor José Saramago e sua mulher Pilar del Rio para rodar seu filme. Na noite em que ele me filmou, eu tinha apresentado o longa Ensaio sobre a Cegueira para o Saramago, baseado num livro dele. Daí nos conhecemos, saímos para tomar uma cerveja e nos demos muito bem. Reencontrei o Miguel outras vezes durante o lançamento do Ensaio em Portugal e meses depois ele me ligou no Brasil pedindo ajuda para conseguir acabar seu filme. A O2, produtora da qual sou sócio, arrumou um financiamento para a conclusão do filme e ele veio terminar a montagem e fazer a pós-produção em São Paulo. Junto com essa ajuda prática, o coitado teve de ouvir meus palpites sobre sua montagem. Seu desafio era reduzir o filme, que estava com quase seis horas de duração, para apenas duas. Acho que é um dos documentários mais tocantes a que já assisti.
Você aparece numa das cenas finais de José e Pilar, junto com Saramago. E até dá um beijo nele. Como foi esse contato com o escritor?
Enquanto eu rodava o Ensaio o Saramago ficou muito doente e, segundo ele, escapou da morte por questão de minutos. Por causa dessa enfermidade, nossa relação durante o processo se limitou à troca de alguns e-mails. De qualquer maneira, quando o encontrei da primeira vez, ele me avisou de cara que, apesar de ser autor do livro, não daria palpites no filme. Infelizmente. (Logo após assistir a Ensaio sobre a Cegueira ao lado do diretor, Saramago emocionou-se e comentou: “Fer nando, estou tão feliz por ter visto esse filme como esta va quando acabei de escrever o livro”.)
Como você se definiria como cineasta? Qual é seu mercado e quais são seus objetivos?
Nunca pensei em qual seria meu mercado, apenas conto histórias que me tocam, talvez para poder me aproximar delas e gastar um tempo tentando entendê-las. Às vezes, mais do que as histórias, me interessa encontrar uma maneira para contá-las, a linguagem. Tenho prazer em descobrir uma música que modifique o sentido de uma imagem, criar uma transição entre uma sequência e outra que seja original, fazer um comentário que pode não fazer parte da história, usando recursos de direção de arte ou fotografia. Gosto de desafiar atores. Achar maneiras erradas ou diferentes de resolver um diálogo. Não me vejo como um artista, mas sim como um artesão.
Como é seu relacionamento no mercado do cinema? Você hoje se coloca nesse mercado como diretor de cinema ou como produtor? 34
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Em volume, produzo mais filmes do que dirijo, mas quando faço isso sempre digo a mim mesmo que será a última vez. Prefiro dez vezes mais dirigir. Sinto que sou um contador de histórias com alguns recursos, o que me garante sempre, no mínimo, evitar um trabalho vergonhoso. Já como produtor, se eu não tivesse minhas parcerias ao redor, teria ido à falência umas 19 vezes. Sofro de um mal incurável, o entusiasmo. Por mais que tente, não sou a melhor pessoa para medir as consequências das próprias escolhas e vou entrando em barcas no impulso, sem antes checar se o casco está fazendo água. Você é um dos diretores brasileiros mais conhecidos internacionalmente. Nesse mercado, é considerado um diretor brasileiro ou sem uma nacionalidade específica, apenas um diretor competente?
Não sou o diretor mais conhecido internacionalmente. O Walter Salles está na estrada há mais tempo, é mais premiado que eu, assim como o José Padilha, que ganhou um Urso de Ouro (por Tropa de Elite). O Andrucha Waddington (Eu Tu Eles) está começando uma carreira internacional com seu Lope (Espanha) e não nos esqueçamos do (Carlos) Saldanha, que dirigiu A Era do Gelo e certamente é o diretor brasileiro de maior prestígio e maior bilheteria internacional que teremos por muitas encarnações. Acho que no mercado internacional sabe-se que sou brasileiro, mas isso não pesa muito a meu favor nem contra. O cinema é um mercado muito globalizado. Ninguém pede para ver o passaporte.
Qual é a grande diferença entre dirigir atores novatos, como foi em Cidade de Deus, e celebridades, como Rachel Weisz (de O Jardineiro Fiel) e Juliane Moore e Gael García Bernal (de Ensaio)?
Atores treinados têm técnica e conhecem seus processos de trabalho, por isso é mais fácil dirigi-los. Como a maioria dos atores de Cidade de Deus não tinha experiência anterior, foi preciso um semestre de oficinas e exercícios para dar-lhes certa experiência de como cada um funcionaria diante da câmera. Esse trabalho foi feito principalmente pelo Guti Fraga, diretor do grupo Nós do Morro, do Rio, com um acompanhamento muito dedicado e delicado da Katia Lund e meu. Na reta final contou com a ajuda da Fátima Toledo, renomada preparadora de atores. Depois que esse elenco já estava mais familiarizado com o processo, na hora do set mesmo, a maneira de trabalhar não foi muito diferente do processo com atores treinados.
Você acha que emprega uma linguagem de cinema brasileiro nos filmes que dirige ou produz?
Não saberia dizer o que é uma linguagem brasileira de cinema, ainda mais agora que nossa produção anda tão diversa. Sou influenciado por tudo que vejo, consciente ou inconscientemente. As soluções que encontro para dirigir são o resultado dessa salada de referências, talvez com alguns insights.
Existia uma cara de filme brasileiro que era meio indigente, a falta de recursos econômicos e técnicos – junto com a falta de formação profissional e do exercício constante da atividade pelos diretores e equipe – criava uma certa estética reconhecível. Alguns diretores souberam usar isso a seu favor brilhantemente, mas muitos quebraram a cara. Sinto que hoje, mesmo quando não há dinheiro para uma produção, a nova geração de realizadores se garante melhor pela sua capacidade técnica. E quando digo capacidade técnica não me refiro a câmeras caras ou efeitos especiais, mas sim a técnicas ou método de direção de ator, técnica para escrever um bom diálogo, técnica para criar uma boa cena e bons roteiros.
Como você avalia a situação do cinema brasileiro?
O cinema brasileiro nunca esteve tão bem e talvez a principal razão disso tenha sido a criação das leis de audiovisual nos anos 1990, que possibilitaram um maior volume de produção e fortaleceram a indústria e o aparecimento de muitas escolas de cinema, de onde têm saído os novos talentos que agora começam a aparecer. Provavelmente o ex-presidente Lula diria que tudo foi feito por ele, já que esse resultado tem surgido nos últimos anos, mas sinto que esse é o resultado de um processo de amadurecimento mais longo.
Como se conseguem investimento e verba para produzir cinema no Brasil?
Não se pode dizer que é fácil, mas, se em 1995 foram produzidos seis longas e em 2010 foram 110, não se pode negar que a atividade esteja mais favorecida hoje, ainda mais se pensarmos no grande mercado que se abriu com as TVs a cabo e a internet. O novo gargalo do cinema, que já está sendo atacado, é a exibição. Há poucas salas de cinema no Brasil e o ingresso é muito caro para nossa população. O BNDES criou uma linha de financiamento para incentivar a construção de salas de cinema em cidades com menos de 100 mil habitantes. O vale-cultura, também em discussão, deve ser outra medida que trará um impacto positivo no mercado.
Qual caminho deve seguir um cineasta brasileiro para tornar-se um realizador?
Não existe um padrão. Há diretores que começaram como assistentes, outros, como eu, vieram da televisão independente. Há roteiristas, montadores, fotógrafos ou atores que passaram a dirigir. Atualmente está aparecendo uma nova geração formada em escolas de cinema e creio que são melhores do que nós, os diretores mais velhos. Há também um movimento de jovens diretores formados em grupos de cinema de comunidades, o filme 5x Favela, Agora por Eles Mesmos, produzido pelo Cacá Diegues, soube olhar para esses talentos. Algumas coisas, no entanto, são imprescindíveis para quem quer dirigir: saber se relacionar com
muita gente diferente, gostar de correr riscos, ter uma certa obstinação e, claro, ter algum talento em alguma área não atrapalha. Qual é o projeto ambicioso que você ainda pretende realizar?
Tenho vontade de fazer uma adaptação de Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa, mas não sei se algum dia terei coragem e capacidade. Gostaria de contar histórias que se passam na África, sobre africanos, não sobre colonizadores.
Como você avalia sua carreira? Quais foram os momentos mais importantes e mais frustrantes?
Eu não penso muito no meu trabalho como uma carreira, penso em um dia depois do outro, e vou me envolvendo com o que aparece e me interessa cada vez que termino um trabalho. No momento estou trabalhando nesse filme, que é pequeno e não deve fazer grande público, mas estou motivado. Já aconteceu de eu estar no lugar certo, com o projeto certo, mas na hora errada, e assim alguns projetos não foram para a frente. Como exemplo posso citar um filme chamado Lion’s Share, sobre piratas na Somália, que eu queria muito fazer, mas surgiu num momento em que eu não estava livre para embarcar. Há muitos outros exemplos assim. E também o oposto: há 20 anos trabalhei por um bom tempo na produção de uma minissérie para a Globo, uma adaptação do livro Mar Morto, do Jorge Amado. Depois de meses, por um problema de custos, o projeto naufragou. Essa foi a melhor coisa que poderia ter acontecido, pois hoje sei que eu não estava pronto para o tamanho da produção e teria sido um desastre. Cada vez que opto por um filme, estou abrindo mão de muitos outros, e isso é sempre angustiante. Um filme leva no mínimo uns dois anos para ser feito, o que significa que, se eu tiver sorte, consigo fazer mais uns oito ou nove. Isso faz com que cada decisão se torne uma angústia. Hoje sofro menos por isso, mas não é algo resolvido.
SUSANA VERA/REUTERS
Existe uma linguagem de cinema brasileiro?
Quando encontrei Saramago pela primeira vez ele me avisou de cara que, apesar de ser autor do livro (Ensaio Sobre a Cegueira), não daria palpites no filme. Infelizmente
O que você acha do fechamento do tradicional Cine Belas Artes, em São Paulo?
Somos sócios do cinema, entramos na sociedade para tentar conseguir patrocínio e manter a sala aberta. Isso deu certo por sete anos, mas agora foi oferecido ao proprietário um valor de aluguel quase três vezes maior do que o que pagávamos, então não há mais jeito de manter o negócio, que já era deficitário. Com a estação de metrô ali na esquina, o preço explodiu. Uma pena. São Paulo vai perder um dos poucos cinemas de rua que restavam e ganhar sua milionésima lojinha. Quando paga R$ 18 num ingresso de cinema, você pode ver um filme que fará parte da sua vida, como fazem muitos filmes que vimos. Mas, quando se gastam os mesmos R$ 18 numa camisa, ela não dura nem até o final do ano. Não entendo a opção pela camisa. Ó vida! FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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CULTURA
O novo passa por Tiradentes A mais recente produção de jovens diretores brasileiros foi o foco do primeiro festival de filmes do ano, na cidade histórica de Minas Por Carlos Minuano
“À
noite, aqui mesmo, vai passar um filme de rodeio.” O comentário corria a praça da cidade logo pela manhã. Garantia de público. Outros, porém, torciam o nariz com medo de ficar mais de hora e meia vendo caubóis de butique desfilar suas picapes, rangers e dodges em uma tela instalada na praça principal da histórica Tiradentes, no sudoeste de Minas Gerais. O burburinho antecedeu uma das exibições da 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada no final de janeiro. O evento que abriu o calendário audiovisual brasileiro de festivais, por ironia, ocorreu numa cida-
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de de 5.000 habitantes onde não há nenhuma sala de cinema. Boa parte dos 134 filmes da programação foi exibida na praça central. Apesar de a programação trazer sucessos como Tropa de Elite 2, em Tiradentes o que importa mesmo é o novo. O novíssimo cinema brasileiro, produzido em geral na raça, em meio a dificuldades. O boato que agitava a cidade, por exemplo, se referia ao documentário Solidão e Fé, primeiro longa de Tatiana Lohmann, que investiga o universo masculino dos rodeios. À noite, a diretora foi à praça assistir ao filme com o público. Vestido curto, cabelos soltos, jeito urbano, tatuagem grande no braço, timidamente fez seus agrade-
cimentos e olhou o público que lotava a praça. Foram 100 minutos ouvindo a própria voz e relembrando todo o percurso de seu filme. A arena dos rodeios é o espaço onde Tatiana foi buscar o homem viril, o arquétipo do herói, que vaga pelo desconhecido e não tem medo dos homens, da vida e das feras. Com a câmera em punho e muita coragem, a diretora e narradora do filme encarou o desafio de percorrer os principais rodeios do Brasil para registrar a vida dos peões. Não todos, mas aqueles que ainda carregam, até certo ponto, os valores de um mundo “bruto” que resiste ao mainstream, ou ao grande empreendimento dos rodeios. Segundo ela, encontrou pelo caminho cavaleiros andantes, heróis, gladiadores, sertanejos, boiadeiros, enfim, o homem comum – cheio de doçura e violência. “Existem aspectos num homem que uma mulher não entende, só contempla”, afirma. Tatiana diz que poderia ter feito um filme sobre o processo de americanização e espetacularização do rodeio, em que o peão vem deixando de ser o protagonista, cedendo espaço para o locutor – “É ele quem divulga a marca”. O caminho, porém, não foi esse. A diretora-personagem lança um olhar feminino sobre homens simples e rudes. “Tive a sensação de estar viajando por um universo antigo. E vi que esse arquétipo do herói está em crise, quase não existe mais.”
Em nome da mãe
LEONARDO LARA/DIVULGAÇÃO
ALEXANDRE C. MOTA/ DIVULGAÇÃO
ALEXANDRE C. MOTA/ DIVULGAÇÃO
Tatiana sustenta que adentrar o mundo dos peões tradicionais foi um exercício do entendimento das diferenças entre homem e mulher, explícitas nas falas e atitudes dos personagens. “Rústicos, fortes e valentes, com grande apego à mãe”, descreve. Ela diz que todos carregam ainda, dentro do chapéu, uma imagem de Nossa
FESTA Em plena praça ou na grande tenda do festival, o público se esbaldou. Nas ruas, eventos paralelos fizeram sucesso FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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Apesar de a programação trazer sucessos como Tropa de Elite 2, em Tiradentes o que importa mesmo é o novo. O novíssimo cinema brasileiro, produzido em geral na raça, em meio a dificuldades
MUNDO DOS PEÕES Tatiana Lohmann foi buscar na arena dos rodeios o arquétipo do herói para seu documentário Solidão e Fé
Senhora Aparecida, com quem conversam durante a reza antes das competições. No documentário, uma das mães entrevistadas conta que o filho dorme com ela, na mesma cama, até hoje. E ele retribui rezando e, claro, provendo a casa com o “money” dos rodeios.
Novíssimo
Além de Solidão e Fé, a Mostra Vertentes exibiu outros seis filmes. Em comum, segundo a curadoria do evento, a necessidade de serem vistos com cuidado, sem pressa, porque cada um deles tem sua proposta e importância. São eles Copa Vidigal, de Luciano Vidigal; Cortina de Fumaça, de Rodrigo Mac Niven; Elza, de Izabel Jaguaribe e Ernesto Baldan; No Olho da Rua, de Rogério Corrêa; O Último Romance de Balzac, de Geraldo Sarno; e Os Monstros, de Guto Parente, Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes. Entretanto, o “filé” do festival é a Mostra Aurora, que traz o legítimo e novíssimo cinema brasileiro. Em sua quarta edição, a seleção de novos nomes, composta exclusivamente por diretores estreantes e já tradicional no evento, foi também a parte mais esperada entre curadores internacionais que participam da mostra.
Foram escolhidos cinco documentários e duas ficções, de Minas, Rio, São Paulo e Pernambuco. Um dos destaques é o filme Enchente, de Julio Pecly e Paulo Silva, sobre a inundação que atingiu a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, em 1996. A dupla que dirigiu o filme mora na região. Também foram exibidos Riscado, de Gustavo Pizzi; Remições do Rio
“Recife respira cinema”, diz Irandhir Com apenas cinco anos de carreira, o ator pernambucano Irandhir Santos, de 32 anos, foi um dos homenageados na 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Apesar do pouco tempo de estrada, ele tem no currículo 15 filmes. O mais recente foi o mais marcante. Santos é o deputado Diogo Fraga, de Tropa de Elite 2. Outros dois filmes entram em cartaz este ano, Tatuagem e Lobo atrás da Porta. Irandhir abriu espaço na agenda agitada de Tiradentes para falar com a Revista do Brasil. Nos últimos quatro anos você
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fez 14 filmes. Quantos com diretores de Pernambuco? Mais da metade. No caso do Cláudio Assis eu até repeti. Depois de Baixio das Bestas, fiz o Febre do Rato, terceiro longa dele. Acredito que isso tem a ver com minha proximidade com os diretores e com acreditar nessa maneira nova de contar histórias que surge por lá. O cinema pernambucano se voltou às suas raízes, isso tem impulsionado a produção audiovisual e uma nova linguagem que permite dialogar com qualquer público, do Brasil e do mundo. Você vai a Recife e tem lugares de exibição muito
especiais, como a Fundação Joaquim Nabuco. Existem vários lugares onde se encontram pessoas de cinema que geram debates e discussões interessantes. É como se a cidade respirasse cinema em seu ambiente natural, em seu habitat, em sua geografia. Durante debate aqui em Tiradentes, um jornalista falou sobre prós e contras da exposição excessiva em filmes e novelas, e citou Wagner Moura. Você, com tantos filmes, não tem medo do desgaste da imagem?
Acho que o ator tem esse prazer, esse privilégio da transformação. A questão importante é a versatilidade, encarar personagens diferentes e a cada um ser outro. Acho que o cinema dá essa possibilidade, porque junto ao ator há outros profissionais altamente responsáveis por aquela fisicalidade que vai ficar na imagem. São excelentes figurinistas, maquiadores, e isso ajuda muito a criar uma persona diferente. Então, estar em várias produções significa que você tem a capacidade de ser outro. Quais são suas apostas para 2011?
LEONARDO LARA/DIVULGAÇÃO ALEXANDRE C. MOTA/ DIVULGAÇÃO
VENDO E APRENDENDO Muita gente participou das oficinas e se aventurou na frente e atrás das câmeras
Negro, de Erlan Souza e Fernanda Bizarria; Sertão Progresso, de Cristian Cancino; Os Residentes, de Tiago Mata Machado; Santos Dumont – Pré-Cineasta?, de Carlos Adriano; e Vigias, de Marcelo Lordello. Dezenas de outras atividades atraíram milhares de pessoas a Tiradentes. No total foram 30 longas em pré-estreias nacionais e mundiais, 104 curtas e muitos debates temáticos, com a participação de nomes como Cláudio Assis, Julio Bressane e Cacá Diegues. O número de homenageados na 14ª Mostra de Tiradentes também cresceu. Na noite de abertura, dois nomes foram celebrados: o ator Irandhir Santos, por sua atuação em sucessos como Tropa de Elite 2, e o cineasta carioca Paulo César Saraceni, autor de O Ge rente, que abriu o festival, e um dos pioneiros do Cinema Novo. Ambos receberam o Troféu Barroco das mãos da ministra da Cultura, Ana de Hollanda, presente ao evento ao lado da nova secretária do Audiovisual, Ana Paula Santana. Sem discursos, a ministra elogiou a boa fase do cinema brasileiro. “Não estamos apenas levando o Brasil para fora, mas conquistando um público enorme aqui dentro.”
EDUARDO FAHL
Colaborou Eduardo Fahl
POSSIBILIDADES Irandhir Santos: “Estar em várias produções significa que você tem a capacidade de ser outro”
Eu citaria tantas obras que passaram aqui na mostra de Tiradentes, mais de 120, mas quero ressaltar um ponto que considero determinante, tanto para Tiradentes quanto para a trajetória nacional do cinema mesmo. Estou falando dos documentários que estão vindo com uma grande força. Aqui na Mostra Aurora, dos sete longas, cinco são documentários, todos muito fortes e peculiares na maneira de serem feitos. Você destaca algum nome? Mais do que uma aposta, faço uma reverência ao trabalho de
ficção da cineasta Renata Ribeiro. Eu acompanhei o trabalho dela como diretora de arte em dois filmes. Recentemente ela veio à frente dos projetos, como diretora, e tem desempenhado um trabalho fantástico. Em Tiradentes, ela apresentou Praça Walt Disney, produzido no ano passado. Foi a pré-estreia nacional. Aposto nessa diretora como uma forte criadora. Eu gosto bastante do Super Barroco, que foi o primeiro curta-metragem dela, no qual no qual a Renata faz a junção perfeita do que ela é como profissional na direção de arte. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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COMPORTAMENTO
O
grupo de calouros acreditava que era levado a conhecer o campus, os professores. Foram todos para o anfiteatro do hospital. Depois, cada professor foi para um canto e os veteranos passaram a trancar saídas. Checavam até nos banheiros se tinha alguém escondido. O relato é de Bruna Ramirez, estudante de Medicina da Fundação ABC, em Santo André (SP). “Trancaram as portas e começou a gritaria. Tínhamos de ficar ajoelhados, cabeça baixa. Éramos xingados e coagidos a dar dinheiro para a Atlética.” Naquele dia de fevereiro de 2006, Bruna saiu da sala de mãos dadas com outros calouros, depois de um deles ter ligado para os pais, que avisaram a polícia. O psicólogo José Leon Crochík, do Instituto de Psicologia da USP, vê essa forma de violência em ascensão. “A violência física é direta, pode ser coibida e delimitada. A psicológica é mais difícil de ser identificada.” Para Crochík, o trote se estrutura como a sociedade. “Existe uma hierarquia que valoriza quem tem poder; os que não têm se submetem para subir socialmente. Uma certa elite que consegue chegar à universidade deixa a barbárie e outras formas primitivas reaparecerem com a ideia do trote.” Segundo Vivian Moreira Sales, de 23 anos, que participou na mesma faculdade de ritual semelhante, o clima pesado vai até 13 de maio, dia escolhido para liberar os novatos por ser data da libertação dos escravos. Mas a humilhação continua durante o ano. Argumentam que, se o aluno sofre por um ano, aplicará o trote por mais cinco. “Existem pessoas que não querem reproduzir isso, mas outras aguardam ansiosamente pela oportunidade”, diz. Crochík responsabiliza a banalização da violência pelo cenário, em que determinado calouro sente prazer em se sujeitar ao trote para depois reproduzi-lo. “É um problema estrutural da sociedade, as pessoas são formadas para competir, e ano a ano o aluno quer ridicularizar o outro da mesma forma que foi ridicularizado.” Há 12 anos, um caso de violência fatal marcou fortemente o debate sobre trotes. Edson Tsung Chi Hsueh, da Medicina da USP, foi encontrado morto na piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz em 22 de fevereiro de 1999. O fato estimulou a criação de mecanismos de denúncias e de ações preventivas nas universidades e despertou discussões antropológicas sobre as motivações do ritual. 40
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HUMILHAÇÃO Calouros da Poli-USP fazem flexões na lama
Trote:
nada justifica Em pleno século 21 a violência de universitários veteranos contra novatos ainda acontece. Muitas vezes, o que devia ser motivo de festa ainda dá lugar a traumas e tragédias Por Fabíola Perez
LUIS DA CONCEIÇÃO/AE SILVA JÚNIOR/FOLHAPRESS
AGRESSÃO FÍSICA Em Barretos, aluno da Unifeb exibe manchas provocadas por líquido jogado durante trote
Para a socióloga Carla Alonso Diéguez, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) o trote tem a função de mostrar ao indivíduo o ingresso numa nova realidade, mas aos poucos a prática cedeu lugar à violência do dia a dia. “É um rito antigo, remete às universidades europeias e norte-americanas. O aluno se submete a determinadas ações para pertencer a grupos específicos, os chamados colleges. O que se submete é aceito mais rápido”, observa. O estudante Ricardo Godoy, de 23 anos, que abandonou o curso na Faculdade de CiênciasMédicas de Santos (SP) em 2007, lembra as “brincadeiras” mais violentas impostas pela Atlética aos calouros da 45ª turma: “Obrigam os alunos a nadar nos canais de Santos, onde desembocam as redes de esgoto”, conta. Depois de um ano, Ricardo mudou para São Paulo e foi estudar Medicina na Uninove. As formas de violência eram quase as mesmas. “Em Santos, os trotes eram depreciativos. Na Uninove, são mais pesados para quem quer fazer parte de grupos específicos.” Esses calouros são submetidos diariamente ao que chamam de “lavagem cerebral”: colocam a cabeça deles no vaso sanitário e puxam a descarga várias vezes. Em Guaratinguetá (SP), André Caetano Prado, de 22 anos, do curso de Engenharia Elétrica da Universidade Estadual Paulista, sofreu as humilhações de quem precisa dividir o espaço de uma república. “Eu era o único ‘bicho’ de lá, muitas vezes deixavam uma mensagem na lousa: ‘bicho vai morrer’. As situações mais difíceis que passei foi ficar com a cabeça no vaso sanitário com a água respingando no rosto e ter de fazer uma prova todo fantasiado de mulher.” Para Crochík, há certo enaltecimento daqueles que passam nos cursos mais difíceis. “As carreiras mais concorridas têm caráter humanista menor. Há uma compensação que gera a crueldade e, por sua vez, nega todo o esforço que foi feito para participar do curso”, analisa o psicólogo. “Os grupos com maior status, como as atléticas, usam esse poder para fazer valer certas atitudes”, acrescenta a socióloga Carla. Veteranos que empregam a violência sofrem a ausência de limites, normas e regras sociais. “Esses indivíduos não têm dentro de si valores bem estabelecidos. Percebemos uma desestruturação familiar e a terceirização do processo educacional, ou seja, pai e mãe não ensinam mais valores, e a escola não dá conta.” FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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Além dos muros
Segundo o procurador regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo, em Marília, Jefferson Aparecido Dias, os anos de 2008 e 2009 registraram muitos casos de trotes com o uso de violência física. No estado de São Paulo, onde há uma lei específica contra a prática, o Ministério Público Federal emitiu, em setembro de 2009, recomendação a todas as universidades para que desenvolvessem campanhas de conscientização e sanções para atos violentos. Para Dias, o principal desafio é elaborar métodos para interromper esse ciclo – “em que o aluno que é vítima como calouro reproduz a violência depois”. O procurador discorda de um aspecto da política de segurança adotada pela maioria das universidades – de restringir punições a eventos ocorridos no perímetro que consideram de sua responsabilidade – e defende que os atos violentos sejam criminalizados como quaisquer outros: “Se um servidor público comete um ato de corrupção, em qualquer lugar, ele deve ser punido. Com o aluno violento é a mesma coisa, o vínculo com a instituição faz com que ela possa sancioná-lo”. Dias se refere a situações como a vivida por Mariana Sanchez Flores, de 28 anos, ex-aluna do curso de Medicina da Universidade de Mogi das Cruzes, da turma de 2005. Da
sala de aula os calouros seriam levados para uma “atividade de socialização” na cidade. “Eles enfiaram todo mundo em um ônibus e em uma hora estávamos em um sítio sem nada por perto”, conta. “Os calouros tinham de fazer serviços domésticos. Depois, quando a maioria deles já estava bêbada, me puseram num freezer com uma amiga. Jogaram frutas, ovos podres, farinha e depois empurraram todo mundo na piscina.” Mariana começou a ficar deprimida, mal-humorada, doente e depois de uma semana não quis mais voltar à faculdade. “A voz não saía. Pedi para a minha mãe cancelar tudo porque eu queria voltar para o cursinho.” A mãe da estudante procurou a diretoria um dia depois das agressões. “A faculdade se absteve completamente. Disseram que se os alunos quiseram ir, o problema era deles”, conta. O portal Antitrote.org observa que as vítimas de abusos encontram ainda dificuldades em recorrer à Justiça e, quando o fazem, na maioria dos casos têm como alvo apenas os alunos que praticaram o trote. Em sua página na internet, a organização aconselha que os agredidos acionem também as instituições de ensino “que não se preocupam em oferecer ambiente seguro e, sutil ou descaradamente, estimulam o trote, como se este fosse apenas uma brincadeira”.
“Os veteranos costumam obrigar os alunos a nadar nos canais de Santos, onde desembocam as redes de esgoto” Ricardo Godoy, estudante de Medicina
JOEL SILVA/FOLHAPRESS
Como coibir a violência
SADISMO Calouro se arrasta por corredor coberto de tinta na USP, em Ribeirão Preto
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A denúncia é fundamental, segundo o procurador Dias. “Acredito que nunca foi tão fácil como hoje denunciar. Com a internet e celulares que gravam voz e imagem, há mais formas de fazer o registro e as pessoas podem se valer do anonimato.” Em sua opinião, o cenário tem evoluído. “O pontapé inicial já foi dado, mas se trata de um processo de construção que leva alguns anos.” Um ano antes da morte de Edson Tsung, a USP havia adotado um mecanismo para ajudar os alunos ingressantes a denunciar casos de violência. O Disque Trote, criadoe coordenadopelo professor Oswaldo CrivelloJúnior, começa a funcionar durante a matrícula e se encerra duas semanas após o início das aulas. A equipe que recebe os relatos os encaminha à administração da faculdade de onde partiu a denúncia. “Essa ferramenta deveria existir em todas as faculdades, pois os alunos ingressantes são de responsabilidade da instituição. É importante mostrar que há limites e que o calouro tem a quem recorrer”, enfatiza o coordenador.
PAULO PEPE
O que dizem as escolas O professor Ricardo Peres do Souto, da Comissão de Recepção de Novos Alunos da Faculdade de Medicina da Fundação ABC, garante que 2011 será diferenciado. “Tudo o que estiver fora do nosso planejamento da semana de recepção será considerado trote. Estamos ampliando a capacidade de acompanhamento no campus com a instalação de novas câmeras de segurança.” Qualquer comunicação com calouros deve ser aprovada pela diretoria. “Grupos como centros acadêmicos e atléticas sabem disso. Se não for dessa forma, será considerado trote”, enfatiza. O vice-reitor da Universidade de Mogi das Cruzes, José Augusto Peres, informou pela assessoria que foram criadas comissões específicas para atenção ao calouro, como reforço na equipe de segurança, realização de palestras e reuniões com alunos e representantes de diretórios e centros acadêmicos. Sanções como suspensão e desligamento poderão ser aplicadas.
A assessoria não soube informar, no entanto, com que mecanismos de defesa contarão os alunos que se sentirem prejudicados, nem quais procedimentos devem ser tomados em casos de agressões praticadas fora dos limites do campus. De acordo com o professor Heraldo Lorena Guida, do Fórum de Vice-Diretores da Unesp (que proíbe o trote há mais de uma década), a universidade se responsabiliza pelas ações que fujam à normalidade dentro do campus e no entorno. Ele defende uma parceria que envolva mais o poder público e a Polícia Militar nos ambientes de risco. E enfatiza a relevância da denúncia. “Quem se sentiu atingido tem de denunciar. Se o aluno que aplicou o trote tem vínculo com a instituição, ainda que esteja numa república, isso já permite fazer a apuração”, garante Guida. A reitoria da Universidade de Ciências Médicas de Santos não quis se manifestar. A assessoria da Uninove também não respondeu à reportagem.
O secretário-executivo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Gustavo Balduíno, afirma que é obrigação da faculdade oferecer ações preventivas. “O melhor caminho é criar novas formas de recepção de calouros, incluir os veteranos nessas atividades, mas não deixar tudo a cargo dos alunos. Toda a instituição tem de se envolver.” A partir da recomendação do Ministério Público, universidades desenvolveram ações positivas em prol das comunidades. Essa prática – que já existia em algumas faculdades – é conhecida como “trote solidário”. A experiência do projeto Trote da Cidadania, criado há 12 anos pela Fundação Educar DPaschoal, é considerada uma das pioneiras. A iniciativa começou em Campinas (SP) e hoje está em 15 estados. A coordenadoraMarina Carvalho conta que os projetos voluntários começam de forma assistencialista, com ação pontual, e depois acabam continuando de modo mais amplo. “Assim, o que se inicia como uma ação de trote acaba engajando a vida acadêmica na realidade da comunidade”, afirma. Uma das iniciativas premiadas pelo Trote Cidadão foi o projeto “Pelo Consumo Consciente”, coordenado pelo aluno da Unicamp André Caetano Prado. O estudante de Engenharia Química conta que a ideia ganhou força em 2003, com três cursos da instituição unidos para pôr em prática o trote solidário. Houve uma mobilização para conscientizar a comunidade sobre a relevância de uma cooperativa de reciclagem na região. Atualmente, 37 cursos da instituição ajudam quatro cooperativas, entre outras organizações. “Desde 2007, a reitoria da universidade aboliu a palavra trote da instituição e adotou nosso modelo como semana oficial de recepção de novos alunos”, comemora. Para André, essa cultura é muito boa, mas é importante a participação das faculdades na coibição dos trotes pesados e no incentivo às práticas solidárias. “Mas só incentivar. Quem deve executar são os alunos, porque são eles que têm de se entender e se relacionar.”
Conte sua história Como se organiza a sua faculdade para a recepção dos calouros? Se você conhece ações bem-sucedidas que celebram com cultura, criatividade, humor e solidariedade o momento de ingresso dos alunos, a página da Rede Brasil Atual quer divulgar sua experiência. Acesse esta reportagem pelo http://bit.ly/trotelegal e envie e-mail com o assunto “Trote Legal”. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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HISTÓRIA
Carnaval na tomada O
cantor e compositor Moraes Moreira, de 63 anos, 41 dedicados à música, lançou seu segundo livro, Sonhos Elétricos (Ateliê Editorial). Trata-se de uma continuação do primeiro – A História dos Novos Baianos e Outros Versos –, no qual empregou linguagem rimada, feito um cordel, para contar a experiência da famosa banda que marcou época nos anos 1970. Agora, já com narrativa mais convencional, o autor emenda relatos de seu envolvimento com o Carnaval baiano, tendo como pano de fundo sua relação com os criadores do trio elétrico: Dodô e Osmar. “Esse livro começa onde o outro terminou: em 1975, quando encontro a família Dodô e Osmar, através do filho de Osmar, o mestre da guitarra baiana Armandinho”, explica Moraes. “A primeira parte é bem histórica, pega os Carnavais de 1975 até os anos 1990 e conta particularidades que só quem viu a história por dentro pode contar. A segunda é mais de reflexão sobre o Carnaval da Bahia, que de repente deixou de ser do povo para virar de cordas e abadás, ficando mais elitizado e resultando na minha saída do Carnaval de lá para só voltar em 2010, que é a terceira parte.” Em 1975, Moraes Moreira deixou os Novos Baianos, que integrava ao lado de Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão. O grupo revelou sucessos como Preta Pretinha, Brasil Pandeiro, Acabou Chorare, É Ferro na Boneca e A Menina Dança. “Depois de vivência intensa no dia a dia, morando e tocando juntos, chegou um momento em que as coisas não estavam fluindo tão bem e achei que precisava cuidar da minha vida. Como, junto com Galvão, sou autor da maioria daquelas músicas, levei minha bagagem e continuei de alguma forma coerente com aquele trabalho”, observa. Foi nessa altura que Moraes Moreira conheceu Adolfo Nascimento, o Dodô (1914-1978), e Osmar Macedo (1923-1997). Estudantes de música e eletrônica, eles pesquisavam uma forma de amplificar o som dos instrumentos de corda, o que conseguiram quando saíram em cima de um Ford 49, tocando instrumentos adaptados às músicas da Academia de Frevo do Recife. No ano seguinte, uma empresa de refrigerantes colocou um caminhão decorado à disposição deles. Moraes Moreira entrou nessa história mais de 20 anos depois, mas tornou-se o primeiro cantor de trio elétrico. “Modéstia à parte, eu cantei em cima do trio elétrico quando ninguém o fazia e criei um repertório de sucesso de músicas que continuam até hoje no coração e na alma do 44
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FOTOS: BETRICE FRANCIOSINI (MORAES MOREIRA)/DIVULGAÇÃO. MÁRIO LUIZ THOMPSON (DODÔ E OSMAR)/DIVULGAÇÃO
Moraes Moreira relata em livro seu encontro com Dodô e Osmar, os criadores do trio elétrico, critica o mercantilismo no Carnaval de Salvador e enaltece o de Recife Por Guilherme Bryan
povo baiano e, por que não dizer, brasileiro. Então, realmente se criou uma escola de cantores a partir desse momento em que foi viabilizada a voz em cima do Trio Elétrico Dodô & Osmar. Praticamente fui adotado por eles”, descreve, tal como havia manifestado na canção Cantor do Trio: “Eu sou um cantor do Brasil / Que canta em cima do Trio / Jogando através do fio / Uma energia pra massa / Eu sou o cantor dessa terra / Que quando canta não erra / O bom cabrito que berra / Grito no meio da praça”. Da amizade com Dodô e Osmar surgiu um dos maiores clássicos do Carnaval e da música brasileira, Pombo Correio. “Existia uma melodia composta por Dodô e Osmar em 1952 chamada Double Morse, inspirada no código Morse (sistema de sinais pelo qual eram transmitidas as mensagens telegráficas). Pensei em comunicação, e veio a imagem do pombo correio levando uma carta de amor. A música estourou, virou tema de abertura do telejornal Hoje e propaganda institucional dos Correios e Telégrafos.”
Bloco pra quem pode
A intensa relação de Moraes Moreira com o Carnaval da Bahia entrou em crise no final dos anos 1990 e fez com que ele se “exilasse” em Pernambuco. “Até o final dos anos 1970, o Carnaval era lúdico, o pessoal saía para a rua para brincar de graça. Ninguém pagava para ir atrás de trio elétrico. A partir daí vieram os blocos de cordas e abadás, em que se paga, e tomaram conta. O poder público não viu isso e os foliões pipoca, que pulam fora da corda, perderam o Carnaval e os trios. Como ninguém podia reclamar de nada e a Bahia vivia uma oligarquia pesada, eu fui retirado do Carnaval”, lamenta. Em Pernambuco, Moraes voltou a ter contato com um Carnaval que considera superdemocrático, baseado nas orquestras de frevo e nos blocos de maracatu. “O Brasil tem o Carnaval do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco como matrizes. Além disso, Pernambuco tem uma ligação com a Bahia na versão do trio, porque foi quando a Orquestra Vassourinhas passou na Bahia que Dodô e Osmar tiveram certeza de que o frevo era a música primordial do trio elétrico”, avalia. Em 2010, ele retornou ao Carnaval da Bahia “nos braços do povo”, como gosta de contar. Sonhos Elétricos acaba sendo um retrato importante não só do Carnaval da Bahia, mas da música brasileira, feito por um personagem que a vivenciou com intensidade. Agora, Moraes Moreira prepara um CD dedicado ao samba, cujo título será Cuidado, Moreira, numa referência a Moreira da Silva, morto em 2000, que ficou conhecido como um dos representantes da malandragem. Nesse álbum, ele passará por todas as formas de samba em dez canções inéditas. “É um universo riquíssimo com o qual tenho muita intimidade, porque sempre gostei, desde os Novos Baianos, quando formamos um regional de samba. Agora quero passear por essa forma brasileiríssima e, ao mesmo tempo, universal”, acrescenta. Outra paixão atual do artista é escrever. “Se estou apaixonado, tudo pode acontecer.” LIGAÇÃO DE ALTA VOLTAGEM Além de pioneiros e ousados, Dodô e Osmar fizeram escola. Moraes Moreira foi um dos primeiros cantores de trio elétrico: “Praticamente fui adotado por eles” FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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VIAGEM Acervo tem mais de 2.200 peças
Trabalho à moda antiga Museu em Belo Horizonte resgata ofícios que ajudam a contar a história do Brasil pré-industrial, expondo o engenho dos primeiros trabalhadores brasileiros Por João Correia Filho, texto e fotos
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ão há notebooks, sinais de fax nem muito menos mãos robóticas controladas por um cérebro eletrônico. O Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte leva direto a uma época em que o trabalho estava mais atrelado às mãos do homem e a ferramentas que nem de longe lembram as modernidades de hoje. Fundado em 2005, o MAO, como é chamado, possui recursos futuristas apenas para valorizar e expor o acervo de mais de 2.200 peças, do século 17 ao início do 20, que contam um pouco a história de um Brasil pré-industrial e valorizam o trabalho de milha-
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res de brasileiros de um passado não muito distante, mas surpreendente. Ferramentas, utensílios, máquinas e equipamentos diversos conduzem a uma verdadeira identificação com o universo do trabalho, ao mesmo tempo em que fascinam por seu apuro estético e pelo que representam na construção do país. É o caso das ferramentas usadas na ourivesaria, que demonstram o primor tanto no fazer joias quanto na aferição de riquezas, como é o caso das balanças de precisão milimétrica, cujas peças também chamam a atenção por seu design rico em detalhes – por si só uma verdadeira joia. Se o assunto é balanças, ou-
O museu ocupa a antiga estação de trens da cidade. O espaço foi todo restaurado
A sala dedicada a culinária explica a relação entre os alimentos, suas técnicas de processamento e os hábitos cotidianos de vários povos que habitaram o país
A descrição do modo de vida de barqueiros leva a entender o universo mítico das antigas embarcações, que adentraram o país com suas carrancas
tra peça atrai os olhares, dessa vez não por sua precisão, mas por sua função: pesar escravos. Datada do século 18, proveniente da Bahia, põe a pensar sobre o quanto o progresso tecnológico caminha descolado da evolução civilizatória. A tecelagem também demonstra sua arte em máquinas rudimentares para os dias de hoje, mas verdadeiras obras de engenhosidade. São dezenas de descaroçadores de algodão, rodas de fiar e lançadeiras, a maioria do século 19, que auxiliaram mulheres e homens a tramar o passado com perfeição. A sala que expõe a culinária explica a relação entre os alimentos, suas técnicas de processamento e os hábitos cotidianos de vários povos que habitaram o país desde
sua formação. Cenários completos dão detalhes da produção do queijo, da mandioca, do milho, da cana-de-açúcar, entre outros alimentos milenares que fizeram história em terras brasilis.
Estação
Ambientes inteiros são dedicados ao comércio, aos boticários e à fundição, além de um grande acervo de carpintaria do século 18, com centenas de ferramentas usadas na fabricação de quase tudo que se pudesse imaginar em madeira. E nada disso fica solto no espaço e no tempo. Todo o museu é dividido em áreas temáticas: ofícios ambulantes (que inclui de dentistas a afiadores de facas), ofícios
da cerâmica, da cozinha, da madeira, da mineração, da terra, do couro, do fogo, do transporte e até da proteção ao viajante, que inclui uma coleção de armas. Para facilitar, os temas estão ainda agrupados em categorias, como carpintaria, ferraria, fundição e ourivesaria, entre outras que deram origem a muitas profissões contemporâneas. Sobre geração de energia, algo muito comentado nos dias de hoje, o MAO também dá seu recado: o Jardim das Energias é um espaço dedicado a grandes moendas de cana originalmente movidas a água e a animais e exibe estruturas com engrenagens complexas, feitas por carpinteiros e marceneiros, também homenageados no museu. Lá dentro, a descrição do modo de vida de barqueiros e comerciantes de vias fluviais leva a entender o universo mítico das antigas embarcações, que adentraram o país com suas carrancas – espécie de escultura instalada na frente das embarcações –, usadas como forma de proteção espiritual. Algumas ali expostas são originais do grande mestre Francisco Bisquiba Guarani, criador das primeiras peças, que percorreram o Rio São Francisco até meados do século passado. A criação do museu foi iniciativa do Instituto Cultural Flávio Gutierrez, em parceria com o Ministério da Cultura e a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU). O MAO ocupa os espaços da Estação Central de Belo Horizonte, construída no final do século 19, com sua bela fachada em meio à Praça da Estação, esta inaugurada junto com a fundação da cidade. O local foi totalmente restaurado e se tornou um dos cartões-postais de BH. Por ali transitam diariamente milhares de pessoas, tanto na praça como nos trens que ainda adentram as plataformas do edifício do museu e servem de parada para composições que cortam a cidade. Aliás, uma estrutura de vidro instalada em algumas áreas do MAO permite ver o embarque e desembarque de passageiros. E dá provas de que se está diante de um museu vivo, onde o trabalho, esse componente vital de nosso cotidiano, é protagonista permanente da história.
Programe-se
Museu de Artes e Ofícios: Praça Rui Barbosa, s/n (Praça da Estação), Belo Horizonte. Terça, quinta e sexta-feira, das 12h às 19h. R$ 2 a R$ 4. Quarta-feira, de 12h às 21h (grátis das 17h às 21h). Sábado, domingo e feriados, das 11h às 17h (grátis aos sábados). Confirme antes: (31) 3248-8600. Visita virtual: www.mao.org.br FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
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Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)
Cultura e revoluções
Paixão e ousadia
Cinema Cubano (Alameda Editorial, 440 páginas), livro da historiadora Mariana Villaça, é uma contribuição para os estudiosos da relação cinema-história, ao desfiar ponto a ponto a política cultural de Cuba entre 1959 e 1991. Mariana analisa os dilemas que envolviam as relações entre arte e revolução a partir da trajetória do Instituto Cubano da Arte e Indústria Cinematográficas. No período, em busca de novos caminhos, diretores e críticos debateram escolas como Neorrealismo, Realismo Socialista, Nouvelle Vague, o Cinema Novo brasileiro, o Nuevo Cine Latino-americano e a ideia de um cinema popular. R$ 65.
O ator Rodolfo Bottino apresenta de forma irreverente o documentário Pampulha – ou A Invenção do Mar de Minas, de Oswaldo Caldeira, que reconstitui detalhes da construção do conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte, na década de 1940. Essa foi a primeira obra de projeção internacional da arquitetura brasileira. Na época, o então prefeito de BH, Juscelino Kubitschek, apostou no talento do jovem Oscar Niemeyer, que teve apenas um dia para esboçar sua ideia. Acabou esboçando uma amizade, cujo ápice se deu com a construção de Brasília. Com depoimentos de artistas, estudiosos e personagens da época, o filme mostra como a paixão e a ousadia, componentes da reunião de talentos como os de Niemeyer, Burle Marx, Ceschiatti e Portinari, resultaram num marco do modernismo. Em DVD.
Cadeiras (século 19)
Astrolábio em metal (século 19)
Corão com páginas douradas (século 17)
Estandarte decorado com motivos vegetais (século 8)
O Islã chega a São Paulo As mais de 300 obras da arte milenar islâmica, dispostas em quatro andares do Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, remontam a história de uma das culturas mais influentes da humanidade. Diversas peças jamais haviam deixado seu país de origem. A exposição Islã: Arte e Civilização mescla objetos de museus do Oriente Médio, entre eles o Nacional de Damasco, Cidade de Aleppo e Palácio Azem, da Síria, e os 48
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iranianos Museu Nacional, Museu Reza Abassi e Museu do Tapete. Estão expostas ainda obras pertencentes ao acervo da Biblioteca e Centro de Pesquisa América do Sul-Países Árabes (BibliAspa), do Marrocos, Mauritânia, Líbia, Líbano, Burkina Faso e Brasil, e peças do Mali, Níger e Nigéria, da Casa das Áfricas. Rua Álvares Penteado, 112, Centro. De terça a domingo, das 10h às 20h. Entrada franca. Até 17 de março.
Cores, sombras e silêncio Agô! é o registro fotográfico de Marcello Vitorino em mais de dois anos de visitas às nações Queto, Angola e Jeje-Nagô, nos terreiros de candomblé e umbanda de Diadema, no ABC paulista. Das 3.000 imagens produzidas nesse período, 31 foram selecionadas e ampliadas no formato 50 x 75 cm. Também foi montado um painel composto por espelhos e 81 fotografias 10 x 15 cm. A exposição Agô! faz parte de um projeto realizado há uma década pelo profissional, no qual as manifestações de fé do homem em sua busca pelo contato com o sagrado são reveladas em cores fortes, sombras profundas e um clima eminentemente silencioso. O preparo da festa, a simbologia, os personagens – equedes, ogãs, iaôs, babalorixás – e suas relações no espaço mítico do terreiro são alguns dos aspectos explorados. Agô, na língua iorubá, quer dizer “licença”. Assim, com respeito, o fotógrafo tem entrado nos terreiros para conhecer uma cultura milenar que ainda hoje recebe olhar preconceituoso de parte da sociedade. A exposição e um catálogo que será impresso com as imagens têm apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, por meio do Programa de Ação Cultural 2010. Museu de Arte Popular. Rua Graciosa, 300, Centro de Diadema. Telefone (11) 4056-3366. De terça a sexta, das 13h às 19h. Sábados, das 13h às 18h. Entrada franca. Até 19 de março. FEVEREIRO 2011 REVISTA DO BRASIL
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Crônica
Por B.Kucinski
A atendente D
B.Kucinski é jornalista e escritor
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everia ter sido uma conversa impessoal, eu cliente do banco, um entre centenas, ela gerente de contas, uma de duas dezenas; por acaso, era a que estava livre, podia fazer-se de ocupada, mas não, ao contrário, acenou, chamou-me, o senhor deseja alguma coisa, eu disse, você pode me atender, claro, sente-se por favor; ela sorria, descontraída, muito jovem, eu estranhei, atendentes não gostam de atender, viram para outro lado, mexem nas gavetas, falam ao telefone, assim postergam a agressão do cliente seguinte, mais um de ânimo beligerante, com bronca da porta giratória, da demora, da opacidade do banco, mas ela não, mal o outro se levantou já me chamou, como se não quisesse ficar sozinha, quantos anos, não mais que 25, calculei, rosto pequeno e oval, cabelos lisos, olhos brilhantes, os dentes da frente miúdos e protuberantes ao invés de enfeiá-la conferiam-lhe um toque de simpatia, era como se ela fizesse bico ao sorrir, expliquei o que queria, transferir dinheiro da poupança e de um fundo para a conta corrente, não era pouco dinheiro, ela perguntou o senhor vai fazer um investimento novo, eu respondi vou, mas em outro banco, e arrematei, estou com raiva deste banco, mas tanta raiva assim, ela perguntou, muita raiva, eu disse, dá vontade de jogar uma bomba, por exemplo, aí contei o caso do cheque recebido da Inglaterra há três meses que ainda não havia sido descontado, contei o caso do cartão de crédito que não funcionou na Colômbia, resumi porque não queria aborrecê-la, eu mesmo já estava cansado de repetir as histórias a tantos gerentes de contas, ela escutando interessada, de repente levou a mão aos olhos, percebi
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que estavam avermelhados, discretamente retirou com os dedos duas lágrimas, primeiro de um lado depois do outro, ela estava chorando, pensei, depois fiquei em dúvida, nossa conversa deveria ser impessoal, não, não chorou, deve ter sido um cisco, mas arrisquei, o que eu disse fez você lembrar alguma coisa, ela fez que sim, e então me contou, disse que vinha de uma agência importante no fórum, que ganhava bem, tinha um carro melhor do que tem hoje, mas o serviço era digitar circulares, digitava o dia inteiro, dois anos só digitando, nos últimos meses estava enlouquecendo, trocava números, errava os nomes, o sonho dela era ir para o atendimento, falar com pessoas, e tanto pediu que conseguiu, mas gerente de contas vira saco de pancadas, eu disse, ela respondeu que não se importava, que para ela foi a libertação, ela adora o atendimento, concordou que o serviço era ruim, precisa melhorar, a direção sabe disso, vão dar cursos, vão trocar tudo, as cadeiras, as mesas, eu disse não adianta, não são as cadeiras, são as pessoas, isso aqui parece repartição pública, ninguém sabe nada, só olham a telinha do computador, se está lá respondem, se não está não respondem, ela concordou, mais duas lágrimas, logo se recompôs, eu gosto tanto do atendimento, ela disse, vai melhorar, o senhor vai ver, tem que melhorar, sorriu, fez o biquinho involuntário, simpática; em cada mão levava um anel volumoso, de metal branco. Só ao final perguntei seu nome. Ela havia chorado e eu nem sabia seu nome. Márcia, simpática Márcia, eu disse, você podia pedir à chefia para ser a gerente da minha conta, ela aquiesceu, despedi-me, só então notei a aliança na mão esquerda, semioculta pelo anel. Márcia é casada. Que pena.
A PeTrobrAS ProcUrA SemPre Ser UmA reFerÊNcIA. meSmo qUe em AlGUNS cASoS Não TeNhA NINGUém em volTA PArA ver.
A Petrobras acredita que todo desafio tem uma solução. Por isso, ela possui um modelo de governança que é referência nacional e internacional. Um modelo que obteve nota máxima no critério Transparência do Índice de Sustentabilidade Dow Jones (DJSI) e que segue os princípios do Pacto Global, iniciativa internacional que preza, entre outros valores, pelo bem-estar dos trabalhadores e pela responsabilidade ambiental. Assim, a Petrobras tem a certeza de que vai ser uma empresa cada vez maior e mais reconhecida no mundo inteiro.