Revista do Brasil nº 058

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BELO E MALVADO Ney Matogrosso, 70 anos, grava “malditos” e encarna o vilão abril/2011

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Matheus, da Associação Nacional dos Torcedores, critica mudanças no Maracanã pós-reforma

I SSN 1981-4283

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nº 58

R$ 5,00

FUTEBOL DE ELITE Ingressos caros e horários ingratos: como a TV e os cartolas expulsam o torcedor do campo

1º DE MAIO No Ano Internacional do Afrodescendente, CUT debate relação Brasil-África


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Índice

Editorial

Entrevista 36 Aos 70 e em forma, Ney Matogrosso ataca de Bandido da Luz Vermelha Cultura 40 Na Paraíba, Chico César quer o povo mais perto da arte, e vice-versa

BEAWIHARTA BEAWIHARTA/REUTERS

Trabalho 12 CUT chama a atenção para os laços Brasil-África na festa do 1º de Maio Mundo 16 Se o Itamaraty seguisse cornetadas da mídia, aderiria ao colonialismo Direitos humanos 22 Sobrevivente de massacre há 16 anos vive na clandestinidade Urbanismo 24 Brasília tenta rever seu Plano Diretor, manchado pela lama do caso Arruda Ambiente 28 Uma nova política de resíduos sólidos tenta acabar com um velho problema Capa 32 Batalhas de TVs, obras em estádios e desprezo pelo pobre fã do futebol Na Indonésia: “Derrote o regime de Kadafi. Rejeite o exército americano e as forças aliadas”

Para não desaprender

LUIZA REIS/DIVULGAÇÃO

A

Piscina natural no Parque da Pedra Branca

Viagem 46 Maior parque urbano do mundo, no Rio de Janeiro, busca revitalização SEÇÕES Cartas

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Ponto de Vista

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Na Rede

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Atitude

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Curta Essa Dica

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Crônica

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o deixar o Brasil, onde passou dois dias, Barack Obama foi ao Chile e teve de ouvir uma pergunta sobre a responsabilidade dos Estados Unidos no golpe de 1973, que terminou com a morte do presidente constitucional, Salvador Allende, e a formação de uma sangrenta ditadura. O presidente norte-americano esquivou-se, afirmando que não poderia falar sobre todas as decisões políticas do passado, só as do presente. Disse ainda que era importante aprender com a história, mas não ficar preso a ela. Aparentemente, as lições não foram aprendidas. Influenciadas pelo poderio norte-americano, outras nações empenham-se em apoiar ataques a países como a Líbia, antes mesmo de buscar uma solução negociada. Mas essa indignação, em nome de ideais humanitários, é seletiva. Assim como aconteceu no Egito, no Bahrein, no Brasil, no Chile, na África do Sul, ditaduras podem ser toleradas e estimuladas, caso convenha a Washington. A velha história volta e meia se repete. Ao longo do século 20, incursões europeias pela Ásia e pela África, principalmente, levaram à formação de regimes autoritários, exploração, violência e a longas lutas por independência em diversos países – hoje convertidas em lutas contra a miséria –, à custa de um sem-número de vidas e após muita dignidade pisoteada. Os Estados Unidos não ficaram atrás, patrocinando golpes na América Latina. O “nosso” acaba de completar 47 anos e, até hoje, o país não consegue rever o que aconteceu naquele período. Empecilhos – alguns imaginários, paranoicos ou simplesmente cínicos – ainda se criam para impedir a formação da Comissão da Verdade. Diferentes retratos do pensamento colonialista estão presentes nesta edição e servem de reflexão para que tipo de comportamento cada país deve adotar em relação aos demais. Por muito tempo, e com a cumplicidade da mídia, o Brasil seguiu a política de alinhamento incondicional ao que se chamava Grande Irmão da América do Norte. Reorientar essa política, priorizando as relações com países da América Latina e da África, bastou para despertar um bombardeio – internamente e no sentido figurado, claro – por quem ainda crê que o que é bom para os EUA é bom para nós, conforme anotava o velho bordão dos anos 1950-60. Não há fórmula mágica. Ações que visem subjugar outros países resultam apenas em sua degradação e no desrespeito à vida. As relações internacionais pressupõem diálogo e respeito, sem retórica. ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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Cartas Informação que transforma Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores-assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Ricardo Negrão, Suzana Vier e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo e Betto Silva Capa Montagem com fotos de Rodrigo Queiroz e Ricardo Moraes/Reuters Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia, (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda, Carla Gallani e Paulo Rogério Cavalcante Alves Impressão Bangraf, (11) 2940-6400 Simetal, (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

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Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Carlos Bortolato, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sérgio Luis Carlos da Cunha, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Ivone Maria da Silva Teonílio Monteiro da Costa

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REVISTA DO BRASIL ABRIL 2011

Fôlego jovem Além de ótimo texto, a reportagem “Fé na moçada” (capa da edição 57) desmistifica a propalada tese de que a juventude, hoje, é despolitizada. Eu mesmo, com a experiência de quem começou cedo na militância política e de ex-dirigente estudantil, nunca senti nem acreditei nessa lenda de que os jovens, agora, se interessam menos por política. A revista entrevistou jovens que participam de diversas organizações políticas, e concluiu que todos têm as mesmas intenções e valores comuns – a seu modo, querem ampliar a solidariedade e melhorar o mundo. José Dirceu, São Paulo (SP) Motosserra de ouro Com relação ao texto da coluna Na Rede (edição 55), gostaria de dar ao Greenpeace meus parabéns e dizer que o “prêmio” Motosserra de Ouro dado à senadora Kátia Abreu foi muito merecido. Nicoly Sommerfeld, Mauá (SP) Mariana Caltabiano Quero cumprimentá-los pela reportagem “Quanta animação” (edição 55), que descreve o trabalho de Mariana Caltabiano, uma mulher que trabalha na área infantil educando e ensinando crianças. Uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi, quando ela recebeu a notícia da morte de seu colega de trabalho, a importância que passou a dar a sua vida. Foi quando ela passou a se dedicar realmente ao público infanto-juvenil. Thaís Elisa da Silva, Ribeirão Pires (SP) Sem-teto Eu não gostei nada da atitude da prefeitura e da polícia (“Capital da contradição”, edição 55). Eles poderiam ter tido uma conversa civilizada com os desabrigados, em vez de chegar derrubando tudo e começar a agredi-los com spray de pimenta. Eu aposto que, se os policiais estivessem no lugar daquelas pessoas, fariam a mesma coisa que elas. Samantha Vicentim, Ribeirão Pires (SP)

Maria Bonita Excelente reportagem, tanto na valorização da mulher quanto por preservar a história do Nordeste brasileiro, na figura de Maria Bonita. João Sousa Lima, Salvador (BA) E Lampião Nordeste, sertão, cangaço, violência, estupidez, Lampião, mulher e, especialmente, Maria Bonita. E no mês de março! É de suma oportunidade. João Bosco Soares dos Santos, Santo Amaro (BA) Juazeiro, não Não anunciamos que João Gilberto faria algum show em Juazeiro (“João, made in Juazeiro”, edição 57). Estamos, sim, estruturando uma homenagem aos seus 80 anos com músicos e compositores do “círculo universal da bossa nova”. João não tem conversado com ninguém, está em silêncio profundo. Talvez ainda nem saiba dessa homenagem. Conheço João desde 1981, já estivemos juntos inúmeras vezes. Maurício Dias Cordeiro, compositor e produtor do evento, Juazeiro (BA) Juazeiro, sim Se vocês ainda mantêm contato com o pessoal próximo a ele, digam ao homem que venha. Juazeiro precisa desse presente! João Marques Valente, Juazeiro (BA) Obesos Estamos realizando um abaixo-assinado para que se crie uma lei específica para combater a discriminação contra os obesos em concursos e empregos (“Governo do Bullying”, edição 57): http://bit.ly/abaixo_assinado. Assine e divulgue a seus contatos. Vamos, juntos, fazer democracia. Lidia Eliane Canuto de Souza, Santo André (SP) revista@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as mensagens venham acompanhadas de nome completo, telefone, endereço e e-mail para contato. Caso não autorize a publicação de sua carta, avise-nos.


PontodeVista

Por Mauro Santayana

Memórias de Abril

O golpe de 1964 iniciou uma série de intervenções militares patrocinadas pelos EUA na América Latina, na África e na Ásia – guiadas pelo apetite colonialista ainda presente nos conflitos do mundo

O

Brasil chegara ao fim do governo Juscelino – tal como ocorrera no cerco a Vargas, em 1954 – enKubitschek em pleno processo de desen- toavam a mesma cantilena contra a “comunização do volvimento econômico, que exigia novos Brasil”. Os norte-americanos tinham como aliados as passos a fim de consolidar o realizado e oligarquias rurais, organizadas contra a reforma agráavançar com o mesmo ímpeto. Estávamos, ria, os banqueiros, atemorizados diante de anunciada para lembrar Celso Furtado, em plena construção nacio- reforma bancária, a hierarquia católica, sob o comannal, que se iniciara com o projeto de soberania de Var- do de arcebispos ultramontanos, que se opunham, in gas, levado ao suicídio pelos mesmos golpistas de 1964. pectore, aos rumos preconizados por João XXIII e, de No plano internacional, o avanço tecnológico soviético, certa forma, também inspiradores de Paulo VI, que o com os êxitos na exploração do espaço, atemorizava os sucedeu em 1963. Estados Unidos e seus aliados europeus. Na América LaO núcleo da reação empresarial foi o Instituto de Pestina, a Revolução Cubana trazia nova oporquisas e Estudos Sociais (Ipes), organizatunidade para os oprimidos e explorados Os EUA do em São Paulo, que se tornou o centro de sempre. Como observou então o jorna- tinham civil da conspiração, financiado por granlista e escritor Franklin de Oliveira, não é como aliados des empresas estrangeiras no Brasil e alo desespero, mas sim a esperança que faz gumas nacionais, posto sob o comando do oligarquias as revoluções. general Golbery do Couto e Silva. Eleito presidente, Jânio Quadros pro- rurais, A esquerda também teve sua culpa, no vou sua imaturidade logo nos primei- banqueiros, açodamento de alguns grupos que suros meses. Faltava-lhe o caráter dos ver- empresários. bestimavam a influência da classe média dadeiros estadistas. Fraquejou diante de Cooptaram alienada e temerosa – envenenada pelos outro insensato de mais talento político, políticos, meios de comunicação – de ter de dividir que foi Carlos Lacerda, e tentou o gola moradia, de perder o emprego público e oficiais pe com a renúncia. Naquele momento – até da dissolução dos costumes. Acrescenagosto de 1961 –, estivemos a pouca dis- das Forças te-se que as organizações de esquerda estância de uma guerra civil. Como se sabe, Armadas, tavam infiltradas por agentes provocadoos ministros militares vetaram a posse de veículos de res, como o cabo Anselmo, entre outros. João Goulart, o vice-presidente, substituto comunicação Foi assim que, sob a orientação direta constitucional e legítimo. Imediatamente e construíram do general norte-americano Vernon Walsurgiu, em todo o país, a resistência civil ters, adido militar no Brasil, alguns altos o ambiente à violação dos princípios constitucionais. oficiais, sob a direção do general HumEssa resistência encontrou a adesão mili- para o golpe berto Castello Branco – que fora compatar do 3º Exército, de maior poder de fogo, nheiro do ianque na Itália –, passaram a sediado no Rio Grande do Sul, do governador Leonel preparar o golpe, para ser desferido em maio. SabenBrizola. Com isso, houve certo equilíbrio de forças, o do da conspiração, e pretendendo dela retirar proveito que favoreceu as negociações de Tancredo Neves, cuja pessoal­, o governador de Minas, Magalhães Pinto, ashabilidade impediu o desfecho sangrento. sociou-se aos generais Olympio Mourão Filho e CarEntre 1961 e 1964 houve a articulação da direita, com los Luís Guedes para antecipar a operação. O êxito dos a atuação descarada dos Estados Unidos, mediante o golpistas ocorreu na madrugada de 1º de abril. financiamento do Instituto Brasileiro de Ação DemoA intervenção militar de 1964 iniciou uma série de crática (Ibad), organização empresarial anticomunis- outras na América Latina, na África e na Ásia, sempre ta, e a cooptação de deputados, senadores, oficiais das sob o comando dos Estados Unidos, por intermédio da Forças Armadas e governadores. Também foram su- CIA. O mais cruel ocorreu na Indonésia, no ano seguinbornados jornalistas e veículos de comunicação, que te, com quase 2 milhões de assassinados.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980

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NaRede

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Reforma ou puxadinho?

Por Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Fábio M. Michel, Guilherme Amorim, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Ricardo Negrão, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Vitor Nuzzi

Voto distrital ou distritão? Lista aberta ou lista fechada? Voto proporcional ou majoritário? Financiamento público de campanha ou manutenção das doações privadas? Cada partido tem uma visão – e há muitas visões dentro de um mesmo partido, em geral. É a reforma política começando a ocupar a agenda do Congresso. A Rede Brasil Atual conversou com líderes de cinco grandes legendas para saber o que eles pensam. A questão ainda vai provocar muita polêmica, como mostra a diversidade de opiniões. A Comissão de Reforma Política do Senado conclui agora seu trabalho com mais divergências do que concordâncias. A comissão da Câmara terá até agosto para tocar o debate. http://bit.ly/RBA_reforma_politica Representantes da central foram recebidos por Gilberto Carvalho

Mercosul, 20 anos

AUGUSTO COELHO

Em 26 de março de 1991, Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai anunciavam a criação do Mercado Comum do Sul, o Mercosul, que, além de um canal para escoar a produção econômica entre seus países-membros, nasceu para integrar iniciativas políticas, sociais e culturais entre as nações. O estreitamento das relações políticas permitiu ao continente barrar a expansão da Alca. E estimulou o surgimento de outras organizações, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). http://bit.ly/RBA_mercosul

Existem hoje quase 24 mil crianças em situação de rua no Brasil

ANTONIO CRUZ/ABR

CUT ocupa Congresso

Futuro na rua

Pesquisadores do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) percorreram 75 municípios com mais de 300 mil habitantes, para abordar o perfil, as privações de direitos fundamentais e a convivência familiar. Alcoolismo, violência doméstica, falta de condições de vida e abuso sexual­ estiveram presentes em depoimentos de 70% dos ouvidos. A falta de políticas públicas é, segundo o promotor da Vara de Infância e Juventude Wilson Tafner um dos principais fatores para que haja quase 24 mil crianças no Brasil em situação de rua. Em bairros pobres da cidade de São Paulo estima-se um déficit de 60 mil vagas em creches. http://bit.ly/RBD_conanda

A semana entre 21 e 25 de março foi de agenda cheia para a Central Única dos Trabalhadores. Começou com dois dias de seminário que elencou propostas para uma reforma tributária – tema que a presidenta Dilma Rousseff pede que o Legislativo priorize. A CUT defende um sistema tributário mais progressivo – com maior taxação sobre o capital e menos sobre a renda do trabalho e o consumo –, que estimule a distribuição de renda. Em seguida, cerca de 400 militantes percorreram os gabinetes do Congresso e promoveram uma ocupação pacífica. O objetivo foi levar à Casa propostas – além da questão tributária – de mudanças na política econômica, redução da jornada de trabalho sem redução de salário, fim do fator previdenciário, valorização das aposentadorias, combate às demissões sem justa causa e fim do imposto sindical. O presidente da central, Artur Henrique, solicitou ao ministro da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, que também fossem discutidas as condições de trabalho em obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “Queremos a discussão não só de Jirau, mas envolvendo todas as obras de infraestrutura que estão programadas, como as da Copa do Mundo, do programa Minha Casa, Minha Vida e do trem-bala”, disse. http:// bit.ly/RBA_cut_congresso

A Rede Brasil Atual traz informações diárias sobre política, economia, saúde, cultura, cidadania, América Latina e mundo do trabalho no www.redebrasilatual.com.br e também no Twitter e no Facebook.

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Opinião

Por Laurindo Lalo Leal Filho

Violência sem disfarce Se há 2.000 anos houvesse televisão comercial, com certeza as câmeras mostrariam, ao vivo, os cristãos enfrentando os animais no Coliseu. Com grande audiência

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violência é um ingrediente básico da TV, 5.000 crianças de 12 anos, em 23 países, incluindo o junto com o sexo. Um e outro pegam o Brasil, e concluiu que a televisão é hoje o principal instelespectador naquilo que o ser huma- trumento de educação em todo o mundo. Nos países no tem de mais básico: a luta pela vida e pesquisados, o tempo livre das crianças, fora da escola, pela reprodução da espécie. Semelhante era ocupado majoritariamente pela TV, muito acima a qualquer animal. A violência está presente nas nove- do gasto com lições de casa, leituras e práticas esporlas, nos programas de auditório e no tipo de jornalis- tivas. A pesquisa mostrou também que os modelos mo apresentado pela maioria dos canais. mais admirados por crianças e jovens são Ainda que brutais, tiros, socos e gritos são, Em cada hora os chamados “pop stars” e os heróis, como nesses casos, embalados por algum enre- de programa o de O Exterminador do Futuro, ídolo de do na tentativa de justificá-los. 88% das crianças. Metade dos entrevistaexibido na Agora, no entanto, está no ar uma atrados gostaria de ser como ele. TV há entre ção na qual a violência é apresentada sem “Em cada hora de programa exibido na disfarces: são as chamadas lutas marciais cinco e televisão há entre cinco e dez ações violenmistas, disputadas pelos contendores em dez ações tas, o que faz com que um jovem aos 20 pé ou no chão. É o vale-tudo de verdade, violentas, anos já tenha presenciado cerca de 25 mil não mais as marmeladas circenses de ou- o que faz mortes violentas e 200 mil atos de violêntras épocas, nas quais pontificavam artis- com que um cia”, ressalta o pediatra Ulysses Doria Fitas como Ted Boy Marino e o Índio Pado Hospital das Clínicas de São Paulo. jovem aos 20 lho,Levantamento raguaio. Hoje, as disputas internacionais realizado na Alemanha, movimentam fortunas e as lutas são, lite- anos já tenha pelo Ministério da Família, registrou em ralmente, de vida ou morte. A UFC, prin- presenciado uma semana 536 assassinatos exibidos cipal promotora desse “esporte”, está ava- cerca de 25 pela TV, o que dá 28 mil crimes desse liada em cerca de US$ 1 bilhão. tipo por ano. O problema, portanto, não mil mortes Lutadores viram celebridades e são violentas e é só nosso. Mas em regiões mais violenvistos até em programas matinais, do tas, como as áreas metropolitanas brasi200 mil atos tipo Ana Maria Braga. Tornam-se ídoleiras, o efeito da TV tende a ser potenlos de jovens e adolescentes. Mas qual a de violência cializado. Os números mencionados da virtude por eles pregada? Simplesmente televisão alemã foram obtidos depois da a destruição física do semelhante, já que a luta pode privatização de vários canais. Para um ex-diretor da causar lesões definitivas ou mesmo a morte. Outro rede pública Südwestfunk Baden-Baden, Dieter Ertel, dia, uma professora de ensino fundamental, na zona “não foi a introdução da televisão, mas sua privatizaleste de São Paulo, conversava com os alunos sobre ção que provocou graves consequências para a nova violência e, quase todos, pelo menos verbalmente, a ordem cultural”. condenavam. Diziam que desavenças deveriam ser A TV brasileira, desde seu início, em 1950, é quase resolvidas pelo diálogo, e não na pancada. Alguns, totalmente privada e a busca desenfreada pela audiêncuriosamente, carregavam pastas e cadernos enfeita- cia acaba passando por cima de cuidados éticos e esdos com distintivos da UFC. téticos. Chegamos agora à violência sem disfarce. Um Apresentada como esporte, a luta banaliza a vio- chute no rosto do adversário, o sangue jorra e o lutalência. Crianças e jovens assimilam e reproduzem es- dor cai desfalecido. Nada muito distante do que se via ses comportamentos, até com certa naturalidade. Há nas arenas romanas. Se há 2.000 anos houvesse televiinúmeras pesquisas que comprovam isso, como a do são comercial, com certeza as câmeras mostrariam, ao professor Jo Groebel, da universidade holandesa de vivo, os cristãos enfrentando os animais no Coliseu. Utrecht, patrocinada pela Unesco. O trabalho ouviu Com grande audiência.

Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da ECA/USP; diretor e apresentador do programa VerTV, da TV Brasil e da TV Câmara; autor dos livros A Melhor TV do Mundo e A TV sob Controle, da Summus Editorial; e ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação

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NA RÁDIO

A saúde pública na UTI Série de reportagens do programa de rádio Jornal Brasil Atual faz, em dez capítulos, um delicado diagnóstico da deterioração do atendimento em São Paulo

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FOTOS JAILTON GARCIA

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ronto-socorro que fecha as portas para os casos de emergência. Postos de saúde e atendimentos ambulatoriais superlotados. Falta de médicos e enfermeiros. Diagnósticos equivocados. Esses são alguns dos problemas enfrentados por usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) que buscam serviço de emergência e ambulatorial no município de São Paulo. Referência mundial no atendimento médico universal à população, o SUS vem sofrendo em algumas regiões, nos últimos anos, um processo de privatização. No caso de São Paulo, Secretarias de Saúde da capital e do estado passaram a administrar hospitais e ambulatórios de forma indireta, por intermédio das Organizações Sociais de Saúde (OSS). Essas entidades têm sido alvo de críticas por parte dos usuários, de investigações pelo Tribunal de Contas e de representações no Ministério Público. As OSS administram grande parte dos hospitais, ambulatórios e laboratórios, e o beneficiário do SUS pode esperar anos para conseguir uma cirurgia ou uma consulta com especialista. Com fortes dores de estômago, Silvia Cristina de Lima Moura, de 28 anos, foi

DORES INSUPORTÁVEIS Diagnosticada com grandes pedras na vesícula em 2008, Silvia só conseguiu ser operada, em fevereiro passado, graças à intervenção do Ministério Público


promotor de Direitos Humanos da área pública Arthur Pinto Filho. A mãe de Silvia, Josefina, de 62 anos, acompanhou todo o sofrimento da filha. “Nem gosto de falar no assunto, que já dá vontade de chorar. Cheguei no Ministério Público chorando, então falei que quem tem dinheiro tem vida, se não, tem a morte na mão.” Jucelino Ferraz Pereira, de 44 anos, sofreu esmagamento em duas vértebras num acidente de moto. Um implante metálico de 39 centímetros foi colocado em sua coluna. Ele ficou paraplégico e voltou a andar com um trabalho árduo de reabilitação. Há três anos sente dores e não consegue consulta com especialista. “Estou tentando, mas não consigo vaga. O rapaz que tava marcando disse que iria marcar, mas que já tinha 500 pessoas­na minha frente”, explica. Desesperado, ele resolveu pagar uma consulta particular com um neurocirurgião, em 2009. O especialista informou que a cirurgia era cara e o mais indicado seria operar pelo SUS. Sugeriu o Hospital das Clínicas, a Beneficência Portuguesa ou um hospital universitário. “Nos hospitais indicados não me atenderam. Eu teria de ser encaminhado por algum lugar, mas as UBS não encaminham”, conta. Com problemas no canal da medula, Jucelino pode voltar a não andar.

Gestão POUCO CASO Jucelino tem um implante metálico na coluna e, se não for operado em breve, pode ficar sem andar. No serviço público, não consegue atendimento

diagnosticada com gastrite na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Clímax, zona sul da capital. Ficou três anos em tratamento e o problema persistiu. “Eram dores piores que de parto. Fiquei amarela, a barriga inchou. Eu me automedicava, tomava vários analgésicos por dia.” Chorando de dor, um dia ela relatou ao médico sua piora. Um ultrassom abdominal acusou pedras na vesícula, e em 2008 Silvia entrou na fila do Hospital São Paulo, administrado pela OSS Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina. Seu número era, na época, 880. No ano passado, 621 pessoas ainda estavam na sua frente. A paciente só conseguiu ser operada, em 18 de fevereiro, com a intervenção do Ministério Público – após uma denúncia do

Os dramas vividos por Silvia e Jucelino expõem a política de saúde implantada no estado de São Paulo em 1998 e no município em 2006: a privatização via gestão indireta das OSS. O tema complexo e polêmico ganha um novo capítulo. Com o projeto de lei de autoria do Executivo estadual e aprovado pela Assembleia Legislativa no final do ano passado, que oferece 25% dos leitos do SUS para os planos de seguro de saúde, o número de vagas para quem não tem convênio médico poderá ficar ainda menor nos hospitais. A lei aguarda regulamentação e gera apreensão entre movimentos de saúde, sindicalistas, promotores, profissionais da área médica e especialistas em políticas públicas. E o beneficiário do SUS continua no jogo de empurra, esperando na fila, em casa. O modelo distancia o Sistema Único de Saúde da proposta que o originou, a universalização da saúde pública, ou seja, todo brasileiro tem direito a assistência gratuita à saúde. De acordo com o promotor Arthur Pinto Filho, usuários do sistema estão mor-

rendo por falta de atendimento adequado. A declaração é feita com base nas centenas de reclamações que chegam ao Ministério Público Estadual todo mês. Emergência, cirurgia, consulta, internação. As dificuldades que o cidadão enfrenta para ser atendido pelo SUS em São Paulo, principalmente nas zonas mais carentes, como leste e sul, são enormes. O pronto-socorro pode estar fechado, a cirurgia chega a levar dois anos e meio para ser realizada, a consulta não é marcada por falta de especialista e, se o paciente precisar de UTI, pode ter a vaga negada. Esse quadro tende a piorar caso a lei seja regulamentada. É o que alerta Maria do Carmo Cabral Carpintero, presidenta do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo. Ela afirma que é inconstitucional vender serviços do SUS, principalmente em hospitais públicos de excelência. Por isso a entidade encaminhou, ao Instituto de Defesa do Consumidor, Sindicato dos Médicos, Instituto de Direito Aplicado e a outras entidades ligadas ao setor de saúde uma representação no Ministério Público Estadual. O presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Cid Carvalhaes, alerta que praticamente todos os hospitais no estado administrados por OSS já funcionam de porta fechada. Só recebem pacientes encaminhados por meio da Central de Regulação de Vagas. Do outro lado do balcão, médicos, enfermeiros, auxiliares e seguranças que trabalham no sistema público de saúde são alvo de críticas por parte dos usuários do SUS. Os sindicalistas que representam esses funcionários, por sua vez, reclamam das condições de trabalho e da falta de concursos públicos. Maria Araci dos Santos, diretora do Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Saúde do Estado de São Paulo (SindSaúde­), acredita que o comprometimento dos concursados é maior. Desde 2004 os trabalhadores do estado foram cedidos para as prefeituras, em decorrência da municipalização do serviço, e com a administração indireta das OSS as dificuldades têm sido grandes, segundo a sindicalista.

Ouça e baixe Ouça no portal Rede Brasil Atual ou baixe em seu computador o áudio da série de reportagens Ferida Aberta, da jornalista Marilu Cabañas. O atalho é http://bit.ly/RBA_ferida_aberta ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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NA TV Maria Amélia Rocha Lopes conduz o batepapo em Memória e Contexto

Osvaldinho da Cuíca

REPRODUÇÃO TVT

Tia Eva

Memória e Contexto

Acadêmicos e populares, lideranças de movimentos e artistas. Personagens e fatos do rico acervo da TVT inspiram pautas atualizadas e saborosas sobre assuntos que fazem história

E

la não tinha onde ficar. Os policiais não poderiam levá-la para nenhum lugar. Tia Eva resolveu saltar do camburão e acabou embaixo da ponte, no bairro da Pompeia, em São Paulo. Depois seguiu a vida pelas ruas da cidade com outras meninas e meninos abandonados. Ela começou muito cedo a ter contato com todos os perigos de uma sobrevivência constantemente ameaçada pela sorte, que nem sempre ajudava. Existir nas ruas da metrópole é antes de mais nada resistir. De todas as incertezas, esse é apenas um “causo” no qual a realidade mostra uma face desfigurada, principalmente para quem tinha apenas 12 anos de idade. Tia Eva contou tudo no Memória e Contexto com os olhos de quem lembra o passado vivido num tempo de riscos. Ela foi um dos mais de 70 convidados do progra-

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ma, que está no ar há seis meses e traz toda semana uma história baseada em experiências de representantes da população carente, professores, intelectuais, líderes sindicais, músicos – cuja presença é fundamental para a moldura do programa. Cantores ou instrumentistas de primeira linha dão leveza e bom humor a assuntos às vezes áridos. Como foi o caso da participação muito especial de Osvaldinho da Cuíca. No final de um debate sobre a democratização dos meios de comunicação, Osvaldinho encerrou o episódio com ginga e malemolência, dedicando um samba de Adoniran Barbosa a uma das participantes da discussão. Imagens que integram o acervo da TVT são vasculhadas, pinçadas e transformadas em pautas atuais pelo núcleo de produção e pela chefia de reportagem. Memória e Contexto é conduzido por Maria Amélia Rocha Lopes, dona de um estilo

que foge à imagem de noticiarista com as sutilezas de um texto coloquial, elegante e seguro. Ou seja: texto de alguém que sabe do que está falando.

Programe-se Memória e Contexto vai ao ar todas as segundas-feiras às 19h30 e pela internet logo após a exibição pela TV.

Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Das 19h às 20h30, de segunda a sexta Canal 46 Mogi das Cruzes e Alto Tietê (UHF) TV a cabo no ABC ECO TV – canais 96 (analógico) e 9 (digital) NET, das 19h às 19h30 No site da TVT www.tvt.org.br


JAPÃO

Ainda o risco da opção nuclear

Q

uando comecei a dirigir nas estradas brasileiras, alguém me explicou uma “vantajosa teoria” para ultrapassagens perigosas em lombadas durante a noite. O expediente consistia em apagar as luzes do carro, o que “facilitaria” a percepção das luzes de outro que viesse em direção contrária – as chances de um carro vir em direção contrária com as luzes apagadas eram quase nulas. O que escapava à visão dessa “brilhante teoria” (ou apagada?) era o fato de que, se viesse realmente um carro com as luzes apagadas em sentido contrário, as chances de não ocorrer uma grande catástrofe eram nulas. A metáfora pode ser pobre. Mas encaixa na tragédia das usinas nucleares. A do Japão não se limita ao acidente. Como toda tragédia, começa muito antes, em gerações anteriores. E compromete o futuro das próximas. Se as usinas em construção ou planejadas forem de fato concluídas, sua produção cobrirá mais de 30% da energia elétrica consumida no mundo. Só na França, cerca de 80% vem dessa fonte. Apenas Alemanha, Itália e Reino Unido congelaram a construção de novas unidades – embora o atual governo alemão tenha alongado a vida das unidades existentes por até 14 anos. No papel e no discurso, as usinas deveriam resistir a tudo: de terremotos a ataques aéreos­; de falhas humanas a deficiências técnicas. Na prática, a música é outra, e a Marcha Triunfal já se transformou em Marcha Fúnebre algumas vezes. Chernobyl, na Ucrânia (então parte da União Soviética), ainda na década de 1980, resultou em mais de 25 mil mortes, além de inutilizar uma enorme área terrestre para a vida humana por gerações. Provocada por uma série de deficiên­ cias técnicas aliadas a falhas humanas, a

KIM KYUNG HOON/REUTERS

A tragédia começa muito antes de Fukushima, e compromete gerações futuras Por Flávio Aguiar

PESADELO Em cidade próxima a Fukushima, enfermeira mede radiação em menina

catástrofe­contou com gestos extraordiná- impedir que o Brasil construa novas usinas rios de heroísmo por parte de técnicos, bom- nucleares se o cidadão da França continuar beiros e outros que, com o sacrifício da pró- a consumir perto de 80% de sua energia elépria vida, impediram desastre ainda maior. trica a partir dessa fonte. Nem reprovar que Mas a lição não se enraizou. A proliferação os chineses comprem automóveis enquanto de usinas nucleares no mundo inteiro pros- os norte-americanos continuam­a ter mais seguiu, como se nada houvesde 70 veículos para cada 100 se acontecido. Agora, o desas- Houve quem habitantes. tre de Fukushima, no Japão, atribuísse o Já li manchete de artigo dipode ter o mesmo destino, o desastre de zendo que “a energia nuclear desse “relativo esquecimento” Chernobyl à vale o risco”, é “limpa”, tem taxa que o colocará num limbo aude acidentes baixa etc. Mas “ineficiência” reolado pelo descaso. Explinão se discutem a dimensão car essa desrazão apenas pelo e ao dos desastres nem a obliteralobby de empresas e agências “autoritarismo” ção da memória. Este talvez de governo encarregadas da do “regime seja o maior risco e a maior construção e administração comunista”. tragédia, hoje, dessa forma de das usinas – que existe, e é A que atribuir energia: a introdução de sua poderosíssimo com a mídia e presença no mundo dos esagora a fora dela – é insuficiente. quecimentos programáticos. As usinas nucleares fazem catástrofe No caso de Chernobyl, houparte do sonho e do pesade- japonesa? À ve uma tendência a ligar o lo do estilo contemporâneo de “eficiência” do desastre às sombras da “ineconsumo. E, como nos sonhos capitalismo? ficiência” e do “autoritarise pesadelos, nossa tendência é mo” do “regime comunista”. lembrar os primeiros e esquecer os segun- A que atribuir agora a catástrofe japonesa? dos. Assim como no caso do aquecimento À “eficiên­cia” do regime capitalista? Talvez. global, a questão nuclear demonstra que não É necessário ampliar, aprofundar, insistir basta mudar os padrões de produção da eco- nessa discussão. Senão, continuaremos na nomia. É necessário intervir nos padrões de “alegre” disposição de fazer ultrapassagens consumo, em escala mundial, com educação perigosas em lombadas noturnas. Com as e debate democrático. Não adianta querer luzes apagadas. ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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TRABALHO

Cores da integração

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Ano Internacional do Afrodescendente é oportunidade para reflexão sobre avanços e desafios no Brasil. CUT adotou o tema para o 1º de Maio

U. DETTMAR/ABR

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inco meses antes do término de seu mandato, durante o primeiro encontro de cúpula do Brasil com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao), em Cabo Verde, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que seu sucessor, fosse quem fosse, estaria “moralmente, politicamente e eticamente” comprometido a “fazer mais” pela relação Brasil-África. Essa preocupação se reforça com o estabelecimento de 2011, pelas Nações Unidas, como Ano Internacional do Afrodescendente. O presidente estadual da CUT de São Paulo, Adi dos Santos Lima, lembra que o país concentra mais de 90 milhões de afrodescendentes. “No entanto, essa consciência ainda não está presente na totalidade de nossa população. Além disso, os países africanos, que estão na raiz de nossa origem, são pouco conhecidos em sua dimensão histórica, institucional, econômica, social e cultural”, afirma. A central escolheu justamente como tema as relações entre Brasil e África para celebrar o 1º de Maio deste ano. Estarão representados trabalhadores de 12 países daquele continente: África do Sul, Angola, Benin, Cabo Verde, Gana, Guiné-Bissau, Moçambique, Nigéria, São Tomé e Príncipe, Senegal, Togo e Zimbábue. “A proposta é ir além da tradicional confraternização entre os trabalhadores, o que, evidentemente, é importante. Mas queremos dar um primeiro passo para refletir sobre nossa condição de país afrodescendente e aprofundar nossos intercâmbios internacionais a partir de nossas lutas e conquistas”, diz Adi. No ano passado, o tema do 1º de Maio cutista foi a integração com a América Latina.

RAÍZES Adolescentes do Quilombo de Guaribas (PE): apoio às comunidades

A avaliação geral é de que o país vem avançando na superação das desigualdades, mas ainda tem um longo caminho a percorrer. Os afrodescendentes brasileiros figuram entre as principais vítimas da violência, por exemplo. De acordo com o Mapa da Violência elaborado pelo Instituto Sangari, em parceria com o Ministério da Justiça, de cada três pessoas assassinadas, duas são negras. É também esse grupo social que lidera estatísticas de analfabetismo e desemprego, confirmando a situação de descaso à qual sempre foi relegado. Entre os avanços, dois destaques foram a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, sancionado em 2010. Este foi um dos resultados de compromissos assumidos na Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, na África do Sul, em setembro de 2001. Em mensagem pelo Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (21 de março), o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, lembrou os dez anos da conferência de Durban. “O Ano Internacional oferece a oportunidade de avançar nesse combate e de reconhecer as amplas contribuições que os afrodescendentes deram ao desenvolvimento político, econômico, social e cultural de todas as nossas sociedades. Para derrotar o racismo, temos de acabar com as políticas públicas e as atitudes privadas que o perpetuam.” Para os movimentos sociais, é preciso fortalecer as políticas públicas de igualdade racial e ações afirmativas. “Os países africanos têm sede de conhecimento sobre o Brasil e veem com muito interesse o es-


ELZA FIUZA/ABR

País tem avanços na superação das desigualdades, mas caminho a percorrer ainda é longo

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treitamento de relações em vários campos de atividade”, diz o presidente nacional da CUT, Artur Henrique. O dirigente recorda que, em nosso território, existem hoje 31 embaixadas africanas e, no continente africano, 19 embaixadas brasileiras. “Muitos países do continente que enfrentaram situações de conflitos em passado recente as superaram, a exemplo do apartheid na África do Sul e guerras coloniais, e hoje aspiram ao desenvolvimento e a uma política voltada para o bem-estar das populações, passando pela organização dos trabalhadores e trabalhadoras”, diz Artur. “É importante lembrar que a história das relações entre o Brasil e a África, embora tenha sido marcada em seu início pela diáspora e pelo tráfico de escravos, tem uma ancestralidade que ainda pouco conhecemos e é referenciada hoje por relações dinâmicas, principalmente econômicas e culturais, que queremos estreitar, em especial com os trabalhadores desses países”, reforça Adi. Do ponto de vista econômico, o Brasil passou a priorizar a África em suas relações comerciais. Exemplo disso é o crescimento das transações: em 2000, a corrente de comércio (exportações mais importações) somou pouco mais de US$ 4,2 bilhões; em 2010, foi de quase US$ 20,6 bilhões.

INTERCÂMBIO Criança da África do Sul, um dos países que estarão representados no 1º de Maio da CUT

Há estimativas de que, apenas no século 18, o número de escravos enviados ao Brasil chegou a 6 milhões. Mão de obra que foi usada em plantações de cana e, posteriormente, minas de ouro, diamantes e – já no século 19 – plantações de café. O professor Eduardo de Oliveira, presidente do Congresso Nacional Afro-Brasileiro (CNAB), observa a necessidade de compreender essa contribuição dos africanos na formação do país. “Na minha visão de político, professor e poeta, o fato de que o negro foi o primeiro trabalhador formal do país e o de ter vindo como escravo não invalidam a contribuição concreta que ele deu à formação de nossa nacionalidade”, afirma o professor e autor do Hino da Negritude, hoje adotado em mais de mil municípios brasileiros. Oliveira ressalta que aqueles que são solidários com os valores humanos estão de acordo que, desde os primeiros anos de nação, o Brasil tem uma grande dívida com os negros da diáspora africana, e esse fato

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MARCELLO CASAL JR /ABR

Nacionalidade


VALTER CAMPANATO/ABR

está hoje cristalizado no reconhecimento que o Estado vem adotando nos últimos anos, a partir da presença de um trabalhador (Lula) no governo do país. “Basta isso, para que neste 1º de Maio se reconheça e contemple o povo afro-brasileiro de modo a torná-lo autossuficiente em ações de políticas públicas e se contribua para nele despertar a autoestima por sua inteligência e seu vigor cultural”, acrescenta. Na opinião do presidente da Fundação Palmares, Elói Ferreira de Araújo, a cultura no Brasil não teria a mesma pujança e riqueza não fosse a contribuição dos negros africanos trazidos para cá. “Busca-se criar semelhança com a diáspora de outros povos. Mas a vinda dos negros para o Brasil foi um processo de escravização, eles foram responsáveis pela produção das riquezas do Estado brasileiro durante quase 400 anos. Ao mesmo tempo, não houve um processo de inclusão para que tivessem acesso aos bens econômicos e culturais produzidos por eles próprios”, observa. “Mas estamos em um momento extraordinário no Brasil, em que há um grande aquecimento e interesse do governo em construir ações de natureza afirmativa que levem em consideração reparar quatro séculos de escravidão.” Um exemplo de política afirmativa está na Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatória a disciplina História e Cultura Afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino

Elói Ferreira de Araújo: riqueza cultural

fundamental e médio, oficiais e particulares. A lei determinou ainda a inclusão no calendário escolar do 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. Há também o Programa Brasil Quilombola, de apoio às comunidades. A cantora e compositora Leci Brandão, deputada estadual em São Paulo (PCdoB), vê ainda muita discriminação no país. “No

Carnaval, assistimos às meninas da comunidade substituídas por rainhas de bateria brancas que frequentam a mídia. Na televisão, não tem mulher negra como apresentadora, mas serve de ajudante. Nesses programas de culinária, carregam a bandeja da apresentadora e mexem nas panelas”, afirma. A própria Leci ressalta que, apesar de uma carreira de 36 anos, não tem espaço nos cadernos de cultura. Mesmo observando que desenvolve lutas que não se restringem ao afrodescendente, ela lamenta: “Enquanto o descendente de italiano, francês, português ou espanhol sabe de que país vieram seus antepassados, nós, não. Sabemos que viemos do continente africano, mas não de qual país, porque fomos espalhados pelo mundo com a diáspora”. Ela avalia que houve avanços tímidos no país. “No Congresso e nos governos temos poucos negros. Podemos destacar a deputada e ex-governadora do Rio Benedita da Silva, Matilde Ribeiro, ex-ministra da Seppir­, e, na mídia, o ator Lázaro Ramos. Mas os negros estão sempre sendo postos de lado. Apesar disso, nossa cultura de resistência persiste e, felizmente, estamos presentes em grande parte dos movimentos culturais deste país.” Com colaboração de Alexandre Gamón, Tatiana Melim e Vilma Amaro

As atividades do 1º de Maio da CUT começam uma semana antes, em 25 de abril. Segundo a central, as comemorações deste ano incluem seminário internacional, cursos, oficinas e atividades culturais, exposições, exibição de filmes, gastronomia, show e ato inter-religioso. O evento principal, no encerramento, está previsto para o Parque da Independência, diante do Museu do Ipiranga. Uma das atrações será a apresentação de Martinho da Vila e Mart’nália, pai e filha. O presidente estadual da CUT, Adi dos Santos Lima, lembra que o formato do 1º de Maio preserva as origens da central. “É uma forma de valorizar o dia e ampliar o debate”, explica. Durante as atividades, haverá homenagens ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, símbolo da luta contra a discriminação. As cinco centrais sindicais reconhecidas legalmente realizam ato conjunto no bairro da Barra Funda, também em São Paulo.

ROBERTO PARIZOTTI/CUT DIVULGAÇÃO

Cultura, debate e diversão

Adi: ampliar o debate

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MUNDO DIREITO À VIDA? Conselho de Segurança da ONU vota ataque à Líbia

A canja do P Itamaraty O Brasil defende o diálogo entre os povos como saída para os movimentos nos países árabes. Quem aposta nos Estados Unidos não precisa de muitas horas para cair em descrédito Por João Peres

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olítica externa é um prato que se cozinha em fogo brando. Uma receita que nasce aparentemente minguada e insossa pode, com o passar das horas, transformar-se num banquete. Por isso, convém ter cautela na hora de criticar os chefs, ou melhor, os diplomatas do Itamaraty. Ao desempenhar um papel mais ativo no cenário internacional, nos últimos oito anos, o Brasil ficou naturalmente mais suscetível a juízos alheios. São muitos os casos em que o tempo deu razão ao Ministério das Relações Exteriores. No último deles, o ponteiro do relógio não precisou dar muitas voltas. Em 17 de março, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas


JESSICA RINALDI/REUTERS EVAN SCHNEIDER/UN PHOTO

ABSTENÇÃO Para a embaixadora Maria Luisa Viotti, a via da força não soluciona o caso e resultaria na morte de civis na Líbia

(ONU) aprovou resolução em que autoriza ação militar contra a Líbia, país do norte da África que, como outros da região, vive um momento de efervescência política. O Brasil, ao lado de China, Rússia, Índia e Alemanha, decidiu se abster. A embaixadora brasileira na ONU, Maria Luisa Viotti, ponderou que havia motivo para acreditar que a via da força, além de ser incapaz de solucionar o caso, resultaria na morte de civis. “Nosso voto de hoje não deve de maneira alguma ser interpretado como endosso ao comportamento das autoridades líbias ou como negligência para com a necessidade de proteger a população civil.” A velha mídia, no entanto, viu-se em condições de “pensar” diferente da posição brasileira, adotada dois dias antes da chegada de Barack Obama a Brasília. O jornalista Clóvis Rossi, em exaltado artigo para a Folha de S.Paulo, declarou que a abstenção brasileira foi uma “covarde omissão”, que se tornava “ainda mais patética” diante do cessar-fogo anunciado pelo ditador líbio Muamar Kadafi. “A ação do Conselho de Segurança agora visa precisamente a preservar o mais básico direito humano, que é o direito à vida”, apostou. Não se sabe muito bem a quais vidas se referia o colunista. Em poucas horas, os ataques da coalizão formada por EUA, Reino Unido, França, Itália e Canadá vitimaram dezenas de pessoas e feriram outras tantas, número que só fez aumentar nos dias seguintes. No final de março, o número de vítimas em razão dos conflitos já rivalizava com o de mortos dos tsunamis e terremotos no Japão. Às primeiras ações da coalizão, cerca de 3.000 pessoas fugiram em direção ao pacífico Egito. “A ideia de que o Brasil está se omitindo frente a um ataque a civis é pouco sólida porque ninguém tem noção exata do que está acontecendo na Líbia”, pontua Paulo Vizentini, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Não se trata de uma luta entre bonzinhos e malvados. A pessoa que é chefe do grupo de oposição era ministro da Justiça do Kadafi até dois meses atrás.” O diário O Globo, em editorial de 19 de março, pontuava a incoerência da posição brasileira com a decisão de apoiar a suspensão da Líbia no Conselho de Direitos Humanos da ONU: “A abstenção do Brasil parece um rescaldo da política

externa ‘compañera’, intensamente praticada nos últimos oito anos”. Lejeune Mirhan, membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabes de Lisboa, considera que os Estados Unidos, independentemente do rumo que tomem os movimentos no norte da África, saem derrotados. “O Brasil teve uma grande vitória para mostrar que o caminho tem de ser o do diá­ logo, da diplomacia, da soberania do país. Infelizmente não conseguimos uma vitória, mas foi extremamente positivo.” O Itamaraty é uma das instituições mais antigas do Estado brasileiro, fundado antes da República. Há dois princípios básicos na política externa nacional: a não intervenção nos assuntos de outros países, também conhecida como o direito à autodeterminação dos povos; e o não alinhamento, ou seja, a negativa a adotar tratados ou medidas que afetem a independência da posição brasileira no cenário internacional.

Indignação seletiva

Os Estados Unidos ainda creem ostentar o dom de abrir os olhos do mundo, por bem ou por mal, em nome de uma suposta democracia. Mesmo com os atoleiros do Afeganistão e do Iraque, uma pesquisa encomendada pela agência de notícias Reuters mostrou que 60% da população daquele país apoia uma ação militar na Líbia. Falando no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Obama deixava nas entrelinhas a justificativa à via da força. “Compreendemos que nenhuma nação pode impor sua vontade a outra. Mas sabemos também que existem certas aspirações partilhadas pelos seres humanos: todos buscamos ser livres”, afirmou. Celso Amorim, que comandou o Itamaraty durante o governo Lula, lembra que a realidade do mundo atual pressupõe o diálogo. “Os Estados Unidos têm historicamente o Irã como inimigo na região. Aí fazem uma guerra no Iraque, que era um país mais distanciado do Irã. Hoje, não são os Estados Unidos que têm maior influência no Iraque, é o Irã. Acham que resolvem tudo numa atitude de caubói.” O Departamento de Estado parece mesmo sofrer de uma indignação seletiva e episódica. O massacre diário de civis no Bahrein não desperta grande mal-estar entre os diplomatas norte-americanos. Analistas de distintas partes do globo lembram que ali fica sediada a 5ª Frota, um dos centros militares fundamentais dos Estados Unidos. ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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Já os analistas de O Globo não parecem ver problema na seletividade do presidente da nação do norte e proclamam o início da doutrina Obama “em substituição ao unilateralismo bushiano”. O jornal fluminense reforçou em seguidos editoriais que a posição do Brasil no Conselho de Segurança só se deve ao dedo de Lula. O ex-presidente e a atual presidenta são figuras completamente diferentes, embora Dilma Rousseff seja constantemente devolvida à condição de “pupila” quando alguma semelhança entre os dois é detectada. Uma nova página dessa relação foi escrita quando o Brasil apoiou a abertura de uma relatoria especial sobre direitos humanos para o caso do Irã. O Estado de S. Paulo considera a medida importante para demarcar uma mudança na política externa, distante de Cuba e da Venezuela. Inúteis os esforços da embaixadora brasileira em Genebra, Maria Nazareth Azevedo, que afirmou não haver novidade alguma na posição adotada: “No próprio discurso que apresentamos hoje, relembrei que na extinta Comissão de Direitos Humanos o Brasil votou em mais de uma oportunidade a favor da criação de mandato de relatores especiais sobre a situação de direitos humanos no Irã”. Além disso, destacou que o país só não se posicionou antes a favor de tal medida porque nada a respeito era posto em votação desde 2001.

O Irã, por sinal, fornece outros férteis exemplos de críticas à política externa. Em maio do ano passado, Brasil e Turquia convenceram Mahmoud Ahmadinejad a aceitar as exigências de parte da comunidade internacional em torno do programa nuclear iraniano. A velha mídia ficou horrorizada com o anúncio feito com pompa e circunstância em Teerã, defendendo que aquela negociação nos afastaria dos EUA, que rapidamente passaram a acusar a diplomacia brasileira. Não tardou que fosse revelada uma carta de Obama a Lula na qual constavam rigorosamente os pontos aceitos pela nação asiática. “Às vezes, a tese não é comprovada na hora, mas a história mostra quem tinha razão. As forças que no Brasil enxergam que a política externa brasileira está errada são as mesmas forças colonizadas de sempre, que não questionam nada em relação aos Estados Unidos”, defende o professor Vizentini.

Vizinhos incômodos ou parceiros?

Em 2006, a política externa brasileira enfrentou outro desafio delicado. O presidente da Bolívia, Evo Morales, decretou a nacionalização de seus campos de petróleo e gás natural. A Petrobras foi imediatamente atingida pela decisão: o imposto sobre a exploração passou de 50% para 82%. O Itamaraty não aplicou sanção à Bolívia por

A força do diálogo Como o senhor avalia sua gestão em relação a aspectos culturais e sociais do Mercosul? Acho que é preciso ver o conjunto. Encontramos, de uma perspectiva histórica, um Mercosul muito esgarçado, muito ferido pelas crises. Crise na Argentina, tinha havido crise no Brasil, e sobretudo os países pequenos estavam com grande ressentimento porque, para resolver aquelas crises, foram tomadas muitas medidas unilaterais. Fizemos um esforço grande para recuperar a confiança dos outros países, e isso tomou muito tempo. Tivemos avanços também na área política. Os cidadãos poderão escolher seus representantes no Parlamento do Mercosul. Como é na Europa. Vai ter bancadas que se organizarão em torno de afinidades ideológicas, e não só do ponto de vista nacional. Será um grande passo. A área social foi uma das que mais avançaram. Passamos de uma fase em que o Mercosul era só dos Estados para ser dos povos. O caso de Honduras mostrou que na América Latina não estamos livres de golpes de Estado. O que falta? Fatos como o de Honduras eu espero que não se repitam, mas são parte da história. Cada um tem de viver sua história, viver seus dramas,

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FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

O ex-ministro Celso Amorim concedeu entrevista exclusiva à Rede Brasil Atual. Confira alguns trechos a seguir e leia a íntegra em http://bit.ly/grlCNI.

A realidade do mundo não é uma realidade só. Você não se dá só com as pessoas que são iguais a você, tem de conviver e tem de tentar resolver


SUHAIB SALEM/REUTERS

ATAQUES Chamada de “humanitária” por analistas, a ação da coalizão liderada pelos Estados Unidos aumentou o perigo para os civis na Líbia

superá-los. Tínhamos uma cooperação muito boa que vinha de antes do governo Zelaya, eram governos conservadores, mas estavam dentro do marco constitucional. Agora, um governo que nasce de um golpe de Estado em que um militar tira o presidente com um revólver na cabeça não pode ser aceito com facilidade. A posição dos Estados Unidos em torno do programa nuclear do Irã foi sua grande frustração à frente do Itamaraty? Frustração, não. Era uma das coisas possíveis. Mas eu esperava, e tinha razões para esperar, que eles tivessem uma atitude mais positiva. Os pontos essenciais que o presidente Obama tinha posto em carta para nós estavam atendidos. Dava para sentar à mesa. Uma vez sentando à mesa, começavam a resolver. As pessoas no Brasil têm muita dificuldade de entender isso, em parte por manipulação, em parte por ingenuidade. O que procuramos foi ter uma relação normal, como temos com Índia, Paquistão, Egito. Que os Estados Unidos tinham muito mais. Hoje em dia todos falam que Mubarak era um ditador, mas era para Israel e para Washington um líder árabe moderado, era o modelo. Não vou discutir se era ou não era. O povo egípcio disse o que pensava sobre ele, e é isso o que interessa. A realidade do mundo não é uma realidade só. Você não se dá só com as pessoas que são iguais a você, tem de conviver e tem de tentar resolver.

quebra de contratos. Em vez disso, sentou-se à mesa com o vizinho para chegar a um acordo. Antonio Simões, subsecretário-geral da América do Sul do Ministério das Relações Exteriores, reconhece que aquela negociação foi difícil, mas lembra que é importante ter solidariedade com os vizinhos. “Entendo que o Brasil tem uma responsabilidade muito grande em relação a esses países por ser o maior da região. Essa responsabilidade está ligada ainda ao fato de que nosso interesse é que possam também crescer.” O que foi propalado na imprensa como fraqueza do governo brasileiro, ou até como alinhamento político com os “revolucionários” bolivianos, é visto nos meios acadêmicos como uma posição acertada. “O Brasil não poderia agir de outra forma. Seguiu a política de aproximação com os vizinhos sul-americanos sem pretensões imperialistas”, afirma Jessie Jane Vieira de Souza, professora de História da América na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Além da política mais centrada no continente por parte do governo Lula, a diplomacia brasileira tem uma tradição de mais de 100 anos privilegiando a negociação.” Se há tanta cautela na hora da conversa, convém o mesmo cuidado no momento de criticar o Itamaraty. Canja de galinha, como já sabiam os precursores da diplomacia, não faz mal a ninguém. Colaborou Thalita Pires

Efetivamente, o que o Brasil pode apresentar para o desfecho da crise dos países árabes? É muito complexo porque a crise árabe só tem um elemento em comum, que é uma reação ao status quo, mas os elementos que entram em cada país são muito diferentes. No Egito, o movimento inicial foi sobretudo democrático. No Bahrein, não deixa de ser democrático, mas tem um forte componente de uma maioria contra uma minoria. Na Líbia, não sei exatamente, é uma coisa muito mesclada. Os desfechos não serão idênticos, de qualquer maneira. Estive recentemente no Qatar e na Síria e antes disso sempre tive contato com lideranças e acadêmicos. O que senti é um grande interesse em saber como a experiência do Brasil, inclusive de transição para a democracia, pode ser útil para a transição democrática dos países árabes. A democracia brasileira vem se consolidando aos poucos. Acho que o que dá sustentabilidade a longo prazo para a democracia brasileira é o lado social. Sinto esse desejo por parte deles. Veja, por exemplo, que tem gente que diz que a postura do Brasil é anti-Israel. A gente vai a Israel e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu pede ajuda para intermediar a situação com a Síria. E os sírios também querem. Quantos países no mundo podem se dar (esse papel) sem se impor? Não são muitos. Quantos países podem receber o primeiro-ministro de Israel, o presidente do Irã e o presidente da Autoridade Palestina no mesmo mês?

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MUNDO

Por dentro da

Líbia O país é formado por 140 tribos quase tão importantes quanto o governo. Há 40 anos no poder, o regime de Kadafi oscila entre capitular e hostilizar os interesses dos países ricos, liderados pelos EUA Por Renato Pompeu

P

ara entender a crise na Líbia, é preciso levar em conta que sua população nunca constituiu uma nação. Até hoje é dividida em 140 tribos, na maioria arabizadas e islamitas sunitas, e ainda restam nas montanhas a oeste populações berberes que falam sua língua original e são islamitas da corrente ibadita. O país tem 1,7 milhão de quilômetros quadrados, perto de um quarto da superfície do Brasil, mas apenas 6,4 milhões de habitantes (cerca de 500 mil são imigrantes africanos), concentrados nas poucas cidades – como Trípoli, a capital, com mais de 1 milhão de pessoas –, espalhadas por um imenso deserto. Embora tenha milhares de anos de histó20

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ria, o território líbio só muito recentemente passou a ser uma unidade política. Desde a Antiguidade, suas três regiões – Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan – levaram vidas separadas. As duas primeiras só foram unificadas no século 16, pelo Império Otomano, e a elas o Fezzan se reuniu só no século 19. Nunca tiveram independência, tendo feito parte ainda dos Impérios Cartaginês, Romano e Árabe. Em 1911 as três regiões foram ocupadas pela Itália, e nos anos 1930 o nome Líbia foi dado a essa colônia italiana. Durante a Segunda Guerra Mundial, a partir de 1943, a Líbia foi ocupada por tropas britânicas e francesas, que ali instalaram um governo militar. Em 1951 foi proclamada sua independência, sob uma

monarquia. Os recursos econômicos eram muito precários, pois a maior extensão do território era desértica. A Líbia vivia praticamente de doações de países ocidentais, em troca de permitir a permanência de tropas estrangeiras (as últimas saíram em 1966). Só em 1958 é que foi descoberto o petróleo, mas em menos de uma década seus rendimentos se tornaram altos. A monarquia do rei Ídris foi derrubada em 1969, num movimento militar liderado pelo jovem coronel Muamar Kadafi, então com apenas 27 anos. Com os dólares do petróleo, o regime de Kadafi subsidiou uma espécie de populismo redistributivo, a que foi dado o nome de socialismo. Apesar de seu governo ter proclamado


uma “democracia de base”, um tanto inspirada nos moldes soviéticos, ou, mais exatamente, nos vigentes em Cuba, o grosso da população se sente mais ligado à tribo de cada um do que ao governo. Não existiram, durante todo o regime do ditador, partidos políticos. São as tribos que proporcionam empregos e assistência social. Milenarmente, as 140 eram compostas de pastores de gado que se encarregavam também da proteção aos raros poços d’água no imenso deserto e aos caminhos das caravanas. Com o petróleo, a partir de 1958, algumas foram enriquecendo e cerca de 30 delas têm hoje importância política maior que as outras. Essas últimas são as que migraram do deserto rumo ao norte, para as cidades, quase todas litorâneas, principalmente para Trípoli e Bengasi. A tribo de Kadafi, por exemplo, também chamada Kadafi, instalou-se em Sirte, onde há um terminal marítimo de exportação de petróleo. A oeste, no entanto, ficou a maior tribo, a Wafalla. Desta é que tinha saído o rei Ídris, e seus membros nunca se conformaram com o domínio de Kadafi, a quem encaram com desprezo. Eles o veem como se fosse um criador de cabras que se tornou um novo-rico. Como se consideram a nobreza da Líbia, logo aderiram ao movimento contra o ditador. Também se voltaram em massa contra ele as tribos mais a leste, como os Zuwaya, que sempre se julgaram discriminadas em seu governo. Durante duas décadas, Kadafi tentou minar o poder das tribos, procurando substituí-las por estruturas sociais mais “modernas”. Mas, a partir de 1993, levando em conta o ditado “se você não pode vencê-los,

ZOHRA BENSEMRA/REUTERS

GORAN TOMASEVIC/REUTERS

CONTRA Rebelde comemora destruição de veículo militar das tropas leais a Kadafi

A FAVOR Manifestantes dizem que “Deus está com Kadafi e o povo ao redor dele”

junte-se a eles”, passou a consolidar ainda mais o poder delas. Esse não foi seu único recuo; nos últimos anos se reaproximou do Ocidente. Seu socialismo esteve mesclado a um nacionalismo pan-árabe e a uma estrita obediência aos preceitos islamitas, por isso mesmo tinha um forte viés anticomunista. Depois da guerra árabe-israelense de 1973, Kadafi liderou o movimento para reduzir as exportações de petróleo para os países ocidentais aliados de Israel. Como o Egito, em seguida, se aproximou de Israel, ele se afastou do regime do Cairo. No que restou dos anos 1970, teve de enfrentar numerosas tentativas de golpe de Estado, sempre fomentadas por tribos que se julgavam prejudicadas por seu governo. Nos anos 1980, muitos exilados líbios em países europeus foram assassinados, em crimes atribuídos aos serviços secretos de Kadafi. Também houve enfrentamentos com aviões e navios de guerra americanos no Golfo de Sidra, que o governo líbio considera águas territoriais e o dos Estados Unidos julga águas internacionais. Em 1988, agentes líbios foram acusados do atentado contra um avião americano de passageiros na Escócia, em que morreram 270 pessoas, e no ano seguinte contra um avião francês, também de passageiros, no Níger, matando 170 pessoas. Instado a entregar a um tribunal internacional suspeitos identificados como participantes desses atentados, Kadafi se recusou – e a Líbia passou a figurar nas listas de países envolvidos com o terrorismo feitas pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental, chegando a sofrer sanções da ONU e também sanções unilaterais americanas. Em 1999, Kadafi fez uma mudança tão radical em suas relações internacionais quanto a que fizera nas relações com as tribos. Entregou a um tribunal internacional os suspeitos do atentado ao avião na Escócia, o que levou a ONU a suspender suas sanções, e em 2003 concordou em pagar US$ 2,7 bilhões em indenizações às famílias das vítimas e ainda renunciou a ter armas químicas, biológicas e nucleares, obtendo também a suspensão das sanções americanas. O socialismo tribal de Kadafi passou então a conviver com capitais estrangeiros – até que, a partir de fevereiro último, uma juventude antiautoritária se revoltou, somada às tribos que já não eram simpáticas ao regime, insurgindo-se para derrubá-lo. ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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DIREITOS HUMANOS

Fugitivo da injus Sobrevivente do massacre de Corumbiara, há 16 anos, vive escondido. Entidades pedem nova investigação do caso Por João Peres

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laudemir Gil­berto Ramos, de 38 anos, há 16 tem a cabeça a prêmio. Pelo que se sabe, são R$ 50 mil por sua morte. “Para mim, já estou cumprindo a pena até demais, mesmo não estando na prisão. Só não me entreguei porque acho injusto. Se tivesse cometido crime, tinha que pagar pelo que fiz, mas não cometi.” Claudemir considera-se um “foragido da injustiça”. Desde o massacre de trabalhadores rurais em Corumbiara (RO), ele não sabe o que é endereço fixo, trabalho com registro em carteira ou convívio familiar. Condenado a oito anos e meio de reclusão, reclama um novo julgamento e uma efetiva apuração dos fatos ocorridos na madrugada de 9 de agosto de 1995, quando ao menos 12 sem-terra foram mortos por policiais militares e pistoleiros na Fazenda Santa Elina. Em entrevista à Rede Brasil Atual e à TVT – a primeira desde aquela época –, Claudemir contou que não sabe quando foi a última vez que viu as filhas e a mãe. Na visão da Organização dos Estados Americanos (OEA), o episódio representa um erro cometido pelo Brasil devido às execuções realizadas por policiais e ao júri repleto de inconsistências. Claudemir e seu colega Cícero Pereira Leite foram condenados com base em uma peça do Ministério Público Estadual que se baseou quase exclusivamente na investigação da Polícia Civil. Esta tomou como fundamento a apuração conduzida pela Polícia Militar, envolvida na operação. O lavrador diz que teme pela própria integridade física, 22

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por isso não se entregou em 2004, quando se esgotaram os recursos no Judiciário e ele passou a ser considerado foragido. “Tenho certeza que se me entregar e for pra Rondônia não demora muito eles (fazendeiros e policiais) me assassinam, porque o preconceito da Polícia Militar é grande pela morte do tenente”, afirma. A referência é a um dos policiais que morreram no enfrentamento. Relatório de 2004 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), integrante da OEA, concluiu que eram necessários novos esforços de investigação.

“A falta de independência, autonomia e imparcialidade da PM (…) constitui violação do Estado brasileiro”, defende o órgão. Nas palavras de Claudemir, não se pode pagar por um crime que não se cometeu: “O julgamento foi totalmente preconceituoso. Para mim, quem tinha que ser condenado eram os mandantes”. Os fazendeiros apontados como responsáveis pelo aliciamento de uma milícia armada infiltrada entre policiais foram “impronunciados pela Justiça” – quer dizer, as acusações foram descartadas antes mesmo de haver julgamento.


HORROR Restos do acampamento em Corumbiara: agressões, torturas e execuções

Ocupação

A ocupação teve início em 15 de julho de 1995. Na tarde de 8 de agosto, quando havia uma ordem judicial para a remoção dos sem-terra, uma negociação definiu que em 72 horas haveria nova conversa sobre a saída, segundo Claudemir. Os acampados queriam garantias de que a área seria destinada à reforma agrária. “Até comemoramos entre os familiares, fizemos assembleia-geral, achando que tinha (sido) conquistado um passo da vitória porque a área já estava negociada”, resume.

MOACYR LOPES JUNIOR/FOLHAPRESS

REPRODUÇÃO/TVT

stiça

Na madrugada, no entanto, um grupo in“Não achava que ia ser condenado porque vadiu o local a balas. “A gente não pode ser não tinham prova nenhuma. Só que no final hipócrita: tinha vigília no acampamento, até do julgamento a surpresa foi grande. No corporque já tinha recebido vários ataques dos po de jurados, para mim, tudo era ou fazenjagunços. Tinha arma de caça, ferramentas, deiro, ou amigo dos fazendeiros”, relata Clausó que (com) nossas armas era impossível demir. “Para mim, não tem prova, não devo combater o comando da polícia e dos jagun- esse crime. Estava lutando pelos direitos dos ços.” A legislação brasileira proíbe que ações trabalhadores, e isso não é crime”, sustenta. de reintegração de posse sejam cumpridas O colega Cícero Pereira foi condenado a durante a noite. Na troca de tiros, morreram seis anos e dois meses por participação em três policiais e dois trabalhadores. “O que fiz um homicídio. Pela parte dos policiais, fofoi me deitar no chão. Só ouvi os gritos das ram sentenciados o capitão Vitório Regis pessoas. Não tinha como fazer nada. Fiquei Mena Mendes e os soldados Daniel da Silali de bruços no chão. A única arma que eu va Furtado e Airton Ramos de Morais, mas tinha, que eu tava usando no dia da nego- todos ganharam direito a novo julgamento. ciação, era uma máquina de foto, que no dia Os demais policiais foram absolvidos, bem seguinte, na tortura, foi quecomo Antenor Duarte­, indibrada na minha cabeça.” cado por pistoleiros como Dominados os trabalhamandante do massacre, tendores, a polícia deu início do inclusive premiado com a uma série de agressões, carros os comandantes da torturas e execuções, docuoperação. mentadas em depoimentos Movimentos de defesa dos e análises técnicas. Os aduldireitos humanos remeteram tos foram amarrados e joga- ENTREVISTA Claudemir: o caso à OEA. Em 2004, a dos no chão; crianças eram “Não devo esse crime. CIDH informou que os fatos Lutava pelos direitos dos obrigadas a pisoteá-los. trabalhadores” ocorreram antes do ingresso Uma menina de 6 ou 7 anos do Brasil no sistema interarecusou-se e acabou morta, segundo rela- mericano de Justiça e, portanto, o caso não tos. Claudemir conta que homens sofreram poderia ser enviado à Corte. Mesmo assim, mutilação dos testículos e alguns mortos ti- recomendou que o país deveria conduzir veram o pescoço cortado por motosserra. uma apuração imparcial e séria, determiOs trabalhadores foram obrigados a comer nando inclusive a participação de cada um terra misturada ao sangue. Nessa etapa, há dos envolvidos nos crimes, a começar peoito execuções extrajudiciais comprovadas. los mandantes. “Não tinha um comando, um chefe, mas O Comitê Nacional de Solidariedade ao eles me consideravam um chefe. Foi onde Movimento Camponês de Corumbiara começou a tortura.” Com a cabeça ferida por apoia-se no relatório da CIDH para solicitar baionetas, ele desmaiou e, segundo testemu- novo julgamento. “Estamos tentando despernhas, foi jogado em um caminhão em que tar o interesse de nossa sociedade em torno foram transportadas as vítimas. Claudemir de uma grande injustiça”, argumenta o padre lembra que acordou no necrotério. Lá, re- Leo Dolan, presidente do comitê. “Sem uma presentantes da CUT e do PT já haviam se reforma agrária séria, os problemas do Brasil inteirado do massacre e pressionaram para não serão resolvidos”, insiste. “Durante anos muito sangue já foi derramado, muitas vidas que fosse preservada a vida dos feridos. Em 2000, o Tribunal de Justiça de Rondô- perdidas, e até hoje não foi possível uma renia agendou uma série de julgamentos so- forma agrária séria e eficaz.” bre o caso. O Ministério Público defendeu a tese de que Claudemir e Cícero conven- Leia mais na ceram as mais de 2.000 pessoas que integra- Rede Brasil Atual vam as 500 famílias a ocupar Santa Elina. n Movimento apela por investigação O promotor Elício de Almeida Silva defen- http://bit.ly/RBA_investiga_RO deu, então, que os policiais eram culpados n Ativistas querem novo julgamento pela morte de 12 trabalhadores e deveriam http://bit.ly/RBA_ativistas_RO n Fazendeiros não são julgados ainda responder por cárcere privado, uma http://bit.ly/RBA_promotor_RO vez que teriam impedido a saída dos de- n Assista à entrevista de Claudemir http://bit.ly/TVT_entrevista_RO mais acampados. ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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URBANISMO

Na marca do pênalti Com a reabertura do debate em torno do Plano Diretor, Brasília vive momento decisivo para seus dilemas de cidade que virou metrópole Por Pedro Biondi

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rasília viveu seu cinquentenário, ano passado, sob sua maior crise político-institucional. A ponto de o nome do governador José Roberto Arruda e de seu vice, Paulo Octavio, sombrear o dos fundadores Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Após a cassação de um, a renúncia do outro e uma conturbada transição, a capital elegeu o petista Agnelo Queiroz e se encontra diante de momento decisivo, canalizado pelo Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT). O plano é uma das principais leis urbanísticas. Um guia de metas de longo prazo, que passa por uma revisão a cada dez anos. A última, feita em 2009 pela Lei Complementar 803, acabou contaminada pelo mar de lama identificado como Mensalão do DEM. O Ministério Público, em resposta ao episódio, derrubou 60 itens da lei, o que levou o atual governo a promover uma atua­lização da lei complementar. O órgão recomendou ao Governo do Distrito Federal (GDF) que, ao atualizá-la, restrinja-se a essas lacunas. “Vamos debater com todos os itens considerados inconstitucionais pela forma de proposição e aqueles que forem de interesse público”, diz o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Geraldo Magela. Assim, voltou à discussão, por exemplo, o Setor Habitacional do Catetinho, questionado pela Procuradoria de Meio Ambiente por se tratar de área de manancial. Magela afirma que o governo fará uma rigorosa regularização fundiária e estimulará

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proprietários de terrenos irregulares a aderir. Estima-se que mais de 500 mil pobres e ricos ocupem áreas nessas condições. Ele descarta alterar o projeto do Setor Noroeste, bairro dito ecológico cujos apartamentos decolam a partir de R$ 10 mil por metro quadrado. Trata-se de outra iniciativa questionada judicialmente, pela presença de população indígena. O Distrito Federal é a Unidade da Federação com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Entre as cidades, detém o terceiro PIB. O ganho de seus trabalhadores é o dobro da média nacional. Em negociações de imóveis, só perde para São Paulo. Por outro lado, ostenta a pior distribuição de renda do país e os empregos se concentram fortemente no Plano Piloto e em poucas das cidades-satélites. As disparidades se refletem numa carência estimada em mais de 100 mil moradias, num exército de pedintes, nas “invasões” (termo local para favelas). O quadro de cisão vem à tona em polêmicas como a do Setor Catetinho. Movimentos de moradia mencionam o apego dos abastados à segregação, ao desperdício e à apropriação da terra e lembram da ocupação das margens do Lago Paranoá por mansões. “Ou arruma área para habitação, ou vamos ocupar, e aí estraga muito mais”, protestou Carlos Roberto de Oliveira, da Coalizão pela Moradia Popular. “Não dá para ser ‘eu posso e os outros, não’. ” À mesa, os representantes do órgão de licenciamento ambiental e da companhia de saneamento alertaram para o risco de

VALE TUDO Com uma frota muito maior do que se esperava, Brasília tem calçadas e canteiros invadidos pelos carros


FOTOS AUGUSTO COELHO

comprometer a captação vizinha de água e de afetar o lago – elemento central da paisagem e do lazer brasilienses e fonte de recursos hídricos cogitada para o futuro próximo. A propósito, uma auditoria do Tribunal de Contas local apontava, já em 2010, risco de desabastecimento. Para a geógrafa Mônica Veríssimo, as especificidades de Brasília não são contempladas pelo PDOT: “O conteúdo geral reflete o discurso de sempre, de que ‘há muita unidade de conservação’. Só que as questões ambientais estão no centro no século 21, e uma cidade, para continuar na ponta, tem de ser pioneira na sustentabilidade”. Diferentes tipos de proteção ambiental abrangem 93% do DF, com destaque para a Reserva da Biosfera do Cerrado. Mônica questiona a necessidade de expandir a mancha urbana no mapa e põe em jogo o processo de participação. “O processo de consulta à população foi extenso”, diz o pesquisador Vicente Correia Lima Neto, que entrou na equipe do PDOT no fim do governo Roriz e teve participação central durante o de Arruda. “Foram 165 reuniões, que envolveram 14.878 pessoas.” Para Lima Neto, a conversão das antes chamadas “áreas rurais remanescentes” em áreas­ urbanas reflete a realidade desses locais. “O ideal é que se trabalhe com adensamento, aproveitando a infraestrutura já existente”, opina Edvaldo Vasconcelos, diretor do Secovi, o sindicato das empresas do ramo imobiliário. “Mas adensar sem inviabilizar a locomoção das pessoas. O transporte urbano já é o principal problema aqui. Novas vias com custo alto para governo e sociedade estão ficando superadas em dois ou três anos.”

Terra de contrastes

PERIGO NO HORIZONTE O crescimento acima do previsto resultou em um déficit de 100 mil moradias. Na crise, há regiões de preservação ameaçadas, como a do Setor Catetinho

Os problemas se agravam com o crescimento acelerado. No Censo de 2010, Brasília subiu do 6º para o 4º lugar no ranking das cidades mais populosas do país. Apareceu com 2,46 milhões de habitantes. Em dez anos, sua população cresceu 20%. Em maio de 2008, completou 1 milhão de veículos emplacados, e nos últimos três anos essa frota já inchou em 25%. Embora o Plano Piloto – o famoso corpo de avião desenhado por Lucio Costa – também seja conhecido como Brasília, o nome inclui ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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AUGUSTO COELHO

as outras 30 regiões administrativas do Distrito Federal, das quais uma pequena parte corresponde às antigas satélites (ainda chamadas assim). Cidade e Unidade da Federação se sobrepõem, numa condição que não é nem de estado nem município. O Entorno – termo usado para os arredores de outras grandes cidades – virou a designação oficial dos municípios que orbitam a capital federal (19 goianos e três mineiros). Um conjunto de localidades que responde por 1 milhão de habitantes da Região Integrada de Desenvolvimento (Ride) do Distrito Federal e do Entorno e segue em acelerado crescimento demográfico. “Esse conjunto forma a mais recente das três metrópoles reconhecidas do Brasil, depois de São Paulo e Rio”, ressalta o economista Marco Aurélio Costa, que coordenou cinco Planos Diretores da região. Ele destaca a dificuldade de conciliar as políticas de transporte, saúde e educação entre os vizinhos. “Há uma intensa dependência, pessoas viajam diariamente 40 ou 50 quilômetros para trabalhar.” “Vamos buscar uma grande força-tarefa

DEPENDÊNCIA Milhares de pessoas viajam todos os dias para trabalhar na capital

com governos, universidades e outras instituições para alavancar o desenvolvimento dessas cidades”, diz o coordenador da Ride no Ministério da Integração, Henrique Oliveira. O GDF recebeu sugestões para o PDOT até o início de abril e pretende encaminhar o anteprojeto de lei à Câmara Legislativa

em 30 de maio. Preservar a biodiversidade sem descuidar das pessoas, zelar pelas riquezas histórico-culturais e incentivar o mercado, reduzir os desequilíbrios no território... Do entendimento que prevalecer para o sentido desses objetivos dependerão os efeitos do Plano Diretor no futuro: se resolverá ou agravará os dramas da capital.

“Brasília tem de ser exemplo para o Brasil”

O senhor assumiu o governo após uma crise política sem precedentes. Qual a extensão dos prejuízos encontrados? Encontramos uma situação de total desamparo da cidade, com mato alto, grama crescida, muitas dívidas, contratos prestes a serem fechados, com valores altíssimos, que não resolveriam efetivamente o problema da população. A saúde estava tão ruim que tivemos de instalar um gabinete de crise, do qual sou chefe, e decretar estado de emergência. Está sendo feito um diagnóstico detalhado sobre cada uma das áreas, mas é importante que tudo seja feito com planejamento. O governo vai agir absolutamente dentro da lei. Nossa cidade tem de servir de exemplo para o Brasil. Não serei conivente com nenhum ato de indignidade de nenhum integrante do meu governo.

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MARCELLO CASAL JR/ABR

O governador Agnelo Queiroz respondeu a uma entrevista encaminhada por e-mail pela reportagem. Leia trechos a seguir e a edição completa no site da Rede Brasil Atual.

Agnelo: resgatar a autoestima Suas primeiras falas como governador eleito enfatizaram a ideia de um “tratamento de choque”. O que foi efetivamente encaminhado nestes três meses? Aos poucos, estamos resgatando a autoestima do brasiliense. Entre janeiro e março, uma área equivalente a 5.600 Maracanãs teve o gramado cortado. Mais de 1,6 milhão de mudas foram plantadas. Quase 15 mil árvores foram podadas e mais de 130 mil toneladas de entulho foram retiradas das ruas. Nos últimos três meses de 2010, a empresa responsável pelo corte de grama estava desmobilizada, praticamente sem operação. O novo governo pediu que voltasse a operar com 100% de sua ca-

pacidade. Ainda assim, foi necessário contratar, por meio de pregão, outras duas empresas. Criei a Secretaria de Transparência, com a missão de deter irregularidades, mau uso do dinheiro público, fraudes e desvios. O senhor mantém a previsão de mudança substancial no atendimento da saúde até o fim do semestre? Decretar estado de emergência na área permitiu tomar medidas de forma mais ágil, como comprar remédios, fazer obras, remanejar servidores. Já podemos observar avanços, como a reabertura de centros cirúrgicos, a recuperação de tomógrafos e a impermeabilização de áreas que agora podem servir para ampliação do número de leitos. Já autorizamos a realização de concurso público para 1.222 vagas. Aos poucos e com responsabilidade, acabaremos com o déficit de profissionais. Em que os brasilienses podem esperar uma capital diferente da que Roriz e Arruda molda-

ram? Há pessoas em postos-chave no governo historicamente ligadas a eles. O governo é da coligação Novo Caminho e representa as propostas apresentadas por nós durante a campanha. O PMDB da campanha, aliado à coligação, já era bem diferente do passado. Havia rompido com o ex-governador Roriz. Eles procuravam um novo rumo, e acabamos nos unindo. Ganhamos com o apoio amplo de diversos partidos. O vice-governador, Tadeu Filippelli, faz parte da direção do PMDB e temos uma relação muito boa. O senhor acredita que, apesar de o PDOT ser fortemente questionado, o conteúdo da lei é ou será positivo­? A revisão está em curso, porque não poderíamos manter um plano diretor sob suspeição, já que aproximadamente 20% do PDOT é hoje considerado inconstitucional. A revisão implica o debate democrático em todo o DF, ouvindo segmentos da sociedade, e será submetida à Câmara Legislativa.


HISTÓRIA

Ela nunca mais voltou Profissional do teatro e militante política, Heleny Guariba desapareceu há 40 anos

A

Em 1965, Heleny abrigou na casa em que morava com o marido e os filhos pequenos o líder Carlos Lamarca

ARQUIVO PESSOAL

inda reside em Bebedouro (SP) Ruth Caetano Belo, de 87 anos, tia de Lenita – como Heleny Telles Ferreira Guariba era carinhosamente tratada pela família. Desaparecida política desde 1971, Lenita hoje estaria com 70 anos. Ruth perdeu contato com a sobrinha quando ela tinha 5. Ao visitá-la já casada, em São Paulo, achou-a uma mulher diferente. A casa não era arrumada e mobiliada como nos padrões da época: “Tinha muito livro”, lembra. Mais tarde, compreenderia o caráter transformador e desprendido da sobrinha, que imagina ter sido companheira da presidenta Dilma Rousseff durante a ditadura. Dona de brilho intelectual, criatividade e muita coragem, Heleny Guariba surpreendeu a crítica paulista aos 27 anos. Em 1968, montou o espetáculo Doroteia, de Nelson Rodrigues, na Escola de Artes Dramáticas da USP, onde lecionava. “Ela era muito intensa, rigorosa, e isso se refletia nos trabalhos”, diz uma de suas alunas, a dramaturga Dulce Muniz, que escreveria uma peça em sua homenagem – Heleny, Heleny, Doce Colibri. Heleny fez doutorado de teatro em Paris e estagiou nas escolas do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, do francês Roger Planchon e do inglês Peter Brooks. Ao voltar da Europa, formou em Santo André (SP) o Grupo Teatro da Cidade, com operários e estudantes. Trabalhou com Augusto Boal no Teatro de Arena e, em 1969, montou um curso de interpretação com a atriz Cecília Thumim. “Heleny me apresentou Stanislavski e Brecht. Mas a grande lição que ficou da convivência foi sua intensidade e radicalidade no modo de viver”, conta o ator e diretor Celso Frateschi, seu aluno, então com 18 anos. A filósofa Marilena Chaui estudou com Heleny desde os 10 anos até a Faculdade de Filosofia da USP. Lembra da amiga como irônica, culta e fina. “Heleny fez uma análise sobre o romance Iracema, a qual ela denominou de ‘estoica’. Ela tinha 15 anos, o professor ficou estupefato com sua grandeza e profundidade. Era mais madura que todos nós, além de ter sido o Santo Antônio de muita gente. Foi ela quem me arrumou o primeiro namorado”, revela. A essa altura, Heleny já era simpatizante da luta armada. Em 1965, abrigou o líder Carlos Lamarca na casa em que morava com o marido e os filhos pequenos. “Quando, no final de 1969, ela entrou para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), nunca mais voltaria ao teatro. Seu nome batiza hoje o Teatro de Mauá e o auditório anexo de Santo André”, conta Dulce Muniz. Ela foi a última pessoa próxima a ver Heleny viva: acompanhou-a até o ônibus para o Rio de Janeiro, em julho de 1971, quando desapareceria, aos 30 anos. “Eu me lembro dela na janela, gritando para mim: ‘Dulce, por favor, avise a tia Irma que volto para levar o Chico e o João

para a praia’. É a imagem que guardo – ela preocupada com a tia que a criou junto com a mãe, dona Tita, e com os filhos pequenos, que ela adorava. Ela pretendia voltar.” Um ano antes, Dulce a havia visitado no presídio Tiradentes, no Rio. Heleny estava presa desde abril de 1970. Foi solta no início de 1971, apenas para ser novamente capturada e, ao que tudo indica, torturada barbaramente na Casa da Morte, aparato clandestino da repressão em Petrópolis (RJ). O corpo nunca foi encontrado, apesar dos esforços da família, principalmente do sogro, Francisco Guariba, um general que se opôs à ditadura e fez de tudo para encontrar a nora.

Vá além

A íntegra da série de reportagens de Marina Amaral sobre Heleny Guariba para o Jornal Brasil Atual/Bebedouro pode ser lida no site da Rede Brasil Atual. Atalho: http://bit.ly/RBA_heleny ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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AMBIENTE

O lixo nosso de cada dia Com mais da metade do lixo esparramada a céu aberto, aterros saturados e baixo aproveitamento de recicláveis, o país tenta com uma nova política de resíduos sólidos atacar esse velho problema urbano Por Hylda Cavalcanti

A

Política Nacional de Resíduos Sólidos, regulamentada no final do ano passado pelo governo federal, exige estudos de avaliação, por parte de vários ministérios, sobre a forma correta de tratamento de resíduos a ser adotada pelas cidades, que têm até junho para se adequar ao novo sistema. Entre as novidades, a responsabilidade pelo lixo nas cidades deixa de ser exclusiva das prefeituras e passa a ser compartilhada com os estados e a União. Fabricantes e distribuidores terão ainda de recolher embalagens dos produtos vendidos – uma antiga cobrança de ambientalistas que deve ampliar os esforços pela coleta, quesito em que o Brasil está bem atrás em relação a outros países. 28

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A destinação mais correta para o lixo urbano ainda é alvo de polêmicas: reciclar, reaproveitar ou incinerar e gerar energia, uma vez que em vários estados discute-se a possibilidade de troca de aterros sanitários por incineradores. “A lei estabelece a forma e a prioridade com que devem ser tratados os resíduos. Não se proíbe a incineração, mas o poder público precisará garantir a coleta seletiva. Assim se pode ver o que é possível reaproveitar, reutilizar e encaminhar outra vez para a cadeia produtiva”, afirma o diretor de Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Sérgio Gonçalves. Atualmente, a radiografia brasileira que se tem do assunto é assustadora­.


DIVULGAÇÃO CUSTÓDIO COIMBRA/AG. O GLOBO

CONTAMINAÇÃO O aterro sanitário de Gramacho, às margens da Baía de Guanabara, é considerado um dos maiores do mundo. Seu potencial de contaminação do solo e das águas é visto na foto abaixo

DOMINGOS PEIXOTO/AG. O GLOBO

LACRADO Lixão da Caximba, em Curitiba: licenciamento emergencial após fechamento

Conforme­dados da Pesquisa Nacional resíduos do Paraná, encerrou sua vida útil de Sanea­mento Básico do Instituto Bra- em novembro e foi lacrado. Em razão disso, sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), duas áreas particulares (uma em Curitiba dos 5.565 municípios brasileiros, somente e outra na cidade de Fazenda Rio Grande) 994 possuem coleta seletiva. Destes, ape- foram licenciadas de forma emergencial nas 536 contam, para a coleta, com a parti- para passar a receber os dejetos. Em Mato cipação das cooperativas que Grosso, só 12 dos 141 municontribuem com a separação Multa: a política cípios mantêm aterros sanie utilizam o material­recicla- de resíduos tários com o lixo acondiciodo como meio de geração não veta nado em valas sépticas e com de renda para os catadores. incineradores, o correto licenciamento amUm estudo do Instituto de tidos como biental. Em São Paulo, 156 de Pesquisa­Econômica Apliseus 645 municípios enviam poluentes; cada (Ipea) prevê que, com o lixo para aterros de fora de a nova legislação, o potencial­ mas empresas, seus domínios. Em Minas, de renda do segmento­salte governos e para 853 cidades existem de R$ 2 bilhões para R$ 8 bi- indivíduos que apenas 226 aterros, menos lhões. não entendem a que os 230 lixões. Ainda são aguardados da- importância da No Norte e Nordeste a dos atualizados do censo desituação­é daí para pior. Na coleta seletiva mográfico sobre quanto lixo Paraíba, 98% do total do lixo comercial e residencial o Bra- devem sentir coletado vai para lixões. Em sil coleta. Segundo levanta- no bolso o seu Rondônia, idem. E em todo mentos anteriores, eram 240 descaso o país têm sido realizados esmil toneladas por dia, das tudos sobre a capacidade dos quais 59% iam para lixões a céu aberto (ir- aterros e a possibilidade de sua substituição regulares). Menos de 20% do lixo reutilizá- por incineradores. O que, daqui por dianvel era, de fato, aproveitado. Sem falar que te, terá de ser submetido às exigências da muitas cidades estão com aterros sanitários nova legislação. esgotados e precisam “exportar” lixo para áreas mais afastadas. Entraves e dúvidas Até o final do ano passado, por exemplo, No Pará, um grupo formado por médio destino do lixo produzido pelas 18 cida- cos, professores, advogados, promotores des da Grande Curitiba era incerto, em fun- de Justiça, administradores e estudantes ção da demora para a licitação e construção organizou-se, pela internet, para fiscalide novo aterro sanitário. O chamado Li- zar serviços de coleta e destinação de lixo xão da Caximba, que recebia boa parte dos e atuar­na conscientização da importância ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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cursos hídricos e o volume e constituição dos resíduos a serem depositados, para que se evite qualquer tipo de contaminação de águas subterrâneas e lençóis freáticos.

Solução ou poluição?

A opção pelos incineradores tem também seus poréns. Esses equipamentos reduzem o volume do lixo em até 85% do total. Para muitos técnicos, é possível haver queima controlada, com o uso de filtros para evitar a poluição da atmosfera. Mas a polêmica é grande em torno do assunto, já que o custo de implantação é alto e há dúvidas entre am-

bientalistas quanto à capacidade dos sistemas de filtragem de deter a geração de gases tóxicos. Por conta disso, há resistências por parte de movimentos em vários municípios. Em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, até o fim do ano passado estava prevista a construção do que seria a primeira usina de incineração de lixo doméstico do Brasil, numa estrutura programada para ocupar a área do antigo lixão do Alvarenga, próxima à Represa Billings – um dos mais importantes reservatórios da região metropolitana. “Com a política nacional, antes de qualquer iniciativa terá de ser

FOTOS DIVULGAÇÃO

da mudança de hábitos que conferem à cidade de Belém o título de capital mais suja do país. “Vivemos em uma cidade submersa no lixo e parece que estamos nos acostumando com isso”, diz Ana Maria Magalhães, promotora de Justiça e professora de Direito Ambiental, organizadora do Grupo de Combate ao Lixo de Belém. “No Brasil são gastos por dia mais de R$ 12,8 milhões em coleta e destinação de lixo, mas os governantes ainda não sabem qual a melhor alternativa”, afirma o engenheiro Gilson Matos, professor da Universidade de Brasília (UnB). Segundo Matos, o problema preocupa cada vez mais os países­da América Latina e da Europa – a Itália recentemente viveu séria crise relacionada à falta de coleta. Por outro lado, destaca boas experiências na Alemanha, Suécia e Japão, que avançaram ao obrigar empresas a fazer a separação e estão transformando esse material em energia. Exemplo que deveria, como enfatiza, “ser seguido pelo Brasil”. A especialista em planejamento de limpeza urbana do Distrito Federal Juliana Berber observa que nem tudo que tem potencial de reciclagem consegue ser devidamente separado. Os motivos são os mais diversos, como falta de conscientização das pessoas e carência de um sistema de coleta estável e disponível para a população. “Não adianta uma prefeitura ou governo estadual fazer coleta seletiva sem oferecer condições adequadas nem ter cooperativas de catadores funcionando com boa estrutura”, diz. O professor de Engenharia Sanitária da Universidade Federal de Mato Grosso­ (UFMT) Paulo Modesto lembra que o problema dos aterros, propriamente, é fácil de resolver, contanto que sejam escolhidas áreas em que se levem em conta o meio físico (solo, água e ar), a fauna e flora da região, uma distância considerável de re-

APROVEITAMENTO Dutos coletam biogás do aterro Bandeirantes, em São Paulo. O gás movimenta geradores e produz energia elétrica

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MÁ FAMA Belém, capital do Pará, detém o título de cidade mais suja do Brasil

SHIRLEY PANAFORTE

ROBERTO PARIZOTTI

SOLUÇÃO DUVIDOSA O primeiro incinerador de lixo doméstico do país pode ser construído nessa área, próxima à Represa Billings, onde funcionava o lixão do Alvarenga, agora recoberto pela mata nativa

provada a viabilidade técnica, ambiental e econômica de um empreendimento desse porte – exigências que, antes, eram menores”, ressalta Sérgio Gonçalves, do MMA. A ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, afirmou no início de fevereiro, num encontro em São Paulo, que vai procurar todas as áreas envolvidas para negociar a política e viabilizar as parcerias necessárias. “Existe a dificuldade de articular as várias posturas, nas políticas públicas, sobre essa ideia de sustentabilidade. Há algumas muito conservadoras. Graças à democracia, recepcionamos essa diversidade de pensamento, mas dá trabalho negociar e absorver”, reconhece.

A população, preocupada com o impacto ambiental, também tem se manifestado em torno do tema. Em Pernambuco, o Fórum Estadual Lixo e Cidadania (Flic) conseguiu impedir o andamento de proposta para a instalação de um incinerador em Cabo de Santo Agostinho, para tratar o lixo produzido em Recife. De acordo com integrantes do Flic, a incineração, além de ser a solução de tratamento dos resíduos sólidos mais cara existente no mundo, contribui para agravar o problema das mudanças climáticas. O governo de Pernambuco já sancionou uma lei que se adequa às regras da nova política, mas mobilizações como a do Flic têm crescido em todas as regiões.

Um segmento importante da economia tira do lixo e dos resíduos­não recolhidos por serviços públicos de coleta oportunidades de trabalho e renda. Os catadores formam uma população estimada em 800 mil pessoas. O pernambucano Cícero Pereira da Silva, morador de Brasília, começou a reciclar desde que chegou à capital federal, há 11 anos. “Vim para procurar emprego e, quando soube como o pessoal trabalha, me identifiquei”, afirma. Cícero destaca a disponibilidade de horário de seu trabalho. Ele começa todos os dias na usina de lixo por volta das 7 da manhã e sai às 15h15, “com o sol ainda quente”. Eva Barros Monte, catadora há três anos, concorda. “Num outro emprego, talvez não pudesse ficar com meus filhos”, ressalta ela, mãe de duas crianças. “Muitos acham melhor separar lixo que permanecer em empregos que têm horários rígidos, mas isso depende muito do período do ano e da qualidade das vagas oferecidas pelo mercado. Hoje mesmo

FOTOS AUGUSTO COELHO

Utilidade pública

Cícero Lacerda: outro lado

Eva: facilidade com horário

Catador põe a mão na massa eu soube de um monte de gente que mudou para empregos com carteira assinada, mas não é o que acontece sempre”, diz Alessandra Alves, diretora da cooperativa de catadores que atua numa usina do Lago Norte, em Brasília. Segundo ela, catadora há 12 anos, com a es-

truturação da profissão o trabalho ficou mais fácil. “Antes vivíamos nos lixões e só tínhamos essa opção. Hoje, não. Estamos juntos, seja em usinas ou em cooperativas, e isso fortalece nossa atividade.” O Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) defende a remuneração da categoria, por parte das prefeituras, pela coleta e separação do lixo, além da oferta de cursos de capacitação para aprimorar o trabalho. Apenas quatro municípios

Sol quente e muito trabalho brasileiros têm autogestão das cooperativas e pagamento pelos seus serviços de coleta: Diadema, Biritiba Mirim, Arujá (em SP) e Belo Horizonte. “É preciso mostrar o outro lado dessa atividade, uma vez que os catadores são peça importante da destinação final do lixo”, diz Cícero Lacerda, chefe da usina de tratamento de lixo do Distrito Federal. E a mão de obra não se resume à coleta. Como observa Clara Ednar Cardoso Pereira, que vive da separação do lixo há nove anos, as pessoas e condomínios não ajudam tanto como se pensa. “O catador é que tem de meter a mão na massa e separar o que presta.” ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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CAPA

C

om a aparente “volta por cima” da Globo nas negociações sobre a transmissão dos campeo­ natos brasileiros de 2012 a 2014, as esperanças de transmissão de jogos na TV aberta em horários civilizados, para espectadores e atletas, se esvaem. Os clubes, atolados em dívidas, menosprezam a negociação coletiva. Também passam ao largo preocupações com o que o torcedor mortal terá de pagar por ingressos em estádios ou pacotes televisivos para ver seu time ou secar os demais. O esporte mais popular do país é cada dia mais impagável para a maioria da galera. O professor Flávio de Campos, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), compara a situação a uma briga oligárquica. “Essa cartolagem é muito parecida com determinadas raposas da política brasileira, e às vezes se confundem mesmo”, diz. A realização da Copa de 2014 no Brasil reforça a mudança de foco do futebol e potencializa a cobiça. Construídos ou reformados, às vezes com necessidade duvidosa, os estádios serão em tese mais bem aparelhados, terão capacidade menor e ingressos mais caros, o que evidencia essa busca pelo público de maior poder aquisitivo. “A questão da transmissão é um complemento da exclusão que vem sendo feita há anos nos estádios. Em nome da segurança, um padrão de modernidade se impõe e remove os setores populares. Como se a violência fosse um atributo desses setores, o que é uma falácia”, acrescenta Campos. No Maracanã, a geral, conhecida pelo grande número de populares fantasiados que ali acompanhavam os jogos, foi destruída­em 2005 e deu lugar às cadeiras – setor nobre. Foi o fim dos geraldinos, como eram conhecidos os frequentadores. E os arquibaldos, a turma da arquibancada, também não tem vida fácil. Ambos os tipos foram cunhados pelo escritor Nelson Rodrigues, frequentador do velho Maracanã.

Aperto

O funcionário público Paulo Roberto Evaristo estava lá no último dia da geral, em 24 de abril de 2005, no jogo entre Fluminense e São Paulo – e até guardou o ingresso. “Estudava e trabalhava, o salário era pequeno, era a opção mais em conta. Além disso, era legal ficar mais perto do campo. A visão era ruim, mas compensava. Dava para chamar e xingar os jogadores. Pelo me-

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Sem geraldinos e arquibaldos Em meio a falência de clubes, ganância de emissoras e um mercado voraz, desaparece a possibilidade do pobre torcedor de assistir ao esporte que adora Por Vitor Nuzzi

nos ficava a impressão de que podiam ouvir”, brinca. Na despedida, Paulo e alguns amigos foram os últimos a deixar o estádio. Aos 39 anos, realizou o sonho de muitos meninos: conseguiu entrar no campo, cobrar pênaltis imaginários e fingir que estava ligando do orelhão, como alguns jogadores costumavam comemorar seus gols, em vez de correr para diante da câmera mais próxima. Segundo ele, o ingresso custava um quarto do da arquibancada, que por sua vez era metade do preço das cadeiras. Em 2010, o Maracanã foi fechado. A re-


RICARDO MORAES/REUTERS FOTOS RODRIGO QUEIROZ

forma mira a Copa. Na última, a capacidade caiu de 120 mil para 86 mil pessoas – que passaram a pagar mais. Em 1969, o estádio chegou a receber 180 mil torcedores. Com a reabertura, provavelmente em 2013, caberão apenas 76 mil e esperam-se preços ainda mais elevados. Às vezes, alguém reclama. Como na partida entre Santos e Cerro Porteño, pela Taça Libertadores, em março. O time paulista aproveitou o jogo contra o rival paraguaio para cobrar R$ 100 pelo ingresso. Resultado: protestos e pouca gente no estádio. Em Salvador, o gerente financeiro Marcus Vinícius Vilas Boas, o Kiko, torcedor do Bahia e fã de carteirinha do estádio da Fonte Nova conta que os preços não esperam reformas para subir. “Já está tudo mais caro. No Pituaçu (que vem sendo utilizado para jogos maiores), os ingressos para o campeonato baiano estão R$ 50, R$ 40 no mínimo, dependendo do jogo. Na Fonte Nova custavam R$ 10, R$ 20, R$ 30 no máximo.” O palco da Fonte Nova foi fechado em 2007, após a queda de um pedaço da arquibancada que matou sete pessoas. Kiko estava a poucos metros. “Lembro o dia da tragédia, nunca teve só 65 mil torcedores ali”, diz, referindo-se ao público oficial informado. “No mínimo, uns 80 mil.” O tradicional estádio foi implodido. No local, será construído um novo, com capacidade para pouco mais de 50 mil pessoas.

ALMA FERIDA A reforma do Maracanã vai encolher o estádio, que na reabertura terá ingressos mais caros. Paulo Roberto lembra saudoso, com o ingresso na mão, os tempos da popular geral, extinta em 2005. Matheus (à esq.) defende a mobilização dos torcedores ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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Elitização

Em artigo publicado em O Estado de S. Paulo no final de 2010, o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcos Alvito cita a Soccerex, feira internacional realizada no Rio com foco no futebol como negócio, na qual “especialistas” decretaram que a modalidade no Brasil terá a classe A como clientela-alvo, deixando as classes B e C para trás. “Porque as D e E há muito não sentam em uma arquibancada. Hoje os estádios viraram estúdios para um show televisivo chamado futebol”, observa o antropólogo, para quem está em curso um processo de elitização perversa do esporte. O docente foi um dos criadores, em 2010, da Associação Nacional dos Torcedores. Incipiente, mas com reivindicações como maior transparência no futebol, além de igualdade de acesso aos estádios. “Vai acabar com toda e qualquer possibilidade de a população pobre ou de classe média baixa frequentá-los. Claro que a gente aprova o conforto. O problema é transformar o estádio num grande shopping center”, diz o estudante Matheus Serva, da ANT. “E tem o agravante da televisão. Quarta-feira às 10 da noite é impossível para um trabalhador assistir ao jogo.” O historiador Felipe Dias Carrilho vê na questão da TV um aprofundamento da lógica empresarial, que não chega a ser novidade, mas se torna mais visível à medida que a Copa se aproxima. “É a capitalização

INDIGNAÇÃO Torcida do Santos protesta na Vila Belmiro: ingresso a R$ 100 afugentou o público

máxima do esporte. Nossos cartolas são os coronéis dentro do futebol.” O jornalista Juca Kfouri fala em um país sui generis, em que os capitalistas não gostam de praticar o capitalismo que apregoam. “Por um lado,

uma emissora (Record) capta recursos de forma ‘espúria’, no ‘mercado da fé’. De outro, a concorrente (Globo) não demonstra interesse em seguir as regras da concorrência.” No mundo do consumo, os europeus es-

Na Argentina, a transmissão dos jogos é de graça Enquanto no Brasil quem gosta de futebol praticamente fica à mercê de um conglomerado televisivo, na vizinha Argentina o governo comprou a briga com o Clarín, principal grupo de mídia do país, e assumiu as transmissões, que passaram a ser gratuitas e exibidas pela TV pública, com o lançamento do programa Futebol para Todos. A mudança faz parte da substituição da antiga Ley de Radiodifusión pela Ley de Medios Audiovisuales. “Um capítulo importante dessa lei era precisamente garantir o direito ao acesso ao esporte mais importante dos argentinos”, afirmou a presidenta Cristina Kirchner, na assinatura do convênio

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entre a AFA, a associação de futebol argentina, e o Sistema Nacional de Medios Públicos (SNMP), em agosto de 2009. Segundo ela, é obrigação do Estado “garantir a todos, sobretudo àqueles que não podem pagar, o direito a ver seu esporte predileto”. Para Gustavo Bulla, diretor da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual, órgão regulador argentino, a exclusividade de direitos para televisionamento de futebol foi um dos fatores que levaram à concentração no meio audiovisual. “Agora, aquele adolescente de 18, 19 anos está vendo pela primeira vez um jogo de futebol, porque muitas cidades, devido ao sistema a cabo,

não podiam transmitir”, afirmou, durante evento em Brasília no final de 2010. O governo argentino ofereceu US$ 150 milhões por ano, até 2019, para televisionar o campeonato. O valor é aproximadamente três vezes maior que o da TV privada. O acordo foi aceito pelos clubes, todos em dificuldade financeira, e intermediado pela AFA. No Brasil, nas negociações pelo direito de transmissão do Campeo­nato Brasileiro de 2012 a 2014, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), vinculado ao Ministério da Justiça, até conseguiu impor um pouco de concorrência ao tema. A Globo ficou de fora do leilão elaborado

pelo Clube dos 13 e implodiu o órgão ao assediar individualmente os clubes. Ofereceu bem mais do que pagou no contrato anterior a alguns dos principais times do país. A Rede TV! entrou como única concorrente e ganhou a licitação no atacado. A Record, da qual se esperava a maior oferta, nem entrou no leilão depois dos movimentos da Globo “por fora” – e, como a rival, partiu para as negociações individuais. As dúvidas se multiplicam. Durante o programa Observatório da Imprensa, o procurador-geral do Cade, Gilvandro Araújo, afirmou que a autoridade antitruste poderá se manifestar novamente se acionada. “Isso (as discussões


fontes de receitas: 30% vêm da bilheteria de seu estádio, 34% do comércio de produtos e 36% de direitos da televisão – aqui, a dependência da TV supera os 50%. Em meados de março, o site do clube tinha poucos ingressos disponíveis a não sócios para um jogo do campeonato local que seria realizado três semanas depois, contra o Sporting Gijon: € 225 (R$ 530).

IVAN STORTI/LANCEPRESS!

Arquibancada

REUTERS/ENRIQUE MARCARIAN

tão muito à frente. Considerado pela revista Forbes o time mais rico do mundo, o Manchester United, da Inglaterra, acumula patrimônio de US$ 1,8 bilhão. Seu canal pago é exibido em 192 milhões de residências. O segundo na lista, o Real Madrid, da Espanha (US$ 1,3 bilhão), mostra equilíbrio nas

O executivo e consultor espanhol Esteve Calzada calcula que um fã do Real ou do rival Barcelona gastará aproximadamente € 3.000 (mais de R$ 7.000) se acompanhar seu time por toda a temporada europeia. “Em tempo de crise”, lembra. Ele também prevê que, na temporada 2011-2012, o Barça desbancará o Real e se tornará o clube com maior arrecadação no mundo. O time catalão tem mais de 170 mil sócios-torcedores e mantém sempre lotado seu estádio, o Camp Nou, com capacidade para 99 mil espectadores. No Brasil, os clubes, endividados, as TVs e seus patrocinadores caminham para consolidar a tipificação do torcedor de “arquibancada de prédio”, na definição do professor Flávio de Campos: aquele que assiste ao jogo em casa e faz barulho para perturbar o vizinho simpático ao adversário – que também não vai ao estádio. O professor vê o país perder a oportunidade de fazer uma correção de rota. Eventos como Copa do Mundo (2014), Jogos Militares (2011), Olimpíada e Paraolimpíada (2016) deveriam ser determinantes

Campeonato argentino na TV pública: briga com a mídia

para formular políticas de investimentos na formação de atletas. “É incrível a falta de interesse em vincular essa agenda esportiva à educação”, diz. “Se equipassem as escolas públicas, essa revalorização poderia transformá-las em centros de difusão do esporte. Não seria muito difícil pensar num projeto mais interessante e criativo, em vez de gastar bilhões em estádios ultramodernos.” Autor, 30 anos atrás, do livro História Política do Futebol Brasileiro, o professor Joel Rufino dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), considera que a chave para essa completa mercantilização é a separação entre o esporte e o espetáculo. “Eu gostava muito de ver jogos no campo do Palmeiras, da proximidade dos jogadores. Não sei por que vão construir outro estádio. É para o espetáculo”, ironiza. “Vai-se ao campo como se vai ao teatro”, confirma Juca Kfouri. O jornalista também detecta um aspecto inexorável de elitização e de transformação dos estádios em estúdios para programas televisivos. Corintiano, ele lembra quando saboreava o show da torcida. “O lugar é para sentir em cima da pedra, no degrau (da arquibancada). Se estivesse lotado, ia para o alambrado.” Juca conta a “sensação paradoxal” que experimentou, no Allianz Arena, na Copa da Alemanha, em 2006. “Um lugar suntuoso­, limpíssimo e quase esterilizado. Não dá para xingar o juiz. Você faria isso no Teatro Municipal?”, brinca. “Cada vez mais a sensação que tenho é de que os estádios­ não têm alma.”

entre­TVs e clubes) talvez vá ensejar no futuro um outro tipo de análise, não só do Cade, mas de todos os interessados nesse setor.” No campeonato inglês, os clubes negociam juntos. Na Espanha, separados, com grande parte do bolo destinada ao Barcelona e ao Real Madrid. Enquanto na Inglaterra o troféu é disputado por várias equipes, a Espanha criou “o melhor campeonato gaúcho do mundo”, conforme expressão do jornalista esportivo Paulo Vinicius Coelho, em referência ao campeonato do Rio Grande do Sul, quase sempre vencido por Internacional ou Grêmio. A questão, no Brasil, passa também pela política. Parte dos clubes é aliada de Ricardo Teixeira, presi-

dente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) há 22 anos, parceiro da Globo e candidatíssimo ao comando da Fifa, a entidade maior da modalidade mundialmente. Antes de assistir de camarote à implosão, Teixeira tentou sem sucesso emplacar na presidência do Clube dos 13 seu aliado Kléber Leite, ex-presidente do Flamengo. Entre os cotados para substituí-lo na CBF, se o mundo não acabar até lá, estão o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, companheiro de primeira hora, e até Marcelo Campos Pinto, executivo da Globo e principal articulador do atual imbróglio do futebol brasileiro – que não está livre de acabar nos tribunais.

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ENTREVISTA

Ele qu

Ney surpreendese por chegar aos 70 com voz e corpo em plena forma, ativo nos estúdios, nos palcos e agora no cinema, como vilão de um clássico dos anos 1960. “Papel de mocinho ou de gay eu não faço” Por Tom Cardoso

Não estou fazendo nenhum tipo de caridade ao gravar compositores que a imprensa chama de malditos. Se vendem ou não, pouco importa. Eu quero sempre gravar coisa boa

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quer ser bandido

Você faz parte do seleto grupo de intérpretes – ao lado de Maria Bethânia e João Gilberto – que não faz nenhum tipo de concessão na hora de gravar seus discos. Recentemente, anunciou que seu próximo disco fará homenagem aos compositores “malditos”, que sempre estiveram à margem do mercado.

A imprensa é que inventou esse rótulo de maldito. Para mim, existe compositor bom e ruim. Eu disse que quero gravar músicas de Jards Macalé, de Itamar Assumpção, de Sérgio Sampaio. E para mim eles estão

entre os melhores. Itamar, por exemplo, não é novidade para mim. Já gravei mais de dez vezes. Não estou fazendo nenhum tipo de caridade ao gravar compositores que a imprensa adora chamar de maldito. Se eles vendem discos ou não, pouco importa para mim. Eu quero sempre gravar coisa boa. E no meu próximo disco terá música de gente nova, também. Essa é outra característica marcante de sua carreira. Você sempre gravou canções de novos compositores. É um cantor generoso.

Gravo músicas de novos compositores por necessidade, e não por generosidade. Não componho e a maioria dos grandes compositores grava as próprias canções. Não posso me dar ao luxo de depender apenas de um grupo. Nem quero. É claro que tenho o maior prazer de divulgar o trabalho de alguém que está começando, batalhando, mas meu critério de escolha passa sempre pela qualidade. Eu ouvi, outro dia, um trabalho maravilhoso de um cantor de rap alagoano sensacional.

Qual o nome dele?

Vítor Pirralho.

Vítor Pirralho?

Sim. Descobri o menino por acaso. Estava no hotel em Maceió e comecei a ler uma matéria sobre ele no jornal da cidade. É um professor de Literatura que faz rap-repente antropofágico de origem afro-indígena.

Rap-repente antropofágico de origem afro-indígena?

É (risos). Achei diferente. Primeiro, o rap dele não explora a temática do favelado. Começa por aí. Ele faz rap partindo do ponto de vista do índio, da antropofagia. Achei a ideia genial e pedi ao meu produtor que entrasse em contato com o Vítor. Ele apareceu à tarde no hotel, com seu disco, que também é muito forte musicalmente. Já escolhi uma canção para meu próximo trabalho.

Você foi até sua cidade (Bela Vista, MS) gravar cenas para o documentário Olho Nu, que o diretor Joel Pizzini prepara em sua homenagem. Como foi gravar na casa em que você passou parte da infância? Quais são as lembranças dessa fase de sua vida?

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RODRIGO QUEIROZ

“E

sse menino força muito os agudos. Sua voz não vai aguentar”, escreveu, cheio de razão, o crítico de música a respeito do líder da banda Secos & Molhados, sucesso vertiginoso nos anos 1970. O jornalista dava como certa a brevidade da carreira de Ney Matogrosso. Verdade seja dita: nem ele próprio achava que ia muito longe. “Eu não me via rebolando e fazendo tudo o que faço no palco com 50 anos.” Ney está perto de completar setentinha e continua fazendo tudo e mais um pouco. Voltou a trabalhar com teatro­(dirige o monólogo Dentro da Noite, estrelado por Marcus Alvisi) e descobriu que sua vocação para cinema não se resume mais a pontas em curtas-metragens. Em junho ele estreia como protagonista na sequên­cia de O Bandido da Luz Vermelha, de Ícaro Martins e Helena Ignez, viúva de Rogério Sganzerla, diretor do primeiro longa, de 1968. Ney está aberto a novos convites, e avisa: gostou de ser vilão. Mesmo com tantas atividades paralelas, não abriu mão do seu maior prazer: a música. Até o fim do ano promete lançar o esperado disco só com canções inéditas de compositores muito admirados por ele, como Jards Macalé, Itamar Assumpção, Sérgio Sampaio, entre outros “malditos” – rótulo que detesta – e de autores novos, como Vítor Pirralho, descoberto por acaso durante uma leitura de jornal em Maceió. Ney recebeu a reportagem da Revista do Brasil em sua cobertura no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Conversou sobre tudo, com a habitual franqueza. Bem-humorado, falou de sua infância em Mato Grosso e de sua importância como diretor de Cazuza e do grupo RPM. Irritou-se apenas uma vez, quando o repórter quis saber se seu desempenho sexual também continua acompanhando seu desempenho nos palcos. O intérprete respondeu no melhor estilo Ney Matogrosso.

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São poucas as lembranças. Fui para o Rio com 6 anos. Gravei imagens na casa da minha avó, em que eu nasci. Caiu um vendaval nesse dia, o piso da entrada da casa estava cheio de folhas secas. Foi bonito. Eu me lembro de minha bisavó, que vivia com um chicote enrolado no pescoço para espantar galinhas e outros bichos que apareciam na casa.

RODRIGO QUEIROZ

Ela nunca precisou usar o chicote em você?

Achei que o mundo estava melhorando, mas está ainda muito atrasado. Ainda bem que o ator (Marco Audino) foi barrado na sua igreja (por viver um papel de gay). Não frequentar vai fazer muito bem a ele

Não. Eu não dei trabalho nessa fase da minha vida. Ficava com meus irmãos na varanda, olhando as pessoas­ passar. Uma vez, um homem, uma bicha, passou em frente de casa e as pessoas apontaram para ele, assustadas. Algumas vaiaram, outras xingaram. E ele mantinha o passo e os trejeitos. Afrontava mesmo. Aquilo me marcou muito.

Mas você ainda não sabia que era homossexual...

Não! Só foi rolar muito mais tarde, na fase adulta.

Você foi para o Rio com 6 anos, mas voltou a morar em Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, aos 13. Na época, a distância cultural entre as duas capitais era ainda maior que hoje. Não foi difícil para você esse retorno?

Sim. Eu não queria ficar lá. Não acontecia absolutamente nada em Campo Grande. Imagine uma cidade de Mato Grosso do Sul nos anos 1950. O máximo de ousadia que a cidade se permitia era uma sessão de cinema, à meia-noite, todo mês, de um filme pornô. Todos os homens da cidade iam. Eu entrei ali uma vez e não achei a menor graça naquilo. Nem excitado fiquei. Achei apenas estranho. Muitos anos depois, já adulto, fui a um cinema em que havia um número de striptease antes do filme erótico. Ficava na Rua Aurora, na chamada Boca do Lixo, em São Paulo. Continuei não sentindo nada, e até hoje não acho a mínima graça.

E com quantos anos você voltou para o Rio?

Com 17. Não aguentava mais a vida provinciana de Campo Grande.

O Rio do começo dos anos 1960 era muito diferente. Você é saudoso de um Rio que não volta mais?

Não sou saudoso de nada. Mas é claro que o Rio era muito melhor para morar do que hoje. As mulheres pegavam lotação com pulseira de ouro, com colar de pérolas, e não acontecia nada. Hoje isso é impensável. Outro dia mesmo eu estava andando pelo Leblon e vi uma mulher sendo assaltada por um bando de pivetes. Ela correu na direção da praia, gritando, e os pivetes atrás. Ninguém fez absolutamente nada. Nenhum policial apareceu. A polícia está toda no morro, né? E a gente aqui, como fica?

Em quem você votou na última eleição?

Não interessa. Não revelo o meu voto. Mas já sinto

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algo diferente no novo governo. Tem menos conversa-fiada. É um estilo que me agrada mais. Espero que ela (Dilma Rousseff) faça um bom governo, embora esteja cercada de inimigos, do partido dela e dos outros. A gente vai precisar rezar por ela. Você dirigiu cantores, grupos de rock, elencos enormes no teatro. Agora está em cartaz, como diretor, do monólogo Dentro da Noite, estrelado por Marcus Alvisi. Dirigir é um de seus grandes prazeres?

Sempre foi. Agora está sendo ainda mais prazeroso porque posso me concentrar num ator só. Dirigir um elenco grande dá muito trabalho (Ney dirigiu 11 atores na peça Somos Irmãs).

Como foi dirigir o RPM, o maior fenômeno do rock nacional de todos os tempos?

Foi ótimo.

O grupo durou pouco. Houve problemas com drogas e disputas internas, típicos de quem faz sucesso muito rápido. Você já percebia ali um despreparo dos integrantes para a fama repentina?

Não, que nada. Eles eram meninos ótimos, tímidos até. O (Manoel) Poladian, empresário da área musical, me procurou no começo dos anos 1980. Queria que eu dirigisse uma banda de rock. Falei para ele do RPM, um grupo que ainda não era sucesso, mas estava com algumas músicas na rádio. Parecia muito interessante, mas meio cru ainda. Eu disse ao Poladian que só toparia dirigi-lo se tivesse total liberdade para fazer o que quisesse. Ele concordou, e eu comecei a trabalhar com os meninos.

Qual foi sua principal contribuição como diretor?

Eles eram muito travados. Até o Paulo Ricardo tinha problemas para se soltar no palco. Um dia, a gente estava ensaiando debaixo de um calor terrível. Eu disse: “Por que vocês não tiram a camisa? Para que tanta roupa?” Eles ficaram se olhando, meio assustados, mas tiraram. Começou por aí (risos).

E dirigir Cazuza, como foi?

O Cazuza era o contrário do RPM. Eu precisava torná-lo mais econômico no palco, mais introspectivo. Ele fazia aquelas loucuras todas dele: entrava com cotonete enfiado em cada orelha, botava o pau para fora. E já não era um menino e estava doente, muito debilitado fisicamente. Disse a ele para concentrar sua força no pensamento, sua principal qualidade. Fiz um figurino todo branco, bem leve. Mandei colocar uma luz bem tranquila. Ele aceitou, e deu tudo certo.

Você também dirigiu Chico Buarque no show Paratodos. Chico é conhecido por sua timidez crônica. Tentou fazer com que ele se soltasse no palco?

Não. Chico Buarque é Chico Buarque. Há artistas que a gente não pode ter a pretensão de mudar. Eu apenas


GERARDO LAZZARI

organizei as coisas ao redor dele e dei pequenos toques. Com Nelson Gonçalves foi a mesma coisa. O cara tem 50 anos de estrada. Chegou onde chegou sendo ele mesmo. Quem sou eu para dizer o que está certo ou errado?

Fiquei surpreso. Achei que o mundo estava melhorando, mas não está. Está ainda muito atrasado. Agora, ainda bem que o ator foi barrado, né? Não precisa mais frequentar a igreja. Vai fazer muito bem a ele.

Como foi encarar o desafio de interpretar o protagonista de O Bandido da Luz Vermelha?

No dia 1º de agosto você completa 70 anos. Cae­tano­­Veloso disse, recentemente, que está curtindo muito seus 68 anos, que está ainda na “infância da velhice”.

Eu já havia feito algumas participações em curtas-metragens e no longa Sonho de Valsa, da Ana Carolina. Mas nunca tinha sido convidado para viver o protagonista. Confesso que fiquei inseguro. Não por causa do tamanho do papel, mas pelo fato de a Helena (Ignez, codiretora do filme) ter me pedido para que eu não ensaiasse. Queria que eu fosse o mais espontâneo possível. Mas no fim deu tudo certo.

Já surgiram outros convites para fazer cinema?

Já, mas nenhum me interessou. Os diretores querem que eu faça papel de veado. Eu não quero. Quero algo que esteja distante do meu universo, que signifique um desafio para mim. Gostaria muito de fazer outro bandido. Quem sabe um psicopata. Não quero ser o mocinho. Gay muito menos.

As manifestações de homofobia aumentaram nos últimos anos. O ator Marco Audino, que o interpretou no especial Por Toda Minha Vida, foi proibido por um pastor de participar dos cultos de sua igreja. Houve o caso da agressão na Avenida Paulista...

Eu não sinto que cheguei à velhice. O único sinal (abaixa a cabeça para mostrar a pequena calvície) é aqui: meus cabelos caíram um pouco. De resto, continuo a mesma coisa. Ainda estou ágil, flexível no palco. O curioso é que eu achava que pararia de cantar aos 50 anos. Que não passaria disso. Os críticos também diziam que a minha voz não iria durar muito, porque eu forçava demais os agudos. Tudo bobagem. Eu não senti a velhice bater ainda. Sei que ela vai chegar, mas não penso nisso.

E sexualmente, também está no auge?

Não senti a velhice bater ainda. Estou ágil, flexível no palco. Os críticos diziam que a minha voz não duraria muito, porque eu forçava demais os agudos. Tudo bobagem

Está tudo certo.

Nunca tomou Viagra?

Não.

Nem pretende tomar?

Nunca tomei e nunca vou tomar. Não preciso. Você quer saber se sobe, é? ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

A voz ea vez do

U

ma das primeiras brigas compradas pelo novo secretário da Cultura da Paraíba trata de um tema que ele conhece a fundo: a música. Recém-nomeado pelo governador Ricardo Coutinho (PSB), o compositor e cantor paraibano Chico César, autor de hits como Mama África e À Primeira Vista, assume a pasta em meio a várias polêmicas. Uma delas, a escolha do novo regente da Orquestra Sinfônica da Paraíba, João Linhares, também paraibano, amigo de Chico e arranjador de alguns de seus discos. Em jornais e blogs da cidade, as opi-

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niões se dividem. Para alguns, a escolha foi tida como um erro, considerando-se que Linhares não teria formação adequada para assumir o posto, ou mero privilégio dado ao amigo, muito mais conhecido por sua atuação como músico popular. Para outros, reflete positivamente a valorização de músicos paraibanos, “que conhecem as necessidades e a realidade de nossa música, da popular à erudita”, como descreve um influente site de notícias da capital João Pessoa. A polêmica é apenas parte do desafio que Chico César se põe a enfrentar em sua gestão: valorizar a cultura popular sem ferir

sert os tradicionais poderes culturais do estado. “Existe um cosmopolitismo servil, no qual o que é bom é o que vem de fora. João saiu daqui já compositor de música erudita, com reconhecimento, chegou a reger a própria orquestra da Paraíba num momento de crise, depois foi para São Paulo, regeu a Jazz Sinfônica, foi maestro-assistente da Sinfônica Jovem, fez arranjo para várias orquestras, para vários artistas”, defende o secretário. “Mas se vier um cara com uma história semelhante à dele e tiver sotaque de São Paulo, ou do Rio de Janeiro, ou de Santa Catarina, aí rola um ‘sim senhor’”, ataca Chi-


co, que considera uma “quase aberração” a orquestra há muitos anos não ter um regente paraibano. “A escolha é parte de uma política de valorização; afinal, os músicos paraibanos são referência no país, e é justo que o regente titular seja um artista com formação musical paraibana.” A luta por valorizar músicos de seu estado encontra eco em sua história de vida. Nascido em Catolé do Rocha, no sertão paraibano, o menino Francisco César Gonçalves viveu com muitas dificuldades, embora sempre rodeado de dança e música. Seu pai dançava reisado e ele começou a aprender música muito jovem,

De autor a gestor

Ter sido escolhido como vitrine do governo por ser famoso nacionalmente é outra polêmica local levantada. Questionamento parecido já havia sido feito quando o músico assumiu, em 2009, a presidência da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope), órgão que exerce o papel de secretaria municipal de Cultura. Permaneceu no cargo por 18 meses, durante a gestão de Ricardo Coutinho como prefeito da capital. “As pessoas esquecem que fui um dos fundadores do Musiclube da Paraíba, do Movimento Fala Bairros, que faziam cultura comunitária, sem governo, sem nada”, observa Chico. Ele cita como referência outro famoso que virou gestor público: Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura. “Até entendo esse tipo de desconfiança, pois no começo da gestão de Gil eu era bastante desconfiado. Achava que era um gesto por parte de Lula de criar um simbolismo, porque Gil tinha uma representação como artista bem-sucedido da indústria cultural, um cara que não ia propor mudanças num sistema que não funcionava para a maioria, mas funcionava pra ele”, admite. “No entanto, Gil me surpreendeu e mudou vários paradigmas da cultura do Brasil.” Para ele, a grande mudança foi deslocar os investimentos para projetos e regiões

Secretário da Cultura da Paraíba, o compositor Chico César quer uma gestão que privilegie as manifestações artísticas populares e combata o “cosmopolitismo servil”, que só dá valor ao que vem de fora Por João Correia Filho PELO AVESSO Em Monteiro, interior da pequena Paraíba, vive Zabé da Loca (no alto), “pifeira” de 86 anos reconhecida apenas há pouco por sua música e sua história. Na casa de José Américo (ao lado), o secretário Chico César não se sente à vontade com a exaltação ao exgovernador

FOTOS JOÃO CORREIA

tão

num colégio de freiras, uma das poucas opções em Catolé, hoje com cerca de 30 mil habitantes. Vanilson Crispim se lembra do amigo de infância esboçando acordes de canções de Raul Seixas, aos 9 anos. “Chico passava a maior parte do tempo no colégio Francisca Mendes, pois os pais não tinham condições de criá-lo adequadamente, devido a uma vida muito dura que o sertão impunha naquele tempo”, recorda o amigo. Crispim conta que nessa mesma época formaram um grupo musical chamado Super Sônico Mirim. “Emprestava minha camisa pra ele na hora de se apresentar”, recorda orgulhoso. Em 2001, depois de se mudar para São Paulo e conquistar as rádios da capital paulista, Chico criou em sua cidade natal o Instituto Cultural Casa de Béradêro, uma ONG que atua na formação de jovens e adolescentes por meio da música. A ideia nasceu de uma parceria com a irmã Iracy, sua primeira professora de música, e hoje possui, além de outros projetos ligados a arte, uma pequena orquestra e uma luteria, onde os jovens aprendem a construir instrumentos. Foi também em Catolé do Rocha que Chico César gravou o clipe de Mama África, seu primeiro grande sucesso.

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Inspiração para Chico César é o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, secretário de Cultura de Pernambuco de 1994 a 1998, durante o governo de Miguel Arraes menos favorecidos. Hoje, são mais de 2.500 Pontos de Cultura espalhados pelo país, 54 deles no estado da Paraíba. Outro grande nome que serve de inspiração para Chico César é o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, secretário de Cultura de Pernambuco de 1994 a 1998, durante o governo de Miguel Arraes (PSB). Suassuna teria conseguido equalizar a valorização da cultura popular e erudita de seu estado, tornando ambas conhecidas nacional e internacionalmente. A ideia do músico é seguir os passos do autor de O Auto da Compadecida e fazer nos próximos meses um grande levantamento das manifestações culturais do interior paraibano. O projeto, no entanto, ainda esbarra na falta de verbas e de estrutura da recém-criada secretaria, pois até então a cultura estava ligada à Secretaria da Educação. A precariedade e o improviso ficam explícitos quando se visita o Casarão dos Azulejos, no centro histórico da capital, onde se encontra provisoriamente instalada a nova secretaria. Faltam computadores, cadeiras e mesas, e o que mais se comenta nos corredores é como arranjar parceiros para suprir a falta de verba para os projetos. Quem chega ao Casarão se surpreende com a quantidade de jovens em cargos de gerência de várias áreas. “São criativos, antenados, representam sangue novo”, defende Chico. Pedro Santos, assessor de imprensa da secretaria, tem apenas 23 anos e demonstra que suas referências estão em movimentos culturais da Paraíba na década de 1980, quando ainda era criança. Uma delas é o grupo Jaguaribe Carne, que contava com a participação de artistas de várias áreas. “Foi um coletivo que deu muitos frutos, e ainda hoje vários dos integrantes estão bastante envolvidos com cultura, como Gustavo Moura (fotógrafo), Bráulio Tavares (músico e compositor) e os músicos Lula Queiroga e Pedro Osmar, entre outros”, diz o assessor. Dessa época, uma das histórias mais emblemáticas da vida de Chico César foi ter participado de uma greve de fome, em 1984, com mais sete amigos da faculdade, com o intuito de conseguir melhorias e gratuidade no refeitório da Universidade Federal da Paraíba. “Foram nove dias sem comer nada, com acompanhamento psi42

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buraco, alguma coisa além de palavras...?” Em meio ao sorriso amarelo dos presentes, a visita continua sob a voz de José Américo, que ecoa por toda a casa. No dia seguinte, Chico vai a MonteiDa capital para o interior ro, a 300 quilômetros da capital, uma das Em poucas semanas à frente da secreta- principais cidades do Cariri paraibano, reria, Chico César esteve nas principais cida- gião rica culturalmente, mas ainda carente des do sertão paraibano, como Monteiro, de recursos. Dali saiu, por exemplo, Zabé Souza, Guarabira, Cajazeiras, Patos, e pro- da Loca, “pifeira” de 86 anos reconhecida cura administrar o tempo para também vi- apenas recentemente por sua música e sua sitar locais estratégicos na capital, como história. Zabé ganhou esse apelido por a Fundação Casa de José Américo, ter vivido por mais de 20 anos numa um dos mais importantes cengruta (conhecida na Paraíba como maloca, ou loca), após a perda de tros culturais da cidade. Recesua casa numa chuva. Começou bido pelos diretores, o secretáa tocar pífano aos 6 anos e só foi rio parece não estar totalmente revelada oito décadas depois, à vontade enquanto é levado com uma premiação de nível a conhecer os vários cômonacional, por seu único trados da grande casa onde viveu o imortal autor de A balho em CD. “Dona Zabé Bagaceira, construída de da Loca é uma veia muito frente para o mar, e totalloca/ que toca pife muderno A cultura mente restaurada, símbolo numa caverna do sertão”, diz da riqueza de uma elite intea letra da canção Zabé, comé vista lectual e política do início do posta por Chico César em dentro deste século 20, à qual pertenceu o sua homenagem. governo escritor. Monteiro, ele se reúpor um viés neEm Em uma das salas, onde com os prefeitos durante que tem estão fotos e edições traduzio Fórum de Cultura de Tumuito mais das da obra do ilustre parairismo do Cariri. Está mais bano, Chico é convidado a à vontade, vestindo camia ver com ouvir gravações de uma lonseta com o rosto de Zabé. os direitos ga entrevista feita com José Em seu discurso ressalta a humanos, Américo na época em que necessidade de um modecom a foi candidato ao governo da lo de cultura ligado mais às formação do questões sociais: “A cultura Paraíba – estado do qual foi cidadão, não é vista dentro deste governo interventor em 1930 e governador eleito em 1951. Em por um viés que tem muito como algo seguida, ouve um tanto immais a ver com os direitos de poucos paciente um jingle da camprivilegiados humanos, com a formação panha política – “candidato do cidadão, não como algo da pobreza e da religião”, exalde artistas, de poucos privitava a marchinha. O som sai de um antigo legiados. A cultura precisa ser vista como rádio, adaptado para reproduzir as palavras um modo de transformar a sociedade”. Na do conterrâneo imortal. plateia, os atentos olhos sertanejos pareTodos os demais acompanham o discur- cem nutrir uma esperança. O músico fala so solenemente. Chico fixa o olhar num co- com propriedade de quem é do sertão e fre, onde talvez fosse guardado o dinheiro exemplo de como a arte pode transformar de José Américo. Visivelmente incomoda- a vida do sertanejo. Resta saber se sua addo, desvia a atenção e pergunta: “Será que ministração como gestor público vai deiele não deixou aqui dentro alguma boti- xar marcas tão fortes quanto sua obra. Sem ja com dinheiro pra tirarmos a cultura do desafinar. cológico, médico, algo muito pesado para nós, mas deu resultado”, conta Vilma Cazé, namorada de Chico à época e hoje responsável pela área de teatro na secretaria.


Atitude

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oram tantas as batalhas que todos acreditavam que José Alencar venceria mais uma, e continuaria driblando os obstáculos e reafirmando seu amor pela vida. A luta acabou às 14h41 de 29 de março, quando foi confirmada a notícia da morte do ex-vice-presidente da República, aos 79 anos (completaria 80 em outubro). Nos últimos 14 ele superou, com notável obstinação, cada um dos problemas de saúde que passaram a acompanhá-lo, sem trégua. Foram 17 cirurgias. “Não temo a morte, mas a desonra”, chegou a dizer. O empresário mineiro ganhou destaque na política ao formar, como candidato a vice-presidente, a chapa liderada por Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2002 e reeleito em 2006. Contestada por

RICARDO STUKERT/PR

O brasileiro José Alencar

alguns, a composição foi defendida por Lula, que mais de uma vez chamou Alencar de “companheiro e irmão”. A lealdade ao presidente não o impedia de criticar a política econômica quando achasse necessário – ficaram famosas, por exemplo, as queixas em relação às taxas de juros. O seu pensamento nacionalista também por vezes se chocava com os rumos do governo. A última aparição pública de José Alencar Gomes da Silva ocorreu­ em 25 de janeiro, quando foi homenageado em São Paulo. Na rotina das internações dos últimos meses, ele lamentou não ter ido à posse de Dilma Rousseff – na ocasião, já admitia estar “exaurido­”. “Todo mundo era bom depois de morrer. Alencar era bom em vida”, disse Lula, chorando, pouco depois de receber a notícia. ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

Cinema de índio Familiaridade com câmeras fotográficas e filmadoras mostra que a tecnologia tornou-se instrumento de resistência cultural na aldeia Moyngo, no Xingu Por Carlos Minuano

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o futuro, quem sabe, dirão ser rastros de civilizações antigas as imensas áreas descampadas onde se destacam enormes geoglifos, como o que avistamos da janela do monomotor que nos leva rumo ao Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso. Mas o desenho no solo, em forma de sucuri, cujos contornos foram demarcados com eucalipto e soja, nada tem a ver com os indígenas da região. Os campos verdes são a marca mais chocante do desmatamento provocado pela plantação de soja que avança Amazônia adentro. É isso, e não a beleza da região, o que rouba a atenção na porta de entrada do parque indígena criado pelos irmãos Villas Bôas (Orlando, Cláudio e Leonardo), que neste ano completa seu cinquentenário. O cenário muda quando aterrissamos no Médio Xingu, na aldeia do povo Ikpeng – uma das 14 etnias que vivem na terra indígena. Por lá, a beleza natural salta aos olhos e a natureza é preservada. O clima também é contagiante. “Aldeia nova, tudo novo”, comemora o simpático pajé Araká, enquanto nos guia até a aldeia Moyngo, para onde ele e sua tribo se mudaram há poucos meses. O espaço, com 12 cabanas, fica a 15 minutos do posto indígena Pavuru – comunidade à parte, com área de atendimento médico, escola. É onde vivem também os profissionais que trabalham no local.

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TRILHA Com gravador digital e fones de ouvido, índio registra o som da cerimônia


FOTOS CHRISTIAN KNEPPER

CONTRASTES A tecnologia facilitou o encontro com a linguagem audiovisual entre os Ikpeng. Ao contrário do que se poderia esperar, computadores, câmeras e outros aparatos afins não os distanciaram de sua cultura, mas incentivaram seu resgate

O pequeno grupo de jornalistas chega à aldeia para a festa de inauguração da Mawo, a Casa de Cultura Ikpeng, que passa a ser base de ações como formação, pesquisa, registro, difusão cultural e inclusão digital. O projeto é fruto de uma parceria entre a Associação Indígena Moygu da Comunidade Ikpeng, o Instituto Catitu – Aldeia em Cena e o Museu do Índio/Funai, com financiamento da Petrobras. Foram três dias de celebração, com lançamento de um CD com cantos do Yumpuno, ritual de iniciação das crianças, e do documentário Som Tximma Yukunang, dirigidos pelos indígenas Kamatxi Ikpeng e Karané Ikpeng, com apoio da cineasta Mari Corrêa, do Instituto Catitu. O filme retrata o rito de passagem em que jovens são tatuados­e aborda a tradição oral que permanece forte entre os Ikpeng, meio pelo qual conhecimentos e mitos ancestrais continuam sendo transmitidos por gerações. O filme não é o primeiro. No total, quatro já foram produzidos – todos premiados internacionalmente. “É um movimento que vem de dentro da aldeia”, diz Mari, que coordena­a produção e formação audiovisual entre os Ikpeng. A familiaridade com câmeras fotográficas e filmadoras deixa claro que a tecnologia tornou-se um valoroso instrumento de resistência cultural na aldeia Moyngo. O encontro com a linguagem audiovisual, turbinado pela vontade de resgatar a própria história e identidade, mobilizou a energia que agora se cristaliza na forma da Casa de Cultura. Quando começavam a produção do terceiro filme, sobre as origens do povo Ikpeng, os índios descobriram um farto acervo fotográfico na Universidade Católica de Goiás. Mas, além da burocracia-padrão, tiveram de pagar pelo uso das fotos. “Pagamos pra comprar algo sobre nós mesmos”, reclama Kumaré Ikpeng, presidente da associação, coordenador local da Funai e cineasta. O episódio fez nascer a vontade de ter um espaço onde possam reunir material sobre a história do povo.

Luta pela terra

Buscar as tradições foi também o caminho que encontraram para que o conhecimento não se perdesse, ameaça que começou a rondar a aldeia com a morte de índios mais velhos. “Havia o desejo de incentivar os jovens a pesquisar as próprias origens”, conta Mari. O pontapé inicial quem deu foi

o pajé Araká. Segundo a cineasta, ele pediu que o Vídeo nas Aldeias – projeto criado em 1987 pela ONG Centro de Trabalho Indigenista – chegasse à aldeia Ikpeng, em 1997. “Já sentiam a necessidade de ter visibilidade e voz frente a uma sociedade que os ignora.” As primeiras experiências aconteceram no mesmo ano. Kumaré e o companheiro Karané gravaram o cerimonial de iniciação das crianças da aldeia. Depois, pesquisando o mito que deu origem ao ritual, rodaram o filme Moyngo, o Sonho de Maragareum, mistura de ficção e documentário. Esse movimento desembocou no terceiro filme, Pirinop, Meu Primeiro Contato, rea­lizado entre 2003 e 2007. Apesar dos vários momentos de palhaçada anárquica, típica do índio, o filme toca em uma ferida aberta do povo Ikpeng: a retomada do território em que viviam antes do encontro com o mundo não indígena, às margens do Rio Jatobá, em Mato Grosso. Foi lá, na região localizada ao sudoeste do Parque Indígena do Xingu, que os Ikpeng tiveram seu primeiro contato com os Villas Bôas. Antes de serem convencidos a ir para dentro do parque, em 1964, os Ikpeng, perseguidos e mortos por garimpeiros, estavam quase dizimados. O estrago foi tamanho que os 56 sobreviventes foram transferidos em uma única balsa. Anteriores à produção do filme, visitas à área do Jatobá dão início a uma dramática luta pela terra abandonada, sobretudo entre os índios mais antigos. O processo oficial de reivindicação com a Funai começou em 2002, segundo Marcos Shimidit, engenheiro florestal e consultor técnico da Associação Indígena Moygu. Ele conta que em 2004, quando sobrevoou a área do Rio Jatobá, viu que a reação de fazendeiros locais também já havia começado. “Ao saber do processo de retomada das terras que tramita na Funai, aceleraram o desmatamento para a plantação de soja”, afirma Shimidit. Pouco antes do final de nossa viagem, uma conversa carregada de emoção com anciãos da aldeia Moyngo mostrou a importância do retorno à terra perdida. Airé, companheira do pajé, conta que chorou ao chegar à terra em que viviam e pediu ajuda para voltar ao que chamou de verdadeira terra Ikpeng. O pajé reforçou o pedido. “Foi uma tristeza quando vimos que tratores haviam desmatado a região.” Mesmo assim, ele diz que encontrou o túmulo de sua irmã, e chorou. “Não quero morrer aqui, quero morrer lá, com meus familiares.” ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM DIVERSÃO Piscinas naturais à sombra da Pedra Branca (destaque): lazer pouco conhecido

A faca eo queijo na mão

O maior parque urbano do mundo pode se tornar também, pelo menos, o melhor do Rio de Janeiro Por Maurício Thuswohl

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Parque Estadual da Pedra Branca é um destino turístico ainda pouco conhecido no Rio de Janeiro, embora seja considerado a maior reserva florestal em área urbana do mundo. Essa joia ambiental, na zona oeste carioca, tem 12.500 hectares e abriga o Pico da Pedra Branca, ponto culminante da cidade, com 1.024 metros. Mas também abriga problemas, decorrentes do abandono pelo poder público e da ocupação irregular, que só aumenta desde sua criação, em 1974. Para transformá-lo em 46

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atração ecológica, numa cidade que vai receber a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, o governo estadual traça alguns planos, como alterar os atuais limites e criar o Parque do Carbono, com o plantio previsto de 2,6 milhões de mudas. Idealizado pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea), o Parque do Carbono começou a sair do papel em fevereiro, com o início do plantio de mudas na vertente norte do Parque da Pedra Branca, que se estenderá ao longo do ano, viabilizado pela parceria com a iniciativa privada. “Empre-

sas interessadas em compensar suas emissões de gases poluentes podem fazê-lo na área que disponibilizamos para o plantio. Assim, à medida que crescem, as mudas sequestram o carbono da atmosfera e, consequentemente, reduzem os gases de efeito estufa”, afirma o diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Inea, André Ilha. Cinquenta espécies nativas estão sendo plantadas em uma área de 204 hectares, resultado de um trabalho realizado pelo Instituto BioAtlântica, com recursos do BNDES definidos em seu primeiro edi-


ARI KAYE/AGÊNCIA O GLOBO

abaixo da cota 100 e aquelas que já em 1974 se encontravam com ocupação urbana consolidada, que só cresceu de lá para cá, ficaram dentro”. Essas áreas ocupadas perderam seu significado ambiental e são fonte permanente de problemas para a administração do parque e para o Inea. “Faz todo o sentido que sejam excluídas, porém compensadas por outras que venham a ser agregadas também em decorrência do plano de manejo.” Os limites do parque só poderão ser alterados após a aprovação de um projeto de lei na Assembleia Legislativa. O instituto ainda não sabe se o novo parque será maior ou menor que o atual, mas aposta em um muito melhor, mais racional do ponto de vista ambiental e da gestão. “Hoje, na forma como está, é ‘inadministrável’, ao menos em sua plenitude”, diz o diretor do Inea.

INTERAÇÃO A trilha do circuito das águas acompanha o sistema de captação e tratamento

FOTOS DIVULGAÇÃO

DIVULGAÇÃO

Visitação

tal próprio destinado a reflorestamento. Outros módulos estão a caminho, sempre com o objetivo de reflorestar a área degradada da vertente norte do Parque da Pedra Branca, que se estende entre os bairros de Vila Valqueire, Bangu e Senador Camará. São 1.300 hectares completamente cobertos por capim-colonião ou, em alguns trechos, precisando de um imediato enriquecimento biológico. O próximo módulo, já acertado, compreenderá 600 hectares, fruto da compensação pela implementação do Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, que tem como obrigação legal prevista em seu processo de licenciamento o plantio de 3,5 milhões de mudas. A meta é chegar a 24 milhões de novas árvores até 2014, volume estimado para uma expectativa inicial de compen-

sação das emissões extraordinárias decorrentes da Olimpíada de 2016.

Novos limites

Os atuais limites do parque, alvo histórico de críticas, serão redefinidos, seguindo um plano de manejo a ser executado nos próximos sete meses pelo Instituto Ipê, ONG de São Paulo reconhecida por seu trabalho em unidades de conservação. “Embora tenha sido instituído em 1974, o Parque da Pedra Branca só agora tem seu plano de manejo elaborado”, diz André Ilha. Para o diretor do Inea, o parque foi criado de forma simplista: “O decreto afirma que todo o maciço da Pedra Branca da cota 100 para cima lhe pertence, o que significa que algumas áreas importantíssimas do ponto de vista ambiental ficaram de fora por estar

O Parque da Pedra Branca tem um potencial extraordinário para visitação, mas ainda é desconhecido de grande parte dos cariocas, mesmo os moradores da zona oeste ou da Barra da Tijuca, onde tem seus limites. A instalação de novas estruturas para uso do público e a melhoria das já existentes podem resgatar essa vocação. Um exemplo desse potencial turístico foi a inauguração, em 2009, de sua subsede Piraquara, localizada no bairro de Realengo, sucesso de público no último verão. A alternativa de lazer gratuita e saudável é muito procurada pelos habitantes do bairro, de Padre Miguel e cercanias. No recente verão, em torno de 1.200 chegaram a visitar o espaço nos dias mais quentes. A readequação ambiental e estrutural deve tornar suas atrações mais conhecidas entre os demais cariocas e turistas. Mesmo para quem não faz questão de cachoeiras – y las hay! –, a fauna e a flora exuberantes enriquecem o sabor das trilhas e caminhadas nos parques do Rio. Para não perder a força desses ingredientes naturais, o Inea preparou uma publicação com dicas e orientações: “Vamos lançar em abril o primeiro guia impresso de trilhas de um parque estadual, no Parque do Desengano, e em seguida partiremos para outros três, nos parques da Serra da Tiririca, dos Três Picos e da Pedra Branca, com uma rede de trilhas extraordinária, que merece ser divulgada por meio de um guia consistente e educativo sobre as melhores práticas de respeito à natureza”, diz Ilha. ABRIL 2011 REVISTA DO BRASIL

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CurtaEssaDica

Por Xandra Stefanel (xandra@revistadobrasil.net)

Doída fase de crescimento

Ícone Zitinha nasceu Ignez Magdalena Aranha e tornouPreços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.

Daniel (Pedro Tergolina) tem 15 anos, mora numa cidadezinha gaúcha e está cercado de crises: uma namorada confusa, um amigo acusado injustamente de roubo (e prestes a roubar-lhe a namorada) e um pai desconhecido, que de repente começa a lhe enviar cartas e fotos. Em Antes Que o Mundo Acabe, adaptação do livro homônimo de Marcelo Carneiro da Cunha e dirigido por Ana Luiza Azevedo, Daniel descobre que o mundo é muito maior do que imagina e que seu pai verdadeiro trocou a paternidade pela missão de fotografar culturas ameaçadas de extinção. A narração, ingênua como o filme, é feita pela irmã caçula e mostra esses momentos em que o adolescente depara com a dor, geralmente inevitável, de virar gente grande. Em DVD.

Sarcásticos

se Inezita Barroso, cantora, folclorista e apresentadora do programa Viola Minha Viola, há 30 anos no ar pela TV Cultura de São Paulo. Sua história, brevemente contada na edição 36 desta revista (http://bit.ly/inezita_barroso), é revisitada pelo jornalista paraibano e estudioso da cultura popular brasileira Assis Ângelo no livro A Menina Inezita Barroso (Ed. Cortez, 72 pág.), ilustrado com xilogravuras do artista plástico Ciro Fernandes. R$ 32.

Paul Giamatti e Dustin Hoffman: adaptação literária

Terry McIver está para lançar um livro autobiográfico em que faz pesadas acusações contra Barney Panofsky, um homem normal que leva uma vida regada a uísque e baforadas de charuto. Este, enraivecido, decide dar sua versão dos fatos. Em A Versão de Barney (Cia. das Letras, 575 páginas, R$ 33), do canadense Mordecai Richler, o personagem engrena em sua prosa sarcástica, irônica e sem autopiedade, que deixa o leitor sem saber se realmente pode confiar nele. A adaptação do livro, considerado o melhor de Richler, demorou dez anos para ser feita e chega no dia 29 de abril aos cinemas, com direção de Richard J. Lewis. O filme A Minha Versão do Amor traz as confissões de Barney (Paul Giamatti) de quatro décadas em dois continentes, com três esposas e um pai ultrajante (Dustin Hoffman). Tanto o livro (lançado no Brasil em 2008) quanto o filme passam longe do politicamente correto, assim como quase todas as obras do autor.

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REVISTA DO BRASIL ABRIL 2011


Frigorífico: mau para a mente e para o corpo

Indústria de mutilação Lesões, mutilação, pressão psicológica, jornadas intermináveis em ambientes gélidos. O duro cotidiano dos trabalhadores de frigoríficos é retratado no documentário Carne Osso, produzido pela Repórter Brasil, organização que procura identificar e tornar públicas situações que ferem direitos trabalhistas e causam danos socioambientais no país. A equipe percorreu por dois anos diversos pontos no Sul e no Centro-Oeste em busca de histórias que ilustrassem essas violações em frigoríficos de abate de aves, bovinos e suínos. As imagens e os depoimentos são chocantes, assim como as estatísticas. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, um funcionário de frigorífico de bovinos corre três vezes mais riscos de sofrer traumatismos do que alguém que trabalha em qualquer outro segmento do mercado. Um trabalhador da linha de desossa de frango tem oito vezes mais probabilidades de desenvolver tendinite. E o índice de depressão é três vezes maior que o da média de toda a população economicamente ativa. Carne Osso expõe o problema à sociedade, que pode fazer sua parte para cobrar que essas empresas tornem mais digno o dia a

Retrato da mãe (1924)

Chance de lesões é maior

dia desses trabalhadores e para que essas carnes não levem ainda mais sangue a milhares de mesas no Brasil e fora daqui. O documentário foi selecionado para o festival É Tudo Verdade, com exibições no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas não deve ir para o circuito comercial. Os produtores contam com meios alternativos de divulgação desse filme-denúncia. Informações em www.reporterbrasil.org.br.

Fotografia construtivista

Moça com uma Leica (1934)

A exposição Aleksandr Ródtchenco – Revolução na Fotografia traz cerca de 300 fotomontagens, reportagens, estudos arquitetônicos, retratos do círculo familiar e artístico do fotógrafo russo. Aleksandr Ródtchenco é considerado um dos grandes inovadores da arte de vanguarda do século 20 e um dos líderes do construtivismo russo, ao lado de Kandinsky e Maiakovski, entre outros. Pinacoteca do Estado de São Paulo, Praça da Luz (Metrô Luz), São Paulo. De terça a domingo, das 10h às 17h30. (11) 3324-1000. R$ 3 e R$ 6. Até 1º de maio.

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Crônica

Por B.Kucinski

A mãe rezadeira Parte I

– Meu filho, rezei tanto para você não ser preso. Era sua primeira visita ao filho tão querido e único, encarcerado há um mês. Maltratado, mas inteiro de corpo, ele explicou o tique na sobrancelha: ficou do espancamento no interrogatório. Mas escondeu da mãe seus medos todos, a solidão, o estar indefeso à mercê dos algozes. Preferia pensar o melhor; ia correr processo, já não podiam sumir com ele; melhor dizendo, sempre podiam, fizeram com alguns, inventando que tentaram escapar, mas era complicado, a mãe o estava visitando, muita gente o vira vivo e inteiro na passagem pelas celas. Lá fora, ele vivia apavorado, sempre fugindo, trocando esconderijo, escapando de raspão; nem era mais ele, nas ruas caminhava cabisbaixo, tão escondido de si mesmo que por vezes o abordavam se estava mal. A prisão pusera fim ao terror permanente; também não precisava encarar ações, cobrir pontos. Tinha status de preso político. Tudo somado, preso estava menos pior. Embora o coletivo exaltasse que a luta continua, ele sabia no íntimo que para ele acabara; era o fim de um capítulo pesado de sua vida. Disse à mãe que estava bem, para não se preocupar, trazer cigarros na próxima visita.

Parte II

B.Kucinski é jornalista e escritor

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– Meu filho, eu rezo tanto para te soltarem logo. Foi condenado a 27 anos, pena desproporcional comparada à de outros, pegos de arma na mão. A mãe inconformada demanda redução; o filho não cometeu violência. Ficar mais de 20 anos na cadeia é vida que não se recupera. Ele já cumpriu dois. Quem sabe, com outro advogado – e as rezas –, ela consiga redução para dez anos, talvez cinco, aí ele sairia a tempo de retomar a faculdade, viver, casar, ter filhos. O filho comporta-se; aderiu à greve de fome porque era de todos e vital; também participa do coletivo, assiste a aulas de História e retribui ensinando Física, que cursou até o terceiro ano; compartilha as comidas trazidas pela mãe. Mas evita contrabandear bilhetinhos e não debocha dos carcereiros; um preso político exemplar, para os companheiros e para a chefia do presídio. A prisão amadurece célere. A única coisa ruim de tudo, muito ruim mesmo, era a falta de mulher; suplício pior que os interrogató-

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rios porque humilhante e permanente. Disse à mãe que estava bem, mas precisava muito da redução de pena.

Parte III

Aquela era a sua primeira visita depois do sequestro do cônsul da Suíça exigindo para soltá-lo na libertação de 30 presos políticos. Durante o reboliço na cadeia, a expectativa de quem entraria na lista e quem não entraria, suspenderam as visitas. O filho já estava preso havia três anos. Embora ele não fosse do grupo que sequestrou o cônsul, davam como certa sua inclusão na lista devido à enormidade de sua pena. Os 30 libertados seriam enviados à Argélia, e proibidos de voltar ao Brasil. Foi o quarto sequestro do tipo, para libertar presos políticos. A mãe, que acompanhava zelosa tudo o que saía nos jornais sobre a ditadura e os presos políticos, inclusive os artigos do Alceu Amoroso Lima, compusera uma lista dos libertados daquela forma. Depois, no passar dos meses, foi marcando com a cruz da morte o nome dos que regressaram clandestinamente e eram noticiados nos jornais como desaparecidos ou atropelados ou atingidos em confronto. Trinta e duas cruzes. Era como se os militares já os estivessem esperando em tocaia para vingar a humilhação que lhes havia sido imposta. Ele disse à mãe que chegaram a incluí-lo na lista dos que seriam soltos em troca do suíço, mas depois deram preferência a um companheiro muito idoso. Estou bem, ele disse à mãe, como sempre dizia. – Graças ao bom Deus, meu filho, eu rezei tanto para você não ser solto.




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