marco cultural Zé Celso e os 50 anos do Teatro Oficina
guerra latina Mexicanos querem fim da violência
outubro/2011 www.redebrasilatual.com.br
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Uso de remédios controlados por crianças com dificuldades de aprendizado preocupa especialistas e pode maquiar problemas que são da escola
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Radical e perigoso
I SSN 1981-4283
nº 64
Impostos Eles pegam mais quem ganha menos
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Índice
Editorial
10. Economia
Reforma tributária pra valer tem de mexer no bolso dos graúdos
14. Cidadania
Ministra não consegue falar com Alckmin sobre os crimes de maio
20. América Latina
Mexicanos se organizam contra os efeitos da guerra ao narco
24. Capa
Especialistas criticam o avanço da medicalização sobre a criançada
30. Entrevista
antônio Cruz/abr
O teatro de José Celso Martinez Corrêa, o comedor de tabus
34. Cinema
Curtas, documentários e as novas possibilidades da produção nacional
Funcionários dos Correios fazem manifestação em frente à sede da empresa, em Brasília
38. Memória
Não se pode desaprender
Isa Ferraz, sobrinha de Marighella, reconta a trajetória do guerrilheiro
E
40. Música
joão correia filho
Histórias do black Nelson Triunfo e a contagiante mistureba de Criolo
Versalhes: puro luxo
44. Viagem
O palácio de onde o rei não conseguiu ver a revolução chegar
48. Literatura
B.Kucinski, em contos, afronta a dor, a culpa e a indiferença
Seções Cartas 4 Mauro Santayana
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Destaques do mês
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Lalo Leal
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Curta essa dica
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Conto: B.Kucinski
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nquanto esta edição era concluída, nos primeiros dias do mês de outubro, categorias nacionalmente importantes encontravam-se em greve, ou em vias de, na busca de soluções para as campanhas salariais. As paralisações são resultado do embrutecimento patronal, inclusive de empresas estatais que, sob um governo de esquerda e composto de muitas lideranças formadas no movimento sindical, andaram para trás nos últimos anos nas relações com os trabalhadores. Os bancos públicos chegaram a mostrar que podem ser diferentes do que eram nas gestões neoliberais, quando passaram a negociar decentemente com os empregados. E como importante ferramenta de Estado na indução do crescimento sustentável e na proteção do país contra a explosão da crise de 2008. Parou por quê? Em vez de se mostrarem diferenciados do sistema bancário também nas relações de trabalho e no respeito aos clientes, os estatais reproduzem o que a concorrência privada tem de pior: estressam funcionários e aborrecem clientes. A postura nas negociações salariais tem levado, ano após ano, a greves que poderiam ser evitadas com um diálogo sério que levasse ao compartilhamento civilizado dos bons resultados com trabalhadores e sociedade. Em vez disso, tentam blindar seus lucros e ainda abusam dos interditos proibitórios, recurso jurídico que latifundiários usavam no passado para “proteger” propriedades e passou a ser empregado por banqueiros para constranger o direito de greve. Constrangimento imposto também pela direção dos Correios ao tentar forçar a barra para suspender a greve e descontar abruptamente os dias parados de seus funcionários, prática interpretada no próprio Tribunal Superior do Trabalho como hostil ao direito. A chegada da esquerda ao poder é recente em países da América do Sul. E, se a divisão do poder por meio de coalizões conservadoras limita o raio de ação dos partidos progressistas em relação a seus discursos originais, a ampliação do diálogo social daria maior vazão à sua criatividade programática e de gestão, em direção à “democracia real”, bandeira dos novos movimentos em gestação no mundo. Reproduzir práticas retrógradas no campo trabalhista, e viciadas no campo político, mais que um embrutecimento, pode emburrecer. Não ajuda a superar uma história secular de desmandos de uma elite avessa ao mundo democrático e justo que queremos. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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Cartas Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Foto de João Correia Filho Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares www.redebrasilatual.com.br
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Jonisete de Oliveira Silva, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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outubro 2011 REVISTA DO BRASIL
Mauro Santayana O articulista esqueceu de escrever para que os jovens saibam o que aconteceu depois: com Jango, a anarquia instalou-se (“Memórias da resistência”, ed. 63). Repudio o golpe militar, mas era inevitável. Ronaldo Alvernaz, São Vicente (SP)
Dom Paulo Parabéns, dom Pedro Casaldáliga e dom Paulo Evaristo pela coragem profética. Paulo VI protegeu dom Paulo da ditadura nomeando-o cardeal de São Paulo. E dom Paulo evitou a expulsão de dom Pedro ao relatar ao papa as perseguições do regime militar ao nosso profeta e poeta do Araguaia. Precisamos urgente de bispos como os senhores para sacudir a nossa Igreja da pasmaceira e acomodação reinante. Hélio Piau, Guarulhos (SP) Que o companheiro Waldemar Rossi possa inscrever nossa vitória em toda a história de luta por democracia e pelo direito à liberdade de expressão, que tem sempre a marca de nosso líder maior dom Paulo Evaristo Arns. José Aguiar, São Paulo (SP) Sendo fundada por Jesus Cristo em vida, a opção da Igreja Católica não deve ser pelos pobres, como vocês bem defendem... Mas por todos! Vocês não querem a salvação, querem o comunismo. Álvaro Junior, Rio de Janeiro (RJ)
Sem regulação A Globo, sem cerimônias e, dolosamente, vai quebrando regras para veiculação de programas eróticos ou com forte apelo sexual (“Quem aprova isso?”, ed. 63). A novela Mulheres de Areia, reprisada, mostra em sua abertura uma modelo em nu frontal e cenas picantes e saídas de praia que revelam seios e outros detalhes. Às 14h30. José Carlos, Paranoá (DF)
Os cinco cubanos Fernando Morais alia grande talento de repórter à sábia escolha dos temas que aborda (“Na rota da vespa”, ed. 62). Que o livro (Os Últimos Soldados da Guerra Fria) contribua para a solidariedade aos cinco heróis cubanos presos nos EUA. Antonio Barbosa Filho, Delft (Holanda) Fatos esquecidos Lendo “Nas minas de Potosí” (B. Kucinski, ed. 62) lembrei da Guerra do Contestado, na qual a construção de uma estrada de ferro causou morte, expulsão e revolta dos caboclos e de quando foram deslocados para a Amazônia nordestinos para coletar látex. Dois fatos de nossa história lamentavelmente esquecidos Edson Raszl, Bebedouro (SP) Guimarães Rosa Amei! Deixou o estilo roseano permear o texto (“Onde vive o sertão”, ed 62). Selma Vital, Saint Louis (EUA) Veneno Parabéns pela reportagem “Resistir ao veneno” (ed. 62), importante e salutar. Penso que seria também importante ressaltar que a dificuldade em encontrar mão de obra tanto para o campo como para a cidade dá-se principalmente porque uma grande maioria de preguiçosos e vagabundos prefere ficar em casa ou nos bares, sem trabalhar, esperando os benefícios de bolsa-família, bolsa-filho, bolsa-gás, bolsa-voto, bolsa-isso, bolsa-aquilo que o governo manda. Enfim, trabalhar pra quê, não é mesmo? Ademir dos Santos, Boregas, Jundiaí (SP)
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
MauroSantayana
O dever e a coragem
A
s investigações sobre a morte da juízaPatrícia Acioli no Rio de Janeiro conduzem a angustiosas reflexões. A perversão das forças policiais, infectadas pelos atos criminosos, não se limita aos cabos e soldados. Chega à cúpula de certas corporações. Essa abjeta contaminação em parcela das tropas é explicada por especialistas como produto do tráfico de drogas e de outras formas de crime organizado. Não é necessário registrar o emprego dos narcóticos em rituais religiosos para entender que as drogas fazem parte do modo humano de viver. O que tornou grave o consumo foi sua inclusão no circuito capitalista, e sua conversão em mercadoria. Isso ocorreu no século 19, e trouxe como primeira e gravíssima consequência a Guerra do Ópio, quando a Inglaterra e outras potências europeias massacraram a China e a transformaram em colônia, ao impor, manu militari, o consumo da droga comercializada por empresas europeias, e produzida na Índia, da qual fazia parte o Paquistão, e no Afeganistão. Nenhuma droga é mais consumida e mais danosa do que a cocaína. Os povos andinos mastigam as folhas da coca há milênios. O alcaloide favorece a absorção do oxigênio e combate a fadiga no altiplano. A partir dessas qualidades medicinais o químico alemão Albert Niemann conseguiu isolar o princípio ativo da planta, em 1859. Depois de ser usada como anestésico, a cocaína foi também empregada para combater o vício da heroína, tido como muito mais danoso. Mas foi a partir de 1883 que seu consumo entrou no circuito comercial. O farmacêutico italiano Angelo Mariani misturou cocaína ao vinho, a fim de produzir um tônico fortificante, indicado para tratar tuberculose. O Vinho Mariani foi consumido e elogiado por grandes personalidades, como o Papa Leão XIII, escritores como Robert LouisStevenson e cientistas como o próprio Freud. A Coca-Cola nasceu do Vinho Mariani. Relembre-se que a empresa mantinha, se ainda não mantém, uma plantação de coca na Bolívia, preservada da erradicação dos cultivos promovida pelos Estados Unidos há alguns anos. A combinação entre o tráfico de drogas, o crime organizado e a corrupção assustadora dos meios policiais está transformando o México em um pesadelo cotidiano e permanente (leia reportagem à página 20). Antes que a situação em nosso país
Leis que promovam a igualdade de direitos e deveres entre todas as pessoas são a única esperança de que tenhamos alguma paz e justiça na sociedade dos homens se torne tão grave, devemos enfrentar o problema com coragem. É necessário legalizar o uso das drogas, por mais que essa decisão encontre a oposição das almas bem-intencionadas. Seria bom se o Estado dispusesse do poder de evitar as consequências infernais de comércio clandestino de drogas. Como isso não ocorre, o melhor será legalizar a produção e comercialização de todas elas, sob a administração direta dos estados interessados. O consumo deve ser tratado como problema de saúde pública, assim como são tratados casos de alcoolismo ou depressão. Desse modo não haveria mais o terror das chacinas de pequenos traficantes nem a promiscuidade entre tráfico, polícia e autoridades. O caso da juíza Patrícia Acioli é emblemático. Ela foi rigorosa contra policiais criminosos. Não foi a primeira personalidade do mundo judiciário a morrer pela sua coragem. Há juízes criminais, bem como membros do Ministério Público, que vivem em constante sobressalto, sob ameaça, e não esmorecem no cumprimento do dever na defesa da sociedade. O Estado tem sido incapaz de proteger seus magistrados, da mesma forma que há casos comprovados de apodrecimento do Poder Judiciário, seja pela corrupção, seja pela violência, como ocorreu em Sobral, no Ceará, em 2005, quando o juiz de Direito Pedro Percy Barbosa de Araújo matou o trabalhador José Renato Coelho Rodrigues, por motivo mais do que fútil: o vigilante se negara a abrir a porta do supermercado, já fechada, às 22h30, para o comprador qualificado. O juiz, depois de atendido, foi a seu carro, buscou a arma e matou friamente o trabalhador com dois tiros na nuca. Condenado a 15 anos, o magistrado teve o benefício do destino – morreu três anos depois, aos 57. Viver, mais do que nunca, é hoje privilégio do acaso. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
marcello casal/abr
Sessão da Câmara discute o PNDH-3
j.Batista/ag.Câmara
Feijão transgênico
A hora da verdade Entre esperança e receio, a Comissão da Verdade, parte integrante do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), começa a sair do papel. O objetivo inicial era investigar crimes e violações de direitos humanos praticados durante a ditadura, para que o Estado reconheça sua responsabilidade, a exemplo do que já ocorreu em vizinhos sul-americanos que passaram por períodos autoritários. Diante da resistência de setores conservadores, o projeto do governo cedeu, acabou ficando brando e dividiu opiniões. http://bit.ly/rba_com_verdade Alguns acham que é um bom e necessário começo. http://bit.ly/rba_verdade_apoio Outros, que será de pouca ou nenhuma eficácia. http://bit.ly/rba_nepomuceno
Mexicano, mulatinho, mulatão, carioca, preto-uberabinha, bico-de-ouro, gordo. Sempre-verde, garanjão, pau-ferro, corujão, estendedor, moita-vagem-roxa. Cara-larga, orelha-de-vó, boca-de-moça, olho-de-peixe, rosinha. Sementes crioulas são o grande patrimônio dos agricultores tradicionais. São grãos que acompanham as famílias há muitas gerações. Agricultores familiares do Nordeste prometem se articular para barrar o plantio do feijão transgênico desenvolvido pela Embrapa, visto como ameaça às variedades crioulas, adaptadas a situações específicas e sem custo de produção. http:// bit.ly/rba_transgen
Palestinos no debate
Eskinder Debebe/UN Photo
Bolivianos enfrentam a polícia
O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas começou a discutir o reconhecimento da Palestina como Estado-membro da comunidade internacional. Para Giorgio Romano Schutte, da Universidade Federal do ABC, o pedido, de caráter simbólico, dá novo ânimo à população palestina e abre-se novo patamar na negociação da paz, no mínimo no mesmo nível que Israel, que já é membro da ONU. http://bit.ly/rba_palestina 6
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David Mercado/Reuters
Palestina na ONU
Evo e as marchas
O presidente da Bolívia, Evo Morales, acusa interesses políticos por trás da marcha popular contra a construção da uma estrada que liga o leste do país ao Pacífico. “A verdade é que a Tupac Katari o esquartejaram fisicamente. A nós, querem esquartejar politicamente utilizando os meios de comunicação”, declarou, em referência ao líder inca que comandou rebelião contra o domínio colonial espanhol no século 18. http://bit.ly/rba_bolivia
divulgação
Mão grande na estatística
Marilda Pinheiro
Paulo Whitaker/Reuters
Carros cortam a Av. 23 de Maio, em São Paulo
Carros x pessoas
A ausência de políticas públicas de mobilidade é a mãe dos congestionamentos na cidade de São Paulo. O aumento de usuários de carros é o pai. As conclusões são de um estudo sobre o tema apresentado pela Rede Nossa São Paulo. O percentual de paulistanos que afirmaram usar o carro como principal meio de transporte na capital subiu de 15% em 2007 para 23% em 2011. “Quem faz avenida e ponte financia campanha eleitoral. Dá para entender a lógica do sistema”, diz Oded Grajew, presidente da ONG. “Falta vontade política para executar as soluções.” http://bit.ly/rba_mobilidade
Metrô x pessoas
A expansão do Metrô, que poderia ser uma parte da solução para a mobilidade urbana em São Paulo, segue aos trancos e barrancos. O cronograma está atrasado em relação a promessas. Os problemas de superlotação e panes se avolumam. Até mesmo na Linha 4, com mais novas estações instaladas e protagonista da publicidade do estado para a área, o paulistano tem sofrido. http://bit.ly/rba_metro_problema
A presidenta da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, Marilda Pinheiro, contesta dados da Secretaria de Segurança Pública paulista que indicam queda de 12% no número de homicídios no estado, no semestre passado. A metodologia exclui os roubos seguidos de morte dos crimes contra a vida. De acordo com a própria secretaria, os latrocínios cresceram 20% nos primeiros seis meses do ano e o total de crimes violentos – homicídio doloso, roubo, latrocínio, estupro –, 1,9%. “Por vezes, a estatística é uma forma de tentar enganar a sociedade”, dispara Marilda. http://bit.ly/rba_roubos
Literário e belo “Minha obsessão hoje é fazer uma obra literária. Ter entrado na militância política muito cedo e depois numa ordem religiosa são duas camisas de força para quem quer fazer ficção”, afirmou o jornalista e escritor Frei Betto, ao lançar Minas do Ouro, romance histórico passado em Minas Gerais. Frei Betto diz que a arte não passa pela esquerda nem pela direita: “Tem de produzir beleza”. http://bit.ly/rba_frei_betto REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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trabalho
Em vez de privilegiar o diálogo e a partilha justa de resultados, Correios e bancos empregam métodos ultrapassados e atentam contra o direito de greve
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uciana Lima recebe R$ 840 por mês e adicional de periculosidade de 30%. “Trabalho debaixo de sol, de chuva, correndo de ladrão e aguentando mordida de cachorro”, disse, ao explicar por que merece ganhar mais. O bancário Claudio Miranda, por sua vez, afirma que é comum ouvir que as greves atrapalham. “Mas não é bem isso. Além das reivindicações salariais, existe preocupação com a segurança e a melhoria do atendimento, já que sempre brigamos também por mais contratações.” No final de setembro, ambos estavam em greve e falaram com a reportagem durante passeata conjunta de suas categorias em São Paulo. Os funcionários dos Correios, com data-base em 1º de agosto, estavam em greve desde 14 de setembro. Os bancários, data-base em 1º de setembro, parados desde 27 de setembro. As empresas negavam reajustes satisfatórios e tinham também em comum a adoção de medidas antissindicais. Os Correios foram ao Tribunal Superior do Trabalho pleitear a suspensão da paralisação, com aplicação de multa às entidades sindicais.
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outubro 2011 REVISTA DO BRASIL
carona compulsória Helicóptero deixa prédio do Itaú Unibanco: bancários são pressionados até a voar
E os bancos usam a Justiça para proibir sindicatos de se aproximar dos locais de trabalho e dar suporte aos funcionários que querem aderir à greve. A ação, denominada “interdito proibitório”, muito empregada por fazendeiros para proteger propriedades, nada tem a ver com campanhas trabalhistas. Os Correios acabaram surpreendidos por decisão da vice-presidenta do TST, Maria Cristina Peduzzi, que citou a Constituição para ressaltar que cabe aos trabalhadores “decidir sobre a oportunidade” do exercício do direito de greve, premissa, aliás, “essencial em um estado democrático de direito”, afirmou. Em relação aos bancos, começam a surgir integrantes do Judiciário que questionam o interdito. No Rio de Janeiro, o juiz Marcelo Moura, da 19ª Vara do Trabalho, negou que houvesse “risco de o patrimônio do banco sofrer algum prejuízo”, como alegava o BB em ação contra o sindicato dos bancários local. “Não vi na petição do Banco do Brasil nada que demonstrasse isso, então a indeferi, dizendo que os bancários poderiam exercer normalmente o direito de greve”, afirmou o juiz.
Jailton Garcia/sindicato dos bancários-sp
Um direito pelos ares
Em São Paulo, ao obter mandado de interdito, o Itaú retirou material informativo sobre o movimento nos locais de trabalho. O sindicato reagiu com uma ação civil pública. Na decisão, a juíza Adriana Teixeira, da 28ª Vara do Trabalho, afirma que impedir a colocação de cartazes é “ato coibitivo” ao movimento e cerceia direito “constitucionalmente assegurado”. Os bancos costumam ainda constranger empregados a se deslocar de helicópteros – até mesmo os que têm pavor de altura. Uma bancária do Itaú relatou ter sido pressionada pela chefia – com apoio de bombeiros – a embarcar numa aeronave. E testemunhou colegas em pânico e passando mal. “A atitude põe em risco a saúde e a segurança das pessoas, mostra até onde vai a capacidade dos bancos de agir contra o direito de greve. Isso explica por que sindicatos têm de estar nos locais de trabalho e por que os interditos são incabíveis”, diz Juvandia Moreira, presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, que acionou a Agência Nacional de Aviação Civil para apurar denúncias de que o Itaú faz, ainda, pousos e decolagens em áreas sem autorização da agência.
NaTV www.tvt.org.br
Zezé das Tesouras
Marcus Vinícius
Claudiana
Como era pobre meu vale
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eu Zezé das Tesouras acorda logo cedo e, no fogão a lenha, enquanto prepara o primeiro café do dia, põe o feijão para cozinhar já pensando no almoço. Uma colher do mel tirado de sua colmeia “particular” faz parte do desjejum. Lê uma passagem da Bíblia e segue para sua rotina na lavoura, de onde tira o sustento da família. Planta de tudo um pouco e o que “dá demais”, vende. Seu Zezé mora no Vale do Jequitinhonha, região do norte de Minas Gerais com algumas características muito conhecidas: tem clima semelhante ao do Nordeste (aliás, pertenceu à Bahia até o fim do século 18), belezas naturais particulares, uma baita riqueza cultural, herdada das comunidades indígenas e negras, e um dos maiores índices de pobreza do país. Nos últimos anos, o agricultor sente que as coisas estão mudando em relação a esse indicador que já rendeu à região o título de Vale da Miséria. Com a chegada da energia elétrica, Seu Zezé comprou um motorzinho para ajudar a fazer a farinha da mandioca. Com a melhora na produção, ele já percebe o potencial do crédito barato e do
Transformação social na região do Jequitinhonha (MG) é tema do ABCD em Revista, da TVT seguro para o caso de a colheita não sair como previsto – produtos do programa de apoio à agricultura familiar. “O resultado está para qualquer um ver”, diz ele ao programa Jequitinhonha, da série ABCD em Revista, da TVT. O personagem também revela uma grande preocupação: os jovens estão indo embora do campo para estudar. “Se tivesse uma escola agrícola...”
Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br
Que o diga Claudiana Gonçalves Santos, de 18 anos. Ela recebeu agora em agosto o diploma do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia – Campus de Araçuaí (um dos 51 municípios da região), das mãos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No discurso de paraninfo, Lula lembrou do valor da sua formatura no Senai. Claudiana atribui ao ex-torneiro mecânico mudanças que acontecem no país e reconhece, agora com esperança, que sua terra ainda tem muito a melhorar. Marcus Vinícius Costa, que foi estudar Sociologia em Belo Horizonte com bolsa do ProUni, também está no programa da TVT. Ao voltar para casa, diz ter reencontrado o Vale do Jequitinhonha diferente, os moradores mais conscientes, participativos e esperançosos. “O desenvolvimento social construído nos últimos anos permite o entendimento de que a exploração não deve ter lugar, que todos têm direitos a preservar”, diz. O ABCD em Revista é uma série que registra os movimentos pela cidadania no país. Vai ao ar às sextas-feiras, às 19h30. Todos os programas podem ser vistos também no site: tvt.org.br. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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economia
Pagar mais e c A chamada “carga tributária” pesa mais para os brasileiros de baixa renda do que no bolso dos ricos – que são os que mais reclamam. Não reduzir os impostos sobre o consumo, não criar alíquotas mais justas e progressivas e não taxar grandes fortunas é reforma tributária meia-boca Por Vitor Nuzzi
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Famílias que ganham até dois salários mínimos gastam 49% da renda em tributos 10
outubro 2011 REVISTA DO BRASIL
icos do mundo, uni-vos. Os milionários estão sendo chamados a colaborar no combate à crise mundial. Uma das bíblias do mercado, a revista The Economist, já detectou o movimento de caça aos ricos. O bilionário Warren Buffett, com patrimônio estimado em US$ 50 bilhões, declarou que os ricos deveriam pagar mais impostos, afirmando que, proporcionalmente à sua renda, seu secretário recolhe mais tributos. Alguns países europeus aumentaram a cobrança de imposto para pessoas de maior renda, com o objetivo de reduzir seus déficits, e as declarações de Buffett teriam inspirado alguns milionários mundo afora. Polêmica à parte, as medidas podem servir para uma discussão séria sobre justiça tributária. Um dos apoiadores desse tipo de proposta é o presidente da CUT, Artur Henrique. “Você tem uma parcela de multimilionários que poderiam pagar mais sobre a sua renda”, afirmou o sindicalista à Rádio Brasil Atual. A propósito, o número de milionários brasileiros – aqueles com mais de US$ 1 milhão na conta – cresceu 6% em 2010 e atingiu 155 mil pessoas, conforme levantamento do Merrill Lynch Global Wealth Management e da consultoria Capgemini. Assim, o Brasil seguiu em 11º lugar na lista mundial, liderada pelos Estados Unidos, com seus
chorar menos 3,1 milhões de milionários, 8% a mais que em 2009. As crises não impediram que o contingente de endinheirados aumentasse. Esse total chegou a 11 milhões no ano passado, aumento de 8% sobre 2009. A única ressalva é que o crescimento foi menor que no ano anterior (17%). Para o presidente da CUT, a recente discussão sobre a Emenda Constitucional 29 (sobre gastos de estados e municípios com saúde) e a respeito da necessidade de ampliar verbas para a saúde pública representa uma boa chance de rediscutir “uma reforma tributária digna do nome”, incluindo o conceito de progressividade – quem tem mais renda paga mais; quem tem menos paga menos. Um dos instrumentos, na opinião do sindicalista, seria a criação do imposto sobre grandes fortunas. O consultor Amir Khair, mestre em Finanças Públicas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), lembra em artigo que o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) está previsto na Constituição de 1988, mas depende de lei complementar nunca aprovada. “O IGF poderia ser cobrado de forma progressiva, arbitrando-se um nível mínimo de isenção”, sugere. “O imposto sobre o patrimônio é cobrado com sucesso há vários anos na França, Espanha, Grécia, Suíça e Noruega. Não deu certo em alguns países, como Áustria, Dinamarca, Alemanha, Finlândia e Luxemburgo, mas pode dar certo no Brasil. Só saberemos se o testarmos.” Na Câmara, há um projeto do deputado Dr. Aluízio (PV-RJ) que cria a Contribuição Social das Grandes Fortunas (CSGF), com cobrança sobre patrimônios a partir de R$ 5,52 milhões e destinação exclusivamente para a saúde. A relatora é a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ).
Mordida precoce
O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann, observa que a arrecadação tributária ainda é concentrada na população de baixa renda. “Os ricos seguem
Famílias com renda acima de 30 salários mínimos usam 26% da renda em tributos Fonte: Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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demonstrando importante capacidade de driblar o conjunto dos tributos”, diz o economista. Em relação ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), a estimativa do Ipea é de que R$ 1 a cada R$ 3 deixa de ser arrecadado por meio de abatimentos na declaração anual dos segmentos que podem gastar com educação, saúde e previdência privadas. Para Pochmann, poderia haver mais alíquotas do Imposto de Renda, e ainda maiores, desde que atingissem outras faixas de renda. Hoje, existem quatro: 7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%. E começam “cedo” a tributar o assalariado. A partir de R$ 1.566,61 – valor que está abaixo da remuneração média do mercado formal de trabalho. Uma das recomendações do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), órgão consultivo da Presidência da República formado por representantes da sociedade, é justamente ampliar o número de alíquotas, “para evitar distorções especialmente para faixas de renda mais baixas”. O economista também sugere, entre outras medidas, tornar progressivo o IPTU, imposto cobrado pelas prefeituras. “As favelas pagam proporcionalmente mais do que as mansões”, afirma. E avança no raciocínio ao defender medidas como IPVA maior para veículos como lanchas, iates, jatinhos. “Os que criticam os impostos são os que menos pagam”, diz Pochmann. Ele cita ainda o “impostômetro”, o painel eletrônico que simula a evolução da soma de todos os tributos (municipais, estaduais e federais) do país, em tempo real, instalado pela Associação Comercial de São Paulo no centro da cidade. “É estranho que esteja instalado numa parte rica da cidade.” A questão é que em países europeus e nos Estados Unidos os ricos estão sendo chamados a “colaborar” por causa da complicada situação fiscal dos governos. Na Espanha, por exemplo, o imposto sobre patrimônios acima de € 1 milhão deverá atingir aproximadamente 150 mil pessoas e arrecadar pouco mais de € 1 bilhão por ano. Trata-se de uma taxação que já chegou a existir e está sendo recuperada agora, em tempo de crise. Na França, o governo já anunciou um imposto, temporário, de 3%, sobre a renda de quem recebe acima de € 500 mil por ano. 12
outubro 2011 REVISTA DO BRASIL
Jason Reed/Reuters
economia
Anéis e dedos Obama foi eleito com a proposta de aumentar o imposto sobre os ricos...
Iniciativa semelhante estaria sendo preparada por Barack Obama para reduzir o déficit fiscal norte-americano, com uma proposta de imposto voltado a quem ganha mais de US$ 1 milhão por ano. Teria o significativo nome de Buffett rule (regra Buffett), em referência ao milionário. “Não é luta de classes”, argumenta Obama, segundo The Economist. “É matemática.” Para a revista, a questão é política e desperta um debate fundamental na sociedade ocidental: quem sofre as consequências do endividamento público? Normalmente, são os pobres. Enquanto isso, alguns dos responsáveis pela crise voltaram a ganhar no jogo globalizado.
Descompasso
Levantamento divulgado no início do ano pela Associação Brasileira das Enti-
10% mais pobres usam 33% da renda para pagar impostos 10% mais ricos usam 23% da renda Fonte: Ipea
dades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) mostrou que as pessoas com pelo menos R$ 1 bilhão em aplicações, ou 63 mil cidadãos de alta renda, fecharam 2010 com R$ 371 bilhões investidos em bancos. O presidente do recém-criado Instituto Justiça Fiscal, Dão Real Pereira dos Santos, lembra que a regressividade do sistema tributário aumenta o fosso entre ricos e pobres. “E todos sabem, embora poucos comentem, que o sistema tributário nacional trata de forma anti-isonômica as rendas em função de sua origem, isentando do Imposto de Renda, por exemplo, a distribuição de lucros aos sócios e acionistas das empresas, ou sujeitando a alíquotas mais brandas os rendimentos de aplicações financeiras”, descreve. A arrecadação tributária no Brasil, que em 2010 representou 33,56% do PIB (segundo dados da Secretaria da Receita Federal), é concentrada no consumo. Assim, um cidadão que tem renda de um salário mínimo por mês, embora não tenha Imposto de Renda descontado no holerite, sofre no preço do pãozinho e do leite a mesma tributação que o bilionário Eike Batista. Os tributos sobre bens e serviços representaram 16,3% do PIB, enquanto os tributos sobre folha de pagamentos corresponderam a 8,78% e sobre a renda, a 6,18% (sobre transações financeiras, a 0,72%).
Rick Wilking/Reuters
...como Buffett que, acredite se quiser, concorda em deixar o governo pôr a mão no seu bolso
Relatório de 2010 do CDES já afirmava que, em relação ao sistema tributário, “o Brasil tem caminhado no sentido contrário ao da justiça fiscal”. A injustiça se materializa ao desrespeitar o princípio da equidade. “Em decorrência do elevado peso dos tributos sobre bens e serviços na arrecadação, pessoas que ga-
nhavam até dois salários mínimos em 2004 gastaram 48,8% de sua renda no pagamento de impostos e as famílias com renda superior a 30 salários mínimos, 26,3%.” Para Artur Henrique, iniciativas como a de Buffett e outros podem significar que “eles sabem ser mais vantajoso ter uma
parcela um pouco menor numa sociedade de economia mais dinâmica e com melhores condições de vida”. O governo tende a apresentar uma reforma tributária “fatiada”, dividida em quatro etapas, para tentar facilitar a tramitação no Congresso. Um dos itens é a desoneração da folha de pagamentos, que preocupa os trabalhadores pelos possíveis efeitos negativos à Previdência. “Consideramos que para alguns setores isso vai ser muito importante. Para outros setores, pode não ser essa a forma melhor de desoneração”, afirmou a presidenta Dilma Rousseff, em discurso no final de setembro. Outros itens a serem discutidos incluem mudanças no ICMS, imposto estadual que já provocou muito estrago nas relações entre unidades da Federação. Um primeiro passo foi dado com a aprovação do projeto de ampliação do Supersimples. Mas, em qualquer mudança, toda reforma precisa incluir um conceito simples, mas nem sempre lembrado, de justiça social. Ouça a entrevista de Artur Henrique ao Jornal Brasil Atual na íntegra, em http://bit.ly/radio_artur
O Decreto nº 7.567, de 15 de setembro passado, regulamentou a redução do IPI do setor automobilístico, condicionando o benefício a produtos com pelo menos 65% de componentes nacionais, desenvolvimento de algumas atividades no Brasil, como montagem de chassis e carrocerias, e realização de investimentos em inovação e pesquisa. Na prática, a medida aumentou em 30 pontos percentuais a tributação sobre veículos importados. Provocou críticas pelo viés protecionista, mas alimentou a discussão, sempre difícil, da necessidade de uma efetiva política industrial no país. O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante, por exemplo, disse que o Brasil é o quinto mercado mundial de automóveis, mas é apenas o sétimo parque produtivo. Para ele, é preciso
que as indústrias aqui instaladas invistam mais em pesquisa. “Com aumento de 30 pontos no IPI, as empresas que não quiserem pagar a mais vão ter de utilizar o conteúdo nacional. Com essa nova medida, a intenção do governo é estimular a produção interna”, diz o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre. Segundo ele, apenas no ano passado 105 mil empregos deixaram de ser criados no setor automobilístico devido às importações. A presidenta Dilma Rousseff afirma que o governo sempre dará peso “à geração e agregação de valor e à inovação, dentro do Brasil”. E garantiu que, na defesa de competitividade, “não vamos nem achatar salários, nem precarizar o mercado de trabalho ou manipular a taxa de câmbio”.
paulo pepe
Imposto não substitui política industrial
O Brasil é o quinto mercado consumidor, mas apenas o sétimo produtor de veículos
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cidadania
Crimes e omissão em SP
Processos de familiares de mortos pela PM em maio de 2006 são encerrados sem apuração. Entidades querem federalizar investigação, mas não conseguem falar com o governador Alckmin Por Leandro Melito 14
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ntre 12 e 20 de maio de 2006, 493 pessoas foram mortas por arma de fogo, segundo dados do Conselho Regional de Medicina. A organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) é responsabilizada pela execução de 43 policiais militares, carcereiros e um bombeiro durante uma onda de
fotos MARCELLO CASAL JR/ABR
Força bruta Os ataques do PCC em maio de 2006 motivaram um violento revide da PM paulista. Estimativas dão conta de 122 homicídios praticados por policiais
rebeliõesem presídios e ataques a prédios públicos. A movimentação, atribuída à facção criminosa, terminou no dia 15 de maio, supostamente após reunião entre Marcos Willians Camacho, o Marcola, líder da organização, e a cúpula do governo paulista. “A partir de então a polícia paulista iniciou violento revide”, afirma a ONG Justiça
Rickey Rogers/Reuters/15/05/2006
Valéria ghonçalves/AE/15/05/2006
Silêncio Em maio, a secretária de Direitos Humanos, ministra Maria do Rosário (dir.), pediu ao governador Alckmin uma audiência para discutir a transferência, para a esfera federal, das investigações das mortes durante a operação da PM. Até agora ele não se manifestou
Global no documento intitulado São Paulo sob Achaque, elaborado em parceria com a Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard, nos Estados Unidos. Segundo o relatório, as situações da maioria das mortes ocorridas entre os dias 15 e 20 em nada pareciam com casos de legítima defesa. O estudo aponta 122 homicídios com indícios de execução praticados por policiais no período. Passados cinco anos, a maior crise da segurança pública de São Paulo ainda não foi apurada. Não existe sequer um relatório oficial do Estado que detalhe esses episódios. Em maio passado, a secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, ministra Maria do Rosário, pediu ao governador Geraldo Alckmin uma audiência para discutir a transferência, para a esfera federal, das investigações das mortes durante a operação da PM. Até agora ele não se manifestou. As apurações desses crimes foram arquivadas sem os devidos esclarecimentos, salvo nos casos que envolvem a morte de agentes públicos. Das mortes praticadas por policiais em supostos confrontos, apenas seis oficiais foram denunciados ou indiciados. A Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), departamento de elite de investigação de homicídios no Brasil, esclareceu mais de 85% dos casos em que as vítimas foram agentes pú-
blicos e elucidou a autoria de apenas 13% das ocorrências de homicídio com suspeita de participação de policiais. Sandra Carvalho, diretora adjunta da Justiça Global, diz não se tratar, na maioria dos casos, de arquivamento por falta de provas. “Na verdade, não foram feitas investigações mais detalhadas e exaustivas”, afirma, apontando a falta de proteção adequada para que as testemunhas pudessem depor. “Muitas delas foram sistematicamente ameaçadas, cerceadas. O estado deveria ter criado condições para que pudessem depor em segurança”, avalia. Para James Cavallaro, presidente do conselho da ONG, a participação do alto escalão da polícia paulista pode ter atrapalhado as investigações. “Há indícios de envolvimento não só de policiais dos níveis baixos e intermediários, mas de autoridades de alta patente, o que dificultaria o esclarecimento dos crimes como um todo”, avalia. É devido à ineficácia do governo estadual em apontar os responsáveis pelos crimes que os pesquisadores defendem a federalização do processo. “Dialogamos com o estado de São Paulo e com várias instituições ao longo desses cinco anos”, afirma Fernando Ribeiro Delgado, da Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard. “Não obtivemos uma resposta saREVISTA DO BRASIL outubro 2011
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ELZA FIUZA/ABR
cidadania
Mataram nossos filhos Débora Maria Silva é coordenadora do movimento Mães de Maio. Ela teve seu filho morto pela PM na Baixada Santista
tisfatória em basicamente nenhum ponto dessa pesquisa. Por isso decidimos encaminhar o caso ao governo federal e ao Congresso Nacional, para que seja instalada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), e para que o Ministério Público Federal investigue.”
Impunidade
Uma das vítimas da ação policial foi o gari Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos, filho de Débora Maria Silva. Débora é coordenadora do movimento Mães de Maio, organizado entre as mães que tiveram filhos executados por policiais militares na Baixada Santista em maio de 2006. “A gente viu muitas falhas nos inquéritos e o Ministério Público Estadual não apresentou resposta para nós”, afirma. Segundo o estudo da ONG Justiça Global, a investigação policial sobre o caso de Edson não ouviu testemunhas e não colheu provas importantes, como as fitas das câmeras de segurança do posto de gasolina onde ele teria sido assassinado. João Inocêncio de Freitas também teve o filho morto em maio de 2006. Dispensado mais cedo do colégio, junto com os demais alunos, Matheus Andrade de Freitas foi com Ricardo Porto, seu colega de classe, a uma pizzaria na rua onde morava. Ambos foram executados. João critica o arquivamento do processo e a tentativa do estado de criminalizar seu filho. “Como o inquérito não andava, a gente foi saber o que estava acontecendo. 16
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Sem apurar nada, eles arquivaram”, relata. “O relatório do delegado dizia que meu filho foi morto por dívida de droga e que o outro menino tinha morrido por queima de arquivo. Nós fomos ao 5º Distrito e fizemos nosso depoimento. O promotor corrigiu o relatório e disse que havia indícios da atuação de grupos de extermínio, policiais. Só que depois o caso foi arquivado. Ninguém fez nada.” Francisco Gomes, pai de Paulo Alexandre Gomes, desaparecido desde maio daquele ano, compara a situação à ditadura. “A impunidade daquele tempo é a mesma até hoje. A ditadura agora é disfarçada de democracia. Fazem o que querem, e fica por isso mesmo”, diz. Em audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 29 de agosto passado, Débora Maria Silva reivindicou, na presença da ministra Maria do Rosário, a federalização da investigação dos crimes. “O governo do estado não quer tocar no assunto, mas isso nós exigimos. Mataram nossos filhos e desapareceram com eles. Alguém tem de ser responsabilizado. Se a gente não aponta os algozes dos nossos filhos, apontamos o estado como um todo”, sentenciou. Débora exige que as autoridades se reúnam em Santos, onde têm sido constantes os crimes praticados por grupos de extermínio. Na ocasião, Maria do Rosário afirmou que um impasse com o governo do estado estaria impedindo o avanço do processo de federalização desses crimes. “Pe-
di uma reunião com o governo estadual sobre a situação dos grupos de extermínio e as Mães de Maio. Já tem três meses (completados em agosto) e eu ainda estou aguardando. Não gostaria de fazer a reunião em Santos sem antes me reunir com o governo paulista para trabalharmos juntos alguns caminhos.” Em julho passado, uma reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, presidido pela ministra, decidiu encaminhar à Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo um pedido de reabertura das investigações sobre as mortes em maio de 2006, assim como sua federalização. “Queremos dialogar mais com o governo e com a Procuradoria para que essas investigações sejam reabertas. Aprovamos uma série de procedimentos com o governo federal para transferir essas apurações para a Polícia Federal. Esses crimes não podem ficar impunes”, disse a ministra. Segundo Rosário, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) já encaminhou dois pedidos de audiência ao governo de São Paulo para tratar do tema. Ambos continuam sem resposta. Durante a audiência em São Paulo ela reforçou o pedido à secretária de Justiça do governo estadual, Eloísa Arruda. “Acredito que essa audiência vai nos possibilitar abrir esse caminho com o governador”, afirmou. Na primeira semana de outubro, o impasse permanecia. Os crimes de maio de 2006 aconteceram um mês após a saída de Alckmin para concorrer às eleições presidenciais. Ele estava à frente do governo estadual havia seis anos. Em seu lugar assumiu o vice, Cláudio Lembo. O governo federal deu os primeiros passos para federalizar a investigação ainda na gestão de Paulo Vannucchià frente da SEDH, quando foi aprovada a criação de uma comissão especial para levantar informações que justificassem a transferência desses crimes para o âmbito federal. Caso isso venha a acontecer, será o segundo caso de transferência de competência no Brasil após a Constituição de 1988. O primeiro crime contra os direitos humanos federalizado foi o assassinato do defensor público Manoel Mattos, que investigava a atuação de grupos de extermínio na Paraíba.
LaloLeal
Tragédias na hora do almoço
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uita gente ainda almoça em casa no Brasil, embora o hábito venha diminuindo nos últimos anos pelas dificuldades de deslocamento em quase todas as cidades. Mas, além dos que trabalham fora e ainda têm essa possibilidade, há crianças, jovens, idosos, donas de casa e pessoas com outros afazeres que seguem almoçando em casa todos os dias. Sem dúvida, um privilégio. Salvo por um pequeno senão: a TV ligada nesse horário. Na tela, muitas cenas são incompatíveis com uma refeição saudável. Por exemplo: justiceiros arrastando um homem para a morte, com o som dos seus apelos desesperados pela vida, das ordens de atirar (e em que parte específica do corpo), dos tiros, das recomendações para crianças saíremde perto e finalmente as chamas consumindo a vítima. Pode haver algo mais escabroso para ser mostrado em qualquer horário? Essas cenas foram ao ar perto do meio-dia no programa Cardinot Aqui na Clube, da TV Clube, afiliada da Rede Bandeirantes em Recife. O apresentador, Josley Cardinot, tem contra ele uma ação na Justiça por já ter exibido conteúdos semelhantes no programa Bronca Pesada, quando atuava pelo canal local do SBT. E não adianta mudar de estação. As diferenças entre os programas são muito pequenas. Um copia o outro. No caso de Pernambuco, na hora do almoço a TV Jornal (SBT) apresenta agora o Plantão 190 e a TV Tribuna (Record), o Ronda Geral, também policialescos. Como se vê, a frase “o melhor controle é o controle remoto” é um simples jogo de palavras para eximir os concessionários de canais de TV de suas responsabilidades éticas e sociais. Dá-se a eles uma liberdade absoluta, inexistente em qualquer outra atividade profissional. Não se trata de censurar a informação sobre um grave fato policial, mas de ressaltar a possibilidade de uma notícia como essa ser transmitida de forma menos agressiva. O telespectador tem o direito de ser informado sobre a execução cometida por justiceiros sem, no entanto, se submeter à violência das cenas exibidas. Ainda mais diante da constatação de que, quando se liga a TV, nunca se sabe o que vem pela frente. E, para muitos, o susto é enorme. A TV não é como o jornal impresso, cuja noção do que publica se sabe antes de comprá-lo. A TV en-
Quem pode almoçar em casa teria um privilégio, não fosse um porém: a TV ligada nesse horário não combina em nada com uma refeição saudável tra em nossa casa sem pedir licença, basta apertar o botão. Daí a necessidade de um controle público mais rigoroso. As respostas da sociedade a esse tipo de programa ainda são tímidas. Em Recife, uma ação civil proposta pelo Ministério Público contra o programa Bronca Pesada, a pedido de várias organizações de defesa dos direitos humanos, arrasta-se há anos sem solução. Agora, diante das imagens da execução de um homem, mostradas pela TV Clube, novas ações devem ser propostas. O Centro de Cultura Luiz Freire gravou as cenas e as exibiu para os deputados que integram a Frente Parlamentar da Comunicação do estado, tentando sensibilizá-los para o problema. Sem uma lei moderna que coíbaesse tipo de abuso e um órgão regulador com poderes para aplicá-la, como ocorre na Europa, restam poucas alternativas de resposta dos cidadãos às emissoras. Até hoje apenas uma atingiu os efeitos desejados. A decisão judicial que tirou do ar em 2005, por 30 dias, o programa Tarde Quente, da Rede TV!. A emissora acabou dispensando o apresentador João Kleber. Em lugar das humilhações impostas principalmente a homossexuais, foi obrigada a transmitir no mesmo horário produções realizadas por entidades defensoras dos direitos humanos. A audiência, é bom frisar, não caiu, desmentindo a afirmação repetida à exaustão de que o público gosta de baixarias. Mas esse é um exemplo único. Muito pouco diante da quantidade de programas que, diariamente, em todo o país, seguem contribuindo para a banalização da violência e a expansão da incivilidade. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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américa latina
O legado de Chávez Em algum momento ele deixará a Presidência da Venezuela. Que país está sendo construído? Por Alexandre Haubrich
Independência Chávez e Bolívar: ligados pelo discurso nacionalista
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ndar pelas praças de Caracas e conversar com os venezuelanos permite perceber o apoio popular que dá sustentação ao presidente. Desde que ele venceu a primeira eleição presidencial, a mudança de postura do governo com relação à sociedade confere bases sólidas a Hugo Chávez. A cada pronunciamento, o comandante ressalta a importância de o povo manter-se informado e aprender a intervir na política. Símbolos da independência venezuelana – como Simón Bolívar, Antonio Sucre, Francisco de Miranda – e a lembrança da história do país foram incorporados ao vocabulário cotidiano e dão fôlego ao sentimento nacionalista. No início do século 19, Bolívar liderou batalhas de independência da colonização espanhola. Chegou a comandar a criação de uma república que unificava territórios de países, mas duraria pouco tempo.
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Ho New/Reuters
A partir de 1831 a desagregação político-territorial da Grã-Colômbia deu à Venezuela o contorno que tem hoje, e também uma sucessão de governos submissos às potências econômicas. Chávez chegou ao poder em 1998 e passou a defender a “Independência para sempre”, slogan pintado em diversos muros de Caracas. E foi convincente, ao apoiar trabalhadores a ocupar a gestão de fábricas, autorizar comunidades a montar emissoras de rádio e incentivar cidadãos a participar das decisões por meio dos plebiscitos e dos conselhos comunitários. “O povo despertou das sombras”, diz um livreiro, sobre a chegada do comandante ao Palácio de Miraflores. Pela Praça Bolívar, a principal de Caracas, passam milhares de pessoas. Muitas param para ler o Cidade de Caracas, jornal de maior circulação na capital, gratuito. Seu foco é a política e o noticiário da América Latina, e em torno desses temas
giram as conversas na praça. “O povo entende que é a política que move a sociedade. E Chávez estimula o povo a participar politicamente”, diz um vendedor de DVDs na tenda Esquina Calliente. Embora a maior parte da capital seja chavista e respire política, os bairros ricos refletem, nos muros, ruas e praças, o abismo político, econômico e social que separa ricos e pobres. Em Altamira, o mais abastado, é onde menos se veem referências a questões políticas. Enquanto os muros dos outros bairros são grafitados com temas da independência e da esquerda mundial, os dali são pichados. Enquanto bancas de revistas da região central exibem publicidade comemorativa ao bicentenário da independência, as de Altamira fazem ode ao consumo. Enquanto na região central as pessoas se locomovem de metrô, em carros que parecem desmanchar-se ou em pequenos ônibus velhos, ali só circulam carros importados.
É nos bairros mais endinheirados que está a oposição. Os “esquálidos”, como o presidente os chama, também estão em outras regiões ricas do país, como a zona petroleira de Zulia. Em julho, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) oficializou o subsolo venezuelano como a maior reserva comprovada do óleo. A partir dessa reserva, elites enriqueceram, e hoje é também dela que Chávez obtém recursos para investir nos setores sociais carentes, como segurança, saúde e moradia. A disputa pelos recursos do petróleo é um dos pontos nevrálgicos do embate com a oposição. Chávez já resistiu até a uma tentativa de golpe em 2002, que contou com a participação da grande mídia privada e dos mesmos partidos que em 2012 buscarão a via eleitoral. A Mesa de Unidade Democrática, coalizão conservadora, se apresentará com candidato único contra o chavismo.
Poder em disputa
Carlos Garcia Rawlins/Reuters
Agora, nem mesmo os governistas têm tanta certeza se resistirão a mais um teste das urnas, dados os graves problemas que o país enfrenta e tendo também como adversário o medo da inflação, do desem-
confiança à continuidade do chavismo, o governo conta com o nível de informação e politização do povo. Em 2005, após uma intensa campanha de alfabetização iniciada em 2003, a Venezuela foi declarada pela Unesco “território livre de analfabetismo”. As pessoas aprenderam a ler e têm o que ler. Há 57 Librerias del Sur espalhadas por todo o país, vendendo especialmente livros de história, sociologia e também literatura de ficção, poesia e obras infantis – com preços subsidiados e mais acessíveis. A organização em coletivos é outro recorrente mecanismo de participação dos venezuelanos na política. Grafitagem em muros, emissoras comunitárias de rádio e TV, promoção de debates, saraus, encontros e edição de livros compõem uma grande rede “horizontal” por meio da qual a população se manifesta e influi na complexa dinâmica social. Apesar de o governo estimulá-los, inclusive com injeção de recursos, esses grupos acabam atuando com independência em relação ao Estado. Oscar Sotillo, liderança de um dos mais fortes coletivos do país, o La Mancha, explica a relação com o governo: “Somos construtores da revolução bolivariana no
prego e da violência. A moradia é outro tema caro à população. A oposição lembrará que o déficit habitacional continua; a situação dirá que já foram concluídas 300 mil casas populares, subsidiadas, e que outros 2 milhões serão entregues até 2017, o que cobriria o déficit atual. Se as conquistas sociais alcançadas nos últimos anos não bastam para conferir
O presidente admitiu que tem câncer. Com a cabeça raspada, aparenta ter ganhado maior apoio popular
dia a dia, mas somos independentes do Estado, somos críticos, acreditamos que se deve abrir espaço para a cidadania, para botar nas mãos das pessoas o conhecimento, as ferramentas, a tecnologia, para que as pessoas façam seus próprios conteúdos, suas próprias notícias, jornais, programas de rádio, para assim enriquecer o terreno comunicacional do país”.
Apesar dos avanços sociais e políticos, uma parte da esquerda ainda avalia se os últimos 12 anos de chavismo não teriam sido apenas remendo de capitalismo. “Aqui se luta contra o inimigo tradicional, a burguesia exploradora do povo, mas também contra a burocracia, que confisca poder, confisca participação, e hoje é o principal obstáculo para avançar na transição ao socialismo”, afirma Zuleika Matamoro, coordenadora do portal de notícias Aporrea e integrante da direção nacional da Marea Socialista, uma corrente dentro do partido de Chávez, o PSUV. Zuleika não teme os conservadores. Para ela, é maior a preocupação com eventuais retrocessos dentro da estrutura do chavismo do que com o discurso da oposição, que pouco mudou desde 1998: “A direita neste país não tem vida. Tem uma base social, mas não tem espaço no povão. Pode manipular sua base social, mas há um sentimento majoritário de que não se deseja voltar para trás”. Esse sentimento é uma das características da personalidade política venezuelana que contribuiram para a popularização dos projetos introduzidos por Hugo Chávez. Com a ampliação do respaldo popular, inclusive contra algumas tentativas de golpe, resta à oposição conservadora essa unidade sem precedentes para retomar o poder por meio do voto. Hoje, no entanto, o maior desafio pessoal do comandante não parece ser o ímpeto oposicionista. O presidente admitiu, em meados de julho, que tem câncer. Foi mais de uma vez a Cuba e segue em tratamento em seu país. Com a cabeça raspada, aparenta ter ganhado maior apoio popular. A oposição já disse que Chávez estava morrendo, já o acusou de inventar a doença e voltou a dizer que o presidente estava à beira da morte. Ao negar por muito tempo o câncer, mesmo depois de diagnosticado, o governo acabou contribuindo para o clima de desinformação. Não se sabe quando as informações são confiáveis. O que se sabe é que, qualquer que seja a real situação, Chávez – sua liderança ou seu legado – ainda será o fio condutor do pleito do ano que vem, sobretudo se conseguir conservar no interior das forças de sustentação do governo a mesma unidade que a oposição parece estar alcançando. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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américa latina
No campo e nas cidades, os mexicanos se organizam para enfrentar a deterioração social trazida pela “guerra ao narco”, de Calderón e Obama Por Joana Moncau e Spensy Pimentel
O povo perde a paciência “P
ara vocês nos parecemos com baixas colaterais, números estatísticos?” A pergunta, que familiares das 50 mil vítimas da violência no México desde 2007 gostariam de fazer ao presidente Felipe Calderón, foi enunciada pelo poeta e ativista Javier Sicilia, principal porta-voz do Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade (MPJD). Um fórum que marcou o primeiro diálogo público do movimento com o presidente, em junho, deixou evidente a falta de vontade do governo Calderón de repensar a estratégia de encarar o combate ao narcotráfico como
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uma guerra – iniciada assim que tomou posse, em 2006. Por meio do acordo intitulado Iniciativa Mérida, o país tem recebido apoio financeiro e militar dos Estados Unidos para implementá-la. Incitado a pedir perdão à nação e às vítimas pela guerra que lançou, a postura do presidente foi impiedosa ao se desculpar por não haver protegido a vida das vítimas, dizendo-se “arrependido” por não ter enviado antes as forças federais e concluindo, taxativo: “Vou continuar combatendo os criminosos com as forças federais”. O MPJD foi puxado por Javier Sicilia depois que, no último 28 de março, seu filho de 24 anos foi executado pelo
narcotráfico, com outras seis pessoas – em crime com indícios de corrupção do aparato policial militar do país, já que a mensagem deixada junto aos corpos indicava uma retaliação por contatos feitos pelas vítimas com um disque-denúncia do governo. Desde janeiro aparecem nas cidades mexicanas manifestações de rua contra a guerra, além da campanha “No + Sangre” (chega de sangue), lançada por artistas e intelectuais. Mas foi a partir do envolvimento de Sicilia que se viu um rápido crescimento da mobilização popular. Em maio, uma marcha liderada por Sicilia, desde Morelos, seu estado natal, reuniu mais de 200 mil pessoas na Cidade
Em maio, uma marcha liderada por Javier Sicilia, a partir de Morelos, seu estado natal, reuniu mais de 200 mil pessoas na Cidade do México. Foi a maior manifestação política de rua no país desde os protestos contra a fraude nas eleições de 2006
do México. Foi a maior manifestação política de rua no país desde os protestos contra a fraude nas eleições de 2006, quando Calderón venceu Lopez Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD), líder de uma coalizão de centro-esquerda, por 0,58 ponto percentual. Em apoio ao movimento encabeçado pelo poeta, milhares de indígenas zapatistas também marcharam em Chiapas, pela primeira vez em cinco anos. A situação chegou a tal ponto que as esquerdas, e até parte da direita do país, sublimaram suas diferenças e se uniram contra a violência da “guerra ao narco”. Segundo dados de 2011, no México estão 12 das 49 cidades mais violentas do mundo – a maioria no norte do país. Ciudad Juárez, na fronteira com a cidade americana de El Paso, Texas, está no topo da lista pelo terceiro ano consecutivo, com 229 assassinatos para cada 100 mil habitantes. “Tudo piorou desde que chegaram o Exército e a Polícia Federal, porque eles também estão envolvidos nos crimes, nos sequestros, nos roubos”, afirma Guadalupe Apodaca, tia de Patricia Jazmín Ibarra, desaparecida em Ciudad Juárez quando se dirigia a uma entrevista de emprego. Guadalupe esteve entre milhares de pessoas que receberam caravana do MPJD em junho. A manifestação percorreu algumas das regiões mais críticas do país, a fim de compor um pacto nacional para combater a violência.
Campo armado
Não é só nas grandes cidades que o povo mexicano se mobiliza contra as consequências da militarização. Em Michoacán, um dos estados de atuação mais forte do narcotráfico, no sudoeste do país, onde predomina o conhecido cartel Família Michoacana, comunidades indígenas e camponesas estão se organizando para enfrentar a violência. A demanda popular não é contra o combate ao narcotráfico em si, mas por uma política de segurança eficiente. “O senhor se lançou à guerra com instituições podres, que não dão segurança à nação, com alto grau de impunidade. Por que não reconhece humildemente que também podem ser feitas outras coisas, além de alimentar essa máquina policial e militar?”, perguntava Sicilia a Calderón. Javier Sicilia alertou para o risco de proliferarem pelo país experiências como as da localidade de Cherán. Em 15 de abril, uma comunidade purépecha resolveu em assembleia pegar em armas para enfrentar um grupo de madeireiros que já devastou ilegalmente 80% dos 20 mil hectares de bosque do território indígena, com apoio do crime organizado. “Já denunciamos sequestros, extorsões e ameaças, e não investigaram nada. Por isso, nossa paciência se esgotou. Cansamos de baixar a cabeça, de apenas ver passar centenas de caminhões carregados com nossas árvores e não dizer nada, por medo. Agora, não mais”, conta um indígena, que teme se identificar. A ronda
Clayton Conn
prometeo lucero
Marcela Salas Cassani
Javier Sicilia
Clayton Conn
População acuada No campo, as manifestações contra a violência têm de ser anônimas. O povo teme o narcotráfico e os militares REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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Joana Moncau
américa latina
Confiança “Ao contrário da Polícia e do Exército, a Polícia Comunitária é bem-vista, porque nasceu do povo, não recebe salários, presta serviço”, afirma Cirino Placido Valerio
comunitária tem total apoio dos quase 20 mil moradores de Cherán. O custo da resistência é alto: três indígenas foram mortos nos três primeiros meses de mobilização cidadã. A comunidade de Ostula, no município de Aquila, no mesmo estado, é outra que sofre com as ofensivas de grupos do narcotráfico. São mais de 19 mil hectares, que abrigam 23 povoados de indígenas nahua. Em 2009, eles recuperaram mais de mil hectares de terra ilegalmente ocupados, em mais de 40 anos, por grupos de mestiços. De lá para cá, resistem aos mais diversos tipos de pressão por habitar um território estratégico não só para o narcotráfico, mas também para o governo, por suas ricas jazidas de ferro e ouro e pelo potencial turístico. A guarda comunitária de Ostula conta com quase 500 integrantes. “A delinquência não está apenas nos ameaçando, está nos assassinando, sequestrando nossa gente, nos roubando. Quanto à presença militar, como não é efetiva para deter esses grupos, passa a ser uma ameaça a mais”, conta um dos membros da guarda, também pedindo anonimato. Nos primeiros sete meses de 2011, chegou a 22
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16 o número de indígenas assassinados em Ostula. Exemplos como os de Cherán e Ostula buscam inspiração em outras comunidades indígenas do país que, há muito tempo, se organizam nesse sentido. É o caso da Polícia Comunitária, no estado de Guerrero, formada por indígenas mixteco e tlapaneco, além de mestiços. Criada em 1995, a Polícia Comunitária apareceu em um contexto marcado por forte desrespeito aos direitos humanos, entre homicídios, assaltos nas estradas e violações das mulheres na região. Além de criar a própria polícia, na mesma época, as comunidades resolveram montar um sistema de Justiça comunitária. Atualmente, o corpo policial conta com cerca de 700 membros, com atuação em nove municípios da região, atendendo 65 comunidades e 100 mil habitantes. Nesse estado, a principal ameaça vem das forças oficiais do poder público. Não são poucos os casos em que o Exército age para ameaçar defensores dos direitos humanos e romper o tecido social das comunidades. “Ao contrário da Polícia e do Exército, a Polícia Comunitária é bem-vista, porque nasceu do povo, não recebe salários, presta serviço e tem compro-
misso com o povo. Já o Estado utiliza a força pública para reprimir ou intimidar os movimentos que se formam”, conta Cirino Placido Valerio, um dos fundadores do movimento em Guerrero, estado vizinho a Michoacán. Mais ao sul, no estado de Chiapas, a “guerra ao narco” não tem espaço, por enquanto, mas a militarização que hoje envolve quase todo o país é mais antiga, vem desde os anos 1990. Ali está o exemplo mais conhecido de governo autônomo e de autodefesa indígena, inspirador dos movimentos sociais do México e de todo o mundo, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). “A guerra (do governo) em Chiapas é uma guerra à parte. É contra os zapatistas”, afirma Hermann Bellinghausen, jornalista do diário La Jornada que acompanha há 17 anos os conflitos na região.
Pré-campanha
Os indígenas e camponeses se viram como podem, o MPJD tenta articular as diversas lutas para frear a violência, e em meio a isso tudo o país está em clima pré-eleitoral – o mandato presidencial no México é de seis anos, e as eleições serão em julho de 2012. O PAN, de Felipe Calderón e de seu antecessor, Vicente Fox, terá muito trabalho para superar o favorito nas pesquisas, Henrique Peña Nieto, do PRI – partido conservador que governou o México por mais de meio século. Enquanto isso, a sociedade organizada teme um golpe, que pode chegar por meio da Lei de Segurança Nacional, atualmente em discussão no Congresso. A nova legislação, segundo o MPJD, pode legitimar o “estado de guerra” e fragilizar ainda mais o estado de direito e as garantias individuais. “Legalizar a presença permanente das Forças Armadas em funções policiais teria graves implicações na vida cotidiana de todas as comunidades do país”, aponta comunicado do movimento, lançado em agosto. “A nova lei é repressiva e só ataca os efeitos da delinquência por crer que, ao dar maiores atribuições às Forças Armadas, mais salários, mais armamentos, terminará o problema do crime organizado. Isso é falso, já que em nenhum caso visa às causas que o originam.” Com informação do site Desinformémonos.org
europa
A “maldição” do Caribe O grande resultado dos piratas na eleição de Berlim mostrou o enorme vácuo entre a juventude e os partidos tradicionais
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les eram jovens, simpáticos, irreverentes... Apenas 15 contra centenas, talvez mais de um milhar. Eles eram os candidatos do Partido Pirata, tradicionalmente monotemático em torno de questões como liberdade de expressão, de circulação de informação e de direito a maior privacidade na internet. Eles enfrentavam, na eleição berlinense do dia 18 de setembro, os gigantes da política alemã: SPD, CDU, Verdes, o FDP (descrito sempre como business friendly). Até a Linke, A Esquerda, fundada não muito tempo atrás, parecia formidável diante deles, com sua votação de dois dígitos. É verdade que há algumas semanas as coisas começaram a mudar. Inteligente, criativa, bem-humorada, a propaganda pirata chamava a atenção, num clima eleitoral morno e monótono. Um dos temas dessa campanha foi a proposta de conter o aumento dos aluguéis, descontrolado na cidade. Outros foram a melhoria da educação e a integração dos imigrantes. O comum do Partido Pirata, se eles entrassem no ramerrão da mesmice, seria permanecer em suas palavras de ordem também tradicionais. Numa entrevista que fiz tempos atrás para a Rede Brasil Atual, a líder sueca do Partido, Amelia Andersdotter, explicou que os piratas se recusavam a avançar em outras propostas porque perderiam votos, já que eles vinham tanto da direita quanto da esquerda. E naquele momento, em 2007, acabavam de obter, justamente pela
Thomas Peter/Reuters
Por Flávio Aguiar
Todos a bordo Piratas posam na escadaria do Parlamento berlinense: avalanche de votos
Suécia, sua primeira cadeira no Parlamento Europeu. Entretanto, Berlim foi o contraexemplo. Os piratas avançaram em propostas inovadoras e ousadas, como acesso gratuito ao transporte público, fixação de um salário mínimo (até então só a Linke defendia essa proposta), fim do imposto eclesiástico (“privatizemos as religiões”, dizia um cartaz bem-humorado). Resultado: foi uma avalanche de votos. Saíram do nada para 9% da votação e elegeram todos os 15. Se tivessem mais votos, criariam um problema inusitado: o número de cadeiras a que teriam direito na Câmara berlinense seria maior que o de candidatos inscritos. Todos os outros partidos, mesmo os que aumentaram a votação, saíram perdendo. O SPD, vencedor, que vai manter o prefeito, Klaus Wowereit, caiu de 30,8% para 28,3%. A CDU, da chanceler Angela Merkel, foi de 21,3% para 23,4%, um crescimento pífio, sobretudo porque seu parceiro no governo federal, o FDP, foi arrasado: caiu de 7,6% para 1,8%, não elegendo um único deputado. Ficou atrás até do neonazi NPD, que teve 2,1% dos votos. Os Verdes cresceram de 13,1% para 17,6%, um aumento significativo, mas esperavam crescer muito mais, a ponto de
sonhar em ocupar a prefeitura. A Linke perdeu pouco na votação, de 13,4% para 11,7%, mas na prática perdeu muito: depois de participar do governo durante dez anos, na próxima eleição a coligação do SPD (já de olho no pleito nacional) será com os Verdes. O próprio modo como a mídia olhou a vitória pirata assumiu o tom alegre da campanha. Um dos jornais alardeava: “A maldição do Caribe”, “Der Fluch von Karibik”, numa alusão ao filme estrelado por Johnny Depp, Os Piratas do Caribe. Isso porque o PP roubou votos de todo mundo: sobretudodos Verdes, mas dos outros também, até dos conservadores FDP e CDU. A vitória dos piratas mostrou que cresceu o vácuo entre a juventude e os partidos tradicionais. Aquelas novas palavras de ordem que eles mobilizaram (além das suas tradicionais) dizem muito para os jovens, que, não só em Berlim, mas na Europa inteira, têm os maiores contingentes de desempregados. Muitas vezes os movimentos de jovens são descritos como “despolitizados”, ou “descrentes” da política. Não foi o caso desta vez, o que dá uma certa esperança de renovação num cenário político-institucional imobilista como o europeu. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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Transtornos como hiperatividade e dislexia estão no centro de uma polêmica que divide especialistas. Para alguns, a banalização dos diagnósticos e da medicalização ajuda a indústria farmacêutica e esconde a má qualidade do ensino Por João Correia Filho e Cida de Oliveira
Quem precisa de remédio?
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e tivesse nascido nos últimos dez anos, o Menino Maluquinho, personagem do cartunista Ziraldo, criado em 1980, poderia ser diagnosticado como hiperativo, ou portador de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). É muito provável também que lhe fosse receitado medicamento à base de metilfenidato, como Ritalina, para controlar sua agitação e impulsividade – exatamente como acontece hoje com crianças com comportamento semelhante. Transtornos neurológicos como esse têm sido cada vez mais diagnosticados no Brasil. Segundo a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), entre 3% e 5% das crianças em todo o mundo sofrem do distúrbio, cujos principais sintomas são falta de concentração, impulsividade, ansiedade e dificuldade de planejar tarefas a longo prazo. Coincidência ou não, a venda de Ritalina cresceu 1.615% só na década passada, segundo o Instituto de Defesa dos Usuários de Medicamentos. O Brasil é o segundo maior consumidor da droga no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, por exemplo, apontam a venda de 150 mil unidades do medicamento na capital paulista apenas nos primeiros cinco meses deste ano, compondo uma média mensal quase duas vezes maior que a do ano passado. Os números alimentam uma polêmica que envolve a indústria farmacêutica, põe em xeque pesquisas científicas e divide médicos e psicólogos. A professora Maria Aparecida Moysés, do Departamento de Pediatria da Universidade de Campinas (Unicamp), vê com reservas esse aumentodos diagnósticos. “Os laboratórios financiam parte das pesquisas e apoiam entidades que dão aval a tais conclusões”, denuncia a pediatra, uma das pioneiras na luta contra a medicalização no Brasil. O movimento conta com a crescente adesão de médicos, psicólogos e outros pro-
fissionais da saúde, como a equipe do Programa de Atenção à Adolescência do Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). A médica sanitarista Mariana Arantes Nasser, coordenadora do programa, afirma que é um exagero transformar comportamentos diferentes do padrão imposto em doença, passível de medicação e de acompanhamento excessivo com psicólogos, fonoaudiólogos e outros profissionais. E vai além: “A Ritalina, muito prescrita a crianças pequenas, não foi estudada o suficiente quanto aos efeitos a longo prazo. Ou seja, nem sabemos se a doença existe mesmo e usamos um remédio que nem sabemos se é seguro a longo prazo”. A sanitarista explica que a medicalização é preocupante também porque estigmatiza. “Não é fácil para uma pessoa que tem um comportamento considerado diferente ser taxada de doente por um profissional da área, principalmente um médico. É como ser chamada de anormal. A saúde tem de transformar a realidade, e não o contrário”, ressalta. Do outro lado da polêmica, o psiquiatra Antonio Geraldo da Silva, presidenteda Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), considera o aumento de casos diagnosticados do transtorno uma decorrência do maior acesso da população à informação sobre as doenças e do conhecimento dos sintomas por pais e professores. “Quanto mais precoce o diagnóstico, o tratamento começa mais cedo e é mais fácil curar. Por que esperar o problema se agravar para tratar?”, questiona. “É como o caso do doente cardíaco. Vamos esperar que ele tenha um infarto para só então tratar?”, compara. Segundo Silva, o avanço da medicina permite ao médico identificar sintomas que diferenciam o transtorno de hiperatividade de outras doenças, tratando de maneira adequada e segura, com medicamento específico, associado ou não a psicoterapia. O distúrbio é reconhecido
fotos João correia filho
O Brasil é o segundo maior consumidor de Ritalina no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos
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capa como doença pela Organização Mundial da Saúde e em alguns países, como os Estados Unidos, portadores são protegidos por lei que garante tratamento diferenciado na escola.
Epidemia?
Transtorno que dificulta a aprendizagem da leitura e da escrita, a dislexia também tem crescimento nas notificações. Conforme a Associação Brasileira de Dislexia (ABD), entre 5% e 17% da população mundial sofre desse mal que, assim como a hiperatividade, tem origem genética. No entanto, para muitos especialistas, essa estimativa é suspeita. “Na medicina, é absurdo pensar em porcentagens tão altas para um problema genético, quando o normal são taxas como 1 por 10 mil, 1 por 100 mil, 1 por milhão. Se reais, esses números indicariam que estamos diante de uma verdadeira epidemia de distúrbios com origem cromossômica”, analisa Maria Aparecida Moysés, da Unicamp. Para a psicóloga Maria Inez Ocaña de Luca, da ABD, não há exagero no aumentodo número de diagnósticos de dislexia e hiperatividade, e sim um grande equívoco na interpretação dos dados. “Trata-se de descobertas recentes, conhecidas no Brasil a partir da década de 1980. É óbvio que houve um crescimento vertiginoso desses números, pois antes ninguém conhecia tais transtornos. Nosso trabalho foi esclarecer e ajudar a identificá-los, o que fez com que começassem a aparecer mais casos.” A psicóloga afirma também que o número de diagnósticos de dislexia já começa a diminuir. Segundo ela, atualmente cerca de 50% dos casos que passam pela ABD são encaminhados para outros tratamentos ao serem identificados sintomas de hiperatividade, autismo, deficiência mental leve e problemas auditivos. Maria Inez diz que na maioria das vezes os pais estão envolvidos no tratamento e são os primeiros a perceber se um medicamento está fazendo bem para seu filho – “pois eles acompanham suas reações na escola e em casa”. Ela aposta ainda na fiscalização feita por órgãos responsáveis pelo controle dos procedimentos médicos a possíveis casos de abuso. 26
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Escola ruim
O aumento do diagnóstico do TDAH e dislexia, segundo profissionais, pode ainda maquiar problemas sociais e a queda da qualidade do ensino. “Tornou-se mais fácil pôr a culpa num distúrbio ou num transtorno do que enfrentar a baixa qualidade de ensino, principalmente nas séries iniciais. Hoje em dia, se uma criança é desatenta na escola ou em casa corre o risco de ser diagnosticada como hiperativa. Se ela não lê nem escreve nos primeiros
Tratamento correto
C.S.A. tem dislexia e precisou de um laudo para fazer as provas do vestibular de forma diferenciada. Tempo maior e auxílio no preenchimento do gabarito garantiram a aprovação em várias universidades
Diagnósticos de dislexia e de hiperatividade são banalizados e empregados indiscriminadamente toda vez que a criança não aprende ou não consegue se concentrar, diz professora
fotos João correia filho
conta a publicitária Gabrielle Chimento Massarão, mãe do garoto. Ela optou por uma escola com proposta pedagógica diferenciada, que permite que a criança tenha maior autonomia e faça mais experimentações, adotou a medicina antroposófica, modificou a alimentação e o comportamento de toda a família. “Decidimos não tratá-lo com medicamentos como a Ritalina. Em vez disso, assumimos o problema e estamos ajudando o Gabriel a melhorar”, diz. A nova escola despertou o interesse do garoto, que evoluiu no aprendizado. Os “apagões”, segundo a mãe, diminuíram.
anos de escolarização, já corre o risco de ser taxada de disléxica”, afirma Marilene Proença Rebello de Souza, professora do Instituto de Psicologia da USP. Outro ponto levantado por ela é que diagnósticos de dislexia e de hiperatividade são “banalizadas e empregadas indiscriminadamente” toda vez que a criança não aprende ou não consegue se concentrar na aula. “É mais comum do que se imagina a criança ser encaminhada ao posto de saúde já com um bilhete
da escola ‘diagnosticando’ que é disléxica ou hiperativa. E, assim, os alunos já são estigmatizados sem questionamento à forma ou ao processo de aprendizagem. Parece que virou moda ter esse tipo de transtorno”, critica Marilene. Logo que diagnosticado como portador do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, aos 5 anos, Gabriel foi transferido de escola. “Ele não se interessava pelas aulas, não acompanhava o ritmo da turma, desligava, viajava mesmo”,
Varredura
Para Marilene Proença, o excesso de diagnósticos remete ao começo do século 20, quando teorias da psicologia atribuíama distúrbios cerebrais as dificuldades de aprendizagem, isentando problemas sociais e educacionais. “Nosso maior desafio não é apenas diagnosticar crianças, e sim lutar pela melhoria da qualidade da escola.” Maria Inez Ocaña, da ABD, afirma que, para evitar equívocos, os casos de dislexia só devem ser atestados depois de uma varredura feita por psicólogos, fonoaudió logos, neurologistas e mais uma série de profissionais de saúde que acompanham o paciente. “Eliminamos todos os outros fatores que podem causar o problema de aprendizagem, como REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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deficiências auditivas, na visão e até mesmo transtornos como o TDAH, que pode acompanhar a dislexia e agravar o quadro. Além disso, há um acompanhamento da situação escolar e familiar dos diagnosticados”, pondera a psicóloga. Atualmente, laudos de dislexia servem como aval para que jovens tenham tratamento diferenciado em escolas e até mesmo no vestibular. C.S.A. (que pede para não se identificar), reprovado várias vezes em vestibulares, depois de um laudo médico que comprovava sofrer de dislexia obteve a autorização de algumas instituições para fazer seu exame de forma diferenciada – com mais tempo para as provas e com a presença de alguém que lê as questões e auxilia na conferência dos gabaritos. Com esses recursos, ele foi aprovado em várias universidades públicas importantes, como Unesp, USP e UFMG. Optoupelo curso de Geologia na Unesp de Rio Claro (SP). No entanto, segundo Maria Aparecida Moysés, não faltam casos em que diagnósticos de dislexia e de TDAH são prejudiciais. Aos 12 anos, Marcelo (nome fictício) consultou-se com um neurologista num momento em que ia muito mal na escola. Depois de dois anos de medicação com Ritalina, a família descobriu que ele havia tido problemas de atraso no crescimento, o que lhe causava dificuldades até para fazer atividades físicas, uma de suasgrandes paixões. Um acompanhamento psicológico mais aprofundado revelou que o adolescente deixava os estudos em segundo plano porque desejava ser jogador de futebol. Em acordo com seus pais, prometeu se esforçar para terminar o ensino fundamental desde que pudesse se dedicar ao esporte. Parou com os medicamentos, concluiu os estudos e hoje, aos 14 anos, joga num time de futebol de sua cidade. Nunca mais foi medicado. Nos últimos anos, a discussão também entrou na esfera política. Atualmente tramita um grande número de projetos de lei para a educação, nos âmbitos municipal, estadual e federal, a propor que o tratamento e o diagnóstico de distúrbios de aprendizagem ocorram no interior das escolas públicas. No município de São Paulo, por exemplo, tramita na Câmara dos Vereadores um projeto criado pelo Programa de 28
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gerardo lazzari
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Apoio ao Aluno Portador de Distúrbios Específicos de Aprendizagem. “A aprovação da lei representará um retrocesso significativo no enfrentamento das dificuldades de escolarização de nossas crianças e adolescentes. Isso porque reduz os problemas educacionais a uma suposta patologia do indivíduo, desconsiderando todo um contexto social e as consequências de gravíssimos problemas de estrutura e funcionamento de nosso sistema de ensino”, argumenta um manifesto difundido pelo Conselho Regional de Psicologia e assinado por dezenas de entidades do setor. A pesquisadora Marilene Proença, também autora de diversos trabalhos sobre o tema, considera que esse tipo de projeto não melhora a qualidade da escola e reforça ações paliativas. “Desvirtua-se a ideia da escola de qualidade como direito de todos, e o direito passa a ser o de ter um diagnóstico”, critica.
Peleja científica
Maria Aparecida Moysés, da Unicamp, vai mais longe. Considera que os critérios usados são frágeis: “É inquestionável que existam doenças reais, que existam problemas de saúde que podem interferir no desenvolvimento afetivo e cognitivo de uma criança, mas faltam critérios claros”, analisa. “A dislexia, por exemplo, é definida como uma dificuldade de aprendizagem de origem neurológica, que afetaria a fluência correta na leitura. Para diagnosticá-la, os principais instrumentos utilizados são provas de leitura e escrita, o que impossibilita a diferenciação entre pessoasmal alfabetizadas e pessoas com uma doença neurológica de fato.”
Atenção redobrada Gabriel foi diagnosticado como portador do transtorno de déficit de atenção. A mãe, Gabrielle, decidiu não tratá-lo com medicamentos. Mudou o garoto de escola e reviu a alimentação e o comportamento da família
Segundo a pediatra, entre os próprios médicos não há unanimidade sobre a existência desses distúrbios, ou seja, a dislexia e o TDAH ainda não foram comprovados cientificamente, sendo questionados no interior da própria medicina em todo o mundo. No site da ABDA, o psiquiatra Paulo Mattos defende a existência do TDAH de forma contundente: “Quando você ouve alguém dizer que TDAH é uma doença inventada, por mais eloquente que seja o autor dessa opinião, sem qualquer base científica, ou mesmo a sua titulação – a incapacidade e leviandade sempre foram democráticas: também acometem médicos, psicólogos etc. –, pesquise sobre a veracidade e a origem do que está sendo dito”. Outro ponto em questão são os efeitos colaterais provocados por medicamentos que têm o metilfenidato como princípio ativo. A ABDA argumenta que “os mais comuns são inapetência, insônia, irritação gástrica e dores de cabeça, que ocorrem numa minoria de pacientes e, quando ocorrem, tendem a desaparecer em poucos dias ou semanas. Não há efeitos colaterais ‘perigosos’, como tonteiras, taquicardia etc.”. A pediatra Maria Aparecida Moysés lembra, entretanto, que na própria bula da Ritalina são listados efeitos colaterais como febre alta, dor no peito, batimento cardíaco acelerado, garganta inflamada e espasmos musculares. “Isso já seria o suficiente para ter muito cuidado ao receitar”, afirma. “Muitas vezes o fato de uma criança medicada estar mais quieta pode ser considerado pelos pais e pela escola como um sinal de que está reagindo bem, está mais concentrada. Mas pode estar ocorrendo o que chamamos na farmacologia de efeito zumbi, ou seja, as crianças ficam paradas, contidas, como se estivessem quimicamente amordaçadas.” O fato é que não se pode desprezar o risco de haver um transtorno ou distúrbio que afete o aprendizado. Tampouco o ambiente social e educacional da criança pode ser precipitadamente isento de responsabilidades. Qualquer que seja o desdobramento de um caso, identificar uma dificuldade e buscar o diagnóstico correto exigem um esforço coletivo que vai até a procura por especialistas de áreas diversas. Porém começacom o empenho dos pais. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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Cultura sem miséria Em entrevista à Rádio Brasil Atual, José Celso Martinez Corrêa fala dos 50 anos do Teatro Oficina, defende a revitalização social e cultural do bairro do Bixiga e rechaça os cortes de orçamento da cultura: ela é o espírito crítico, é o sonho, é a infraestrutura da vida Por Osvaldo Luiz Colibri Vitta
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osé Celso Martinez Corrêa tem 74 anos e mais de meio século de uma relação de unha e carne com a cultura brasileira. Estava na Faculdade de Direito no Largo São Francisco, em 1958, quando foi criada a Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona Existência Criativa. Vulgo Teatro Oficina, cuja fase profissional foi inaugurada em 1961, com a locação da sede da companhia na Rua Jaceguai, no bairro paulistano do Bixiga, a tradicional Bela Vista. Ali, há anos trava uma batalha para que os terrenos no entorno do atual prédio, projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi, não sejam engolidos pela degradação imobiliária que desvirtua as características da região. Os imóveis pertencem a Silvio Santos, homem de negócios ávido por vendê-los, ou por receber do poder público, em troca, outros imóveis com os quais possa fazer caixa. Na década de 1960, o Oficina revolucionou a dramaturgia brasileira com obras como Pequenos Burgueses, de Maximo Gorki, e O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. No exílio, entre 1974 e 1979, Zé Celso trabalhou em Portugal, Moçambique, França e Inglaterra, produziu obras como O 25, que narra a libertação de um país africano, e O Parto, sobre a Revolução dos Cravos. A partir da abertura, o grupo voltou a se reunir em São Paulo e, durante dez anos, batalhou para levantar o novo teatro. Finalmente aberto em 1993, inaugurou nova fase, com adaptações de obras clássicas da dramaturgia mundial, como Hamlet, de Shakespeare, e As Bacantes, de Eurípides. No início deste século, o grupo ousou projeto em torno de Os Sertões. As montagens das três partes do livro de Euclides da Cunha – O Homem, A Terra e A Luta – somaram25 horas de apresentações, entre 2001 e 2006. No período, o Oficina abriu-se ainda mais para o social. Nasceu o Movimento Bixigão, com trabalhos artísticos entre crianças e jovens em situação de risco social. No dia 30 de setembro, o Jornal Brasil Atual levou ao ar entrevista exclusiva de Zé Celso. O “clima sonoro” inteiro da conversa pode ser ouvido no site da Rádio Brasil Atual. Leia a seguir os principais trechos. Zé Celso, homem do Teatro Oficina, que comemora 50 anos de trabalho. Isso o remete ao passado ou...
claire jean/ divulgação
Não, eu invisto no presente e no futuro. Tiro proveito do passado, claro, eu sou antropófago. Nós estamos fazendo, do Oswald de Andrade, inspirado no Manifesto Antropofágico, uma macumba antropófaga urbana, e com um objetivo específico. Assim como você faz macumba pra conseguir namorada, ou o que for, essa é para conseguir a troca de terrenos – porque o Silvio Santos propõe, nesse momento, que os terrenos dele sejam trocados por terrenos do poder público – para podermos construir lá um teatro-estádio, uma universidade antropófaga, reflorestar o bairro e devolver aquilo que lhe foi destruído na época da ditadura e do Minhocão. E para que volte a ser o coração de São Paulo, cosmopolita e popular, como a Lapa no Rio de Janeiro. O futuro depende do Estado?
Um tanto do Ministério da Cultura, que está com dois terços do orçamento cortado. Com essa história de corte fiscal, não está acontecendo nada nessa área – dinheiroé o Exu que move as coisas.
Num determinado momento (1982), o teatro foi tombado, graças ao Aziz Ab’ Saber, geógrafo extraordinário, ao Flávio Império, que tinha construído o teatro anterior, e ao João Carlos Martins, o pianista. A seguir, o governo Montoro (19831986) o desapropriou, e aí foram 30 anos de luta para que (o grupo Silvio Santos) não construísse um shopping e torres de apartamentos (no entorno). Ia acabar com o bairro. Atualmente, o Silvio Santos nos permitiu utilizar parte do espaço. Fizemos uma oca, para uma cena em que o garçom serve absinto e rã para o Oswald e a Tarsila (do Amaral). Quando comem a rã, recuperam o elo perdido, porque percebem que o corpo das rãs é igual ao nosso. Eles têm aquela intuição louca, vendo as rãs eles vão fazer amor e entram no teatro. Ela pinta o primeiro retrato do Oswald nu. Depois vem uma feitiçaria indígena, que é o coro da peça, e o Oswald vai se transformando no Abaporu, aquele quadro famosíssimo da Tarsila do Amaral, que os argentinos vão vender para o Brasil por uma fortuna (está exposto no Malba, em Buenos Aires, museu para onde foi levado pelo colecionador Eduardo Constantini, que pagou US$ 1,5 milhão pela obra em 1995). REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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entrevista Ouvi-lo falar de teatro é algo que sempre deixa entusiasmado até quem não gosta de teatro.
O Lula teve a sabedoria de não chamar essas linhas de cultura do PT. Chamou o Gilberto Gil. E o Gil, que é um artista, trouxe para o MinC a arte dele: popular, orgiástica, antenada no mundo, com raiz no Brasil
O teatro ficou uma coisa muito chata, descartável, quando veio a televisão. Os que conferiam o poder do teatro nos anos 1960 conseguiam reunir toda a insatisfação contra a ditadura – liderados por Cacilda Becker, a Antígone Chanel, que é aquele personagem de Sófocles que luta contra a opressão do Estado. A Cacilda lutava, era uma antropófaga, sempre vestida de maneira maravilhosa, era uma mulher linda. Sabia que, para fazer teatro à altura do talento dela, precisava existir o teatro que, nessa época, foi muito poderoso. No Brasil e no mundo. Maio de 1968 trouxe muito a valorização do paganismo, a presença do aqui e agora. Na época acontecia no Brasil O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, que restabeleceu o elo perdido da nossa história ancestral. Porque se dizia que era Anchieta que tinha começado com tudo. Ele diz: “Não, começou quando se comeu o primeiro bispo, o Sardinha, que foi buscar mulher branca para transar com os portugueses e impedir o Brasil de ser mestiço”. Aí começa a história do Brasil. Nessa peça que estamos ensaiando, você vê o momento em que ele sacou esse elo perdido. Apresentamos os tabus para comer os tabus. Já que você falou em O Rei da Vela...
Talvez mais importante do que O Rei da Vela tenha sido Roda Viva (de Chico Buarque). Veio uma geração de jovens em que continham, em cada corpo, todas as revoluções – sexual, religiosa, alimentar, ambiental, tudo, tudo num corpo só. E que não tinha essa noção de palco, plateia, tocar ou não no espectador. Foram eles que montaram a peça. Até hoje o Chico proibiu a nova montagem, porque na época foi muito polêmica. Uma bobagem. A peça é maravilhosa, e não foi ele nem eu que fizemos. Foi essa multidão que invadiu o teatro, colocou uma coisa que não existia há muitos séculos, trouxe de volta o coro grego no teatro brasileiro, que é o time de futebol do teatro. É igual ao pessoal de umbanda, de candomblé, de Carnaval, que anima o público e o faz atuar. Torna o teatro uma peça religiosa laica, uma festa religiosa de Dionísio, coisa que só descobri depois, com As Bacantes. E o que veio depois?
Isso provocou uma revolução cultural no Brasil e é muito atual hoje. Eu continuei nesse caminho, era até xingado. “Você é muito 1968”, “Glauber Rocha é muito 1968” – 1968 não existe, 1968 é você estar aqui e agora, é como nós estamos: aqui e agora. Eu não sabia que o Chico Buarque não liberava a montagem de Roda Viva.
Eu quero que ele libere. A gente não deve resistir a nada. 32
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Em 1967 e 1968 a ideia antropofágica era no sentido de absorver o inimigo?
Eles (os índios) só comiam os inimigos fortes, os fracos eles desprezavam. Comiam também os entes queridos. Oswald de Andrade descobriu nisso uma filosofia extraordinária. Quando estava quase morrendo, ele escreveu: “Estudem a antropofagia, a vida é pura devoração, não existe Messias, não esperem nada”. É uma visão de mundo muito sofisticada. Depois de O Rei da Vela, tudo o que foi feito no Oficina foi comido por essa visão antropofágica: Shakespeare, Brecht, Nelson Rodrigues. Houve uma descolonização da cultura brasileira, ela comeu o hemisfério norte, e hoje é uma das culturas que mais estão chamando a atenção no mundo.
Qual é a música que vocês cantam na entrada?
É o Manifesto. Muitas palavras são do Manifesto do Oswald, um poeta extraordinário e filósofo, o único com uma filosofia original. Se você for comparar um manifesto dessa qualidade, escrito por ele, com os manifestos de hoje, por uma esquerda oprimida, que usa aqueles jargões “o contra”, “a resistência”, “palavra de ordem”, essas coisas... A gente necessita recriar outra postura, porque o mundo está se desmanchando no ar, como dizia Marx. Na nossa peça tocamos em todos os tabus. Por exemplo, o tabu do corte fiscal no Ministério da Cultura. Durante o governo Lula, ele teve a sabedoria de não chamar essas linhas de cultura do PT. Chamou o Gilberto Gil. E o Gil, que é um artista, trouxe para o MinC a arte dele: popular, orgiástica, antenada no mundo, com raiz no Brasil. E o ministério logo em seguida ganhou um ecologista, que é o Juca Ferreira, que fez o ministério crescer e pela primeira vez ter um orçamento maravilhoso para a cultura no Brasil. É o que nos propicia uma viagem pelo Brasil todo, fazendo de graça em bairros populares, quatro peças por R$ 2.000. No mundo inteiro hoje esse tabu do corte fiscal acontece. O governo, quando depara com as bolhas, o corte fiscal vai junto. Afinal, ele precisa pagar as dívidas que ele mesmo produz, com os investimentos dele. Mas, além de pagar as dívidas dele, paga as dos bancos, dos especuladores, que continuamprovocando essa mesma coisa. O corte fiscal sacrifica muito, e não deixa margem pra coisas vivas, não tem jogo de cintura. Eu, por exemplo, montei essa macumba antropófaga em seis meses, e podia ter montado em dois. Por quê? Porque tinha gente que não tinha dinheiro pra chegar no ensaio. Eu acho que ter esse corte fiscal atinge coisas que não deveria atingir, a especulação financeira, tudo, é invenção do ser humano. Nós estamos numa época em que temos de comer essas coisas. E começar pela cultura, porque é a cultura que nos liga à natureza. Porque o mundo tá muito diferente, e vem vindo uma coisa de baixo muito forte.
O Brasil tem a possibilidade de ser diferente. Mas aí vêm os políticos, que são muito colonizados, tanto são colonizados que a única coisa que podem fazer é roubar porque não têm imaginação. Não sabem o que fazer. É falta de saber. Quem abre pra cultura, quem abre pra arte, não tá preocupado em roubar. A arte, como diz o (dramaturgo Antonin) Artaud, que completou 115 anos de nascimento outro dia (em 4 de setembro), é muito mais excitante do que o crime. Quem rouba é uma pessoa medíocre.
O país está perdendo boa oportunidade nesse momento em que o cenário político e a cultura brasileira estão efervescentes?
Está. O nosso teatro está na mesma vertente do cinema de Pernambuco, da música brasileira.
Vocês estão lançando uma série de DVDs para quem ainda não os viu no teatro.
Tem cinco DVDs com Os Sertões, outra caixa com quatro DVDs e tem também os antigos, que a Trama lançou, com As Bacantes, Cacilda!, Boca de Ouro... Dá pra ver uma parte da obra, que não é a mesma coisa que ver no teatro, mas já é alguma coisa. Como você vê hoje a produção brasileira, cinema, música, TV? Do que gosta e não gosta?
Gosto do cinema pernambucano, da música pernambucana pós-Chico Science, que foi um marco. A Tropicália com Chico Science aconteceu lá de outra maneira, em outra época. Uma mudança de atitude do povo pernambucano. Você vê diferente. Antes era um povo machista, “fechadão” e patriarcal. Agora, a juventude de Pernambuco é a mais moderna do país, é o melhor cinema. Cláudio Assis ganha prêmio todoano de melhor filme, as bandas de lá são ótimas, o nosso pianista Vitor Araújo é de lá. É um virtuose, tem o Erick Rocha, que tem o mesmo talento do pai (Glauber). E da mãe! Que é uma grande artista plástica e cineasta (Paula Gaitán)... Os filmes dele são maravilhosos. E na televisão?
Eu adorava o Chacrinha. Sinto falta sabe do quê? Da antropofagia da televisão. E o Chacrinha era um antropófago. Era a câmera em 360 graus. Um verdadeiro teatro. A televisão hoje está só naturalismo. Se o Glauber sobrevivesse, ele seria um grande Chacrinha. Ele tava querendo ir pra televisão, tinha um gene televisivo impressionante. Hoje nos falta aquilo que o Chacrinha fazia desde os tempos da rádio, que ele pegava um programa da rádio e você tinha a impressão de que estava dentro de uma boate, animadíssima, com os cantores presentes. Hoje não tem uma ligação com a vida, é uma coisa chapada.
Os programas de hoje são feitos para as pessoas dormir bem, pra elas chegarem em casa, verem a novela e dormirem. Não é pra despertar, pra fazer as pessoas saírem às ruas. A fotografia do nosso tempo é uma televisão atrás e uma pessoa olhando para o celular. Nessa peça atual nós transamos com isso também: fazemos todo mundo ligar o celular, e passamos o twitter da Dilma pro pessoal enviar mensagens: “Dilma, te liga, erradica a miséria do Bixiga”; “Troca o terreno do Silvio Santos por terreno da União”. A miséria só se erradica se, ao mesmo tempo, você der instrumentos culturais para as pessoas, se der condições de a pessoa ser ela mesma, de ser estudada, de ser autodidata.
fotos claire jean/divulgação
Não é um momento importante para o Brasil?
Agora, com esse avanço da internet...
Eu adoro. Como a gente não tem grana o suficiente, não tem toda essa tecnologia que a Globo tem, e que deveria estar nas nossas mãos também... Porque a gente saberia dar um outro encaminhamento, se tivéssemos ferramentas, que traria toda a riqueza do quadro Abaporu, da Tarsila, se nos dessem condições. Nós somos muito pretensiosos, e o povo brasileiro tem de ser mais pretensioso! Porque foi muito explorado, muito colonizado, mas agora soltou a franga! Então tem de dar passagem a isso. Não pode continuar um país colonial. A cultura não pode ser decapitada. É dela que vem tudo, é a infraestrutura da vida, é o cuidado, é o espírito crítico, é o sonho, é tua vida pessoal que tá em jogo. O ponto agora é pedir pra Dilma erradicar a miséria do Bixiga e manter o terreno do Oficina?
O Silvio Santos particularmente é uma pessoa maravilhosa. Ele é um homem da televisão, depois disso ele é um homem trágico, no sentido grego da palavra. É um homem de negócios. Se não for ninguém lá, ele vai lá e vende o terreno. O Ministério da Cultura está tratando disso, mas muito morosamente. Eu acho que eles ainda não sabem o poder que tem o teatro. É um poder tão forte quanto o poder público, porque é o poder de presença, o poder do carisma, o lugar da exaltação humana. Você tem de sair do teatro completamente diferente de quando você entrou. Tem de sair poderoso. Eu gostaria muito de ter um encontro pessoal com a presidenta. Gosto dela, é uma mulher firme, poderosa, mas falta o jogo de cintura que o Lula tinha. O Lula é um homem culto. Nós vamos fazer no terreno uma maternidade para o bairro, inclusive com acompanhamento pré-natal. Eu queria chegar até o Kassab. A Ana de Hollanda (ministra da Cultura) diz que tem de ver com a prefeitura. Então eu queria fazer um apelo ao Kassab: “Kassab, erradique a miséria do Bixiga. Coração, vamos trocar (o terreno no entorno do Teatro Oficina) por terrenos da prefeitura, do estado, da União”.
A arte, como dizia o dramaturgo Artaud, que completou 115 anos de nascimento outro dia (em 4 de setembro), é muito mais excitante do que o crime. Quem rouba é uma pessoa medíocre
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cinema
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cinema brasileiro vive um de seus momentos mais produtivos e rentáveis. Em dezembro de 2010, Tropa de Elite 2, de José Padilha, ultrapassou a marca dos 3 milhões de espectadores e se tornou a maior bilheteria nacional de todos os tempos. A chamada “retomada”, a partir dos anos 1990 – com o retorno da política de financiamentos –, contribuiu para aquecer a produção nacional e ampliar sua diversidade. E, com o barateamento decorrente das novas tecnologias e ferramentas, uma nova geração de “fazedores” de cinema, sobretudo documentários e curtas-metragens, põe a mão na massa, conquista espectadores e prêmios internacionais. Com duração máxima de 30 minutos, o curta é porta de entrada no mundo da produção cinematográfica. Nesse formato estreou muita gente talentosa, como Jorge Furtado (diretor do curta Ilha das Flores, 1989, premiado no Festival de Berlim, e do longa O Homem Que Copiava, 2003), Cao Hamburger (do curta Frankenstein Punk, 1985, e do longa O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, 2006) e Carla Camurati (de A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal, 1987, e Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, 1995). O mesmo passo será dado agora por Esmir Filho, que teve os curtas Alguma Coisa Assim, de 2006, e Saliva, de 2007, exibidos no Festival de Cannes, na França, e estreou no ano passado em longa-metragem com Os Famosos e os Duendes da Morte. A editora Talita Arruda, curadora do Porta Curtas Petrobras – principal canal de exibição pública e de catalogação dos curtas brasileiros na internet –, considera que a produção brasileira vive um momento de realizações amadurecidas. “As novas tecnologias barateiam, agilizam e democratizam a produção, permitindo ainda mais a exploração de temas e expressões diversas e plurais. Também permitem novos canais de veiculação. A entrada da internet potencializa a difusão e estimula o debate sobre as formas de fazer e pensar cinema”, afirma. “A tecnologia digital alterou muitas coisas e a área do audiovisual se popularizou a partir de dois fatores novos: a
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Ferramentas atuais e múltiplos caminhos democratizam a produção, formam novos perfis de público e impulsionam curtas-metragens e documentários no panorama do cinema brasileiro Por Guilherme Bryan e Jéssica Santos de Souza
Novas cenas possíveis democratização do acesso à produção, auxiliadapelas incontáveis oficinas de vídeo oferecidas em todos os cantos do país, seja como trabalho social, seja como atividade alternativa para pessoas da área; e a difusão das produções por caminhos facilitadores, como o Youtube, e até mesmo a possibilidade de gravar um DVD que pode ser copiado e reproduzido em qualquer lugar”, diz Marília Franco, professora do curso de Cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Experimentação
Outra frente de expansão do acesso ao cinema por um outro tipo de público – não habituado nem às tecnologias nem às salas comerciais convencionais – são os circuitos alternativos de exibição, de
acordo com Cynthia Alario, diretora da Rede Brazucah. A produtora existe desde 2002 e já realizou exibições gratuitas para milhares de espectadores, principalmente na periferia das grandes capitais. Desde 2007, a atividade é fortalecida por uma parceria celebrada com o Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região – o projeto Cine B. Com estrutura itinerante composta por telão, projetor, pipoca e pesquisas de opinião, as mais de 150 exibições do Cine B levaram 50 títulos nacionais a 22 mil espectadores. A parceria criou também um selo para o lançamento de dois DVDs com cinco curtas cada um, eleitos pelo público. O primeiro deles saiu com tiragem de mil exemplares, é vendido a preços populares durante as exibições e traz as animações Historietas Mal Contadas
Porta de entrada Os Famosos e os Duendes da Morte é o primeiro longa de Esmir Filho, que começou fazendo curtas-metragens
Internet A animação em 3D Vida Maria foi concebida para exibição na rede
(15 minutos) e Vida Maria (9 minutos), O Troco (11), Xadrez das Cores (22) e A Mula Teimosa e o Controle Remoto (15). Engenheiro elétrico e animador gráfico, Márcio Ramos, diretor de Vida Maria – animação em 3D sobre mulheres no sertão nordestino e a dificuldade de se alfabetizarem –, decidiu caminhar em direção contrária aos novos canais de exibição e voltar seu trabalho não para o público da internet, mas para professores, cinéfilos, representantes de organizações não governamentais, alunos de cursos de gestão, funcionários de empresas privadas e estatais e frequentadores de igrejas. “Minha ideia não é ir em busca de milhões de cliques. Quero, por enquanto, que quem veja meu curta o faça em situação dedicada, em grupo real, e não virtual.” Alice Gomes, jovem realizadora formada em Jornalismo, trabalhou como assistente de direção nos longas Inesquecível, dirigido por Paulo Sérgio Almeida, e Cazuza – O Tempo Não Para, de Sandra Werneck e Walter Carvalho. No ano passado, dirigiu o curta-metragem Lápis de Cor, mistura de animação com live-action (inspirado em linguagem e ritmo de animação, mas filmado com atores de carne e osso), que conta a história de Cláudio, um menino pobre que vive só com a mãe, adora desenhar e acredita que com um desenho colorido conseguirá trazer o pai de volta para casa. “Esse formato é parte essencial da indústria audiovisual. É a melhor vitrine da produção do país, em que os diretores e técnicos se iniciam e podem exercer sua criatividade mais livremente”, comemora Alice. Segundo o Porta Curtas Petrobras, os títulos catalogados entre 2010 e 2011 passaram de 5.000 para 7.200. Esses números, porém, podem ser maiores. A presença desse recurso audiovisual nas escolas também é representativa. Em abril de 2007, a própria equipe do site criou o projeto Curta na Escola. Em apenas quatro anos, cerca de 26 mil escolas se cadastraram e foram exibidos 366 curtas com aplicabilidades pedagógicas para mais de 15 milhões de alunos. Muitas escolas de cinema incentivam a incursão dos alunos em curta-metragem, como forma de aprendizado. “O aluno faz vários durante um curso e os resultados REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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cinema
referência Coutinho dirige Edifício Master (no alto) e Jogo de Cena (abaixo)
de toda a produção são avaliados por uma banca. Se fizesse longas, faria menos e teria menos oportunidade de aprender com suas indefinições”, destaca Ana Paul, roteirista e coordenadora do curso Intensivo Digital da Academia Internacional de Cinema, em São Paulo. Mas nem tudo são flores: “Se o barateamento da tecnologia deu possibilidade a quem não tinha patrocínios ou verbas próprias, ainda é necessário ter tempo, pôr gasolina no carro, fazer inúmeras ligações, arrumar recursos para direção de arte, pesquisar locações e viabilizar pessoas para formar equipe e elenco”, pondera.
Visão pessoal
O documentário também tem se mostrado importante via de acesso para os realizadores. “Há um pensamento que curtas-metragens são mais fáceis de fazer, mas ignora-se que precisam de uma narrativa e uma estética de impacto para funcionar. E isso pode ser muito mais difícil do que fazer um longa. Em uma analogia com a literatura, é a diferença entre o conto e o romance”, destaca Ana Paul. “O documentário, marcante em toda a história do audiovisual brasileiro, vive um momento especial, catalisado por uma inédita valorização como gênero no Brasil. O cinema não ficcional me parece hoje o gênero mais inovador da produção nacional, com títulos como Santiago, de João Moreira Salles, e Jogo de Cena, de 36
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Eduardo Coutinho”, avalia o crítico Amir Labaki. Ele é idealizador do festival internacional É Tudo Verdade, criado em 1994, que desde 2000 confere ao melhor longa-metragem documentário um prêmio de R$ 120 mil. “Há quatro anos, cerca de um terço dos lançamentos nacionais em salas era
de documentários, o que representa algo como 30 títulos por ano. Há 15 anos, a média era de dois”, comenta Labaki, também diretor de 27 Cenas sobre Jorgen Leth(2009). “Nesse período, a produção se multiplicou e se sofisticou esteticamente. Não sou o comentarista mais neutro da importância do festival nesse
5x Cultura Digital Construir um olhar brasileiro sobre a cultura digital era o desafio de cinco grupos que estiveram no 2º Fórum de Cultura Digital, em novembro de 2010. O resultado está no site http://cincovezes.culturadigital.org.br. “A forma diferenciada com que nós, brasileiros, assimilamos novas tecnologias inspira produtores de outros países a conhecer de perto nosso trabalho”, diz Rodrigo Savazoni, diretor da Casa da Cultura Digital paulista e um dos realizadores de Remixofagia – Alegorias de uma Revolução. O filme mescla inovações tecnológicas com imagens de Helio Oiticica e Oswald de Andrade. De Gian Orsi e Ely Marques, da seção paraibana da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD-PB), Deus e Diabo @ Terra Digital compara a velha e a nova geografia do sertão com uma releitura de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Guerrilha Midiática, de André de Oliveira e Jefferson Pinheiro, da cooperativa Catarse, mescla imagens do MST com a produção cultural tecno-brega paraense. Reevolución Compartida, de Gilberto Manea e Gustavo Castro, do coletivo Soy Loco Por Ti, analisa a identidade e diversidade latino-americana nas novas mídias. E a independência proporcionada pela internet em relação à velha mídia é mostrada em Digirealejototal, de Cardes Amâncio, da Avesso Filmes.
Última Parada 174
José Padilha, dire tor dos dois Tropa de Elite, estreou em 2002 com um não ficção, Ônib us 174, a respeito do jo vem que acabou morto pe la polícia depois de mante r refém uma passageira de um ônibus na zona sul do Rio de Janeiro, em 12 de junho de 2000. Em 20 08, o tema foi transformad o num longa de ficção “baseado em fatos reais”, Última Parada 174, dirig ido por Bruno Barreto
Tropa de Elite 2
Mais de uma língua O curta Lápis de Cor mistura animação com live-action
processo, mas muito me orgulham o pioneirismo e a persistência”, diz. Para Pedro Butcher, editor do portal Filme B, especializado no mercado de cinema no Brasil, o gênero vem crescendo um pouco no mundo todo. “Mas, no Brasil, apesar de dar muito pouco públi-
co, tem uma produção forte, é mais bem aceito no circuito comercial do que em outros países e, em geral, é reconhecido pela crítica. Também temos circuito de arte forte, e muitos documentários são exibidos em cinemas do sistema Arteplex em sessões únicas”, analisa.
“Na produção que poderíamos chamar de mais espontânea, todo tipo de temática e formato tem sido experimentado, mas chama a atenção o exercício da narrativa em primeira pessoa, de experimentos narcisistas a investigações com valor antropológico. Sem contar uma explosão de registros realistas de pequenas comunidades, regiões pouco conhecidas, eventos populares e produções para televisão, com apoio de leis de incentivo e editais. Nesse caso, destaca-se a quantidade de trabalhos que abordam a história da música brasileira e biografias de artistas”, avalia Marília Franco, da USP. Segundo o Filme B, Vinicius, realizado por Miguel Faria Júnior em 2005, foi o documentário mais visto no Brasil nas últimas décadas: cercade 270 mil espectadores. Amir Labaki considera Santo Forte, dirigido por Eduardo Coutinho em 1999, um ponto de referência dessa nova fase do estilo no Brasil: “Esse é um marco simbólico, ao ganhar prêmio de melhor filme no Festival de Brasília, em disputa com ficções. E um marco estético, pois consolidou o dispositivo do ‘cinema de conversa’de Coutinho, que ele desenvolveria pela década seguinte e teve enorme influência sobre o conjunto da produção”. Coutinho é um dos mais importantes documentaristas brasileiros, desde os anos 1960, quando começou o hoje clássico Cabra Marcado para Morrer, realizado em duas etapas, antes do golpe de 1964 e depois da abertura, em 1981. Na década passada, assinou algumas obras-primas, como Edifício Master, Peões, O Fim e o Princípio e Jogo de Cena, disponíveis em DVD e reveladoras da versatilidade do diretor com a linguagem. Os documentários também são cada vez mais objeto de estudos acadêmicos, em cursos de graduação e pós-graduação. “No entanto, o conjunto de publicações sobre o assunto é ainda pequeno. Escasseiam, e não só no Brasil, reflexões teóricas que organizem um pensar sobre esse tipo de produção que se rebela contra uma análise formatada por conceitos que tentam disciplinar sua manifestação”, afirma Marília Franco, coordenadora de um grupo de pesquisa na ECA-USP, o Aruanda, justamente com o propósito de tentar suprir essa lacuna. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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Memória afetiva Isa Ferraz desvenda aspectos pouco conhecidos da trajetória do tio
Esse tio Carlos... Filme da documentarista Isa Ferraz, sobrinha de Carlos Marighella, reconstrói a trajetória desse personagem singular da história do Brasil Por Nina Fideles
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erto do centenário de nascimento de Carlos Marighella, a ser completado em 5 de dezembro, Isa Grinspum Ferraz, socióloga, documentarista e também sobrinha dele, construiu um filme especial sobre a trajetória de um dos mais importantes militantes de esquerda do século 20. Marighella tem 100 minutos e 32 depoimentos, entre eles o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o do intelectual Antonio Candido, e participação do ator Lázaro Ramos e do rapper Mano Brown, do grupo Racionais MC’s. A proposta é mostrar outras faces do revolucionário que viveu clandestinamente grande parte de sua vida. É impossível contar a história do Brasil do século 20 sem citar seu nome. Marighella foi perseguido por
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duas ditaduras, maldito nos anos de chumbo e jogado à obscuridade por décadas de censura. Se a literatura já oferece algum conteúdo a respeito desse personagem, Isa Ferraz encontrou na linguagem do cinema espaço para desvendar aspectos pouco conhecidos da trajetória do tio, negada a muitas gerações. Poucos sabem, por exemplo, que mesmo clandestinamente o líder comunista se vestia de mulher para pular carnaval. Era engraçado, amava música e a Bahia. “Era uma figura doce, cuidadosa, que deixava florzinhas para as meninas no café da manhã, quando saía na calada da noite. Fazia paródias com as músicas de Roberto Carlos. Adorava Jackson do Pandeiro e Dorival Caymmi. Era livre e inquieto. Lia de tudo. Estudava a Bíblia, apesar de ser ateu”, descreve
Pedras, poemas, mil faces
Para definir Marighella, Mano Brown, convidado para criar uma música inédita que finaliza o filme, recorreu às palavras utilizadas em sua composição: Mil Faces de um Homem Leal. “Difícil definir um cara desses, que botou a cara pra morrer. Ele era um romântico. Um sonhador que levava a realidade no limite.” O rapper conhecia pouco de Marighella até receber o convite da cineasta. Alguns amigos já haviam comentado semelhanças entre eles, como ser filho de uma negra com um branco, ser baiano, “assumir a cor e levar isso muito a sério sem discriminar ninguém”. Brown revela que a construção teve de se realizar a partir das impressões de outras pessoas a respeito do personagem retratado na música. “Ele não era um personagem do meu convívio. Se fosse da nossa geração provavelmente seria um amigo nosso.” Depois de “ficar com essa música na mão” por quatro meses, foi nos últimos 30 dias que conseguiu embalar. “Não sabia por onde começar. Assisti ao filme e fui no tato. Não podia plagiar os livros que já fizeram dele nem o filme. O cinema é uma arte, o rap também é. Não foi um rap igual aos outros que fiz.” Isa considera importante mostrar para as gerações de hoje, “muito apegadas aos bens de consumo”, que uma geração inteira largou tudo – família, amigos, estudos – para entregar a vida por uma ideia de país. E comemora conseguir com o filme algo “quase inimaginável” hoje em dia. “Trazer o Mano Brown e até mesmo o Lázaro Ramos ajuda a levar essa história a um público que não a conhece ainda.”
Mulato, filho do imigrante italiano Augusto Marighella, operário e anarquista, e da baiana Maria Rita, filha de escravos vindos do Sudão, o revolucionário teve uma longa trajetória de militância. Em 1932, com apenas 18 anos, ingressou no Partido Comunista do Brasil (então PCB) e ao mesmo tempo no curso de Engenharia Civil. Sua primeira prisão, com 21 anos, foi causada por um poema em que criticava Juracy Magalhães – nomeado por Getúlio Vargas interventor no estado da Bahia –, que mais tarde seria presidente da Petrobras (o primeiro) e também da Companhia Vale do Rio Doce. Quando foi eleito deputado constituinte pelo estado da Bahia, em 1945, já havia experimentado a prisão por um ano, em 1936, e depois por mais seis, a partir de 1939. No presídio de São Paulo, dizia-se que, se havia um “macho” no PCB, este seria Marighella, que chegava a rir na cara de torturadores. Escreveu livros, poemas e empunhou armas contra a ditadura. Era uma pessoa muito “difícil de descrever com poucas palavras”, diz Clara Charf, mulher do militante desde 1947 até o dia de sua morte, em 4 de novembro de 1969, exatamente dois meses após o sequestro. Suas relações com países da América Latina e da Europa foram amplas. Cuba chegou a referenciá-lo como o principal nome da revolução no Brasil. Contos, poemas e livros de Marighella foram traduzidos para diversas línguas. “Os Panteras Negras liam Marighella, as Brigadas Vermelhas, na Itália. Cineastas franceses, italianos contribuíam com a luta armada no Brasil, com a ALN. E provavelmente vão aparecer muitas coisas ainda, pois pessoas que tinham medo de falar agora se veem mais à vontade”, acredita Isa Ferraz, que não consegue dissociar a veia política do tio de sua veia poética. Ficaram famosos versos que inventava em respostas a questões de física e matemática nas provas da faculdade. Quando esteve preso em Fernando de Noronha (PE) por três anos, antes de ser transferido para Ilha Grande (RJ), organizou trabalho cultural na ilha. “As pessoas não podiam fugir porque tinha tubarão, não podiam receber visitas, não podiam fazer nada. Ele achava que se não tivessem ocupação iriam enlouquecer. Ele ensinava matemática, ciências, filosofia”, diz Clara. O fato de ter rompido com o partido em 1967 e optado pela luta armada contra a ditadura ao fundar a Ação Libertadora Nacional (ALN) levou o rosto de Marighella aos cartazes de “procurados” no país. Para o regime militar, era inimigo número um, bandido, monstro, assassino, terrorista. Ao contrário disso, como conta Clara Charf, por onde passou deixou uma imagem de pessoa solidária, valente, corajosa. “Um ser humano que achava que a coisa mais importante na vida era tornar o outro feliz.”
A gente não achou nenhuma imagem em movimento. Foi o grande desafio contar essa história sem nenhuma imagem dele, e assumi isso como linguagem Isa Ferraz
Nina Fidelis/divulgação
a sobrinha. Para realizar o documentário, a cineasta teve de se desdobrar com as “20 e poucas fotos” que foram encontradas na longa pesquisa. “A gente não achou nenhuma imagem em movimento. O grande desafio foi contar essa história sem nenhuma imagem dele, e assumi isso como linguagem”, explica. O filme começa a partir da descoberta de que o “tio Carlos” era quem era. Após o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, no dia 4 de setembro de 1969 – que rendeu a libertação e asilo político a 15 prisioneiros –, a perseguição aos militantes se intensificou. “Naquele momento meu pai resolveu me contar, pois tinha medo que eu visse os cartazes na rua e identificasse o meu tio. Convivia com ele dentro de casa sem saber que era ‘o’ Marighella. Essa figura que eu gostava muito e, ao mesmo tempo, era a pessoa mais procurada no Brasil. Mas daí eu não o vi mais.” Marighella, então com 57 anos, foi assassinado em uma emboscada articulada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops), na cidade de São Paulo. “Eu tive acesso a outro lado dele. É o meu Marighella. Mas não é só o meu. É o do Brasil”, define Isa.
Ele era romântico. Um sonhador que levava a realidade no limite. Se fosse da nossa geração provavelmente seria um amigo nosso Mano Brown
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Nelson triunfou Do sertão ao hip-hop, a trajetória do pai da cultura de rua no Brasil é contada em livro e no cinema ainda neste ano Por Danilo Almeida
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fotos arquivo pessoal
atmosfera era alucinante nos “bailes da pesada” cariocas da segunda metade da década de 1970: o jogo de luzes coloridas projetadas freneticamente sobre rostos suados, a execução dos passinhos meticulosamente ensaiados, a caixa de som com o volume no máximo. A massa sonora não deixava ninguém parado. E não havia como não prestar atenção na sequência de espacates e rodopios de um magrelão alto, tampouco na sua incrível cabeleira crespa black power. Virou o Homem Árvore, apelidado por um jovem negrão requebrador, que atendia pelo nome de Tony Tornado. Ali começava a deslanchar a carreira do pai do hip-hop no Brasil, Nelson Triunfo. O sobrenome acoplado – referência à cidade natal, no interior de Pernambuco – resume bem a trajetória de Nelson Gonçalves Campos Filho, prestes a ser contada em uma biografia e um documentário. Da infância pobre no sertão ao recebimento da mais importante comenda cultural concedida pelo governo federal; da fundação do primeiro grupo de dança black do Nordeste à turnê pela Alemanha encenando uma peça de Bertolt Brecht; das borrachadas da polícia na época da ditadura à criação de um centro Na Rua cultural de hip-hop voltado aos jovens da periferia 24 de Maio, centro de de Diadema (SP), Nelson triunfou. São Paulo, Superou, ainda, uma das mais arraigadas mazelas em 1984 do país: o preconceito. Foi discriminado pelo jeito de ser, por sua arte, por sua origem. “Optei por trabalhar com o social Com o Funk&Cia, e a dança num país cheio de preconceitos, de racismo”, lembra. na Praça “Sofri muito com isso, sofri por causa do meu sotaque. As pessoas da Sé, em adoravam a minha dança, mas quando eu falava achavam feio.” 1977 Quanto à cabeleira, então... Há quase 40 anos protesta contra “uma sociedade que apenas valoriza aparências”. Uma vez, já em São Paulo, viu nos classificados uma vaga de emprego que exigia “boa aparência” como requisito. Foi lá, só de birra. “Deixei o cabelão armado. Quando o entrevistador me viu, levou aquele susto”, relembra. “Estudei contabilidade, fiz datilografia, mas eu ia trabalhar em que com aquele cabelão?”, pondera em seguida, rindo.
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arquivo pessoal
“Os caras não queriam saber da minha potencialidade como cidadão, queriam alguém de cabelinho curto e gravatinha. Isso nunca, né, cara! Então tive de desenvolver meu próprio trabalho, e sobrevivi. Segui um pouco aquela doutrina: se você não tem um caminho, construa.” O de Nelson Triunfo foi essencialmente construído nas artes, especificamente na música, com todas as adversidades do meio em que foi criado. Aos 3 anos, ganhou do pai um tamborzinho improvisado com uma lata vazia de querosene e duas baquetas feitas de galhos de árvore. “E saía batucando pelo meio da roça, para espantar os pássaros que atacavam a plantação”, narra o jornalista Gilberto Yoshinaga, autor da biografia Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop, em fase de finalização. O pai, que em 2011 completou 101 anos, sempre foi um dos principais incentivadores. “Eu cresci com ele tocando sanfona e me levando para os forrós de São João”, lembra Nelson, antes de tudo um aficionado por zabumba e maracatu. E foi dessa fusão com a black music que nasceu seu estilo único: uma mistura de Luiz Gonzaga com James Brown, como ele mesmo define.
Dançarino invertebrado
gilberto Yoshinaga/divulgação
Na cidade natal, Triunfo (PE)
Anos mais tarde, com James Brown, mestre da black music, viveu uma das maiores alegrias e um dos maiores desgostos de sua carreira: ganhou uma capa do próprio, mas deixou-a num camarim e acabou furtada. Tirando isso, mal podia acreditar que tinha virado brother do ídolo que ouvira pela primeira vez em 1970, nos bailes de Paulo Afonso. Havia se mudado para o interior baiano para estudar e trabalhar nas obras da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf). Com dois amigos, montou a primeira equipe de dança de que se tem notícia no Nordeste. Arrasaram no primeiro baile. Ouviu uma fã dizer que pareciam “não ter ossos”, gostou da ideia e batizou o grupo de Os Invertebrados. Eram tempos difíceis, porém. “Quem vê hoje acha bonito. Mas já passei até fome, cara”, conta.
As coisas só foram melhorar em São Paulo, para onde se mudou no final da década de 1970. Era figurinha carimbada nos bailes da Chic Show, no Palmeiras, mas queria ir além com a sua arte. No cruzamento da Dom José de Barros com a 24 de Maio, no centro da cidade, deu os primeiros passos da dança de rua no Brasil. Era caçoado, jogavam bitucas de cigarro em seu cabelo, chamavam-no de vagabundo. Cansou de apanhar e ir parar na delegacia, suspeito de “subversão” pelos milicos. Mas nunca desistiu: “Era como se fosse uma missão minha, eu não tinha outra opção”. Quando o break estourou na mídia, no começo da década de 1980, produtores e jornalistas já sabiam onde encontrar “o” cara para o assunto. Assim, Nelson passou a frequentar programas de auditório. Tão insólita figura chamou a atenção do diretor de cinema André Klotzel, que o convidou para uma participação em A Marvada Carne (1986), ao lado de duas iniciantes: Fernanda Torres e Regina Casé. Também fez teatro. Em 2006, o diretor alemão Frank Castorf se encantou ao ver apresentações de Nelson Triunfo em Berlim – ele era um dos representantes brasileiros num evento multicultural que reunia artistas dos países que participavam da Copa do Mundo. Um ano depois, estava de volta à Alemanha, em turnê com a peça Na Selva das Cidades, de Brecht. Em 2008, veio o reconhecimento institucional: recebeu do governo federal a Ordem do Mérito Cultural. No mundo das artes, o reconhecimento público virá em Triunfo, documentário também em fase final que trará a trajetória de Nelsão a partir de depoimentos de personalidades como o ator Sergio Mamberti, o produtor João Marcelo Bôscoli, a cantora Sandra de Sá, os rappers Thaíde e Emicida e os grafiteiros Osgêmeos, entre outros. “É uma história que merece um longa-metragem”, diz Maria Lucia Angeli Ramos, produtora da Canal Aberto, responsável pelo filme. Aos 56 anos, vivendo com a mulher e dois filhos numa casa simples na periferia de São Paulo, o protagonista parece não ter dimensão da importância da própria história. Ou tem, mas está noutra sintonia e nem liga muito para isso. Prefere dançar. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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Fui professor da rede pública, trabalhei por oito anos com crianças em situação de rua, vendi cocada que eu mesmo fazia
Há 23 anos no rap, Criolo lança um disco com MPB, rap, soul, samba, brega: tudo misturado Por Gisele Coutinho
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o início do ano passado Criolo começou a traçar objetivos diferentes para ir além do que fazia havia duas décadas. Um pouco cansado da presença dentro do rap, queria experimentar novos ritmos, mas com consciência: tudo o que fez pelo movimento hip-hop não foi pouco. Quem é frequentador da cena do rap em São Paulo deve ter visitado alguma batalha de rimas e conferido a apresentação empolgante de Criolo, que ainda assinava Criolo Doido. Ora com chapéu de mexicano, ora distribuindo salgadinhos de menos de R$ 1 para quem fizesse a melhor rima da noite, Kleber Cavalcante Gomes sempre foi o cara no qual muitos rimadores novatos se espelharam. Este ano, Criolo realizou seu sonho e lançou seu primeiro álbum, Nó na Orelha, produzido por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, e considerado um dos melhores do ano. As faixas, também prensadas em vinil, misturam samba, soul, reggae, rap e música brega. Mas o disco do criador da famosa Rinha
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Divulgação
Existe amor em SP? dos MCs não saiu de uma gravadora, e sim de uma casa efervescente de cultura instalada no centro de São Paulo, a Matilha Cultural. O responsável pelo feito prefere não se identificar e deixar as luzes da ribalta voltadas para o artista. “É um amigo que me disse que tinha condição de fazer um registro de tudo isso, uma pessoa com desejo de contribuir para a cultura brasileira”, explica Criolo, que ralou muito, antes de cair na boca do povo e nas páginas dos jornais. “Fui professor da rede pública, trabalhei por oito anos com crianças em situação de rua, vendi cocada que eu mesmo fazia, fiz muita coisa.” E, mesmo sem nunca ter feito aula de canto na vida, cantou muito, rimou, gravou o DVD Criolo Doido Live in SP, em 2010. E assim fez muitos olhos se voltarem para o “outro lado da ponte”, nas regiões mais periféricas da zona sul, onde lajes de casas simples e amontoadas formam o “triplex” onde ele foi criado. É difícil não enxergar nele a continuidade do trabalho feito pelo rapperSabotage, assassinado em janeiro de 2003. Ao contrário do
estereótipo criado sobre artistas do hip-hop – por causa das letras de protesto, violência e assuntos afins –, Criolo expressa muito amor e dor, apesar de o tráfico de drogas também estar presente em Nó na Orelha. “Todos nós temos momentos difíceis na vida e procuramos crescer, tirar alguma lição. Somos humanos, é natural demonstrar a dor, esticar a mão para ver se alguém estende também”, diz. O artista vive música e pensa rap ininterruptamente. E não chama isso de sucesso. Acha natural estar há 23 anos no mundo artístico e finalmente seu trabalho vir à tona. “Nunca deixei de fazer canções com meu coração. Sou intérprete de mim mesmo.” O hit do álbum mostra isso: “Não existe amor em SP/ Os bares estão cheios de almas tão vazias/ A ganância vibra, a vaidade excita/ Devolva a minha vida/ E morra afogada em seu próprio mar de fel/ Aqui ninguém vai pro céu”. Não existe amor em São Paulo? “Depende da São Paulo que existe dentro de cada um e o que essa São Paulo faz com cada um”, conclui.
Atitude Por Eloísa Aragão. Fotos de Mauricio Morais
Um retorno a antigamente
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ntrar desavisadamente na Piazza Zini, cantina e espaço cultural, causa o impacto de uma variação no tempo. Em que século estamos? O aroma de massas, misturado à atmosfera de prédio antigo, prateleiras de empório, som de máquinas ao longe, pôsteres, lambretas, carros antigos... Tudo aconchegante, cerimonioso e despojado de excessos. A imensa porta no estilo art nouveau, perto da cozinha e de um fogão a lenha enorme, aguça a curiosidade dos mais discretos. A preservação da memória é costume vindo dos antepassados do engenheiro de alimentos Enrico Vezzani, natural de Langhirano (Parma, na Itália). Ele veio para o Brasil em 1979 e instalou a empresa Vomm, especializada em produção de máquinas. Em 1992, pôs para funcionar a indústria de alimentos Zini, na zona norte de São Paulo. Criança em Milão, Enrico acompanhava de perto o pai, que com peças recuperadas de antiquários e ferros-velhos equipava sua fábrica de macarrão. Aos 64 anos, Vezzani ainda coleciona máquinas antigas – muitas trazidas por imigrantes. Uma das preciosidades é uma Zamboni, de fazer cappelletti, dos anos 1920.
E assim a Piazza Zini (Rua Francisco Rodrigues Nunes, 131, bairro do Limão, na capital paulista) virou um museu de objetos italianos. O velho Fiat Múltipla 1958, do pai, está em restauração e prestes a funcionar. Há nos armários documentos importantes, como uma carta de Giuseppe Garibaldi, um dos líderes da Revolução Farroupilha e da unificação da Itália. Com seus hábitos, Vezzani procura estimular outras empresas a dar atenção à preservação histórica. As suas fábricas são abastecidas com água de reúso. Uma antiga cisterna na Vomm armazena água da chuva. Serve à rega dos jardins e às descargas. O sentimento é ecológico e o resultado é uma boa economia. “Ambientalismo não pode se basear numa cena bucólica, romântica, esvaziada. Precisa dar resultados”, ensina o engenheiro. Nas outras áreas ligadas à alimentação e à higiene, bebedouros, torneiras e chuveiros, a água é potável e tratada. O fogão leva lenha de madeira reciclada. Tudo feito ali fica mais saboroso. O sorvete, integral, também é produzido lá mesmo na Zini. Além de saudáveis, os pratos são acessíveis. “Não se pode fazer elitismo com os alimentos”, diz Vezzani. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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viagem
Ensurdecedora ostentação O Palácio de Versalhes, próximo a Paris, é a representação da imponência – o luxo, a arquitetura, os jardins. E também da desigualdade que levou a uma das maiores revoluções da humanidade antes que o rei ouvisse seu ruído Por João Correia Filho, texto e fotos 44
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ara a maioria dos que visi- fraternidade– hoje rapidamente esquetam o Palácio de Versalhes, cidos a cada estouro de bolha financeira. a 25 quilômetros da capital Versalhes começou a ser construído em francesa, luxo, riqueza e os- 1668, para representar a glória do reinatentação dominam o pas- do de Luís XIV, conhecido como Rei Sol, seio. Decoração suntuosa em infinitos e era também a forma que a nobreza encômodos e salões levam à história controu de ficar um pouco mais disde um império que não poupou tante de seus súditos e críticos, que esforços, do povo pobre, para se aglutinavam em Paris e outras sustentar a vida abastada de reis regiões da França. Seu filho, Luís e rainhas e nobres. São cerca de XV, subiu ao trono com apenas 5 700 quartos, 2.153 janelas, num anos, e gozou de toda essa opuhabitáculo onde viviam 2.000 lência até a morte, aos 59 anos, Luís XIV integrantes da nobreza, sem conem 1774. Caberia a seu sucessor tar a criadagem. Alguns historiaarcar com os efeitos da vida mansa dores falam em algo em torno de 20 levada pelos antepassados. mil pessoas. Cenas de um modelo de goPouco preocupado com os problemas do verno e de acumulação de riqueza que reino, Luís XVI se casa com Maria Antolevou o país a uma das mais drásticas nieta e segue a vida ilhado em seu castelo, revoluções da humanidade, a Revolu- sem perceber o clamor popular cada vez ção Francesa, que influenciou o mundo mais alto. Nasce daí uma anedota que por com seus ideaisde liberdade, igualdade e muito tempo atribui-se à rainha, que ao ser
indagada por um grupo de miseráveis a reclamar não ter pão para se alimentar, teria respondido: “Se não tem pão, que comam brioches”. Embora seja consenso entre os historiadores que a frase não foi dita por Maria Antonieta, era muito usada para incitar a população e os inimigos do rei. Deu no que deu. Em 5 de outubro de 1789, Versalhes foi invadido e a família real detida e levada para uma prisão em Paris. A Revolução Francesa fazia vítimas na nobreza e invertia o ciclo do poder – aboliu os direitos feudais, a servidão e serviu de base para a declaração dos princípios universais do homem. Quatro anos mais tarde, Luís XVI e Maria Antonieta seriam levados à guilhotina, engenhoca cujo nome é derivado de seu inventor, um francês chamado Joseph-Ignace Guillotin.
O palácio hoje
Após a revolução, o Palácio de Versalhes chegou a ser praticamente abandonado. Muitas das obras que ali estavam foram levadas a museus como o Louvre e seus salões foram ganhando outras funções – ministério, biblioteca, museu, entre outras menos nobres. Quase chegou a ser vendido a particulares, mas, no início do século 19, teve seu valor histórico reconhecido e foi restaurado nos moldes que seus reis tinham desfrutado por mais
de um século. Hoje, o que se vê em seus salões luxuosos é uma mostra dos símbolos daquela classe esnobe. Cenas com deuses mitológicos como Apolo, Diana, Hércules e Mercúrio são magistralmente representadas nos tetos, pelas mãos dos melhores artistas da época. Entre os aposentos mais procurados estão a Capela Real e a Sala dos Espelhos, que esbanjam beleza e, de antemão, provocam o imaginário de quem pretende visitar a França. Na Sala dos Espelhos foi assinado o Tratado de Versalhes, em 1919, pondo fim à Primeira Guerra Mundial. O quarto do rei e o da rainha também chamam a atenção. São distantes um do outro (pois dormiam separados) e levam a mais uma contradição domiciliar: apesar de toda a grandiosidade do ambiente, a julgar pelo tamanho das camas, as pessoas eram muito pequenas. Não que tamanho seja documento, mas é notável o olhar de estranhamento dos visitantes: tanto poder para metro e meio de cama. Depois de ser sufocado pela ostentação interna, nada como um ar puro em seus jardins. Não à toa são considerados entre os mais belos do mundo. Sua grandiosidade leva o horizonte para longe. São dezenas de escadarias, fontes, canteiros e, ao fundo, um grande lago, construído em forma de cruz, que acompanha o padrão
dos desenhos geométricos do jardim como um todo. Em seus 800 hectares, há 50 fontes, mais de 2.000 estátuas e cerca de 20 quilômetros de trilhas, prato cheio pra quem gosta de andar. É essa, aliás, a forma mais tradicional de conhecer os jardins de Versalhes. Claro, ainda se pode alugar um carrinho elétrico e cruzar tudo com maior agilidade, ou uma bicicleta, ou ainda ir de micro-ônibus aos principais pontos. Próximo aos lagos centrais, há barcos para percorrer a remo parte do jardim, romanticamente. Consta que Luís XIV dava grandes festas em barcos que reuniam a nata da nobreza. A revolução conseguiu diminuir a diferença de vida entre os nobres e o povo. Hoje, a França é um dos melhores países do mundo para viver, embora seja constantemente assolada pelas crises que perpetuam a desigualdade social em todo o mundo. E onde a xenofobia de Estado afeta, inclusive, os imigrantes provenientes de colônias que ajudavam a bancar os brioches de Maria Antonieta. Algo a se pensar. Afinal, viagens não são apenas para encher os olhos, mas para refletir sobre o mundo, olhar a história do outro e refletir sobre a nossa, ver o passado e pensar no futuro, tentar entender o que mudou no mundo nos últimos séculos. Se é que mudou. Jardins e fontes
Sala dos Espelhos
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CurtaessaDica Por Xandra Stefanel
xandra@revistadobrasil.net
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
Francês em Curitiba A foto de uma mulher enfrentando, com uma flor, soldados com baionetas durante um protesto contra a Guerra do Vietnã, em Washington, foi uma das imagens mais famosas de Marc Riboud. Essa e outras 60 podem ser vistas no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, na exposição que leva o nome do fotógrafo da famosa Agência Magnum, onde trabalhou ao lado de mestres do fotojornalismo como Henri Cartier-Bresson e Robert Capa. De terça a domingo, das 10h às 18h. Rua Marechal Hermes, 999, Centro Cívico. R$ 4 e R$ 2.
É mano! Jaiminho (Jonathan Haaegensen), Pibe (Sílvio Guindane) e Macu (Caio Blat) são amigos de infância, mas cada um trilhou um caminho diferente. O primeiro é jogador de futebol, o outro tem de trabalhar duro pra sustentar a família e o terceiro flerta com o mundo do crime. O reencontro dos três acontece porque Sonia (Cássia Kiss) organiza uma festa-surpresa para seu filho, Macu, o único que ainda mora no Capão Redondo. O filme Bróder, de Jeferson De (capa da edição 53 da Revista do Brasil), chama a atenção por tratar de “temáticas da periferia” sem ser piegas. Atenção para a homenagem a Mano Brown, conselheiro do longa, com a música Fim de Semana no Parque. Em DVD.
Grito social Depois de passar por seis capitais, a exposição Direitos Humanos, Imagens do Brasil chega a São Paulo e fica em cartaz até 25 de novembro, na Caixa Cultural. A mostra apresenta 60 imagens (registros fotográficos e jornalísticos) que abordam a reivindicação dos direitos humanos no Brasil, desde a escravidão, passando pela ditadura militar e movimentos contra a repressão. Com curadoria de Denise Carvalho e textos do historiador e jornalista Gilberto Maringoni. De terça a domingo, das 9h às 21h, na Praça da Sé, 111, Centro. Grátis. 46
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Autores e atores, Carolina e Alexandre: surpresas do passado
Por uma história sem mentiras A peça Filha da Anistia começou a ser exibida em março de 2010 em São Paulo, seguiu este ano para Fortaleza, Recife, Porto Alegre e Rio de Janeiro e desembarca em novembro em Brasília e, em dezembro, em Salvador. Tratase da história de Clara, uma jovem advogada que sai em busca do pai que não conheceu e acaba descobrindo um passado de mentiras forjado na ditadura militar. Usando como metáfora dos desencontros de uma família destruída, o texto de Carolina Rodrigues e Alexandre Piccini provoca no espectador uma reflexão sobre o que ocorreu nos “anos de chumbo”. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, o passado nessa obra é apresentado como um período de otimismo e idealismo e é o presente que se mostra obscuro e incoerente. O espetáculo da Caros Amigos Cia. de Teatro, da Cooperativa Paulista de Teatro, faz parte da Caravana
De volta ao Haiti Dany Laferrière nasceu em Porto Príncipe, no Haiti, em 1953 e, em 1976, exilou-se em Montreal, no Canadá, para fugir da ditadura de Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, presidente do país de 1971 a 1986. Em País sem Chapéu (Editora 34), seu primeiro livro em português, Dany conta como foi a experiência de retornar à sua cidade 20 anos depois. Cores, gostos, cheiros, reencontros, reconhecimentos e estranhamentos são descritos com força ímpar. O autor alterna entre a terra real e a sonhada e é convidado a conhecer o país onde ninguém entra com chapéu: o reino dos mortos e dos deuses do vodu. R$ 33, em média.
da Anistia, criada em 2008 pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (MJ). Tem apoio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, do Projeto Marcas da Memória, da Comissão de Anistia do MJ e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. A curadoria é do Núcleo de Preservação de Memória Política. A obra colabora para o debate sobre a Comissão da Verdade, aprovada em meados de setembro pela Câmara e à espera de votação no Senado. Para os autores, Filha da Anistia ajuda na promoção da compreensão da história. “Nosso principal objetivo é contribuir de uma maneira artística para que o Brasil avance na consolidação do respeito aos direitos humanos, sem medo de conhecer e reconhecer a sua história presente”, afirma Alexandre. Para acompanhar a programação, datas e locais onde a peça será exibida, visite o blog www.filhadaanistia.blogspot.com.
Hermanos A antologia Poetas da América de Canto Castelhano (Global Editora, 490 páginas) é o resultado de mais de 20 anos de intimidade de Thiago de Mello com a poesia de latino-americanos. São 400 poemas de 120 autores, entre eles Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, Violeta Parra, José Martí, Mario Benedetti, Cesar Vallejo, Rubén Darío, Gabriela Mistral, Nicolas Guillén, José Asunción Silva, Ernesto Cardenal. Do alto de seus 85 anos, o poeta da floresta – ele vive no interior do Amazonas – deu ao leitor esse presente que, em suas palavras, “só não virou lenda porque eu não deixei”. R$ 79. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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literatura
Baseado em dores reais
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Depois de mais de 40 anos de jornalismo, Bernardo Kucinski compila, em contos ficcionais, danos e perdas de um passado que ainda tortura suas vítimas Por Paulo Donizetti de Souza
á algum tempo, Bernardo Kucinski procurou-me para informar que iria se aposentar de vez da produção jornalística. Aos 76 anos, mais de 40 anos na área, trabalhou em dezenas de publicações, do Brasil e do exterior. Escreveu mais de dez livros e participou de outros tantos. Assessorou Lula antes e depois da primeira eleição. Ajudou a criar veículos como Carta Maior e esta Revista do Brasil. De repente, chega e diz que vai dedicar-se somente à “ficção”. Ponho entre aspas porque verifiquei depois que a ficção de Kucinski traz uma carga pesada de realidade. Essa percepção surge logo à leitura dos primeiros rascunhos de um romance policial que me enviara, tendo como pano de fundo crimes no interior da Faculdade de Química da USP. Em seguida, B.Kucinski (como passou a assinar) entusiasmou-se com a voracidade com que fatos remoídos na turbulência de suas memórias fluíam em questão de minutos do teclado para o computador. O romance ainda está guardado e as crônicas aos poucos vão saindo. O primeiro livro de contos, K., sai agora pela Expressão Popular – com livraria virtual em www.expressaopopular.com.br. A compilação de textos reunidos na obra – dois trechos são reproduzidos nestas páginas e um na página 50 –, segundo o próprio autor, “é tudo invenção, mas quase tudo aconteceu”. Em entrevista que o leitor poderá encontrar na íntegra na página da RdB na internet, Kucinski relata que a produção mistura experiências suas com as de seu pai, na busca de informações sobre a irmã, Ana, uma das pessoas desaparecidas pelos aparelhos
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de repressão da ditadura de quem nunca mais tiveram notícia. E revela que pessoas ligadas ao regime ainda se divertem com a dor das famílias de presos, desaparecidos e mortos pela repressão: “Outro dia uma mulher telefonou para o meu filho e disse: ‘Eu estou chegando do Canadá e eu estava em uma mesa conversando em português e apareceu uma senhora que disse que se chamava Ana Rosa Kucinski’... Isso foi agora e o desaparecimento, há mais de 30 anos. A mulher deixou telefone, nome dela... Tudo fajuto! É inacreditável”. Antes de finalizar seu projeto ficcional, o autor buscou a opinião de amigos. Recebeu da historiadora Maria Victoria Benevides um desabafo: “De todos os livros que já li sobre esse horror, K. é o que mais me emocionou. Minha emoção é primeiro de compaixão (solidariedade com a dor), depois de enorme raiva e indignação pela indiferença de tantos; pelo ‘perdão’ aos torturadores e demais responsáveis, garantido pelo STF; pela crueldade dos que até hoje martirizam sua família com “informações”; pelo papel nojento da USP; pelos políticos que têm ojeriza ao tema porque não dá voto; pelos ‘ex-combatentes’ que falam não querer revanchismo... a lista é longa”. E do amigo Flávio Aguiar vem uma definição irretocável: “No passado o pai procura resgatar a filha ou pelo menos a sua imagem; o escritor de hoje tenta impedir o esquecimento e reconstruir a memória. A narrativa é fragmentária, através de instantâneos elaborados a partir de detalhes, objetos, palavras que liberam esperanças e desilusões. Se a dor suprema pertence ao pai, a sua tragédia é a de todos”.
A queda do ponto Lá fora segue a vida inalterada: senhoras vão às compras, operários trabalham, crianças brincam, mendigos suplicam, namorados namoram. Ali dentro, no pequeno apartamento quarto e sala instaura-se no casal o pânico. Fremem de ambos as mãos, agora incertas. O diálogo é assustado, os olhos evitam se olhar. Transpiram, exalando desgraça. A queda do ponto naquela manhã só se explica pela delação. Há um informante entre eles, um traidor ou um agente infiltrado, alguém muito próximo a eles dois, entre os poucos que restaram. Passaram-se apenas duas horas; as instruções são claras e peremptórias. Na queda do ponto considerar a hipótese pior, o companheiro não resistirá à tortura e entregará alguma informação. ... O casal possui documentos legais, empregos estáveis, famílias, amigos, pais e mães e irmãos. A metade não clandestina de suas vidas duplas está intacta. Basta abandonar a metade secreta, deletar – como se diria hoje, usando esse neologismo tão expressivo – não por covardia, por sabedoria. Para se preservar. Sobreviver na derrota seria, isso sim, uma vitória. Mesmo não sendo possível deletar, havia sempre o recurso de se refugiar num buraco qualquer, num sítio, numa embaixada, no arcebispado. Desde que assumissem a derrota. A chave da solução era assumir a derrota, dar a luta por encerrada. Mas ambos perseveram. Não agem com lucidez. Não os guia a lógica da luta política, e sim outras lógicas, quem sabe a da culpa, a da solidariedade, ou do desespero. ... Numa sacola maior, de lona, despejam documentos arduamente elaborados de denúncia, os que consideram mais valiosos. A lista dos 232 torturadores, que jamais serão punidos, mesmo décadas depois de fartamente divulgada, mesmo décadas após o fim da ditadura; os manifestos dos presos políticos, o dossiê das torturas, o relatório prometido à Anistia Internacional. E também a pasta de recortes de jornais sobre os hábitos e rotinas de empresários apoiadores dos centros de tortura. Não sabem que, exceto o já justiçado, todos eles morrerão de morte natural, rodeados de filhos, netos e amigos, homenageados seus nomes em placas de rua.
Paulo pepe
A cadela Com o casal tudo deu certo, do jeito que o chefe gosta, sem deixar rasto, sem testemunha, nada, serviço limpo.... quando os dois se deram conta, já estavam dentro do carro e de saco na cabeça; só a cadela latiu, mas já era tarde. Agora essa maldita cadela, filha da puta, não para de incomodar. Não tínhamos pensado na cadela. O Lima levantou tudo – o danado, até o nome da cachorrinha, Baleia, nome besta para uma cadelinha miúda e peluda pra caralho. ... Eu não entendo o chefe, durão, mas quando falo que sobrou a cadela, que é perigoso, faz que não escuta... O pior foi ontem, quanto eu falei em sacrificar a cadela, levei o maior esporro, me chamou de desumano, de covarde, que quem maltrata cachorro é covarde; quase falei pra ele: e quem mata esses estudantes coitados, que tem pai e mãe, que já estão presos, e ainda esquarteja, some com os pedaços, não deixa nada, é o quê? Ainda bem que não falei. Não sei onde estava com a cabeça. É essa maldita cadela filha da puta que não me dá sossego, o chefe só vem aqui quando chega algum preso novo. Carne nova – ele fala – arranca o que quer, manda liquidar e vai embora. Mas nós ficamos aqui o tempo todo, com essa cadela nos atormentando, mas eu já sei o que vou fazer: dou mais dois dias, se ela não morrer sozinha, boto veneno na água, boto o veneno que demos àquele ex-deputado federal. REVISTA DO BRASIL outubro 2011
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B.Kucinski
Imunidades, um paradoxo
O pai que procura a filha desaparecida não tem medo de nada. Se no começo age com cautela não é por temor, mas porque, atônito, ainda tateia como um cego o labirinto inesperado da desaparição
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começo é um aprendizado, o próprio perigo precisa ser dimensionado, não para si, porque ele não tem medo de nada, mas para os outros: amigas, vizinhos, colegas de faculdade. E no começo, há esperança, não se pensa no impensável; quem sabe discretamente se consegue a exceção. Assim agem as entidades de experiência milenar no trato com os déspotas, sem alarde, sem acusar. Apenas por isso, no começo o pai à procura da filha desaparecida age com cautela. Depois, quando se passaram muitos dias sem respostas, esse pai ergue a voz; angustiado, já não sussurra, aborda sem pudor os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos; assim vai mapeando, ainda como um cego com sua bengala, a extensa e insuspeita muralha de silêncio que o impedirá de saber a verdade. Descobre a muralha sem descobrir a filha. Logo se cansará de mendigar atenção. Quando os dias sem notícia se tornam semanas, o pai à procura da filha grita, destemperado; importuna, incomoda com a sua desgraça e suas exigências impossíveis de justiça. O sorvedouro de pessoas não para, a repressão segue cruenta, mas o pai que procura sua filha teme cada vez menos. Desgraçado mas insolente, percebe então o grande paradoxo da sua imunidade. Qualquer um pode ser engolido pelo vórtice do sorvedouro de pessoas, ou atropelado e despejado num buraco qualquer, menos ele. Com ele a repressão não mexe, mesmo quando grita. Mexer com ele seria confessar, passar recibo. Sente-se intocável. Vai aos jornais, marcha com destemor empunhando cartazes na cara da ditadura, desdenhando a polícia; desfila como as mães da
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Praça de Maio, mortas-vivas a assombrar os vivos; imbuído de uma tarefa intransferível, nada o atemoriza. Recebe olhares oblíquos de susto, percebe outros, de simpatia. Ao deparar na vitrine da grande avenida sua própria imagem refletida, um velho entre outros velhos e velhas, empunhando como um estandarte a fotografia ampliada da filha, dá-se conta, estupefato, da sua transformação. Ele não é mais ele, o escritor, o poeta, o professor de iídiche, não é mais um indivíduo, virou um símbolo, o ícone do pai de uma desaparecida política. Quando as semanas viram meses, é tomado pelo cansaço e arrefece, mas não desiste. O pai que procura a filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas não desiste. Agora quer saber como aconteceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber para medir sua própria culpa. Mas nada lhe dizem. Outro ano mais, e a ditadura finalmente agonizará, assim parece a todos; mas não será a agonia que precede a morte, será a metamorfose, lenta e autocontrolada. O pai que procura a filha desaparecida ainda empunhará obstinado a fotografia ampliada no topo do mastro, mas os olhares de simpatia escassearão. Surgirão outras bandeiras, mais convenientes, outros olhares. O ícone não será mais necessário; até incomodará. O pai da filha desaparecida insistirá, afrontando o senso comum. Alguns anos mais e a vida retomará uma normalidade da qual, para a maioria, nunca se desviou. Velhos morrem, crianças nascem. O pai que procurava a filha desaparecida já nada procura, vencido pela exaustão e pela indiferença. Já não empunha o mastro com a fotografia. Deixa de ser um ícone. Já não é mais nada. É o tronco inútil de uma árvore seca.
Mais do que encomendas a gente entrega histórias. Só os Correios aproximam pessoas em mais de 5.500 municípios. São 35 milhões de objetos todos os dias.
Só SEDEX é SEDEX.