GANHOU O MUNDO Milton, suas histórias e sua música
REVOLTA AMBIENTAL O preço de tanta ocupação desordenada
SÍNTESE URBANA A rua mais viva da cidade que não para
nº 67 janeiro/2012 www.redebrasilatual.com.br
LAVANDERIA TUCANA
Livro mostra como alguns enriqueceram com as privatizações da era FHC. E como a velha mídia tenta esconder a sujeira
Água para
o sertão Desde 2008 foram construídas 215 cisternas com o apoio do Comitê Betinho.
Ajude a salvar mais vidas, contribua! Ajude o Comitê Betinho a ajudar mais pessoas: associe-se e indique um amigo! Você pode contribuir com débito em conta ou depositar qualquer valor: BANCO DO BRASIL Ag.: 0018-3 Conta Poupança: 85.406-9 Variação: 1 BRADESCO Ag.: 3003-1 Conta Poupança: 100.8818-6
ao
d a C i d a da
n
ia
Ac
SANTANDER Ag.: 0001 Conta Corrente: 13 - 027407-9
COMITÊ BETINHO
www.comitebetinho.org.br Mais Informações
(11) 3249 8113 ou (11) 3249 8114 comitebetinho@uol.com.br
Índice
Editorial
12. Capa
Denúncia de crimes da privataria vira best seller e silencia a mídia
16. Trabalho
Justiça trabalhista, labirinto entre o cidadão e seus direitos violados
20. Ambiente
Tragédias: ações de prevenção e reação demoram para surtir efeito ARQUIVO/DIÁRIO DA MANHÃ/DIVULGAÇÃO
25. Análise
São Paulo na expectativa de seu último aniversário com Kassab
26. Comportamento
Trânsito: falta de caráter é tão perigosa quanto o excesso de álcool
30. Ativismo
Hackers põem ônibus na estrada e vão atrás da transparência política
Na década de 1990, Aloysio Biondi já mostrava aos brasileiros o bilionário esquema tucano
34. Entrevista
Estranhos no paraíso
Três paixões e muitas histórias de Milton Nascimento aos 70 anos
E
42. Saúde
DANILO RAMOS
Promessas e perigos que podem caber no frasco de um cosmético
Augusta: menu de opções
44. Viagem
Polo de cultura e diversidade, a Rua Augusta seduz e resiste
Seções Cartas
4
Mauro Santayana
5
Destaques do mês
6
Lalo Leal
9
Curta essa dica
48
Conto: B.Kucinski
50
m conversa com a Revista do Brasil antes do encerramento desta edição, na antevéspera do Natal, o jornalista Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial, celebrava o potencial da internet como circuladora de informação. “É uma ferramenta explosiva à procura de um conteúdo.” No momento, afirma, o conteúdo é o livro-reportagem A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr. Solemente ignorada pela imprensa e divulgada pela rede, a obra que terminou o ano com 100.000 exemplares vendidos em dez dias escancara a nocividade das privatizações da era FHC. Primeiro, o prejuízo fiscal, ao lembrar contas que o sábio Aloysio Biondi já fazia no início do século – em seu livro O Brasil Privatizado (1999), Biondi mostrava que o governo gastou com o programa de desestatização R$ 87,6 bilhões para com ele alcançar receita de R$ 85,2 bilhões. Segundo, as evidências de crime, ao relacionar operações de lavagem de dinheiro com propinas pagas por participantes de leilões de estatais a gente próxima de tucanos de bico graúdo. E terceiro, ao comprovar que as privatizações não eram, como argumentavam seus estrategistas, opção técnica de livrar o Estado de um peso que não podia carregar. A ordem, “vender tudo que fosse possível”, era satisfazer não as necessidades do Estado, mas o apetite voraz do mercado privado – que se apoderou a preço vil de setores altamente lucrativos. O livro expõe o ex-governador José Serra. Não o acusa. Mas atinge em cheio sua filha, o cunhado, primo e amigos do ministro do Planejamento da época e guardião daquele programa de privatizações. “Serra desenvolveu como ninguém a arte de criar inimigos ao perseguir e ameaçar jornalistas, adversários e até companheiros de partido. Conheço gente do PSDB que está se divertindo, comprando livros para dar de presente”, diz Emediato. Devastadora da moral tucana, a reportagem atingiu em cheio a credibilidade da velha mídia e comprova seu moralismo seletivo. Ao negarem-lhe repercussão, os donos dos meios de comunicação assinaram atestado de compromisso carnal com aquele ideário político que empobreceu o Brasil. E se terminou o ano como fenômeno editorial, inicia 2012 como ponto de partida de uma nova agenda para o país. “Se acontecer a CPI, o livro ficará pequeno”, avisa, mineiríssimo, Ribeiro Jr. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
3
Cartas Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editores Assistentes Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel Redação Anselmo Massad, Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, Jéssica Santos, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo e Júlia Lima (arte) Revisão Márcia Melo Capa Fotomontagem Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3241-0008 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3241-0008 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares www.redebrasilatual.com.br
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Jonisete de Oliveira Silva, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Côrrea, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
4
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Cristina Kirchner Esse editorial (“A coragem dos hermanos”, edição 65) louvando a presidente Cristina é uma versão chapa-branca da notícia. A Argentina tem maquiado seus índices econômicos atrás de uma política paternalista e desvirtuada, tanto é que a presidente, depois de eleita e antes de assumir o segundo mandato, tenta corrigir isso. Jorge Antonio Degrazia Sarturi, Macaé (RJ) Dilma, ano 1 Concordo em parte. Acho que falta um maior combate à corrupção. Trocar seis por meia dúzia nos ministérios não resolve o problema da ganância dos PMDBs da vida. É preciso avançar na saúde e na educação. O que o governo mandou bem mesmo é em relação a economia. Um furacão no mundo e o país aparentemente não tem sofrido grandes problemas. Fabrízio Michelon, Porto Alegre (RS) Muito a explicar Onde tem tukano-demo tem maracutaias (“Muito a explicar”, edição 66). Só relembrando: lista de furnas, pasta rosa, Alstom, (compra de votos) projeto da reeleição, mensalão verdadeiro, o mineiro, do Eduardo Azevedo, Paulo Preto, fora a velha mídia e o Judiciário, resquícios da ditadura e tukano-demos de carteirinha. Solução: lei da mídia e reforma no Judiciário. Carlos Antônio, Fortaleza (CE) Crise na USP Muito boa a crítica (“USP, autonomia seletiva”, edição 65). A universidade acaba escolhendo fazer o que ela bem entende, seja em relação à sua autonomia ou não. A hora que é conveniente “temos autonomia”, quando não é, essa palavra vai pra debaixo do tapete (de R$ 32 mil). A universidade tem muito em que mudar. Escrevi um pouco sobre a questão no blog O Baú Errante (atalho em http://bit.ly/ midia_x_usp). Aline Velten de Melo, Valinhos (SP)
Governo de SP São Paulo há anos não investiga nada. Juntou um sem-fim de escândalos de muitos bilhões num tsunami que não está dando mais pra conter (“A lama começa a aparecer”, edição 65). Venda de emendas em SP e até de Brasília. Milhões para a compra de remédios do SUS. Obras do Rodoanel com Paulo Preto. Obras da calha do Tietê e a falta de manutenção. Licitações fraudadas do Metrô. Contas na Suíça. Escândalos da Alstom e Siemens... Azuir Filho, Itapira (SP) Informação e sectarismo Sou leitor assíduo dessa revista, mas tenho cuidado em separar o que é boa informaçãode sectarismo. Não votei em FHC, mas reconheço que o sucesso do governo Lula começou lá atrás, com o curto governo Itamar e as medidas impopulares de FHC. Sem o ajuste inflacionário o governo Lula patinaria e não haveria governo Dilma. Claro está que houve falcatruas no governo FHC e nos governos do PSDB, mas falar apenas do mensalão do Arruda e fingir que não houve o do PT é demais. Até o Getúlio teve o Última Hora para apoiá-lo, mas não exageremos. Paulo Antonio Gomes, Brasília (DF) Marighella Li sobre Carlos Marighella pela a primeira vez no livro Batismo de Sangue, do Frei Betto. Tentaram acabar com sua memória e sua imagem, mas é imposivel. Marighella vive (“Esse tio Carlos”, edição 64). Marcos A.Einsfeld, Porto Alegre (RS)
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
MauroSantayana
A direita e a pena de morte
A
direita, no mundo inteiro, é acossada pela crise que ela mesma causou, e é nesses momentos que o perigo se torna maior. Os indignados saem às ruas, mas lhes falta direção política consequente. Os protestos, se não são alimentados de projetos claros e definidos, se perdem. Os atos de contestação dependem de ideologia e programas, que só os intelectuais são capazes de elaborar. Como muitos observam, as agitações podem ser facilmente vencidas pela repressão policial, mas as mudanças sociais – ou os atos de resistência contra o abuso do poder econômico – dependem de esforço intelectual tático e estratégico. O esforço intelectual, bem se entenda, não é o dos filósofos em suas torres de marfim, mas dos líderes experientes, que sabem como reunir e orientar os protestos e as reivindicações das grandes massas. Já há sugestões de que, passadas as festas de Natal, os dirigentes das principais organizações populares do país – centrais sindicais, MST, entidades religiosas não vinculadas à direita, enfim, os movimentos do centro para a esquerda – reúnam-se em grande encontro, bem preparado, a fim de discutir a situação interna do país, da América Latina e do mundo. Desse encontro deve surgir um plano de ação política que mantenha os direitos que ainda conservamos, e os amplie. O governo brasileiro se encontra sob a pressão da direita, que usa seus representantes no Congresso a fim de dificultar à presidenta o cumprimento de sua vontade. Ainda agora, a senadora e fazendeira Kátia Abreu, representante da direita rural no Senado da República, e não do povo do Tocantins, está propondo que o seu partido, o PSD – que segundo Gilberto Kassab não é de esquerda, nem de direita, nem de centro, assuma a posição de centro-direita, sem constrangimentos. Ela se baseia em pesquisas com a classe C, que concorda, em seu sofrimento cotidiano, com a pena de morte e outras medidas radicais e irreversíveis. Todos nos horrorizamos com a insegurança, sobretudo a dos pobres, as maiores vítimas do narcotráfico, dos assaltos, da violência policial, dos preconceitos e da discriminação. E serão também estes os primeiros a serem executados, como ocorre no mundo inteiro, porque não podem pagar bons advogados. É preciso fechar o passo à direita, e o caminho melhor é o de retomar o controle dos setores estratégicos da economia pelo Estado. A privatização
Pergunte-se à senadora Kátia Abreu (PSD-TO) se ela concorda com a pena de morte para fazendeiros que contratam pistoleiros para assassinar trabalhadores sem terra e seus líderes sindicais das empresas estatais terá de ser revista, o conceito de empresa nacional do texto original da Constituição de 1988 deve ser restaurado e as transações brasileiras com os paraísos fiscais, proibidas. Com essas medidas, o país terá condições de combater os seus males antigos, como os da corrupção policial, as deficiências da educação e da saúde e a força do poder econômico sobre a política. É assim que podemos obter a paz das ruas, não com a pena de morte. Pergunte-se à senadora se ela concorda com a pena de morte contra os fazendeiros que contratam pistoleiros para assassinar trabalhadores sem terra e seus líderes sindicais. O fato é que a direita, no Brasil e no mundo, se reorganiza. A classe média é facilmente atraída pelas bandeiras da direita, que lhe promete a “segurança”. Ainda agora se sabe que a crise, na Europa e nos Estados Unidos, atinge com o desemprego também os profissionais mais qualificados. Foi o que se passou nos anos 1930, em que o fascismo, na Itália, e o nazismo, na Alemanha, recrutaram a classe média – e também os mais pobres e desinformados – para os seus quadros. O mesmo ocorreu na Espanha de Franco e em Portugal, com Salazar, com mais facilidade, em razão do apoio total da Igreja – o que, felizmente, não ocorre entre nós. É importante que todos os movimentos populares estejam mobilizados, como se propõe, a fim de sustentar uma política social que vem retirando milhões de brasileiros da miséria e promovendo desenvolvimento econômico sustentado, embora sob o impacto negativo da crise mundial. Essa crise foi provocada pelos banqueiros larápios, em conluio com governantes medíocres, como Obama, Merkel, Sarkozy, Cameron, Zapatero (seu sucessor, Rajoy, consegue ser pior) e outros menos notados. www.maurosantayana.com REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
5
www.redebrasilatual.com.br
Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
A taxa de desocupação calculada pelo IBGE atingiu em novembro o menor nível da série histórica, iniciada em março de 2002, e chegou a 5,2%. Na média do ano, está acumulada em 6,1% e deverá também ser a menor de toda a série, abaixo do ano anterior (6,7%). O instituto também detecta continuidade da formalização do mercado, na comparação anual. O número de trabalhadores com carteira assinada no setor privado (11,157 milhões) ficou estável ante outubro e cresceu 6,8% sobre novembro de 2010, o correspondente a um acréscimo de 708 mil vagas formais. http://bit.ly/rba_ibge_pme
A taxa de desemprego de novembro foi a menor em 21 anos em São Paulo. A formalização cresceu
MARCELLO CASAL JR/ABR
Nunca antes neste país
A pesquisa mensal da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), de São Paulo, e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) também vê 2011 como um ano diferenciado para o nível de emprego. Na Grande São Paulo, onde a pesquisa começou em 1985, a taxa de novembro foi a menor em 21 anos e caiu para 9,5%. Na média das sete regiões metropolitanas pesquisadas pelo Dieese e convênios, a taxa (9,7%) ficou abaixo de dois dígitos pela primeira vez desde janeiro de 1998. “Nos últimos anos, quase nove em cada dez empregos abertos são formais”, assinalou o economista Sérgio Mendonça, do Dieese. http://bit.ly/rba_dieese_ped
DIVULGAÇÃO
Um velho calção de banho
A praia de Itapuã, em Salvador, pode estar com suas tardes de sol contadas. Um projeto de lei encaminhado pelo Executivo à Câmara Municipal sugere a criação de oito áreas (uma delas é Itapuã) com incentivos para a construção de hotéis. Se a ideia passar, as praias afetadas podem ganhar sombra durante a maior parte do dia. A justificativa para o projeto é a de que Salvador não possui rede hoteleira capaz de atender à demanda criada pela Copa do Mundo de 2014 – o que pode ser um tiro no pé. Estudos indicam que Salvador corre alto risco de super-oferta no setor hoteleiro depois da Copa. http://bit.ly/rba_itapua Farol de Itapoã
Kyoto repaginado FOTOS: UNATI NGAMNTWINI/ DIVULGAÇÃO
O Brasil foi um dos personagens centrais da COP-17, conferência da ONU sobre mudanças climáticas, em dezembro, na África do Sul. Discreta no início, a postura brasileira na segunda metade da conferência foi mais incisiva em busca de uma seqüência para o Protocolo de Kyoto – o documento global, que expira em 2012, pela redução das emissões de gases de feito estufa. O Brasil apoiou proposta da União Européia e assumiu pela primeira vez compromisso de adotar metas obrigatórias de redução de suas emissões. “O Brasil irá trabalhar para que possamos negociar um novo instrumento legalmente vinculante, baseado nas recomendações da ciência e que inclua todos os países para o período imediatamente pós 2020”, disse a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. http://bit.ly/rba_cop_17
6
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
MAURICIO MORAIS
Dilma com os catadores: “Trabalhar a partir da visão deles”
Tradição e missão
“Se eu fracassasse neste compromisso, eu fracassaria na minha missão”, afirmou a presidenta Dilma Rousseff, durante o já tradicional encontro do presidente da República com catadores de material reciclável e população em situação de rua. O evento – realizado na quadra do Sindicato dos Bancários de São Paulo – acontece desde 2003, às vésperas do Natal. À vontade, Dilma disse que é sua obrigação ouvi-los “para poder trabalhar a partir da visão deles” http://bit.ly/rba_dilma_catadores
Zara: investimento social
O Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério do Trabalho e Emprego e a Zara Brasil, empresa do espanhol Grupo Inditex, chegaram a um Termo de Ajuste de Conduta (TAC). A empresa se compromete a garantir melhor qualidade de vida aos trabalhadores das oficinas e eliminar condições degradantes na cadeia produtiva da Zara Brasil – cujas subcontratadas foram flagradas por operações de fiscalização de combate ao trabalho escravo. A empresa terá de fazer investimento social mínimo de R$ 3,47 milhões em ações preventivas e corretivas no setor, no prazo de dois anos. http://bit.ly/rba_acordo_zara
Mancha na história
Tem desculpa a falha deles? O aumento do número de casos de febre amarela, projetado nas matérias publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo no verão entre 2007 e 2008, não passou de uma perigosa inflamação jornalística, que podia causar sérios danos à saúde pública dado o risco de o alarme induzir ao recurso indevido da vacinação. A constatação está na pesquisa “Epidemia midiática: um estudo sobre a construção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo sobre a febre amarela, no verão 2007-2008”, realizada na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). A Muita jornalista Claudia Malinverni, funcionária da gente Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e correu pra se vacinar autora da pesquisa para seu mestrado, analisou 118 matérias veiculadas pelo jornal entre 21 de dezembro de 2007 e 29 de fevereiro de 2008, além de 40 boletins emitidos pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde no mesmo período. http://bit.ly/rba_febre_folha
WILSON DIAS/ABR
BIANCA PYL/REPÓRTER BRASIL
Outra grife é possível
O Brasil completou em dezembro um ano na condição de devedor para com a Organização dos Estados Americanos (OEA). A Corte Interamericana de Direitos Humanos anunciou em 2010 a condenação do país no caso Gomes Lund, sobre a Guerrilha do Araguaia (1972-1975). “Francamente, a gente não viu nada realizado”, queixa-se Elizabeth Silveira e Silva, vice-presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, uma das organizações que acionaram a OEA. Ela é irmã de Luiz René Silveira e Silva, desaparecido desde 1974 e morto pela repressão na região do Araguaia em circunstâncias nunca esclarecidas. A Corte Interamericana condenou o Brasil por não esclarecer os fatos, não prestar a reparação dos parentes de vítimas nem punir os responsáveis pela repressão. http://bit.ly/rba_araguaia_oea REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
7
NoRádio De segunda a sexta-feira, das 7h às 8h, na FM 98,9, para toda a Grande São Paulo
PALMATÓRIA Rodas: tropa de choque, expulsão e demissão
Reitor João Grandino Rodas, da USP, é criticado por usar decreto da ditadura para punir estudantes. Para juiz, expulsão contraria a Constituição e pode ser revertida Por Lúcia Rodrigues e Marilu Cabañas
U
m decreto da época da ditadura foi o argumento utilizado pelo reitor da USP, João Grandino Rodas, para expulsar oito estudantes da universidade no mês passado. Rodas acusou os alunos de praticarem atos lesivos à instituição ao ocuparem, em 2010, salas do Bloco G do Conjunto Residencial da USP (Crusp) usadas pela burocracia universitária. O protesto reivindicava a ampliação de vagas na moradia estudantil para alunos carentes. A decisão do reitor foi contestada pelo juiz e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia, José Henrique Rodrigues Torres. “Acredito piamente que essa decisão poderá ser revertida em razão do ‘embasamento jurídico’ utilizado pela reitoria, um decreto completamente defasado em relação aos princípios constitucionais e de direitos humanos.” O Decreto 52.906, de 1972, 8
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
rechaça, por exemplo, o direito à greve e à livre manifestação de pensamento. “Constituem infração disciplinar do aluno, passíveis de sanção... promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares”, enfatiza o texto da legislação vigente na USP. Até a simples afixação de um cartaz é motivo para punição. O artifício, que completa 40 anos em março, prevê a expulsão de estudantes considerados indesejados pela reitoria. A punição imposta a Aline Dias Camoles, Amanda Freire de Sousa, Bruno Belém, Jéssica de Abreu Trinca, Marcus Padraic Dunne, Paulo Henrique Oliveira Galego, Pedro Luiz Damião e Yves de Carvalho Souzedo os impede de prestar novos vestibulares ou de concorrer em processos seletivos para a pós-graduação na USP. Também não poderão trabalhar na universidade. Os alunos acionaram a
Justiça para reverter as punições. As vagas na moradia do Crusp também foram perdidas. A estudante Amanda Freire de Sousa, mãe de um bebê de três meses, foi posta na rua com o filho. Os alunos receberam manifestação de solidariedade de vários setores da sociedade. Uma nota conjunta assinada por diversas entidades contesta as expulsões e critica a prisão de 73 alunos quando a Tropa de Choque da PM invadiu o campus da Cidade Universitária, em novembro do ano passado: http://bit.ly/expulsos_da_usp A perseguição não se restringe aos estudantes. Rodas também retaliou com processos funcionários questionadores. Os dirigentes do Sintusp, o Sindicato dos Trabalhadores da Universidade, são o alvo preferencial do reitor. “O Rodas está processando a gente por qualquer coisa que se publique no boletim. É um processo atrás do outro”, afirma o diretor do Sintusp Claudionor Brandão, demitido em dezembro de 2008 e em luta na Justiça para ser reintegrado. Brandão responde a três processos criminais movidos pela reitoria em função de sua atuação sindical. Foi condenado a 40 dias de prisão em um dos processos a que respondeu. Perdeu a primariedade e, durante dois anos, está impedidode sair do estado sem comunicar o Judiciário.
RODRIGO PAIVA/FOLHAPRESS
Como nos anos de chumbo
LaloLeal
Imagens distorcidas
A
maioria dos brasileiros só se informa pela televisão e, quase sempre, fica mal informada. Todos os dias as emissoras selecionam e transmitem inúmeras notícias, mas o que não bate com seus interesses comerciais e políticos fica de fora. A desinformação, no entanto, acontece também no que é mostrado. As notícias veiculadas são organizadas e editadas segundo esses mesmos interesses. Há dois exemplos significativos. Um, de mais de 20 anos, só agora revelado. Trata-se do famoso debate Lula-Collor de 1989. Sabia-se que ele havia sido editado para ser exibido no Jornal Nacional, de modo a ressaltar os melhores momentos de Collor e os piores de Lula. Sua exibição, dessa forma, às vésperas das eleições, influenciou um grande número de eleitores, conforme mostraram pesquisas na época. A manipulação, no entanto, não ficou só aí. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, um dos principais executivos da Globo naquela ocasião, revelou em seu livro recém-lançado a dimensão real do episódio. O debate não foi manipulado apenas na edição levada ao ar. Os truques começaram bem antes, uma vez que, segundo o próprio Boni, a emissora “tomou partido” e “produziu” o debate para beneficiar o ex-governador alagoano. “Eu achei que a briga do Collor com o Lula nos debates estava desigual, porque o Lula era o povo e o Collor era a autoridade. Então, nós conseguimos tirar a gravata do Collor, botar um pouco de suor, com uma glicerinazinha, e colocamos as pastas todas que estavam ali, com supostas denúncias contra o Lula. Mas as pastas estavam inteiramente vazias ou com papéis em branco”, revelou Boni. Se você acha que isso é coisa do passado e não acontece mais, está enganado. Em dezembro, ocorreu em Caracas, na Venezuela, um fato capaz de dar à América Latina e ao Caribe a primeira oportunidade real de romper com as dominações externas mantidas sobre o continente há mais de 500 anos. Foi criada a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), reunindo 33 países da região, deixando de fora os Estados Unidos e o Canadá, que sempre dominaram a Organização dos Estados Americanos (OEA), até então o principal organismo multilateral do continente, chamada com muita propriedade de “ministério das colônias” pelo então presidente de Cuba, Fidel Castro.
Ilusionismo: a TV faz como o mágico, que distrai o público com o lenço enquanto tira o pombo da cartola. Infelizmente, assistimos a essa mágica todos os dias no telejornalismo brasileiro Trata-se de um grito de libertação dos países situados ao sul dos Estados Unidos. Dois séculos depois do rompimento dessas nações com as metrópoles espanhola e portuguesa, dá-se continuidade a uma luta conjunta em busca da autodeterminação política e econômica, livre das imposições dos impérios modernos. A Celac definiu como um dos seus princípios básicos a defesa das democracias nos países-membros. Se em algum deles a ordem institucional for rompida, a expulsão é imediata. A medida busca evitar a repetição de fatos recentes como o golpe de Estado que depôs o presidente de Honduras, Manuel Zelaya, em 2009, e a tentativa frustrada de tomar o poder pela força no Equador, em setembro de 2010. Alguém soube disso através da TV? Não que a televisão brasileira não estivesse lá. Estava, mas não para mostrar a dimensão histórica do que ocorria em Caracas. Tudo que era importante foi escondido e, para não perder a viagem, o Jornal Nacional colocou no ar o questionamento feito à presidenta Dilma Rousseff sobre uma declaração de amor feita a ela, no Brasil, por um ministro em vias de demissão. Surpresa, Dilma foi gentil e respondeu à pergunta descabida e fora de lugar. Ao telespectador restou receber uma informação supérflua em prejuízo do essencial. O caso revela que as distorções ocorridas em torno do debate presidencial de 1989 não são exceções. Ao contrário, trata-se de uma prática comum, embora menos perceptível. A TV acaba fazendo como o mágico, que chama a atenção para o lenço enquanto, sem o público perceber, tira o pombo da cartola, na feliz imagem do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Infelizmente, assistimos a essa mágica todos os dias no telejornalismo brasileiro. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
9
Mídia concentrada, liberdade aprisionada
Sistematização da Plataforma Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, AMARC Brasil, ARPUB, Campanha pela Ética na TV, Conselho Federal de Psicologia, Fenaj, Intervozes e Ulepicc – Capítulo Brasil
Por um marco regulatório das comunicações que garanta liberdade de expressão para todos
1. Fortalecimento do sistema público de comunicação
2. Fortalecimento das rádios A liberdade de expressão no Brasil sofre hoje graves restrições. A maior ameaça vem das grandes empresas de comunicação, que impedem a circulação de pontos de vista com que não concordam e dificultam o exercício do direito à comunicação pelos cidadãos. A atual lei de comunicações é de 1962, e está totalmente defasada. A Constituição de 1988 tem artigos avançados que, contudo, nunca foram regulamentados. O Brasil precisa urgentemente de um novo marco regulatório para o setor.
3. Impedir a concentração,
monopólios e oligopólios
4. Democracia e transparência nas concessões
5. Proibição de concessões para políticos
6. Cotas de conteúdo regional e produção independente
7. Diversidade étnico-racial,
de gênero, de orientação sexual, de classes sociais e de crença
8. Responsabilidade por violação
Pensando nisso, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, em conjunto com outras entidades nacionais, construiu uma plataforma com 20 propostas para uma nova lei geral de comunicações. Se você concorda que passou da hora de o Brasil mudar essa situação, conheça a plataforma em www.comunicacaodemocratica.org.br e declare seu apoio. O direito à liberdade de expressão não pode ser privilégio de poucas famílias.
e TVs comunitárias
de direitos humanos
9. Proteção às crianças e adolescentes 10. Diversidade e equilíbrio no jornalismo 11. Regulamentação da publicidade 12. Critérios para publicidade oficial 13. Leitura crítica da mídia
14. Acessibilidade para pessoas com deficiência 15. Conselho Nacional de Comunicação 16. Participação social
Apoio
17. Separação de infraestrutura e conteúdo 18. Redes abertas e neutras 19. Universalização dos serviços 20. Padrões
abertos e interoperáveis e tecnologia nacional
CAPA
Segredos do Caribe
As evidências de que o dinheiro que arrematou estatais leiloadas pelo governo FHC enriqueceu também gente muito próxima do núcleo tucano transformam um livro em best-seller e a mídia em avestruz – e sugerem uma nova agenda política para o novo ano Por Anselmo Massad
N
o final dos anos 1990, Aloysio Biondi, aos 40 anos de profissão, era respeitado no meio jornalístico por não paparicar fontes nem políticos. Costumava guardar recortes de jornais, consultar documentos públicos de bancos, empresas, diários oficiais, fuçar balanços, fazer contas. Crítico do processo de privatizações desencadeado pelo governo de então, as portas começaram a se fechar. Suas colunas na Folha de S. Paulo foram reduzidas, e seu cachê, idem. Seus textos foram parar no extinto Diário Popular e em veículos da imprensa sindical. Antes de morrer, em julho de 2000, deixou o livro O Brasil Privatizado. “O balanço geral mostra que o Brasil ‘torrou’ suas estatais, e não houve redução alguma na dívida interna”, escreveu. Esse legado investigativo foi fonte de inspiração do jornalista mineiro Amaury Ribeiro Jr., como ele credita nas primeiras páginas de A Privataria Tucana, lançado em dezembro. Graças à internet, o livro sobre mazelas políticas do país virou campeão de vendas no fim do ano – e promete ser determinante para a história de 2012.
12
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Recheado de documentos públicos e obtidos em processos judiciais, a reportagem atira para diferentes lados. E pode ter ferido de morte expoentes do PSDB, envolvidos no processo de privatização durante a década de 1990. Que a venda de estatais foi pautada por convicções ideológicas e interesses do mercado, até os beneficiados por elas admitem. A falta de transparência, a confusão entre interesses públicos e privados e as suspeitas de irregularidades permearam o processo. Reportagens publicadas no período ofereciam farto material – em fontes oficiais, escutas telefônicas e documentos de contas em paraísos fiscais. A mesma velha mídia que fechara portas a Biondi reagiu com silêncio sepulcral. “Quando peguei a Veja da semana e vi que não tinha nada sobre o livro (risos)... Percebi que demos um nocaute na grande imprensa, na blindagem que têm os tucanos”, disse Amaury Ribeiro Jr., em debate realizado no auditório do Sindicato dos Bancários de São Paulo, que Biondi também frequentou. O livro só foi mencionado em páginas de jornal e de revista quando apareceu entre os mais vendidos.
por ter familiares envolvidos em operações de lavagem de dinheiro. A filha Verônica, o genro Alexandre Bourgeois e o primo de sua mulher Gregório Marin Preciado são os acusados. Outros personagens carimbados das privatizações também aparecem, e vão além da figuração. Daniel Dantas, dono do banco Opportunity e protagonista dos malfeitos investigados pela Operação Satiagraha, da Polícia Federal, em 2008, é um deles. São descritas operações ilegais para trazer ao país dinheiro guardado no exterior. Há curiosas revelações relacionadas à sociedade entre a irmã do banqueiro, Verônica Dantas, e a xará Verônica Serra. A parceria na Decidir.com estabelece um elo umbilical entre uma figura cercada de suspeitas e o núcleo familiar do cacique tucano.
Modus operandi
Boa parte das operações descritas pelo autor segue caminho semelhante. Por meio de doleiros, recursos de provável desvio de verbas ou pagamento de propinas é remetido ao exterior. Isso aconteceu em profusão por meio do Banestado, banco estadual paranaense, liquidado em 2000 pelo Banco Central. A lavanderia operada nos quatro últimos anos de existência da instituição incluía passagem pelos Estados Unidos para, depois, aportar nas Ilhas Virgens Britânicas, no Caribe, e outros paraísos fiscais.
MILTON MICHIDA/AE - 13/03/2002
JULIA MORAES/FOLHAPRESS - 6/08/2007
NOME EM COMUM Serra foi ministro do Planejamento e depois da Saúde de FHC. Ambos tiveram o mesmo tesoureiro de campanha
JULIA MORAES/FOLHAPRESS - 20/02/2002
A investigação de Ribeiro Jr. começou em 2001, quando, recém-transferido para O Estado de Minas, em Belo Horizonte, foi encarregado de acumular material contra José Serra. A encomenda era proteger Aécio Neves, então e atual presidenciável tucano. E o caso viria à tona em 2010, quando o jornalista foi apontado como membro de uma suposta “central de inteligência” da campanha petista pela eleição de Dilma Rousseff à Presidência da República. Ele acredita ter sido vítima de uma armação para incriminá-lo, na tentativa de criar uma “vacina” contra uma eventual publicação do livro durante o processo eleitoral. O jornalista revela documentos que indicam pagamento de Carlos Jereissati – do grupo La Fonte, que venceu o leilão para a compra da Telemar em 1998 – a Ricardo Sérgio de Oliveira. O ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e tesoureiro de campanhas eleitorais de FHC e de Serra é apresentado como “artesão” dos consórcios de privatização – trabalho para o qual teria sido remunerado “extraoficialmente”. Documentar esse papel é, na visão do próprio Ribeiro Jr., uma das novidades do livro. O ex-governador paulista é outro dos personagens centrais, tanto por iniciativas de contratar empresas de espionagem com dinheiro público no Ministério da Saúde e no Palácio do Planalto como
ROTA DIRETA Carlos Jereissati venceu o leilão para a compra da Telemar e repassou recursos para Ricardo Sérgio, tesoureiro de FHC e Serra e “artesão” das privatizações REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
13
ANA OTTONI/FOLHAPRESS - 19/04/2001
CAPA GRANDES ALEGRIAS Serra bate o martelo na privatização da Light, em 1996
Na hora de trazer o recurso de volta, a chamada internalização, simula-se um investimento direto de empresa estrangeira em um empreendimento nacional. Por isso, a transação pouco comove o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda, que fiscaliza essas movimentações. Mas a farsa cai diante da revelação de que as operações nas quais os mencionados no livro se envolveram eram promovidas com a assinatura da mesma pessoa tanto na saída dos recursos do paraíso fiscal como na entrada, no Brasil. Em outras palavras, o que parecia ser o país atraindo dinheiro de estrangeiros era, de fato, uma forma de esconder a origem do dinheiro e sonegar impostos. Mais que a necessidade de se investigar e responsabilizar pública e penalmente os artífices de eventuais ilegalidades da privataria, o livro provoca uma discussão: a do combate à permissividade da legislação brasileira com transações financeiras via offshore. O nome desse tipo de empresa instalada em paraísos fiscais tem origem, não por acaso, no termo em inglês usado para designar ilhas usadas por piratas do século 18 para guardar tesouros. O fato é que não há motivos para um investimento com dinheiro limpo precisar passar por paraísos fiscais. Esses locais, por não exigirem comprovação de origem nem detalhamento da identidade do depositante, servem amplamente a quem precisa esconder verbas públicas desviadas, manobras de sonegação de impostos ou rendimentos do crime organizado. 14
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
GERADO LAZZARI
TUDO EM FAMÍLIA Verônica Serra e Alexandre Bourgeois: passeios pelo Caribe
ESTRAGO NA VELHA MÍDIA Ribeiro Jr., durante o debate no Sindicato dos Bancários: “Quando peguei a Veja da semana e vi que não tinha nada sobre o livro (risos)... Percebi que demos um nocaute na grande imprensa, na blindagem que têm os tucanos”
LUCIANA WHITAKER/FOLHAPRESS
No Congresso
Para proteger o país de operações ilegais e dificultar novos desvios, a discussão precisa passar pelo Congresso Nacional. O primeiro passo, porém, é a investigação. Depois da chegada aos pontos de venda, não tardou para parlamentares de diferentes legendas fazerem menção à publicação e entrar na agenda o pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar o caso. O fato relevante exigido pela Constituição para levar adiante a CPI da Privataria está nos documentos contidos no livro. As 185 assinaturas – 14 a mais do que o mínimo de um terço dos 513 membros da Câmara Federal – colhidas pelo deputado Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) incluem gente de todas as colorações partidárias. Embora os líderes do governo, Cândido Vaccarezza (PT-SP), e do PT, Paulo Teixeira (SP), tenham preferido não assinar para manter a “neutralidade” que a relação com outras legendas exige, 67 petistas subscreve-
ram. A seguir, estão os governistas PMDB e PSB (18 cada), PDT (17), PR (15) e PCdoB (13). Alguns oposicionistas – DEM (5), PSDB (4) e PPS (4) – também aderiram. No lançamento do livro, organizado pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé na sede do Sindicato dos Bancários, Protógenes afirmou que a iniciativa visa a proteger a integridade física do autor do livro. “Não poderíamos demorar muito para não perder o ‘timing’ e perder o Amaury”, lembrou. O jornalista corria o risco de “virar estatística”, segundo termos do delegado, “sofreria um ‘assalto’, diriam que reagiu”. A expectativa é de que o presidente da Casa, Marco Maia (PT-RS), instale a comissão em fevereiro, depois do recesso. “Se a CPI for mesmo aberta, vou avisar que o que está no livro é pequeno”, adiantou Ribeiro Jr. O ano novo promete. Colaboraram Vitor Nuzzi e Paulo Donizetti de Souza
Reações e não reações na mídia Pseudo-jornalismo arcaico
De pronto tropeço em duas razões para o costumeiro silêncio ensurdecedor da mídia nativa. A primeira é tradição desse pseudojornalismo arcaico: não se repercutem informações publicadas pela concorrência. Tanto mais quando saem nas páginas impressas por quem não fala a língua dos vetustos donos do poder e até ousa remar contracorrente. A segunda razão é o próprio José Serra e o tucanato em peso. Ali, ai de quem mexe, é a reserva moral do País. Mino Carta, revista CartaCapital
Censura combinada
Em 47 anos de trabalho nas principais redações nunca tinha visto nada igual, nem na época da ditadura, quando a gente não era proibido de escrever, apenas os censores não deixavam publicar. Foi como se todos houvessem combinado que o livro simplesmente não existiria. Esqueceram-se que o mundo foi revolucionado por um negócio chamado internet, em que todos nos tornamos emissores e receptores de informações, tornando-se impossível esconder qualquer notícia. Ricardo Kotscho, TV Record e portal R7
Moralidade seletiva
A grande mídia, que tem se especializado em denúncias em torno de figuras públicas envolvidas em supostas atividades de corrupção, ao ignorar um livro que documenta uma ação que envolve homens públicos e montantes inacreditáveis de dinheiro, coloca em risco sua credibilidade. Revela quando interessa e omite quando não interessa à posição político-partidária que assume. A internet e a blogosfera quebram o monopólio da formação de opinião. Venício Lima, Observatório da Imprensa
Justiça para todos
O primeiro atributo dos julgamentos morais é a universalidade. Espera-se que tratem casos semelhantes de forma equivalente. Quando tal simetria se quebra, então os gritos moralizadores começam a soar como astúcia estratégica submetida à lógica do ‘para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei’. O povo brasileiro tem o direito de saber o que realmente aconteceu. O Brasil será melhor quando o ímpeto investigativo atingir a todos de maneira simétrica. Vladimir Safatle, professor de Filosofia da USP
Propaganda política
A chamada ‘grande imprensa’, por ter mais responsabilidade que os blogueiros ditos independentes, mas que, na maioria, são sustentados pela verba oficial e fazem propaganda política, demorou mais a entrar no assunto, ou simplesmente não entrará, porque precisava analisar com tranquilidade o livro para verificar se ele realmente acrescenta dados novos às denúncias sobre as privatizações, e se tem provas. Merval Pereira, O Globo
Perda de critério
À perda de critério jornalístico se somaram intenções comerciais e políticas dos grupos jornalísticos. Como justificar o escândalo em torno de um avião alugado que transportou o Lupi, a denúncia de que Orlando Silva recebeu dinheiro na garagem e ignorar documentos levantados por Amaury Ribeiro Jr.? Os argumentos de Merval Pereira foram uma tentativa desesperada de convencer o procurador geral da República de que há critério jornalístico que impede que os jornais divulguem o livro. Luis Nassif, jornalista
REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
15
TRABALHO
Direitos no labi Receber o que é devido é um tormento para quem recorre ao Judiciário. Empresas que “fogem” são um dos principais entraves. E abuso de recursos para protelar pagamentos estimula a violação das leis Por Vitor Nuzzi
“C
16
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
CALVÁRIO A ação do eletricitário Everton contra a antiga Cesp é de 1994. Acordo deve pôr fim à espera
de processos é imenso. Processos como esses de verbas rescisórias não podiam parar no Judiciário. Você não deveria ter de entrar com processo para exigir o que as leis já garantem”, analisa. Da abertura do processo à sentença em primeira instância, o tempo, de fato, não costuma ser tão extenso. Pode durar me-
RODRIGO ZANOTTO
riminal ou trabalhista?”, pergunta o homem a duas senhoras que saem do terminal da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo. Nas proximidades, ficam dois fóruns movimentados, mas certamente o mais famoso é o Ruy Barbosa, sede da primeira instância do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, o maior do país, que abrange a Grande São Paulo e a Baixada Santista. Ainda existem os chamados “paqueiros”, que distribuem cartões e indicam escritórios de advocacia nas proximidades. A Justiça trabalhista é um manancial de ações: todos os anos, cerca de 2 milhões. Parte dos problemas que levam um trabalhador à Justiça está relacionada ao pagamento de verbas rescisórias. “A maioria, por exemplo, são empresas que fecham e não pagam nada”, conta o diretor jurídico do Sindicato dos Químicos de São Paulo, Hélio Rodrigues de Andrade. “Temos uma ação de falência dos anos 1990”, lembra o sindicalista, para quem a Justiça não é, a rigor, vagarosa. “O volume
nos de um ano. O problema se concentra na fase de execução, quando a sentença deve ser cumprida. “Tem empresas que desaparecem, sócios que passam bens para terceiros. O problema não é tanto o recurso, mas empresas que somem e não deixam bens”, diz a juíza Carolina Pacífico, do TRT de São Paulo.
irinto
TORRE DE BABEL Fórum Ruy Barbosa, em São Paulo: o maior TRT do país
Estrutura O tamanho da Justiça do Trabalho no Brasil 1ª instância 1.377 varas 2.718 juízes 20.764 servidores
3ª instância Tribunal Superior 26 ministros 2.330 servidores
GERARDO LAZZARI
2ª instância 24 Tribunais Regionais 482 juízes 16.446 servidores
Desde 2007, o Tribunal adota um sistema de leilão de bens penhorados, em uma tentativa do Judiciário de arrecadar recursos para pagamento de direitos trabalhistas. Em 15 de dezembro, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) abriram consulta prévia ao Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT), para que os empregadores consultem sua situação em relação ao pagamento decorrente de condenações. Segundo o TST, o ato decorre da preocupação manifestada pelos próprios empregadores com a entrada em vigor, em 4 de janeiro, da Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas – esse documento passa a ser obrigatório para empresas que quiserem participar de licitações públicas. Os leilões costumam lotar os auditórios do TRT paulistano. Em geral, quem comparece são compradores profissionais, em busca de bons negócios. Podem, por exemplo, arrematar 320 metros quadrados de área construída em um condomínio, avaliada em R$ 680 mil, por R$ 400 mil. Ou adquirir por R$ 25 mil um caminhão estimado em R$ 40 mil. Às vezes pode acontecer de o valor ultrapassar o da avaliação, como ocorreu no caso da venda de uma máquina de fabricação de cigarros, arrematada por R$ 140 mil, duas vezes mais. A juíza Carolina observa, porém, que existem recursos específicos para esses casos. Ou seja, alguém ainda poderá contestar o resultado dos leilões. Se não houver recursos, o dinheiro vai para a vara onde corre o processo. O presidente do TST, ministro João Oreste Dalazen, chama a semana da execução de “momento de conjugação de esforços e de mobilização para conferir maior efetividade à execução trabalhista”. Mesmo com o esforço extra, em 2011 houve acúmulo de 33 mil novas execuções, elevando o total pendente para mais de 2 milhões. Dez anos atrás, uma lei também tentou agilizar ao menos parte dos processos, criando o rito sumaríssimo, voltado para ações com valor equivalente a até 40 salários mínimos. Mas Carolina lembra que os aumentos do salário mínimo nos últimos anos fez crescer o número de processos enquadrados no rito – a partir de janeiro, 40 mínimos correspondem a quase R$ 25.000, valor que não pode ser considerado pequeno para uma ação trabalhista. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
17
TRABALHO Protelação
O presidente da CUT, Artur Henrique, critica as protelações jurídicas que postergam o pagamento de débitos trabalhistas, mesmo quando os processos transitam em julgado – ou seja, já têm sentença definitiva. “Ganha na primeira instância, na segunda, na terceira, e volta na fase de execução. Só tem duas formas de resolver isso rapidamente: a primeira é a organização no local de trabalho; a segunda, obrigar o empresário a depositar em juízo, para ele sentir que a vida é dura. Tem de mexer no bolso. O empresário faz conta. Por que pagar se eu posso enrolar e ao final de 10, 15 anos ter um valor bem menor?” Especialista no tema execução, o juiz Marcos Neves Fava afirma que o próprio Judiciário, por vezes, alimenta a perpetuação dos recursos. “A cultura (dos recursos) passa a ser estimulada pelos tribunais quando os tribunais enxergam lide onde não há lide”, afirmou em entrevista recente a programa do TRT de Santa Catarina. “A lide é resultado do conflito. Eu devo 10, o reclamante diz que a dívida é
12. Ora, até 10 não há lide, que é de 10 para cima. Dez são incontroversos. Reconheceu 10, pague 10”, exemplificou. Com décadas de atuação no ramo trabalhista, o advogado Luís Carlos Moro vê no rito processual um dos fatores da alegada demora dos processos, mas não o principal. “O que existe é uma cultura de litigiosidade e do enfrentamento de questões simples a partir de inúmeras óticas”, diz. Por exemplo, uma ação de horas extras pode desdobrar-se a partir de várias questões paralelas. Moro acredita que isso tende a encolher, com “novas práticas de execução, que têm diminuído a resistência empresarial”. Há também, segundo o advogado, um “novo empenho” para diminuir o volume de processos. “Nitidamente, em diversas regiões do país. Em São Paulo ainda não se sente tanto, com 69% do congestionamento na fase de execução.” Assim, de cada 100 ações, apenas 31 são efetivamente concluídas. O próprio Moro conta que seu escritório move uma ação contra a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT)
“Inaugura-se agora, portanto, um novo tempo no Tribunal Superior do Trabalho”, anunciou em outubro o presidente do TST, ministro João Oreste Dalazen. Para o ministro, a atuação de um tribunal superior da República deve considerar a “participação social em temas de maior relevância”. Foi isso que inspirou o TST a realizar, naquele mês, a primeira audiência pública de sua história, para ouvir representantes da sociedade sobre o tema da terceirização. A ideia, de acordo com Dalazen, seria superar um antigo dito segundo o qual “o que não está nos autos (do processo) não está no mundo”. Assim, especificamente sobre o tema da audiência, “queremos trazer mais mundo para os autos”, disse o juiz. Para o presidente da CUT, Artur Henrique, há indicações de alteração de uma visão conservadora, “que em vez de proteger o mais fraco pro-
18
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
tegia mais o empregador”. Ele vê sinais dessa tendência de mudança em fatos como essa audiência pública e uma campanha pela diminuição do número de acidentes do trabalho. “É possível construir uma postura mais aberta por parte do tribunal”, afirma, lembrando que Dalazen é favorável ao fim do imposto sindical e à contratação coletiva de trabalho. O presidente cutista acredita que, nessa nova gestão do TST, é possível cobrar de alguns setores “mais responsabilidades e penalizações”, relacionadas, por exemplo, ao acesso a recursos. O advogado Luís Carlos Moro diz que ainda não há unidade, mas é possível notar certa “ebulição” na Justiça trabalhista. “Há uma mexida no sistema. Acho que a Justiça do Trabalho começa a se recolocar em seu papel institucional. Há uma mudança de olhar em direção à
DIVULGAÇÃO
Desafios do novo tempo
Moro: mudança de olhar
sociedade. Mas não se faz isso sem resistência.” Artur acrescenta que o conflito, “natural na relação capital-trabalho”, não pode ser resolvido pelo poder normativo do Judiciário. “No Fórum Nacional do Trabalho, chegamos a construir uma proposta em que ficava muito clara, muito delimitada, a atuação da Justiça do Trabalho”, lembra. Pelo que foi negociado, mas não virou lei, o dissídio só poderia ser suscitado em caso de comum acordo. E ainda acontecem decisões que ele considera absurdas, como determinar, em
caso de greve, a manutenção de 80% ou mais das atividades em funcionamento. No setor público, isso se torna mais grave, segundo o sindicalista, porque o governo ainda não mandou a regulamentação da Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da negociação coletiva no setor público. “Ouvir frases como ‘nós não negociamos em greve’ está virando natural. Isso não existe em nenhum lugar do mundo. A greve faz parte do processo de negociação. As pessoas precisam estar preparadas para administrar conflitos.” Em setembro, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC entregou ao governo um anteprojeto de lei sobre acordo coletivo de trabalho. Segundo a entidade, o objetivo é fortalecer a representação sindical nos locais de trabalho e dar segurança jurídica à negociação coletiva.
Montanha
PATRÃO QUE FOGE A juíza Carolina Pacífico: “O problema não é tanto o recurso, mas empresas que somem e não deixam bens”
Por ano, são 2 milhões de ações Ano
Processos recebidos
1941
19.189
1960
156.170
1970
496.480
1980
748.985
1990
1.399.332
2000
2.266.403
2005
2.401.273
2010
2.879.042
DIVULGAÇÃO
GERARDO LAZZARI
2011*
BONS NEGÓCIOS Leilão no TRT paulistano: recursos para pagar direitos trabalhistas
há mais de 30 anos. O processo foi aberto em 1980. Quando completou “bodas de prata”, o advogado chegou a levar um bolo ao fórum. “Comeram o bolo e me deram outro”, ironiza. “Há uma visão desconectada do mundo. Tinha de ser resolvido na
primeira audiência. A empresa já gastou no processo mais que o valor do processo.” Em valores de hoje, R$ 5 mil, pelos seus cálculos. No caso de Everton Rodrigues de Matos, o imbróglio está prestes a se
Total
2.223.260
69.235.879
*Até out. Inclui todas as instâncias (Varas, TRTs e TST) Fonte: TST
resolver. Ele faz parte de um processo contra a antiga Cesp, que envolve aproximadamente 2.100 trabalhadores, sendo 1.500 aposentados. A ação é de 1994, retroativa a 1989, e envolve o pagamento de um adicional de periculosidade – a empresa pagava os 30% apenas sobre os salários, sem incluir outros adicionais fixos. Após a privatização, a empresa foi dividida em cinco – duas já fizeram acordos e agora chegou a vez da CTEEP (Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista). O processo foi vencido nas três instâncias e estava em fase de cálculo. “Poderia se arrastar por período indeterminado”, lembra Everton, hoje diretor do Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado de São Paulo, 35 anos. Ele começou aos 15 como aprendiz e tornou-se técnico, lidando com sistema de elevação de tensão, o que significa mexer com cargas de até 600 mil volts. O acordo feito com a empresa resultará em indenizações conforme a função e tempo de serviço, mas o valor total chega a R$ 40 milhões. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
19
AMBIENTE
Civilização Diante de eventos naturais cada vez mais intensos – agravados por ações humanas indevidas e muitas tragédias –, o poder público reage. Mas cidades muito vulneráveis ainda levarão 20 anos para eliminar os riscos Por Suzana Vier
A
família de Adelino Torres de Oliveira viu a casa ir com a lama, na noite de 23 de novembro de 2008, em Blumenau (SC). “O chão está derretendo como sorvete”, descreveu o governador do estado na época, Luiz Henrique. A rua de Adelino no bairro da Velha desapareceu. “Vimos a lama levando tudo: garagens, um pasto, casas, tudo”, conta. Vizinhos morreram dormindo. Outros saíram assustados, com a roupa de dormir, e nunca puderam voltar. Adelino foi salvo pelo “griteiro” da vila. Da atual residência, alugada, ele observa o morro onde morou e planeja a mudança para outra cidade. “Gosto daqui, mas não suporto mais passar por isso.” A ocupação de áreas que deveriam ser preservadas, como topos de morro e margens de rios, é comum em diversos municípios brasileiros e contribui para a formação de áreas de risco. “Nossa sociedade é responsável por parte do processo ao ocupar as encostas”, diz a professora Claudia Siebert, da Fundação Universidade Regional de Blumenau
20
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
(Furb) e doutora em desenvolvimento urbano e regional. Esses mesmos fatores causaram mais de 900 mortes na região serrana do estado do Rio, em 2011, e contribuíram para a inundação sem precedentes que atingiu São Luiz do Paraitinga (SP), em 2010, quando Angra dos Reis e Niterói (RJ)também foram vítimas de escorregamentos de terras. A lista de desastres naturais agravados pela ação humana inclui ocorrências em Alagoas, Pernambuco, Piauí, Espírito Santo. São Paulo, a maior cidade brasileira
NEGLIGÊNCIA Bombeiros carregam corpo de vítima do deslizamento no Morro do Bumba, em Niterói: barracos erguidos sobre aterro sanitário
e sexta maior do mundo, não passa uma temporada de chuvas sem enchentes. Para Claudia, o problema central é desafiar os limites que a natureza impõe ao desenvolvimento. Desde a colonização da região de Blumenau por europeus
existe a ideia de que desmatar é desenvolver. “Nas cartas dos colonizadores no século 19 a mata aparece como inimigo a ser vencido pela civilização”, afirma. Hermann Bruno Otto Blumenau deu início à cidade à beira do Rio Itajaí-Açu para atender à necessidade da colônia de transporte fluvial. Hoje, os municípios que mais crescem e recebem investimentos empresariais são os que não sofrem com alagamentos. “Cidades que alagam têm ritmo de crescimento mais lento”, observa a professora.
Em Teresópolis (RJ), Neliane de Paula Borges foi surpreendida na madrugada de 12 de janeiro de 2011. Acordou com o choro da filha pequena e passou a ouvir sons de um barranco próximo desmoronando, vizinhos gritando. Casas de seus familiares foram atingidas em diversas partes da cidade durante dois dias de chuvas. Três parentes morreram. Da antiga casa, até hoje interditada, só restaram documentos. “É uma dor terrível ver desabar o lugar onde você cresceu.”
FOTOS ROOSEWELT PINHEIRO/ABR
VLADIMIR PLATONOW/ABR
de riscos
LEITE DERRAMADO Em Angra dos Reis, a Defesa Civil destrói casas em áreas de risco: quem deixou que fossem construídas?
Os escorregamentos de terra nas cidades da região serrana são casos clássicos de evolução da superfície do terreno, de acordo com o presidente da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos, Arsenio Negro. “Foi uma conjunção de eventos intensos de chuva em um terreno altamente propenso, de declividades elevadas, solos de baixa resistência, rochas alteradas – ou seja, um processo de mudança de topografia. O quanto a ocupação urbana acelerou esse processo não se sabe. O que sabemos é que a ocupação REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
21
AMBIENTE naquelelugar não era para existir.” Os problemas da ausência de planejamento urbano são agravados pelos eventos extremos. “É difícil dizer se é mudança climática, mas vivemos uma tendência de aumento desses eventos, sejam secas, sejam chuvas muito acima da normalidade em quantidade e intensidade”, diz o geólogo Eduardo Soares Macedo, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Ao analisar o regime de chuvas em São Paulo de 1933 a 2005, o pesquisador ShigetoshiSugahara, do Instituto de Pesquisas Meteorológicas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), identificou aumentos tanto na intensidade como na frequência. Uma das hipóteses para essa evolução das precipitações é o efeito de ilha de calor, causado pela redução da arborização e a excessiva impermeabilização do solo da cidade. “A água só vai parar nos lugares mais baixos”, diz.
Réveillon inesquecível
No Ano-Novo de 2010, as comemorações em São Luiz do Paraitinga deram lugar ao desespero. Algo semelhante só teria ocorrido em 1863. Igreja matriz, grupo escolar, mercado, lojas, casarões históricos foram invadidos pelas águas do Rio Paraitinga. “Vi a minha identidade cair. Meus filhos, meu pai, meu avô foram batizados naquela igreja”, lembra o aposentado Luiz Tolosa Gouveia, de 77 anos. Seu Luiz morava em um casarão de 1870 e só pôde deixar o local na noite de 1º de janeiro, quando praticantes de raftingconseguiram retirar a família Gouveia. A casa permanece interditada. As enchentes não são novidade na cidade construída em torno do rio. A mão do homem aparece na ocupação indevida de áreas que multiplicam os riscos. Nos últimos anos, donos de construções à direita do rio fizeram um soerguimento de suas áreas, o que empurrou mais água para o lado oposto. O IPT também apontou como causas o assoreamento dos rios na região, formação de barreiras naturais e artificiais. Para o professor Carlos Murilo Prado Santos, da Universidade de Taubaté, a enchente tem fatores geográficos, históricos, urbanísticos e climáticos. Transtornos como os vividos ali se repetem em dezenas de cidades do estado 22
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
MUDANÇA TOPOGRÁFICA Uma avalanche de lama e rochas arrasou Teresópolis: ocupação sem controle
mais rico do país, que não foge à regra de ocupação urbana desordenada, agravada pelo despreparo para lidar com desastres como enchentes e deslizamentos. Faltam investimentos em prevenção e gestão de situações emergenciais. Dados
do Sistema de Acompanhamento da Execução do Orçamento indicam que o governo do estado de São Paulo deixou de investir R$ 163 milhões, de 2000 a 2010, em programas de combate a enchentes. Outros R$ 119 milhões deveriam ter si-
FOTOS DANILO SIQUEIRA VLADIMIR PLATONOW/ABR
ANO NOVO, VELHAS CHUVAS A igreja matriz de São Luiz do Paraitinga veio abaixo com as águas de 1º de janeiro de 2010. Suas ruínas estão sob uma cobertura metálica. A reconstrução é lenta. Seu Luiz (à esquerda) morava num casarão de 1870, que permanece interditado
do direcionadosa obras na calha do Rio Tietê e R$ 79 milhões, a piscinões. A situação se repete. Até 23 de novembro de 2011, foram investidos apenas 17% dos R$ 81 milhões destinados aos piscinões e 2,5% dos R$ 48 milhões
previstos para estudos de macrodrenagem. São ações de prevenção não executadas por opção do gestor. A Defesa Civil deixou de receber R$ 6,7 milhões. Para o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis, o baixo investimento em capacitação, equipamentos e no sistema de alerta é grave. Ele adianta que, se a quantidade de chuvas que caiu em São Paulo no ano passado se repetir neste verão, novos episódios de deslizamentos e inundações acontecerão. Na capital, o problema da não execução do orçamento previsto para ações de prevenção já levou à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal, em 2010. O relatório identifica privilégio a obras “novas, de maior visibilidade e suposto efeito político-eleitoral”, enquanto serviços de manutenção urbana são “executados sem programação e sem controle para a obtenção de resultados próximos à nulidade”. Em 2011, o investimento em prevenção de enchentes permaneceu baixo, segundo dados do Sistema de Orçamento e Finanças (SOF). A administração municipal aplicou em torno de um terço do que estava previsto para a limpeza de cór-
regos e piscinões e ações da Defesa Civil. O geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos observa que “não há registro de nenhuma experiência exitosa” no combate às enchentes na metrópole paulista.
Lição não aprendida
O sofrimento e as perdas vividas nas catástrofes de Blumenau e na região serrana do Rio podem se repetir. A professora Claudia Siebert, da Furb, alerta para o mito em torno da superação dos desastres, que aumenta o potencial de voltarem a acontecer com mais força. A população acostumada às enchentes logo reconstrói os bairros e muitas vezes imita o modelo anterior. “Há recuperação de lugares que deveriam ter sido abandonados. Temos de ter a humildade de entender que a natureza deseja retornar o que é dela.” Além da reconstrução em locais inadequados, a especialista aponta obras subdimensionadas, problemas estruturais e aterros em áreas inundáveis. Estes se tornaram alternativa para aumentar o nível dos terrenos e evitar futuras enchentes, mas transferem o risco a outras áreas. “Se antes um local sofria alagamento quando o nível do rio atingia 12 metros, agora ocorre antes.” A ocupação de espaços que deveriam REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
23
GILBERTO VIEGAS
WILSON DIAS/ABR
AMBIENTE
DERRETEU A família de Adelino sobreviveu à lama de um morro em Blumenau, mas sua casa sucumbiu. Hoje, eles moram de aluguel
ser preservados tem relação com a especulação imobiliária. A incapacidade das pessoas de pagar para morar em locais seguros cria e mantém áreas de risco e fomenta desastres nada naturais. Claudia observa que, da extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH) em 1986 até a criação do Ministério das Cidades em
2003, o país ficou 17 anos sem uma política habitacional. “A população de baixa renda ocupa onde o mercado rejeita”, define. Em sua opinião, uma política séria para evitar deslizamentos e enchentes passa pelo reconhecimento dos limites do homem e pelo respeito à natureza. Mas também depende de uma política
habitacional atenta à população menos favorecida, de cidades mais inclusivas e planejamento urbano regional. Os esforços para que as chuvas sejam apenas chuvas, não mais desastres, são também uma ação humana possível. Colaboraram João Peres e Thalita Pires
Em depoimento ao Senado no dia 15 de dezembro, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante, observou que o país não terá um sistema capaz, de imediato, de “impedir vítimas”, mesmo que o Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) funcione 24 horas por dia. O que é possível no curto prazo, segundo ele, é diminuir o impacto dos eventos climáticos que estão se agravando, uma vez que o Brasil está atrasado no mapeamento de áreas sob risco de desastres. “Não queremos criar qualquer tipo de ilusão. Não há como impedir especialmente deslizamentos, em que temos entre duas e seis horas para retirar uma comunidade, uma favela, um bairro inteiro. Não temos tradição, não temos estrutura, não temos mobilidade para isso.” De acordo com Mercadante, o país ainda tem um
24
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
déficit de geólogos. Das 251 cidades críticas, apenas 35 estão na base de dados do Cemaden. O concurso aberto pelo Centro de Monitoramento não atraiu interessados. O programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, parceria com os municípios direcionada a enfrentar o déficit habitacional, é visto com bons olhos por urbanistas e geólogos como forma de frear a ocupação desordenada se a essa intervenção urbana somarem-se, de fato, as ações preventivas previstas no PPA 20122015. “O PPA é um marco na prevenção a desastres”, avalia o geólogo Eduardo Soares Macedo, do IPT. “O tema entrou na pauta de todos os governos e de entidades científicas. Por um tempo, os deslizamentos vão continuar, mas estamos no caminho da redução.” Com boa vontade, segundo ele, as ações terão resultado em 20 anos.
De acordo com o diretor do Departamento de Assuntos Fundiários Urbanos do Ministério das Cidades, Celso Santos Carvalho, a política de gestão de riscos do governo federal descrita no Plano Plurianual (PPA) 2012-2015 prioriza seis linhas de atuação: mapeamento geológico de municípios avaliados como críticos; elaboração de mapas de riscos; obras de prevenção; fortalecimento do sistema nacional de defesa civil; expansão do sistema de monitoramento e alerta de desastres; e melhoria da capacidade de resposta e reconstrução das cidades que passaram por problemas. O PPA prevê ações integradas de vários ministérios – Minas e Energia, Cidades, Integração Nacional e Ciência, Tecnologia e Inovação, sob coordenação da Casa Civil da Presidência. A movimentação é um desdobramento da Medida Provisória 547, assinada pela presidenta
ROBERTO STUCKERT FILHO/PR
Solução eficaz demora, diz ministro
Dilma entrega unidade do Minha Casa, Minha Vida: freio na ocupação desordenada
Dilma Rousseff, que cria o cadastro nacional de municípios com áreas propensas à ocorrência de escorregamentos de grande impacto. O cruzamento de dados de localidades que registraram mortes em escorregamentos de terras nos últimos dez anos e sofreram eventos de calamidade ou emergência resultou numa lista de 251 municípios em situação vulnerável. Foram identificados ainda 28 municípios – onde vivem 178 mil pessoas – muito expostos a desabamentos ou enchentes.
ANÁLISE Kassab entra em seu último ano de mandato com nota de reprovado como prefeito. Quem sabe ainda dê um bom corretor imobiliário Por Suzana Vier
O
prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, entra em seu último ano de mandato em 2012 com nota vermelha. A poucas semanas de a cidade comemorar seus 458 anos, uma pesquisa apurou a nota que a população lhe dá: 4,5. Depois de assumir a prefeitura em 2006 no lugar de José Serra e ganhar nas urnas, em 2008, o direito de permanecer, Kassab destacou-se por suas lições sobre como valorizar imóveis. Se o presidente do PSD desistisse da política, o ramo imobiliário o esperaria de braços abertos. Não por acaso, ele já foi membro do Conselho Regional de Corretores de Imóveis. Em seus quase seis anos de gestão, Kassab jogou em muitas posições, defendeu, atacou e marcou muitos gols para o time das construtoras, empreiteiras e incorporadoras. Outros, ele ainda espera marcar em seu último ano, como a venda de 20 terrenos municipais para a iniciativa privada em troca da construção de creches. Quanta bondade. Vender terrenos em áreas nobres, das mais caras do mundo, suspeitas de inflar uma bolha imobiliária, em troca de creches. Estariam aí as 140 mil vagas que a maior cidade do continente precisa? Ah, tem a desapropriação de milhares de imóveis – fala-se em 10 mil –, de bairros do distrito do Jabaquara, zona sul. A operação urbana consorciada Água Espraiada vai remover perto de 30 mil pessoas para a construção de um túnel de alguns bilhões de dólares para ligar a Avenida Roberto Marinho à Rodovia dos Imigrantes. Outro projeto aplaudido pelas incorporadoras é a desapropriação de 45 quarteirões da região histórica da Luz e de Santa Ifigênia. Pela proposta da prefeitura, os dois bairros serão administrados por quem pagar mais e ganhar a licitação. Em troca, a empresa ou grupo poderá desapropriar imóveis de quem mora ou tem negócio por lá. E, como nenhuma profissão é um mar de rosas, Kassab também entrou em bolas divididas e causou expulsões. Por muito tempo, artistas de rua foram reprimidos e impedidos de exibir-
FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR
Infeliz aniversário
-sena cidade. Que perigo uma estátua viva representa? Ou um garotinho cantor que sonha com o estrelato? Ou uma dupla de repentistas desafiando-se enquanto provoca risos a sua volta? Outro jogo feio foi a tentativa de reduzir a merenda de creches, aumento do IPTU em até 300%, jogar jatos d’água em morador de rua de madrugada, fechar albergues, mandar a guarda civil retirar à força pessoas em situação de rua, virar as costas aos dependentes de crack, criminalizar movimentos sociais, mandar a polícia em cima de estudantes contrários ao aumento do ônibus, retirar terreno de catadores de materiais recicláveis, não usar os recursos para obras antienchentes. Para os trabalhadores dos serviços públicos, dá-lhes vale-coxinha, que ainda pode virar vale-ossinho. Discutir salário é bola dividida, e ele chuta para o lado que está virado. Nesse jogo, teve também cabeçada em camelôs, cheques-despejo de R$ 300 para famílias removidas de diversas áreas da cidade, de preferência para bem longe de onde a vida delas acontece. Tirando as do mercado imobiliário, o prefeito se mostrou ruim de metas. Atingiu 23,8% das que ele mesmo se deu. Deixou de construir três hospitais e corre o asfalto atrasado, pois outubro vem aí. Mas não para deixar um tapete os corredores de ônibus que não fez. Não ia ser ele, que valoriza tanto a cultura paulistana, que começaria a rever a cultura de privilegiar os automóveis que entopem as ruas. Não foi à toa que a torcida chiou. Pagou para ver um prefeito que atingiu 60% de ótimo/bom durante as propagandas televisivas da campanha eleitoral de 2008. E agora, segundo pesquisa Datafolha divulgada em dezembro, 72% dos paulistanos acham que o prefeito não cumpriu o que se esperava dele – isso num tempo de economia aquecida e arrecadação em alta. Mas nem tudo está perdido. Neste janeiro, São Paulo comemora seu último aniversário tendo Kassab como prefeito. E como controlar o descontentamento da população em outubro? Controlar? Ops... REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
25
COMPORTAMENTO Beber e dirigir é uma das maiores causas de acidentes com automóvel. Mas a arrogância de alguns, armados de seu carrão e protegidos pela impunidade, agrava mais esse cenário Por Andrea Dip
Se não tiver caráter,
não beba “S
exta-feira, a lua no céu/ A juventude reunida no bar/ Testosterona, idiotice e paspalhos/ Perfumes femininos no ar…” A música da banda paulista Flicts fala da atmosfera dos bares e baladas. Para a descrição ficar completa, poderia incluir algo como “um copo de cerveja em uma mão, a chave do carro na outra”. Em uma noite quente na capital paulista, não foi preciso procurar muito para achar exemplos dessa combinação. Em um bar na Barra Funda, na zona oeste, um grupo de amigos de 20 a 30 anos comemorava o meio da semana. “Essa história de motorista da rodada é balela. Ninguém quer tomar refrigerante”, assume um deles, antes de a reportagem ser expulsa pelo garçom. “A gente sabe que é errado, que tem a Lei Seca, mas cada um mora em um ponto da cidade”, diz outro. 26
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Uma moça conta com a aparência do carro para não ser parada nas fiscalizações. Ela diz que ter um carro bacana ajuda a “passar um pano” com a polícia. Seu amigo acha a lei radical, “uma ou duas latinhas de cerveja não mudam o estado da pessoa”, e reclama da falta de transporte durante a madrugada: “Táxi é muito caro. A gente prefere gastar esse dinheiro no bar”. Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil vive uma epidemia de acidentes. Em 2010 o país ultrapassou 145 mil internações no Sistema Único de Saúde (SUS). Quatro em cada dez mortes tiveram em comum a presença do álcool. Recentemente, um jovem declarou a uma reportagem de TV, com o copo de chope na mão, que “hoje em dia os carros têm freio ABS e airbag”, por isso se sente “bem mais seguro” para dirigir, mesmo depois de beber.
Quando a repórter perguntou o que aconteceria se ele atropelasse uma pessoa que “não possui freio ABS nem airbag”, ele respondeu: “A gente paga fiança e sai”. A postura, típica de alguém incapaz de enxergar valor em algo que não seja o próprio umbigo, é inspirada nos casos que ficaram famosos de motoristas donos de carrões muito seguros. Em julho, a nutricionista Gabriella Guerrero, de 28 anos, saía de uma balada com o namorado quando o Land Rover em que estavam atropelou Vitor Gurman, de 24, na Vila Madalena, também na zona oeste. Ele morreu cinco dias depois. Gabriella foi indiciada por homicídio doloso, responderá em liberdade e não teve a carteira apreendida. No mesmo mês, o empresário Marcelo de Lima, de 36 anos, atingiu com seu Porsche em alta velocidade a Hyundai Tucson de uma advogada de 28 anos, que morreu na hora.
GERARDO LAZZARI
LEI SECA? “Motorista da rodada é balela”, diz um frequentador de bares
Lima foi indiciado por homicídio doloso, pagou fiança de R$ 300 mil e responderá o processo em liberdade. Pouco mais que o estudante Felipe Arezon. Em setembro, Felipe “causou” com seu Camaro Coupé SS: Bateu em quatro carros na Avenida Sumaré, atingiu dois veículos no bairro do Limão e atropelou duas pessoas na Freguesia do Ó, na zona norte. Deixou um saldo de quatro feridos e um homem, com queimaduras em 90% do corpo, morreu dias depois. O jovem, de 19 anos, foi indiciado por tentativa de homicídio, embriaguez e fuga. Foi preso por quatro dias e liberado após pagar a fiança de R$ 245 mil. No mês seguinte, Nacib Mohamed Orra, de 20 anos, pagou R$ 54 mil e foi liberado dois dias depois de três doses lhe subirem à cabeça e seu Honda Civic subir na calçada. Atingiu três pedestres num ponto do ônibus. Ele não tinha carteira de habilitação e disse à polícia que pegou o carro dos pais sem autorização. Em 1995, a Cherokee do ex-jogador de futebol Edmundo chocou-se a 120 por hora contra um Fiat Uno. Três dos seis ocupantes do outro veículo morreram. Em 1999 Edmundo foi condenado a uma pena de quatro anos e seis meses de prisão. Ficou uma noite detido. No ano passado, a Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decretou novamente sua prisão. Mas a pena havia prescrito em 2007 e o processo foi arquivado. Enfim, o cotidiano está cheio de episódios inspiradores para que o jovem celebre com muito chope a invenção do ABS e do airbag.
MATEUS FONTANA
Lei inócua
EPIDEMIA No Brasil, quatro em cada dez mortes no trânsito têm em comum o álcool
Esse é um dos grandes problemas da chamada Lei Seca (11.705/2008), segundo Mauricio Januzzi, presidente da Comissão de Direito do Trânsito da OAB São Paulo. Hoje a lei prevê penas de seis meses a três anos de prisão para quem dirige embriagado, além de multa, mas não obriga o suspeito a soprar o bafômetro. Geralmente, quando é levado à delegacia, o motorista paga multa e é liberado. Se for detido por ter causado algum acidente e tiver dinheiro, paga a fiança e vai embora. “A lei determina que penas até quatro anos de prisão são afiançáveis e os acusados podem responder em liberdade.” REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
27
COMPORTAMENTO
28
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Acontece com os outros
Maurício, que não quer revelar sua identidade, já esteve do outro lado do volante. Há dez anos, se envolveu em um acidente que causou a morte de uma pessoa. “Você não imagina que uma coisa assim vai acontecer, até que acontece”, diz. “Era Quarta-Feira de Cinzas e eu voltava de uma festa já com o dia claro. Estava bêbado e com sono, tinha feito a mesma coisa os outros dias. Deixei alguns amigos em casa e não me lembro de mais nada.” Maurício acordou no hospital, só de bermuda, sem saber onde estava. “A enfermeira disse que eu havia me envolvido em um acidente e fui levado ao hospital só com a roupa do corpo.” Ele ligou para a família e soube o que tinha acontecido. “Um policial contou a meu irmão que meu carro bateu em outro, e que ajudei a retirar as pessoas do carro. Os dois veículos se incendiaram. Alguns anos depois recebi uma intimação, dizendo que uma mulher que estava no outro carro havia morrido em decorrência do acidente. Chorei muito porque até hoje não consigo me lembrar o que de fato aconteceu. É horrível pensar que causei sofrimento para uma família e poderia ter causado o mesmo sofrimento a meus pais e meu filho por uma besteira.” Maurício responde a processo e diz que é a favor do endurecimento da lei, “para que as pessoas não cometam o mesmo erro, de achar que não vai acontecer com elas”.
Um estudo inédito, patrocinado pelo Ministério da Saúde, mostrou que não são só condutores sob efeito de álcool que provocam acidentes no trânsito. Pedestres alcoolizados também. Intitulada “Consumo de álcool e os acidentes de trânsito”, a pesquisa analisou 1.248 vítimas em seis capitais, das cinco regiões do país. O atropelamento apresentou a segunda maior
MARCOS DE PAULA/AE
Januzzi aponta a falta de fiscalização efetiva como um dos motivos para que a lei não seja levada a sério. “As blitze são feitas em dias e horários em que teoricamente você pegaria mais pessoas, mas os brasileiros descobriram rapidamente que não precisam produzir provas contra si mesmos, e não fazem o teste do bafômetro. O ideal seria que, junto aos agentes da polícia, agissem agentes de saúde, para detectar quando o motorista está alcoolizado”, defende. Para o advogado, é “balela” o projeto proposto pelo senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) – já aprovado no Senado, segue para votação na Câmara –, que “endurece” a Lei Seca com penas que chegam a 16 anos de prisão para quem causar acidente alcoolizado e com o fim da tolerância mínima de álcool. “O projeto peca pela pena, que fere o princípio da proporcionalidade. A pena é muito alta, e isso vai pará-lo lá na frente”, acredita. Januzzi sugere um novo projeto de lei popular que também confere maior rigidez à lei vigente. O site www.naofoiacidente. org pede assinaturas para levá-lo ao Congresso Nacional. Um dos incentivadores da campanha é Rafael Baltresca, que perdeu a mãe e a irmã atropeladas em setembro passado, prensadas contra um muro. Morreram no local. O homem ficou detido por duas semanas e depois foi liberado sem pagar fiança porque apresentou um atestado de pobreza. “Meu pai faleceu há sete anos, eu morava com as duas”, conta Rafael. “Minha vida mudou, meu chão se abriu e o que sobrou foi lutar para mudar alguma coisa. Se tivermos 1 milhão de assinaturas, conseguiremos levar o projeto de lei para o Congresso.” Rafael lamenta que a legislação não intimide ninguém. “Não temos nenhum caso hoje no Brasil em que a pessoa ficou presa depois de ter matado alguém no trânsito por dirigir embriagada. Quem faz isso geralmente é indiciado por homicídio culposo, sem a intenção de matar, o que o leva a uma pena de até quatro anos. Pena de até quatro anos a pessoa pode pagar em liberdade, doando cestas básicas ou pintando muros da comunidade. Quer dizer, uma pessoa bebe, dirige em alta velocidade, mata pessoas e paga com cestas básicas”, critica.
FACULTATIVO Hoje a lei prevê pena de até três anos de prisão para quem dirige embriagado, além de multa, mas não obriga o suspeito a soprar o bafômetro
JAILTON GARCIA
NOVA LEI A mãe e a irmã de Rafael foram atropeladas e morreram: “O que sobrou foi lutar para mudar alguma coisa”
frequência entre os casos registrados em Manaus, Brasília e São Paulo. No Recife e em Curitiba, a queda foi a segunda forma mais frequente. Nas faixas etárias mais extremas, o atropelamento ficou em primeiro lugar, atingindo cerca de 52% das vítimas com mais de 60 anos e 47% até 9 anos. “A legislação brasileira atual está correta em determinar a punição severa de
motoristas que dirigem com determinado nível de alcoolemia. Entretanto, é necessário considerar os outros atores do trânsito – pedestres, ciclistas e passageiros –, que, sob efeito do álcool, arriscam igualmente a vida nas vias públicas. O atropelamento é uma das principais causas de morte no trânsito e, muitas vezes, é o pedestre que está alcoolizado e se coloca
Lei mal elaborada Para o advogado Sergei Cobra Arbex, o direito de uma pessoa de não provocar provas contra si mesma não pode ser desqualificado. “É uma segurança do cidadão, garantia da capacidade de se defender.” Segundo Arbex, esse princípio da Constituição de 1988 não pode ser banalizado por causa de uma legislação mal construída. “A confissão forçada sob tortura é uma maneira de autoincriminação. E você não pode passar esse princípio para outras escalas: ‘Assina aí, senão vai ser prejudicado’, ‘assina, senão a gente coloca sua mulher no processo’, ‘faz o bafômetro, senão é preso’.” Arbex considera a lei mal elaborada por estabelecer o critério da dosagem alcoólica, e não do estado de embriaguez.
O criminalista admite que a lei traz uma eficiência administrativa, porque a recusa ao bafômetro pode levar à perda da habilitação, mas “torna míope” o processo, pois sem o bafômetro não há provas. A fiscalização por blitze de policiais militares também é criticada pelo especialista. “Enquanto aquele aparato todo está em operação, crimes graves podem ocorrer em pontos próximos; o bandido tem a certeza de que está tudo mobilizado para a blitz”, alerta. “Além disso, é o princípio invertido de que todo mundo é criminoso até prova em contrário. Os arautos da moralidade acham que ‘quem não deve não teme’, mas isso é perigoso, parte do princípio de que todo mundo tem de se explicar.”
em situação de risco por não ter condição de avaliar a distância e a velocidade dos veículos, e também pela falta de equipamentos de segurança e de orientação adequada”, diz a coordenadora da pesquisa, Ana Glória Melcop. Segundo Carlos Salgado, conselheiro consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead), a combinação de impunidade com a desibinição produzida pelo álcool é a maior responsável por essa falta de percepção de risco. Ele a compara à cometida por pessoas que fazem sexo sem camisinha: “A avaliação do risco, prejudicada pelo álcool, explica a atitude intransigente ao volante. É o mesmo mecanismo que produz o risco na vida sexual”. Para o sociólogo Juracy Amaral, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), esse é um problema cultural. Ele acredita que o comportamento do brasileiro no trânsito não é diferente em outros lugares: “Principalmente os que se julgam mais ‘cidadãos’ que os outros comumente praticam indelicadezas nos condomínios onde moram e nos locais onde trabalham, estudam e se divertem. A cultura brasileira incentiva o exibicionismo e a ostentação de poder, permitindo a alguns agir como se fossem mais iguais que os outros”. Amaral também discute o paradoxo em relação à bebida: “O incentivo à bebida é constante e o boteco é muitas vezes apontado nas propagandas como o lugar de divertimento. Isso envolve também interesses econômicos poderosos. Então, em vez de tentar coibir a bebida, considerada ingrediente para o entretenimento, talvez fosse o caso de o poder público investir em atividades culturais que não necessariamente dependem do álcool, assim como foi feito com o cigarro”. Sobre dinheiro, poder e impunidade, ele não é muito otimista: “Sempre haverá privilégios para pessoas com poder econômicoe que mantêm boas relações. Seria ideal que a Justiça fosse imparcial e julgasse todos com base racional, fato que não é fácil de ocorrer porque a cultura brasileira está fundamentada nesse tipo de conduta há muito tempo”. O compositor Pixinguinha já dizia que bebida só faz mal para quem não tem caráter. Se falta caráter e sobra dinheiro, então, maior é o perigo. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
29
ATIVISMO
Ônibus hacker na estrada
Ativistas querem viajar pelo país para estimular população a cobrar transparência nas informações do poder e participação política via novas tecnologias Por Carlos Minuano
O
estacionamento do Museu de Arte Moderna (MAM) carioca foi cenário de um novíssimo gênero de invasão hacker. Em vez de rede de computadores ou sites de governos, a Comunidade Transparência Hacker, formada por ciberativistas, comprou um ônibus para invadir cidades e transformar realidades locais. A ideia é realizar oficinas e debates sobre transparência pública e participação política por meio da rede e das novas tecnologias. Pintado, grafitado e com bancos a menos no fundo para criar espaço de debates, o Ônibus Hacker fez sua primeira viagem em dezembro, ao Rio de Janeiro, para a terceira edição do Festival CulturaDigital.br. A reportagem da Revista do Brasil acompanhou. Comprado por R$ 58.593, com doações de quase 500 pessoas por meio do Catarse – plataforma de financiamento on-line –, o ônibus levou mais de 30 hackers de São Paulo. Em breve deve ganhar um GPS, para mapear os caminhos, e um roteador 3G, para garantir acesso à internet aos ciberativistas e seus laptops, tablets, celulares e smartphones. O grupo se lançou a partir de 2009 numa cruzada para tornar acessíveis informações de interesse público. De lá para cá foram muitas hackeadas. Começaram pelo Blog do Planalto, da Presidência da República, para abrir um espaço de comentários que não havia. 30
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Depois, no serviço de reclamações da Prefeitura de São Paulo, tornaram possível analisar informações como quantidade e origem das solicitações e o acompanhamento do atendimento – ou da falta dele. E o bando foi se animando. Outra atividade central da comunidade hacker é o Transparência Hackday, mutirões tecnológicos que ocorrem em todo o país. “Os encontros são organizados de maneira colaborativa, autônoma e descentralizada”, disse Pedro Markun, um dos fundadores. Neles, ativistas on-line trabalham horas a fio, ou durante dias seguidos, para clonar sites de governos e desenvolver aplicativos com o objetivo de dar transparência a processos políticos. Em dois anos o grupo saltou de 120 para cerca de 800 integrantes, todos conectadosem uma lista na internet. E os feitos também não foram poucos. Além de realizar o sonho de comprar um ônibus, com pouco tempo de vida, já participaram de importantes debates, como o da Lei de Acesso à Informação (12.527), sancionada recentemente pela presidenta Dilma Rousseff. “Participamos da construção do texto da lei”, ressalta Markun. Um desdobramento dessa ação é o site Queremos Saber – queremossaber.org –, onde é possível cadastrar pedidos de informações públicas e encaminhá-las a órgãos governamentais. A ideia foi inspiradano
site inglês whatdotheyknow.com, que tem o mesmo objetivo. Seguindo a lógica de abertura que permeia todas as ações do grupo, o portal pretende tornar públicos os pedidos, as respostas e, claro, a falta delas. Markun, entretanto, é cuidadoso ao falar do futuro. “Estamos amadurecendo nossas ações, gradativamente. Afinal, mexemos com uma coisa complexae obscura, que é a política.”
Celebração e vaias
Depois de duas edições na Cinemateca, em São Paulo, com o nome de Fórum da Cultura Digital, foram programadas duas edições do agora Festival Internacional CulturaDigital.br no Rio, em versão repaginada. Segundo o jornalista Rodrigo Savazoni, diretor-geral do evento, apesar das dificuldades enfrentadas durante 2011, o ambiente do encontro na Cidade Maravilhosa foi de celebração.
Com o mesmo espírito hippie que marcou os anos anteriores, a edição carioca uniu toda a diversidade que compõe a cena digital no mundo. “O objetivo é refletir nossa era, com sua potência de liberdade e dinâmica de controle”, disse Savazoni. Entre os internacionais, um dos destaques foi o professor de Harvard, e teórico das redes, Yochai Benkler, que abriu o evento em debate com o músico e anfitrião do festival, o ex-ministro Gilberto Gil. Outra participação que chamou a atenção foi a do escritor Paulo Coelho. Via teleconferência, o bruxo das letras defendeu as licenças abertas. Aliás, todos os livros do autor podem ser baixados gratuitamente em seu blog. “Uma ideia consistente não precisa de proteção. O resto é ganância ou ignorância”, afirmou Coelho, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
FOTOS BRUNO FERNANDES
BONDE DO FUTURO Ônibus dos ciberativistas: oficinas e debates sobre transparência pública e participação política por meio da rede e das novas tecnologias. Custou R$ 58.593, pagos com doações de quase 500 pessoas por meio do Catarse – plataforma de financiamento on-line
TRANSPARENTES A comunidade hacker tem cerca de 800 integrantes listados na internet REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
31
FOTOS BRUNO FERNANDES
ATIVISMO
ESPÍRITO HIPPIE A edição carioca do Festival Internacional CulturaDigital.br manteve a dinâmica da liberdade de reflexão e da alegria
Além de debates, o festival teve dezenas de atividades. Lounge, experimentações visuais, apresentações de projetos e um laboratório onde era possível encontrar gambiarras insólitas (para os mais leigos), como uma impressora de objetos. O ator Sérgio Mamberti, secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (MinC), procurou ressaltar o quanto a gestão da ministra Ana de Hollanda está alinhada com as políticas das gestões anteriores, que tiveram à frente Gilberto Gil e depois Juca Ferreira. Segundo Mamberti, as diferenças fazem parte de uma visão reformulada, sobretudo da secretaria que ele dirige. Em resumo, o estilo Ana de Hollanda, ao contrário do que muitos afirmam, não se opõe às políticas lançadas por Gil e Juca.
Mamberti não convenceu muito. Sobretudo quando leu uma carta da ministra para uma plateia de aproximadamente 500 pessoas, que lotaram o Cine Odeon, no centro do Rio. Uma vaia renitente quase o impediu de concluir. “Não nos representa”, gritavam. Nos bastidores, Rodrigo Savazoni procurava amenizar o estrago: “Pensei que seria pior”. O secretário disse à reportagem da RdB que a cultura digital tem papel estratégico para o MinC, assim como a regulamentação do Plano Nacional de Cultura (PNC), com 61 metas para os próximos anos. O PNC será complementado a partir de 2012 com a criação do Serviço Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), na plataforma da rede CulturaDigital.br, forma-
Coração hacker Anfitrião e embaixador do festival, Gil defende cultura digital transformadora O compositor Gilberto Gil, o ministro “hacker” da Cultura, estápor trás do discurso e da poesia que impulsionaram a cultura digital no Brasil. A tecnologia já estava presente em sua obra, e durante sua passagem pelo governo Lula suas ideias começaram a se concretizar também na esfera política, na forma da primeira coordenação de cultura digital dentro do MinC.
32
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Hoje ele assiste ao crescimento das sementes lançadas, como anfitrião e embaixador do Festival Internacional CulturaDigital.br. Gil conversou com a Revista do Brasil e defendeu a “ética hacker”, uma cultura para a transformação da humanidade. Você ficou conhecido como ministro “hacker”. Afinal, o que é um hacker?
da por especialistas, redes de coletivos culturais e ativistas. “Será um sistema de monitoramento, alimentado pela sociedade, fundamental para a avaliação do processo cultural brasileiro.” Outro impulso à cultura deve vir por meio do Programa Brasil Criativo, da Secretaria de Economia Criativa. A ideia, de acordo com Mamberti, é colocar a cultura dentro de um projeto de desenvolvimento sustentável. “Durante o próximo Fórum Social Mundial (de 24 a 29 de janeiro, em Porto Alegre), vamos propor que a cultura seja colocada como o quarto pilar do desenvolvimento sustentável”, afirma Mamberti. A proposta é parte de uma articulação que visa à participação do MinC no evento Rio+20, a ser realizado este ano.
É difícil dizer. Hacker é uma pessoa com inteligência, sensibilidade e coração dedicados a prospectar possibilidades, tentar decifrar sistemas, processos, em nome do conhecimento, do aumento da capacidade cognitiva do homem. Com o aumento da capacidade cognitiva, aumenta a capacidade de intervenção naquilo que é possível, e necessário, para que humanidade progrida, e para que progridam os indivíduos dentro da humanidade. É essa a mentalidade hacker.
tado para isso é por uma outra questão, por algum outro problema, mas todos somos, a princípio, um instrumento para a intensificação da condição humana no universo, seja através da continuação, da manutenção desse modo de ser humano que temos hoje, seja na crença da possibilidade de novas formas que estão aí à frente, no futuro. Eu sou um hacker. A ética hacker se aplica a qualquer campo de atividade, de ação, reflexão, a qualquer campo de compreensão sobre a vida.
Então, somos todos hackers? Todo homem é um hacker, pelo menos em potencial. Se não é, propriamente e plenamente, vol-
No debate com (o professor) Yochai Benkler, você questionou contribuições da religião à cultura digital.
Em 2012, o digital deverá ocupar o centro de outro importante debate. Uma convenção internacional sobre direitos autorais e comunicação digital será promovida pela Unesco, segundo informou o órgão na mais recente Reunião dos Ministros da Cultura do G-20 no Fórum D’Avignon. O anfitrião do encontro, em novembro, foi o presidente francês, Nicolas Sarkozy. Sérgio Mamberti considerou o evento um indício de que definições sobre o tema em âmbito internacional estão a caminho. A questão dos direitos autorais, pauta do encontro na França e de muitas discussões no Rio, é pedra no sapato da ministra Ana de Hollanda, apontada como defensora do Ecad, entidade responsável pela arrecadação de direitos autorais. Para piorar, antes mesmo de esquentar a cadeira à frente da pasta, Ana retirou do site do ministério o selo Creative Commons, licença aberta que permite o uso livre do conteúdo na internet, sinal de que uma mudança de rumo se iniciava – e de intensas turbulências no setor. Interrompeu também o debate da reforma da lei de direitos autorais, iniciado em 2007, que havia chegado a uma primeira proposta de revisão, encaminhada à Casa Civil em dezembro de 2010.
Um dos pontos positivos, na opinião de José Murilo, coordenador de Cultura Digital do MinC, é a criação de um registro de obras, uma plataforma para centralizar tudo o que é produzido com uma licença pública acoplada. “Ao registrar sua obra, o autor definirá que tipo de proteção deverá ter”, diz. Porém, o texto que estava pronto para ser encaminhado ao Congresso vazou. Descobriu-se que o que seria um tipo de Creative Commons do governo não constava. Para azedar, em nota técnica enA ministra Ana de Hollanda: turbulências caminhada à Casa Civil, o MinC defendeu o uso do modelo norte-americano notice Apesar do fogo intenso, a ministra se and takedown (notificação e retirada) – manteve firme no cargo, e até o fecha- dispositivo extrajudicial que permite a remento desta edição ninguém arriscava tirada de conteúdos da internet por titulauma aposta sobre sua permanência após res de direitos. “O provedor terá de remover o conteúdo a reforma ministerial prevista para a segunda quinzena deste janeiro. Para Mam- e notificar o usuário que publicou a obra. berti, o saldo do ministério é positivo e Dessa forma, se isenta de responsabilidade deve evitar uma substituição. por danos decorrentes de eventual violaOutra incerteza circulava pelas rodas ção de direito autoral”, explica o advogado de conversas durante o festival de cultu- Pedro Paranaguá, da Fundação Getúlio ra digital. O texto final da Lei de Direitos Vargas (FGV). Autorais encaminhada finalmente à CaO imbróglio tende a aumentar. O Misa Civil representa avanço ou retrocesso? nistério da Justiça, presente em debates do Há quem diga que avança em relação à festival, é contra o sistema de notice and Lei 9.610, de 1998, atualmente em vigor, takedown, por não se alinhar ao Projeto de mas retrocede se comparado ao elabora- Lei do Marco Civil da Internet, que tramido na gestão Gil/Juca Ferreira. ta no Congresso. O MinC argumenta que um mecanismo de notificação por meio do Judiciário pode vir a onerar o usuário, que teria de contratar advogado para sua defesa. Resta aguardar os próximos capítulos. WILSON DIAS/ABR
Direito autoral: raios e trovões
teresses... (pausa) que não sejam esses (risos), aí é outra coisa, que são os usos privatistas e particularistas da religiosidade.
Gil, no Ônibus Hacker: prospectando possibilidades
Eu acredito que a religião tenha a contribuir, sim, à medida que a compreensão da dimensão religiosa, que o entendimento sobre as relações da divindade e de sua relação com o humano esteja a serviço de uma
humanidade mais aberta, mais profunda, mais zelosa dos seus indivíduos e de suas coletividades. Nessa medida as religiões servem, como serve qualquer outro instrumento. Quando as religiões caem em mãos de in-
Você afirmou que os Pontos de Cultura eram uma popularização da cultura digital. Como avalia o momento atual desse programa? Conseguiu-se chegar a 3.500 Pontos de Cultura, e a ideia é que se possa fazer muito mais. O Brasil é um território imenso, as comunidades que precisam desse tipo de impulso são muitas, mas de qualquer maneira a ideia é também que a instalação
dos pontos seja ela própria um fator multiplicador da existência deles, que os próprios pontos passem a estimular a existência de outros. Que a iniciativa pública do programa ministerial não seja uma camisa de força, não prenda o sistema, não deixe as pessoas dependentes. Os Pontos de Cultura precisam andar por si próprios. Muitos já nasceram dessa multiplicação espontânea. Foi um programa bonito do Ministério da Cultura, que agora deve ser da sociedade brasileira, ou do mundo. Já tem pontos na Itália, Tunísia, Argentina, Estados Unidos, Japão. Os Pontos de Cultura estão por aí.
REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
33
ENTREVISTA
Sou do mundo,so Milton Nascimento tem três paixões: música, cinema e astronomia. Com a primeira ganhou o mundo. Começou a tocar ainda garoto, em 2012 completa 70 anos – embora ainda não esteja convencido disso – e já não quer parar Por Vitor Nuzzi
“C
ada história minha tem 200 histórias”, avisa Milton Nascimento. É verdade. Ele pensou em ser economista, virou cantor, mas poderia ser contista. Descreve episódios em detalhes, como se escrevesse um roteiro mentalmente. Conta que tem três paixões: música, cinema e astronomia. É possível ver um telescópio na entrada de sua casa, no Rio de Janeiro, de onde se pode avistar parte da floresta da Tijuca. Não pode faltar montanha na vida desse carioca de nascimento que aos 2 anos foi para Três Pontas, em Minas Gerais. O menino descobriu a música ainda pequeno, tocando na noite de Belo Horizonte. Queria ser só cantor, mas foi convencido a compor depois de sair com o amigo Márcio Borges para assistir a Jules and Jim (1962), de François Truffaut. “Entramos às 2 e saímos às 10 da noite”, lembra Milton. “Nessa noite, fizemos três músicas (Novena, Gira Girou e Crença). A partir desse dia comecei a fazer música. Eu não queria que fosse parecido com nada que já existia.” Assim, ele ganhou o mundo, após a explosão do Clube da Esquina, no início dos anos 1970. Quase largou a música, mas foi salvo por um menino que conheceu naquele que poderia ter sido o último show de sua vida. Os “baixinhos”, como ele diz, são parte permanente de sua história. Como o pequeno Benke, que Milton conheceu nas andanças pela Amazônia. Em outro ambiente da casa, tambores, gramofone, um quadro de Portinari mostrando o corpo de Tiradentes, um poema sobre a Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Na mesa, uma agenda Beatles 2010. Um piano, com várias fotos em cima: pai, mãe, irmãos. Dois bonecos em miniatura: Milton e uma outra pessoa, que em vez de dizer o nome é melhor ouvir, ou ler, a passagem a seguir, ocorrida no início dos anos 1960 na casa de uma cantora da época, chamada Luiza: 34
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Tem sempre um negócio que não deixa o país ser aquilo que ele realmente é, que é um país aberto pras raças
GERARDO LAZZARI
sou Minas Gerais
REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
35
ENTREVISTA
RODRIGO QUEIROZ
“Cheguei lá e fiquei maluco no meio daquele pessoal todo da Bossa Nova. Deu um lance de felicidade assim... Aí eu tô olhando assim as pessoas, tinha uma figurinha sentada num canto da sala, eu pensei: ‘Conheço essa mulher’. Pelo fato de ter sido DJ da rádio de Três Pontas, eu conhecia um disco que essa figura tinha gravado. Na rua, fui atrás dessa figura, que tinha cantado um disco de rock. Comecei a cantar, ela disse: ‘Cala a boca, esquece isso!’ Não precisa dizer quem é, né?”, diz Milton. “Eu peguei, calei minha boca e tal.” Para quem ainda não adivinhou, a segunda parte da história, passada anos depois, durante o segundo festival de música da TV Excelsior, que ela já havia vencido em 1965. “No dia do encerramento do festival, eu estava saindo, ouvi um barulho de uma pessoa vindo, passei com minhas vergonhas, abaixei a cabeEu fiquei ça, passei por ela e de repente ouvi um barulho de taassim no piano, me deu manco. Ela disse: ‘Mineiro não tem educação, não?’” Na sequência da bronca, um convite: “‘Eu queuma vontade ro que você vá na minha casa para mostrar umas de dar um músicas suas. Principalmente aquela que você canpontapé no tou lá no Rio, na casa da Luiza’. E começou a cantar. piano, botar Ela só tinha ouvido uma vez, e foram vários anos. fogo no piano, Olhei pra ela assim, ela disse: ‘Memória, meu caro’. botar fogo em Aquele barulho do tamanco nunca vou esquecer na minha vida”. mim... Fiquei É dessa maneira afetuosa que Milton lembra de danado sua amiga Elis Regina. E vai lembrando de outras pessoas que passaram e ficaram em sua vida, entre trens e estações. Você teve algumas descobertas, América Latina, África, Amazônia... De que forma foi conhecendo esses outros mundos?
Vamos começar pela América Latina. Fiz a música San Vicente para a peça de um escritor chamado José Vicente, para mim um dos melhores, mas que de repente desapareceu. Foi muito perseguido também. Ele fez uma peça, tinha ali a Norma Bengell, e me chamaram para fazer a música. A peça se passava numa cidade latino-americana chamada San Vicente, mas na verdade era passada aqui no Brasil. Não tinha o nome do país. Foi uma peça muito bonita, muito forte, e aí gravamos no Clube da Esquina (1972) e aconteceu que essa música se espalhou por vários países latinos numa época em que o Brasil não tinha nenhuma... Parecia que nem era da América Latina...
É, justamente. Eu comecei a receber várias cartas, de vários países, de músicos, poetas. Foi despertando uma vontade de saber quem eu era... Aí aconteceu o seguinte: fui à PUC, tinha um show do (Jards) Macalé. Antes do Macalé cantar, tinha um grupo do Chile – o pessoal tinha 16, 17 anos – que fez a aber36
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
tura, e eu fiquei maluco. Eu disse: não posso ficar longe desse pessoal. Logo depois do show, eles estavam na minha casa. Era o Água?
Grupo Água. Era uma época muito forte assim de eu conhecer o que acontecia no restante da América Latina e eles também conhecerem o que se passava no Brasil. Por causa deles, eu conheci muita coisa da Violeta Parra, Atahualpa Yupanqui... Aí veio Chile, Uruguai, todos os outros países. É verdade que você ficou com medo da MercedesSosa, que o Vinicius de Moraes teve de levar você lá?
Fiquei vendo o show dela, ela parecia uma mulher da altura do Corcovado, grande, alta, forte. Quando acabou, o Vinicius disse: “Vamos lá conversar com ela”. Eu disse: “Não vou, não. Estou com medo dela. Estou com medo mesmo. Ela é muito forte, não sei se eu aguento encarar essa mulher”. Ele disse para eu deixar de ser bobo. Pegou minha mão, atravessamos o teatro. Ele segurando minha mão como se eu fosse um bebê, e eu morrendo de medo. Quando chegamos no camarim, ela estava de costas, virou e disse: “Milton!” Aí entramos, conversamos... Eu estava louco pra fazer, apesar do medo, uma participação dela no disco Geraes. Depois que fiquei mais calmo, eu disse: “Mercedes, eu queria que você cantasse comigo no meu disco”. Ela respondeu: “Olha, eu não vou poder cantar, porque eu só canto em espanhol”. E eu: “Mas é em espanhol” Ela: “Pois é, mas acontece que a minha gravadora não vai deixar”. E eu: “Mas, Mercedes, a sua gravadora é a mesma que a minha”. Ela foi tentando escapar. Tudo que ela falava, eu tinha uma resposta na boca. O repórter fotográfico Rodrigo Queiroz não resiste e comenta: “Ela estava com medo”. (Gargalhadas) Aí gravou, né?
A última coisa que ela disse foi que ela só poderia cantar com o guitarrista dela. Eu falei: “Tá, você leva o seu guitarrista e eu levo o meu, um chileno do grupo Água”. E ela: “Ai, meu Deus, e a música?” Volver a los 17. “Então, tá” (risos). Mas acho que tinha medo dos dois lados, sabe? Foi um negócio muito bonito, porque a gente foi pro estúdio e deu uma passada. Na outra, a gente já estava gravando. Foi a primeira vez que eu cantei com uma pessoa da América Latina, e logo Mercedes Sosa. Em 2010, no show de 1º de Maio da CUT, em São Paulo, você fez uma homenagem a ela no Memorial da América Latina (Mercedes morreu em outubro de 2009).
Mercedes Sosa: “Parecia uma mulher da altura do Corcovado”
ARQUIVO/AG. O GLOBO
LEONARDO AVERSA/AG. O GLOBO
ARQUIVO/AE
Com o amigo Chico Buarque: “O Bituca manda em mim”
O parceiro Wagner Tiso: origens do Clube do Esquina
A gente gravou muita coisa, né? Fizemos muitos shows juntos... Tem um caso que é até muito engraçado. Tinha um índio que era fã da Mercedes. Onde ela ia, ele ia. Aí combinamos de fazer um show na Espanha. O índio foi. Quando vi o índio, perguntei como ele estava. “Tô mal, não sei como estou me aguentando em pé. A Mercedes veio a 200 por hora, nunca mais ando com ela de carro.” Aí, lembrei que me falaram que ela saía de Buenos Aires e ia pra terra dela, Tucumán, e todo mundo dizia na estrada: “La Negra...” (como Mercedes era conhecida), morrendo de medo. Se você visse a cara do índio, ele estava verde... Teve um lance que ela ligou pra mim e disse que queria gravar comigo Nos Bailes da Vida, mas tinha de ser naquele dia, porque ela ia viajar. No estúdio, tinha um cara tocando piano... Era uma música que eu nunca tinha ouvido na vida (Inconsciente Coletivo). Eu falei que ela tinha dito que era Nos Bailes da Vida, ela disse que não... Anotei a letra, a gente fez um arranjo na hora, e foi de primeira também. Aí eu falei que tinha ficado bonito. E ela: “Eu não te disse?” Eu tinha que ter medo dela, né? Tudo de primeira.
Teve uma época em que o Fito Paez me chamou para fazer um programa dele na televisão, lá na Argentina. Ele iria cantar umas músicas minhas e me dar umas dele para eu cantar. Fui pro hotel, e nunca chegavam as músicas do Fito. Fui ficando meio nervoso. No dia que a gente ia ensaiar, ele apareceu no hotel e trouxe umas músicas: “Nós vamos cantar estas aqui”. Sempre acontece comigo. Eu disse: “Co-
mo é que você faz uma coisa dessas? Você tem as minhas músicas com um mês de antecedência, e traz as suas agora. Como é que eu vou decorar isso?” Ele disse assim: “Tem uma história aqui na Argentina...” A Mercedes chegou lá e contou pra Deus e o mundo que a gente fez a gravação de uma música que eu nunca tinha ouvido falar (risos). Isso não aconteceu também no começo da carreira, quando te chamaram pra tocar com o Vinicius?
Eu estava tocando numa boate lá em Belo Horizonte. Era um trio – eu, Wagner Tiso no piano e Paulinho Batera, como a gente chamava (Paulo Braga). E tinha um outro trio que ia tocar com o Vinicius. Foram me chamar na pensão porque não ia dar tempo para eles tocarem. Aí tudo bem, Vinicius de Moraes eu sabia até as músicas que ele ainda não tinha feito. Ele e Tom Jobim, eu era absurdamente fanático. Você não ficou com medo dele?
Nem um pouco! Uma hora, ele falou que haviam dito a ele que Minas Gerais tem muitos músicos, compositores... “Tem alguém aí que compõe, que tem uma música pra cantar pra gente”? Os estudantes, que me conheciam, responderam: “Ele!” Parecia um filme do Spielberg, com as mãos assim, né? Foi a única vez que eu cantei, antes desse último disco nosso agora, E a Gente Sonhando. Fiz música e letra. Eu trabalhava num escritório, e tinha hora que me dava um negócio e eu pegava a máquina e escrevia...
Eu sabia até as músicas que o Vinicius ainda não tinha feito. Ele e Tom Jobim, eu era absurdamente fanático
REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
37
ENTREVISTA
RODRIGO QUEIROZ
Você era bom datilógrafo...
Marquei o dia em que eu ia parar. Fui pro teatro pensando nisso. (...) Loucura, aquele menino salvou a minha vida
(risos) Você leu o livro do Marcinho (Márcio Borges, autor de Os Sonhos não Envelhecem), né? Eu escrevia a letra e botava uma música assim, por causa do balanço da letra, né? E a Gente Sonhando foi em 1963, uma coisa assim. Eu era muito amigo do Márcio Borges e a gente saía, todo dia, andando pelas ruas de Belo Horizonte, principalmente a Rua Rio de Janeiro, que dava um negócio na gente, aquelas árvores, as pessoas, as casas, que a gente não conseguia parar de pensar. Um dia cheguei no escritório e comecei a escrever um conto baseado na Rua Rio de Janeiro. Fiz a música também. Só que o conto desapareceu e ficou essa música que eu não gravei até o ano passado, com os meninos da minha terra, Três Pontas. Então, acho que a minha vida tem umas magias que me pegam de surpresa. Sou muito feliz com a música e com o que a música me traz. Tem uma música que você fez imaginando outra que gostaria de ter feito e não fez.
Eu morava em Belo Horizonte. Liguei o rádio e de repente eu reconheci as vozes, que eram o Paul McCartney e o Stevie Wonder (a música era Ebony and Ivory). Fui ouvindo, chegando pra perto do piano... Foi uma coisa que o Paul McCartney escreveu, ligando as cores do teclado com as cores da vida. Então, como é que podia ser ébano e marfim numa música e na vida real ter o preconceito? Eu fiquei assim no piano, me deu uma vontade de dar um pontapé no piano, botar fogo no piano, botar fogo em mim... Fiquei danado. Tinha uma coisa que o Tunai mandou para mim, eu fiz a letra, mostrei pra ele, que é louco pelos Beatles, ficou maluco e eu também (a música é Certas Canções, gravado no disco Anima, de 1982). Por falar em preconceito, você compôs a Missa dos Quilombos. O Brasil ainda tem trabalho escravo. Apesar de algum avanço que a gente teve, ainda tem essa face atrasada do país.
Tem muita coisa que precisa ainda consertar no Brasil. Que é esse negócio, né? Não é preconceito de branco com negro, tem índio... Tem sempre um negócio que não deixa o país ser aquilo que ele realmenteé, que é um país aberto pras raças. Eu não conhecia o dom Pedro Casaldáliga, uma pessoa me deu um livro de presente, e nesse livro ele fala que sofreu muito (na ditadura) e uma coisa que segurou muito a vida dele foram as minhas músicas. Fiquei sabendo que ia ter uma missa em Goiânia e fui. Era a Missa da Terra sem Males, dos índios. Era uma coisa maravilhosa, uma loucura, parecia que estava saindo de dentro tudo o que eu ouvia. Fui lá cumprimentar, passou dom Hélder Câmara, que disse: “Por que vocês não fazem uma missa baseada nas coisas dos negros?” Que baixinho, hein? Eu tenho um pro38
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
blema com os baixinhos, que sempre me dão ideias fantásticas (risos). Aí a gente começou a escrever, eu, dom Pedro e o Pedro Tierra. Tivemos uma dificuldade, porque o Rui Barbosa mandou queimar todos os papéis que falavam da época dos negros no Brasil, então tivemos que botar gente pelo país inteiro (para pesquisar). Aí fizemos a missa, que foi uma loucura. Nesse disco novo (E a Gente Sonhando), você juntou uma turma de Três Pontas. No disco Minas (1972), também juntou músicos que já conhecia. Você gosta desse processo coletivo?
É impressionante. Eu adoro trabalhar com mais pessoas. Não gosto de trabalhar sozinho. Tenho uma sorte, vou conhecendo as pessoas, e elas têm a ver com a gente. O Minas, por exemplo, foi uma ideia de um garoto de 12 anos que conhecia minhas músicas e perguntou por que eu não botava o nome do disco de Minas, o Mi do Milton e o Nas do Nascimento. É sempre assim, os baixinhos... No seu site, tem uma frase intrigante do Chico Buarque: “O Bituca manda em mim”. Por quê?
Uai... A gente ficou amigo, começou a compor e não sei que mais e tal. Ele fica nervoso pra cantar num palco, e eu fazia os shows e dizia: “Chico, você vai, e tal”. Aí ele pegou uma hora e falou que eu mandava nele, que tudo que eu queria ele fazia. Achei bom, né? Apesar de todo esse universo, dessa alegria que você falou, teve uma hora que você chegou a pensar em não cantar mais. Isso para você deve ser algo quase como não viver, não é?
Era não viver. Teve uma época que eu falei pra mim que eu só ia compor as coisas que eu estivesse vivendo e que eu acreditasse. Teve uma época que não estava legal. Então, se não tá legal, vou parar. Mas não falei para ninguém, porque tinha muita gente que falava que ia parar, fazia o show de despedida e não parava. Marquei o dia em que eu ia parar. Ia ter um show que eu fiz com dois corais de Minas (Rouxinóis e Curumins), a Jazz Sinfônica de São Paulo, mais a minha banda. Eu fui pro teatro pensando nisso. Esse show parecia mesmo que era a última coisa que eu ia fazer. Foi muito forte. Aí pediram vários bis, e eu resolvi cantar Travessia. Estava todo mundo virado pro público. Quando eu comecei a cantar, um garoto dos Rouxinóis começou a olhar pra mim. Cantei a música inteira sem olhar pra ele, e na última palavra da música, que é “viver”, eu olhei pra ele. Porque naquele momento ele me fez parar totalmente de pensar nessa coisa. Fui pro camarim, as pessoas perguntando o que tinha acontecido comigo, que eu nunca tinha cantado daquele jeito, e pedi para um amigo trazer o menino. Devia ter 10 anos. Disse: “Você sabe o que você fez
A mensagem para Lula: “Tudo de ruim vai passar”
comigo hoje?” Ele disse: “Sei”. Mas com tanta certeza que eu fiquei olhando pra ele... Eu disse: “Olha, de hoje em diante a gente não pode ficar separado, não. Você faz parte da minha vida”. E ele: “Tudo o que eu queria na minha vida era que você fosse meu pai”. A partir daquele instante, a gente se deu muito bem. Os pais dele me receberam, a gente viajou pra vários lugares, fiz uma música chamada Rouxinol, que é pra ele. Hoje, ele mora aqui comigo, tá estudando aqui no Rio. O pai que ele queria ele teve. Loucura, por que aquele menino tinha de virar naquela hora? Salvou minha vida. Então, é meu filho, meu filho mesmo. Por falar em menino, até hoje você tem ligação com o Benke...
O Benke já é outra história, de quando eu resolvi fazer o disco baseado nos índios. A gente andou, andou, andou, até que a pessoa que era responsável pela gente, um seringueiro, disse: “Vamos numa tribo que não é nenhuma que você conhece”. Andamos muitos dias. Começamos pelo Juruá, aí subimos outro rio pequeno, e quando a gente estava chegando na casa do cacique tinha um garoto num morro. Ele atravessou o rio de uma maneira que eu nunca vi alguém nadar daquele jeito. Nessa viagem, quando chegava a noite, o Macedo, que era o seringueiro, construía o “hotel do Macedo”: pau, madeira e redes. Eu estava olhando e de repente veio uma mão no meu ombro, até meio pesada. Era o garoto que tinha pulado no rio. Ele me ofereceu um coco. Era o começo da nossa amizade, que graças a Deus está aí até hoje. Era um menino fora de série, com seus 10 anos. Parecia um cara com muitos anos, que conhecia a história do Brasil inteiro, dos índios, e a gente não se largava mais. Até que teve uma noite, na véspera da gente voltar, e a gente fez um luau. Fui cantar e eu chamei o Benke para cantar uma música comigo. Acontecem comigo umas coisas que nem sei de onde eu tiro. Comecei a cantar Casamiento de Negros, da Violeta Parra. Ele, que não conhecia, veio a música inteira cantando comigo, até o fim. Eu não queria ir embora, queria trazer o garoto. Quando a gente estava indo, o Macedo disse “txai”. Eu achei a palavra bonita. Esperei uns dois dias e perguntei o que queria dizer. Quer dizer: mais que irmão, mais que amigo, a metade de mim que habita em você e a metade de você que habita em mim. Aí botei o nome do disco, Txai (de 1990). Esse pessoal é tão cabeça, são realmente os verdadeiros poetas. Teve (anos depois) uma coisa com o Benke que eu até chorei. Lá no Jardim Botânico (no Rio), ele estava dando uma aula para crianças e, quando prestei bem atenção, pensei: meu Deus do céu, um garoto que eu conheci dando aula para crianças que tinham a mesma idade que ele tinha quando eu o conheci. Me deu um negócio, fui ficando com o coração tão feliz assim que tive
de chorar. Ele, realmente, é um pajé. E está fazendo umas coisas na região para melhorar. Há pouco tempo, você mandou uma mensagem para o Lula, desejando recuperação... Aquilo te sensibilizou?
Sensibilizou muito. Eu tenho uma coisa assim com o Lula, porque de acordo com as coisas que eu vi no filme que fizeram sobre ele, as nossas vidas correm em paralelo, apesar de eu não fazer parte da vida dele. Aí fui compreender, porque todo lugar em que a gente se encontrava ele sempre fazia questão que eu estivesse perto, me chamava, brincava com os músicos... Inclusive foi ele quem me apresentou para a Dilma, nesse show que você falou (do 1º de Maio). Segundo ela, e é verdade, quando era bem novinho a gente foi amigo. Ela começou a falar do Márcio Borges, de mim, das pessoas com quem ela andava, e uma das pessoas era eu. Aí fui lembrando. Você vai fazer 70 anos...
Dizem...
Isso pesa para você de alguma forma, assusta?
Olha, uma coisa que eu penso é o seguinte: artista não tem idade. Músico, então, não tem mesmo. Eu não guardo aniversário de ninguém. Só o meu, porque todo mundo fica falando e eu acabo tendo de saber. Mas não acredito que eu tenha 69 anos. Não tenho (risos). Então, em 2012 nada será como antes?
Nada. Inclusive... (mostra a camiseta, na qual se lê “The same as it never was before”). Foi sem querer, não fiz de propósito, não.
Esse pessoal (povos da floresta) é tão cabeça, são realmente os verdadeiros poetas
REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
39
Atitude Por Júlio Delmanto
Apesar do sistema “S omo rotulados quando entramos aqui. Eu não espero por ninguém, só por Deus. Mas procuro me informar, sei os meus deveres e os meus direitos. E sei que sozinho talvez não consiga nada. É uma boa oportunidade esse curso e temos que agarrar.” Daniel tem 26 anos, e está em sua quinta passagem pela prisão. Ainda tem dois meses para “tirar” em regime semi-aberto na Penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos (SP). Sua fala sintetiza o eixo expressado pelos participantes do projeto Como vai seu mundo?, realizado há um ano. A iniciativa é do rapper e ex-detento Dexter, em parceria com o juiz Jaime dos Santos Jr., a ONG Instituto Crescer e o Coletivo Peso, e se propõe a levar educação, cultura, capacitação e formação política para o sistema prisional. “Temos como objetivo colocar a sociedade em contato com o sentenciado e desenvolver nele a capacidade de diálogo e de troca de informação”, aponta o magistrado. Daniel está com os demais jovens no campinho de terra da penitenciária. Eles aguardam os shows de Yzalú, Ca.Ge.Be, Rael da Rima, Dom Pixote e Dexter, na formatura de 68 presos. Foram seis meses dessa etapa do projeto, com oficinas, programas de rádio, vídeos, fanzines, exposição fotográfica, música. Doze horas de atividade, um dia a menos de pena. Nelson Silva Santos tem 35 anos, metade deles passada atrás das grades em 25 penitenciárias. “Se houver isso dentro dos 40
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
presídios as pessoas vão sair transformadas. A cadeia não transforma ninguém, o sistema em si. Mas a cultura, a leitura, a oportunidade sim”, defende. Eric Bento dos Santos, também de 26, quer emplacar carreira de cabeleireiro. “A verdadeira ressocialização não é o governo que dá, não é o Dexter nem o projeto, cresce dentro de você e expande”, acredita. “O cara que vai uma vez na oficina não consegue mais deixar de ir”, acredita Tassiano Máximo. Sua família vive em São José do Rio Preto, mas desistiu de reivindicar transferência por aproximação familiar. Prefere poder continuar aproveitando os espaços oferecidos pelo projeto. “Aqui é mais longe, mas em seis meses minha mente abriu de uma forma que posso colocar em prática o que aprendi, pessoas vêm passar mensagens positivas”, elogia. Quando sair, Máximo pretende montar uma grife de roupas com estampas remetendo a esportes radicais. Nelson também tem seus planos. Completou o ensino médio no cárcere, participou do Enem e almeja cursar faculdade de Antropologia. Eric lembra que “todo mundo que tá aqui tem um plano”, mas as dificuldades são grandes. “Quando o Plano A não dá certo, o Plano B pode ser o crime”, alerta. “É preciso derrubar o muro existente entre o preso e a sociedade. E o alicerce desse muro é o preconceito.” Animada com a experiência de oficineira, Yzalú – que faz versões banquinho-e-violão para sucessos do rap – agora tem como objetivo estender o projeto para penitenciárias femininas.
CIDADANIA
Liberdade e democracia Na primeira edição do recém-criado prêmio da CUT, foram lembradas personalidades e entidades sociais com longa trajetória de atuação em movimentos sociais. Próxima edição será em 2013
A
solenidade de entrega da premiação foi realizada no dia 13 de dezembro, para lembrar o AI-5, decretado pelo regime militar nessa data, em 1968. Foram seis as categorias premiadas, além de vários homenageados, escolhidos por meio de votação pela internet. “O prêmio tem dois grandes objetivos: homenagear pessoas e instituições engajadas pela liberdade de expressão e contra a ditadura e fazer o resgate histórico dessa luta”, afirmou o presidente da central, Artur Henrique. Frei Betto – premiado na categoria Personalidade de Destaque na Luta por Democracia, Cidadania e Direitos Humanos – partilhou o reconhecimento com os demais candidatos. “Não somos concorrentes, somos companheiros”, afirmou. O escritor lembrou sua participou da fundação da CUT e aproveitou o momento para reafirmar a importância de a central ter sua atuação pautada pela independência em relação aos governos. “Governo é como feijão, só funciona na panela de pressão”, brincou.
Artur: resgate histórico
FOTOS ROBERTO PARIZOTTI
Cerimônia de entrega do 1º Prêmio CUT, no Teatro Tuca
Frei Betto: pressão no governo
Rosalina de Santa Cruz (Personalidade de Destaque pela Luta na Redemocratização), dedicou o prêmio a seu irmão, Nando Santa Cruz, perseguido e preso na ditadura: “Quero, em tempos de Comissão da Verdade, pedir que se vá além disso, e se apurem as responsabilidades daqueles que mataram, torturaram e até agora não foram julgados”. Membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Egídio Brunetto, morto em acidente de carro há duas semanas, foi homenageado durante a premiação na
categoria Instituição de Destaque. Brunetto militava na região do Mato Grosso do Sul. Sua viúva, Atiliana, e um dos coordenadores do MST, Gilmar Mauro, tiveram o reconhecimento pela luta histórica do movimento por justiça no campo. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o premiado como Personalidade de Destaque na luta por Democracia e Liberdade. Ele havia acabado de sair do Hospital Sírio-Libanês após a terceira sessão de quimioterapia e foi representado por seu amigo Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula. “O homem já está vencendo mais este desafio e estará pronto para outra até o início deste ano que vem”, disse Okamotto, ao comemorar a informação da equipe médica de que o tumor regredira 75% e que estava descartada a necessidade de cirurgia. Foram homenageados ainda, como personalidades de destaque, a farmacêutica Maria da Penha (Luta pelos Direitos dos Trabalhadores) e dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (Luta Democracia e Justiça no Campo). Segunda edição está prevista para 2013. http://bit.ly/rba_premio_cut REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
41
SAÚDE
Que beleza
P
ele bonita, macia, livre de manchas e de rugas. Cabelos saudáveis, sedosos, brilhantes e sem caspa. Corpo sem estrias, celulite nem gordura localizada. As promessas fazem a alegria das agências de publicidade e mídias – as que anunciam os produtos e as que vendem em sua programação uma ideia de felicidade movida a cremes, xampus, maquiagem. Para deleite dos mais vaidosos, o arsenal aumenta a cada dia. Dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos mostram que o faturamento do setor nos últimos cinco anos 42
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
cresceu 56%. No Brasil, há mais de 1.600 empresas – e 20 delas faturam acima dos R$ 100 milhões. Feitos para causar elogios e embelezar até a autoestima, os cosméticos não são tão inofensivos como acreditam consumidores ávidos por uma aparência de capa de revista. Podem, sim, causar problemas. Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia, entre os fatores que mais levam pacientes irritados aos consultórios estão substâncias aromatizantes. Há ainda muitas pessoas que recorrem aos sites de reclamação, relatando experiências ruins inclusive com marcas importantes.
GETTYIMAGES
A cada dia novos cosméticos prometem milagres. Mas será? Por Cida de Oliveira
Falta rigor
Outro aspecto apontado por analistas do setor é que as normas são frouxas. Augusto Ferraz, vice-presidente da Associação Brasileira de Apoio e Proteção aos Sujeitos da Pesquisa Clínica, afirma que em sua atuação como consultor no segmento já viu fraudes em experimentos de grandes indústrias. “Os médicos que testam cosméticos em pacientes ganham menos que os que testam medicamentos e acabam fazendo diversas pesquisas simultâneas, para compensar. O mesmo paciente pode estar testando rímel, blush e produto para peeling”, diz. “Assim fica difícil saber qual deles pode ter causado uma reação.”
Na observação de Ferraz, embora os cosméticos não representem perigo à saúde na mesma proporção que um medicamento, há produtos que podem causar grandes danos. Para melhorar a cútis, a autônoma Alice Hatsue Seino, de São Paulo, recorreu a cremes da Natura que prometem pele firme, lisa, uniforme e elástica. Depois da terceira aplicação, seu rosto inchou e a sensação era de uma queimadura. Isso em fevereiro de 2009. Procurou então o serviço de atendimento ao consumidor e foi encaminhada a um dermatologista, que constatou alergia no rosto e reação secundária nos quadris e a medicou. Testes feitos dias depois confirmaram sensibilidade ao produto. Um segundo medicamento foi prescrito para combater as lesões que se alastraram. Como não desapareceram, dois meses depois ela voltou a procurar a empresa. Quando Alice conseguiu passar em consulta, com o mesmo médico, as lesões tinham se agravado. Ele se negou a voltar a atendê-la e a declarar o nexo causal entre o produto usado e a alergia. Ao procurar a ouvidoria, foi informada de que a Natura não tomaria providências. “Devido às lesões, não pude realizar a cirurgia para correção de um prolapso uterino”, conta. Nos meses seguintes, enfrentou reações inéditas à vacina contra gripe, à exposição ao sol e a produtos usados no tratamento dentário. Em maio do ano passado, Alice entrou com ação por indenização por responsabilidade civil e por danos morais contra o fabricante. Por meio de sua assessoria, a Natura afirmou que avalia sistematicamente as matérias-primas e seus produtos antes de colocá-los no mercado e testa a eficácia e segurança conforme exigências da Anvisa e do Ministério da Saúde. Ressalva que, apesar de todo esse cuidado, é sabido que todo produto pode estar associado a efeitos indesejáveis e que reações adversas a cosméticos são raras e normalmente associadas ao uso incorreto. E argumenta que algumas pessoas são suscetíveis a reações, sendo as mais comuns irritação e alergia de contato, que considera quadros inespecíficos e possíveis de serem desencadeados por inúmeros fatores, como substâncias presentes no dia a dia, e não especificamente cosméticos. Greyce Lousana concorda que muitos problemas são causados pelo uso impróprio, como aplicação diária de um creme indicado para uso semanal. Ou armazenamento inadequado na casa do consumidor ou no estoque do distribuidor. Mas chama a atenção para um aspecto que, segundo ela, precisa ser resolvido pela indústria: a falta de adequação das fórmulas às diferenças de clima e temperatura. “Uma substância que se conserva bem em regiões de clima mais ameno pode deteriorar-se rapidamente em cidades mais quentes.” E o mesmo produto é vendido em todo o território nacional. Isso quando não vem importado da Europa.
REGINA DE GRAMMONT
No ano passado, uma denúncia pôs em dúvida a segurança de esmaltes. A associação de consumidores Proteste denunciou a presença de substâncias nocivas, como tolueno, furfural, nitrotolueno e dibutilftalato. A legislação brasileira não tem referências para os dois primeiros solventes nem define limites seguros para os últimos. O dibutilftalato foi banido na Europa. São substâncias causadoras de câncer em animais utilizados em pesquisas de laboratório. Na época, os fabricantes Colorama, Risqué e Impala alegaram produzir conforme as normas. O Ministério Público Federal abriu inquérito para investigar. A segurança dos cosméticos depende do cumprimento de normas como a utilização de ingredientes aprovados mundialmente, a realização de testes em seres humanos, e o funcionamento de um serviço de qualidade capaz de rastrear toda a cadeia produtiva, da procedência das matérias-primas ao uso pelo consumidor. “A questão é se há fiscalização suficiente para um setor complexo e em franca expansão. Muitas vezes a Anvisa nem sabe que o produto existe”, afirma Greyce Lousana, da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica. Cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) registrar os produtos e apurar denúncias de irregularidades. A enfermeira Rosemary Ferreira, pós-graduada em Saúde Pública e em Gestão Ambiental, atua em Diadema, no ABC paulista, polo com mais de 30 fabricantes e outros 50 fornecedores de insumos. “Muitos já foram interditados”, afirma. Em Cajamar (SP), também há várias empresas do setor. Elisabete Barbosa, da Diretoria de Saúde do município, conta que a fiscalização consiste de visitas periódicas, diligências sem prévio aviso e inclui o acompanhamento de reações adversas e de relatórios de atendimento ao consumidor. Mas, como o tempo entre a reclamação e a inspeção pode ser longo, a recomendação é de que a queixa seja registrada tanto no serviço do fabricante como na vigilância sanitária da localidade onde está instalada a indústria. “Se ninguém reclamar, não saberemos se o problema é individual ou comum a muita gente”, alerta.
Alice usou cremes que prometiam pele firme, lisa, uniforme e elástica. Depois da terceira aplicação, seu rosto inchou e a sensação era de uma queimadura
REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
43
VIAGEM Cena de Augustas – O Filme: a atriz Caroline Abras dá vida à garota de programa Katia
A Augusta co Entre uma fase e outra de decadência, uma das ruas mais famosas de São Paulo sobrevive como polo de pluralidade onde paulistanos e visitantes praticam o turismo cultural
Narguilé na calçada: democrático
Por Guilherme Bryan
FOTOS DANILO RAMOS
C 44
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
hega em breve aos cinemas Augustas – O Filme, estreia do documentarista Francisco Cesar Filho em longa-metragem de ficção, no qual a rua famosa de São Paulo é o cenário dos inusitados universos urbanos da vida de um jornalista recém-demitido. “A Rua Augusta tem uma gigantesca quantidade de moradias, pequenos comércios e serviços, onde muita gente mora e trabalha; botecos populares, onde as pessoas almoçam seu PF. Procuramos esse aspecto para o filme, e não o das baladas. Também exploramos um pouco o desenho da rua”, conta o diretor. A Augusta, aliás, há muitas décadas é um dos personagens mais peculiares da urbanidade brasileira, espécie de território livre
FOTOS TUCA VIEIRA/DIVULGAÇÃO
Mário Bortolotto: é possível viver sem precisar ir muito longe
Francisco Cesar Filho: rua viva, onde as pessoas moram
omo ela foi onde uma ampla diversidade de classes sociais, opções de vida e geografias se cruzam harmonicamente. “Não há paralelos com outros lugares do Brasil, talvez nem do mundo. Só temo que a especulação imobiliária, que acontece em todo o país, ameace esse caráter”, avalia. O jornalista de Augustas é interpretado pelo dramaturgo e ator Mário Bortolotto. “Ele se envolve com empregadas domésticas, prostitutas, jornalistas e uma artista emergente, personagens abundantes na região, onde é possível viver sem precisar ir muito longe”, define o ator. O filme conta também com jovens nomes do teatro e do cinema, como Caroline Abras, Ana Georgina Castro, Maíra Chasseraux e Guta Ruiz, e é baseado no romance autobiográfico A Estratégia de Lilith, do jornalista Alex Antunes. A trilha musical é formada justamente por bandas paulistas dos anos 1980, como Akira S e As Garotas Que Erraram, Fellini, Mercenárias e Patife Band. Todas têm a ver com a época em que a rua começou a consolidar seu status, embora não se apresentassem propriamente na Augusta, mas em outros pontos da região central no seu entorno. A via é também fonte de variadas inspirações musicais. Os migrantes gaúchos do Cachorro Grande, que a escolheram para morar, acabam de lançar um CD chamado Baixo Augusta. “Todas as músicas desse, e dos nossos últimos três álbuns, foram compostas nessa área, entre a minha casa e a do guitarrista
Vida real: meninas de todos os tipos
REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
45
VIAGEM Marcelo Gross”, conta o vocalista Beto Bruno. Baixo Augusta é nome de uma região do bairro Cerqueira César que tem a Augusta como espinha dorsal e abrange várias de suas transversais entre a Avenida Paulista e a Praça Roosevelt, onde a rua começa, mais colada ao centro da cidade, além das paralelas Frei Caneca e Consolação. É a extremidade oposta à do lado mais rico dos Jardins, onde termina. Beto Bruno destaca as casas de shows abertas a bandas emergentes: “Não só de São Paulo. Esse é o caso do Pub SP, do Studio SP, do Beco 203, do Inferno e da pioneira Outs. Mas também tem muito bêbado chato”, avisa. Francisco Cesar Filho acrescenta o Club Vegas, de música eletrônica, e o Sarajevo, com ambientes para música ao vivo, pista de dança e espaço ao ar livre. O pedaço – um desfiladeiro de vaidades – concentra dezenas de salões de beleza e academias que ficam abertos a noite toda. Tem apreciadores de bate-estaca, rap e samba. Tem um bloco de Carnaval, os Acadêmicos, e seu enredo. Novos edifícios sendo erguidos e casarões tombados. Restaurantes e botecos para todo tipo de gosto e de bolso. E espaço para tribos LGBT, emos, clubers, punks, prostitutas e muita gente sem turma e sem rótulo. A música Rua Augusta, do rapper Emicida, retrata uma prostituta fictícia, inspirada nas que fazem ponto por ali: “A maquiagem forte esconde os hematomas na alma (...) A mesma grana que compra o sexo mata o amor/ Traz a felicidade, também chama o rancor”. Mas a composição mais famosa com o nome da rua foi composta por Hervé Cordovil e se tornou um dos maiores símbolos do rock brasileiro na voz de Ronnie Cord. “Hay, hay, Johnny/ Hay, hay, Alfredo/ Quem é da nossa gangue não tem medo” ilustrava o típico rebelde sem causa, define o jornalista Marcelo Fróes, autor de Jovem Guarda em Ritmo de Aventura. “Era um jovem que tinha vindo ao mundo a passeio e queria se divertir, como seria alguém que entrasse na rua a 120 por hora.” Para Fróes, essa canção é tão marcante para o rock brasileiro como Estúpido Cupido, com Celly Campello, e Quero Que Vá Tudo pro Inferno, de Roberto e Erasmo. “Foi o primeiro rock brasileiro sem cara de versão”, acrescenta.
Porta da Z Carniceria: açougue que virou bar
Combustível barato para a noite toda
Origens
46
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Claro, tem lojinha descolada
FOTOS DANILO RAMOS
As referências à rua então chamada informalmente de Maria Augusta são de 1875. Foi uma das vias abertas pelo português Manuel Antônio Vieira em sua propriedade, Chácara Capão, no bairro Bela Sintra, para facilitar o deslocamento entre o centro da cidade e o alto do Caaguaçu – um morro que ia da região da Pompeia até o Jabaquara, com um pé na margem do Rio Tietê e outro na do Pinheiros, e em cujo cume seria traçada a Avenida Paulista. Em 1914, a rua desceria ao lado oposto da Paulista, em direção à hoje chamada região dos Jardins. Seu nome, oficializado em 1927, não seria em homenagem a alguma mulher, mas uma referência de nobreza, tal qual a Rua Real Grandeza, que mais tarde viraria a Paulista. A região começava a ser projetada por engenheiros como Joaquim Eugênio de Lima para abrigar propriedades residenciais mais afastadas do “movimentado” centro. No sentido dos Jardins, o prolongamento foi até a Rua Estados Unidos, e continuou a partir dali com o nome de Rua Colômbia. No sentido Paulista-Centro, há referências à prostituição
“Footing” entra na madrugada
Cinema e teatro pra quem curte programa “cabeça”
Tem casas noturnas para os “alternativos”... ...e casas “tradicionais” para os conservadores
na década de 1940. Para segregar o turismo sexual que crescia por ali, seu trecho da Martinho Prado à Rua da Consolação foi desmembrado e nomeado Martins Fontes. O trânsito de carros e ônibus cresceu muito por ali – como, aliás, por todo o centro da cidade hoje chamado de “expandido”. Entre fases de maior ou menor decadência, a atmosfera multicultural da Augusta resiste bravamente. Resta saber que cenário restará dela quando passar a atual onda de exploração imobiliária que faz com que alguns imóveis – para compra e locação – tenham preços superdimensionados nos últimos anos. “Tudo o que eu preciso tem na Rua Augusta, mas eu e minha mulher temos conversado muito sobre morar em um lugar mais tranquilo de São Paulo. O lance é que, quando você sai de casa para comprar pão e leite, encontra vários amigos no caminho, e aí já sabe...”, enrola Beto Bruno. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
47
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar.
CurtaessaDica Por Xandra Stefanel
xandra@revistadobrasil.net
Fotografia poética Manuel Álvarez Bravo é conhecido como o fotógrafo que melhor traduziu seu país, o México. A exposição Fotopoesia, no Instituto Moreira Sales Rio de Janeiro, apresenta 250 imagens produzidas em mais de 70 anos de atividade artística. Seu estilo autoral e sua relação com a cultura e o povo mexicano estão presentes na mostra. Bravo
foi adepto do pictorialismo, surgido no final do século 19, um estilo de imagem fotográfica com abordagem artística, baseada em acabamentos semelhantes a pinturas, desenhos ou gravuras. De terça a sexta, das 13h às 20h. Finais de semana e feriados, das 11h às 20h. Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea. Grátis. Até 26 de fevereiro.
Triângulo Chegou às locadoras em dezembro Estamos Juntos (de Toni Venturi). Carmem (Leandra Leal), é uma médica talentosa que veio da pequena Penedo (RJ) para viver sozinha na gigante São Paulo. Seu melhor amigo é Murilo (Cauã Reymond), DJ homossexual que se apaixona por Juan (Nazareno Casero), músico argentino, hétero convicto que se interessa logo de cara por Carmem. O triângulo amoroso fica mais complicado com a descoberta de que a médica está doente. Em DVD.
Leandra Leal e Cauã Reymond
Facetas de John Na prateleira, ele está na seção de biografias, mas John Lennon – Vida e Obra (Litteris Editora, 296 pág.), do bancário carioca Sérgio Farias, vai além. Farias reconta parte da história fartamente conhecida: o casamento com Yoko Ono, a separação momentânea, o encontro em que devolveu à rainha Elizabeth a medalha de membro do Império Britânico em protesto contra ao apoio do país à Guerra do Vietnã, as fotos do casal nu na cama, sua morte, em 1980, em Nova York. E relata também polêmicas que envolviam o ex-beatle, curiosidades, faz citações sobre raridades fonográficas, a contextualização histórica e a influência dos Beatles na música brasileira. R$ 34. 48
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
Guerra e Paz, painéis de Portinari
Aflição e esperança de Portinari No cinquentenário da morte de Cândido Portinari (1903-1962), chega a São Paulo a exposição Guerra e Paz, com os painéis encomendados pelo governo brasileiro na década de 1950 para oferecer à sede da Organização das Nações Unidas. Portinari dedicou-se aos painéis, seus dois últimos e maiores murais, entre 1952 e 1953. A exposição terá ainda cerca de 100 estudos
Singeleza Thais Bonizzi tem apenas 22 anos e já domina uma voz forte e cheia de personalidade. Ela foi descoberta por Roberto Talma, diretor artístico da Globo, que a convidou para gravar Em Flor para a novela O Profeta. Depois, participou de um DVD em homenagem a Emilinha Borba e mais tarde ficou entre os semifinalistas do programa Ídolos, em 2009. Em dezembro, lançou um álbum independente que leva seu nome e sua graça: entre as dez canções, traz suingue em Mais Nada e um sambinha rasgado em Dias de Catraca. O som, para desaprumar as parabólicas, como ela canta em Logradouro, está disponível para ouvir e baixar em http://thaisbonizzi.bandcamp.com. US$ 5 ou mais.
preparatórios originais feitos pelo artista e vídeos sobre o transporte dos quadros – com área pintada de 280 metros quadrados – de Nova York, onde estava há 54 anos, até o Brasil. De 6 de fevereiro a 21 de abril, no Salão dos Atos do Memorial da América Latina. Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664, Metrô Barra Funda. De terça a domingo, das 9h às 18h. Grátis.
Saramago póstumo Pequenas tragédias e comédias de moradores comuns de Lisboa compõem uma trama multifacetada com histórias simultâneas repletas de diálogos fortes e observações psicológicas. No livro Claraboia (Cia. das Letras, 384 pág.), é primavera de 1952, ano em que a obra foi escrita por José Saramago. Na época, Saramago (19222010) enviou os originais a uma editora e não teve resposta e nem seu livro de volta. Somente anos mais tarde o contataram para, enfim, publicá-lo. Magoado, o autor português disse não. Deixou a decisão a cargo da família, depois que morresse. R$ 46. REVISTA DO BRASIL JANEIRO 2012
49
B.Kucinski
A câmara fria
De três em três minutos ela tossia. Tosse seca. Na parede o anúncio vistoso da missão da empresa: “A saúde em primeiro lugar”
C
alculei pela lisura do seu rosto e pelo brilho do seu olhar que deveria ter menos de 30 anos. Depois saberia que já passava dos 40. Sua tez branquíssima e aveludada parecia uma extensão do traje branco. Bela mulher, tipo mignon, bonita de rosto e esbelta de corpo. Olhos negros; cabelos em coque, para não estorvar os movimentos, firmes e elegantes. Nenhum sinal de moleza ou morbidez. Exceto essa enigmática tosse. Deve ser um pigarro, pensei, uma irritação momentânea da faringe. Isso passa. — Você é médica ou enfermeira? — perguntei. — Sou médica — ela disse, sorrindo. E tossiu. Estávamos num laboratório chique, de um hospital dito o mais moderno da cidade. Eu já me submetera a vários exames do coração, mas nunca a esse tal de ecodoppler. Ali dentro fazia um frio de matar pinguim. Sentia-me dentro de uma câmara frigorífica. — Você não se ressente do frio? — perguntei. — Já me acostumei — ela disse. E tossiu. Devagar, ela ia passando no meu tórax, com a mão esquerda, um bastão provido de um sensor untado de vaselina. Ao mesmo tempo acompanhava o desenho que se modificava continuamente na tela do computador. Ia e vinha, ia e vinha o bastão melado de vaselina. Eu tiritava de frio. Os pelos dos braços arrepiados. De vez em quando ela apertava com a mão direita uma tecla do computador e a imagem ficava estática.
50
JANEIRO 2012 REVISTA DO BRASIL
— Então, vou morrer logo? — perguntei, brincando. — Nada disso, o senhor vai viver muito, nenhum sinal de anomalia no músculo, nem no ritmo do miocárdio, nenhuma lesão, nada — ela disse, sorrindo. E tossiu. — E esse aparelho é bom mesmo? — perguntei. — O melhor que existe hoje no Brasil. É de última geração. Aqui em São Paulo o nosso hospital é o único que tem. Caríssimo — ela disse. E tossiu. — Americano? — Não, é alemão; em equipamento hospitalar ninguém bate os alemães — ela disse. E tossiu. — E você tem muita experiência em ler essas imagens? — Bastante, me especializei em ecodoppler; faço os exames desde que o aparelho chegou, há um ano — ela disse. E tossiu. — Quantos exames por dia você faz? — Faço de 14 a 20, já teve dia que fiz 25 — ela disse. E tossiu. — Tanto assim? — Precisa, se não fizer, não paga o custo do aparelho; os médicos do hospital têm orientação de sempre mandar fazer — ela disse. E tossiu. — E essa tosse, está resfriada? — perguntei. — Não, é essa temperatura baixa aqui dentro. — E por que tão baixa? — É para proteger o aparelho. A saúde do aparelho sempre em primeiro lugar — ela disse. E tossiu.
Nutels! Viva Noel PB
© Finbarr O’Reilly_REUTERS
Milhares de pessoas estão morrendo de fome.
Um país pobre, arrasado por conflitos armados, agora é assolado pela maior seca em 60 anos. Esta tragédia está acontecendo na Somália: diariamente, mais de 2.000 pessoas atravessam a fronteira com o Quênia e a Etiópia em busca de ajuda. Os campos de refugiados estão superlotados e quase não há alimentos nem socorro médico. Em cada 3 crianças, 1 sofre de desnutrição aguda. Estamos correndo contra o tempo.
É URGENTE. Precisamos de você agora para
levar mais ajuda médica e salvar vidas! Doe agora: msf.org.br/somalia