ENTREVISTA Tereza Campello e o Brasil sem Miséria
MAZZAROPI Jeca sabia das coisas
nº 69 março/2012 www.redebrasilatual.com.br
Hoje, a liberdade de informação é privilégio dos poucos donos da mídia. Passou da hora de o país criar um sistema democrático, à altura de sua diversidade
LIBERDADE DE EXPRESSÃO PARA TODOS
ESPORTE INCLUSIVO O rúgbi conquista público e adeptos
Para ler, assistir ouvir e navegar. Informação que transforma.
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ÍNDICE
EDITORIAL
10. Economia
Oposição se diverte com concessão de aeroportos. Governo se defende
14. Capa
Está nas mãos do governo uma nova lei para democratizar a comunicação
20. Trabalho
Terceirização: embate no Congresso opõe centrais e interesse empresarial
24. Cidadania
Campanha cobra responsabilidade dos bancos na venda de produtos REPRODUÇÃO
28. Entrevista
Como a ministra Tereza Campello cuida da menina dos olhos de Dilma
32. Saúde
Giba, o bom moço do vôlei, e a infeliz ideia de participar de uma propaganda enganosa
Quando a hora mais importante da vida de uma gestante vira pesadelo
Prontinhos para o debate
38. Cultura
E
Mazzaropi apanhou da crítica mas garantiu lugar na memória popular
40. Esporte
EDUARDO LOUREIRO/CREATIVE COMMONS
O rúgbi se torna cada vez mais popular e inclusivo. E feminino
44. Viagem
Jardim botânico e museu a céu aberto nas minas de Inhotim (MG)
Seções Cartas
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Mauro Santayana
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Destaques do mês
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Lalo Leal
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Curta essa dica
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Crônica: Mouzar Benedito
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spectadores de TV por assinatura viram recentemente numa campanha publicitária de uma operadora, garotos-propaganda do mundo do esporte e queridos do público, como o jogador de vôlei Giba, a criticar a lei que vai regular o funcionamento dos canais pagos. A legislação foi promulgada no final de 2011 para entrar em vigor em abril. Até lá, deve passar por regulamentação e o mercado, por um processo de adaptação para cumpri-la. O que perturba as operadoras é a exigência de cotas obrigatórias de programação nacional e a inclusão de emissoras brasileiras nos pacotes oferecidos aos assinantes. Sem entrar no mérito de suas qualidades ou defeitos, as novas regras puseram em discussão princípios da Constituição de 1988. E que deveriam nortear o funcionamento e as concessões de todo o sistema de rádio e televisão. Por exemplo, é papel do Estado assegurar que as produções deem preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, promovam a cultura nacional e regional e estimulem as produções independentes. Como acontece nos sistemas de radioteledifusão dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Espanha, Portugal, Argentina, enfim, em democracias modernas e civilizadas. A publicidade da operadora insinua que a exigência de cotas de produções nacionais pode acabar com seu futebolzinho preferido e encarecer o pacote. Não admite que o que está em jogo é um interesse econômico. A peça é uma amostra do quanto os donos da mídia são capazes de desinformar para proteger seus negócios. É típico de um setor que há anos evita que a sociedade debata o assunto. O estímulo à produção nacional, a valorização da diversidade regional e das criações independentes promovem a liberdade de criação e de expressão para muito mais gente do que a atual meia dúzia de proprietários de grandes redes. Podem ainda proporcionar oportunidades de empregos no mundo da cultura, das artes e da informação. Um ambiente mais compatível com a grandeza do Brasil. É compreensível que os barões da mídia comercial fujam da conversa. Mas não é razoável que o governo protele a discussão de um novo marco regulatório, cujo rascunho, adiantado, já está prontinho para ser colocado a público. O governo da presidenta Dilma Rousseff tem credibilidade o bastante para liderar essa discussão com maturidade e transparência, sem medo de quem tem medo da verdadeira democracia – aquela em que a liberdade de expressão vale para todos. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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CARTAS Milton
www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, José Eduardo Souza, Lílian Parise, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Fábio M. Michel, João Peres, Letícia Cruz, Raoni Scandiuzzi, Suzana Vier, Virgínia Toledo. Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi. Revisão: Márcia Melo Capa Fotomontagem Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328-8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940-6400 Simetal (11) 4341-5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arilson da Silva, Artur Henrique da Silva Santos, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Jonisete de Oliveira Silva, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Maria Rita Serrano, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Sérgio Goiana, Rosilene Corrêa, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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MARÇO 2012 REVISTA DO BRASIL
A entrevista com Milton Nascimento (“Sou do mundo, sou Minas Gerais”, edição 67) provocou-me um misto de emoção, alegria e orgulho de ser brasileira. Ester Elzon Esteves Galera, Sto. André (SP)
Privataria tucana
Sacolas
Nos supermercados, produtos sólidos e líquidos continuam, em grande volume, com suas respectivas embalagens plásticas e poluentes. E o lixo doméstico continuará sendo acondicionado em plásticos poluentes. Das duas uma, ou a Associação Paulista de Supermercados comprou fábricas de sacos para lixo, ou o governo de São Paulo se tornou acionista dos supermercados. Ou as duas. Se a contrapartida da restrição às sacolinhas fosse para melhorar os salários dos funcionários e reduzir os preços, poderíamos abraçar a causa (“Oportunismo na sacola”, edição 68). Mané Paulo, Peruíbe (SP) Atualmente o supermercado fornece sacolinhas e as usamos em cestos de banheiro, de cozinha, para lixo seco e orgânico. Costumo aproveitá-las ao máximo, antes de descartar. Com o supermercado deixando de fornecê-las: teremos de comprar várias sacolas retornáveis, pois não vou colocar numa mesma sacola pão e afins com frios e sorvete, muito menos com desinfetante – só pra salientar que ter apenas uma retornável não dá. Se a crítica às sacolas é quanto ao tempo que leva para se degradarem, os sacos que compraremos demorarão muito menos? E as sacolas das farmácias, lojas, sapateiros, feiras e outros prestadores de serviços, ferragens etc. também ficarão condenadas? Luiz A. Rosa de Lima, Porto Alegre (RS)
Li a reportagem “Segredos do Caribe” (edição 67) e, embora não tenha lido o livro citado, há de se reconhecer que, do dinheiro arrecadado, “alguns” tiveram outro destino que não a União. Entretanto, há de se ressalvar que hoje a Vale é a segunda maior mineradora do mundo, a Embraer teve também grande desenvolvimento mundial, assim como a CSN. Nos últimos dez anos as ações da Vale se valorizaram 765%, as da Petrobras avançaram 257%. Outro fato alheio à reportagem que deve ser levado em conta é que ainda hoje ocorrem desvios de dinheiro público, motivo das demissões de ministros em cujas pastas houve desvios. Infelizmente há políticos que não têm ética e barganham tudo, esquecendo do povo que os elegeu e morre por falta de atendimento nas filas dos hospitais sem verbas. Esperamos que as arrecadações com as privatizações (concessões) dos aeroportos sigam para os cofres da nação e sejam efetuadas as melhorias pactuadas e necessárias para um melhor atendimento aos usuários. Quem voar nas férias dirá. Paulo Natale Penatti, Ibiúna (SP)
Justiça do Trabalho
Achei bom o texto “Direitos no labirinto” (edição 67). Cerca de 10 mil ex-funcionários do Banespa, comprado pelo Santander, têm uma ação trabalhista que alcança cerca de R$ 5 bilhões. Informações sobre a referida ação trariam dados muito mais expressivos à já bem escrita reportagem. Diógenes Antunes, Guaratinguetá (SP)
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MAURO SANTAYANA
República federal ou estado unitário O governo FHC foi o mais completo golpe ao pacto federativo, ao aprovar no Congresso encomendas dos EUA, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, que arrochou os estados
A
proposta de nivelar, pelo alto, os vencimentos dos policiais militares e bombeiros de todos os estados colide com uma dificuldade constitucional que os parlamentares fizeram de conta não existir: o Brasil é uma república federativa e, nas federações, a autonomia de suas unidades deve ser garantida. Cada estado, como unidade política própria, elabora, nas Assembleias Legislativas, sua política orçamentária e prevê a remuneração de seus servidores. O país continua a ser uma federação, conforme decisão tomada pelos constituintes de 1891. Antes, o país até se dividia em administrações descentralizadas, como atesta sua história. Mas os governadores-gerais – mais tarde agraciados com o título de vice-reis – eram representantes da soberania política de Portugal. Raramente intervinham na administração. Essa realidade era anterior à Independência. A ideia federativa surgiu com o movimento de Vila Rica. Os inconfidentes estavam sob a influência da independência dos Estados Unidos e de sua construção pactuada. A articulação mineira pela independência nacional como federação, sufocada com a execução de Tiradentes e a repressão brutal que se seguiu, só retornaria depois da vinda da família real para o Brasil, em 1808, e se expressaria na Revolução Pernambucana de 1817. A partir de então, passou a crescer e chegou a ser cogitada, ainda em 1823, nas discussões da frustrada Assembleia Constituinte, dissolvida à força por Pedro I. De 1817 a 1848,
com a Confederação do Equador, a Revolução Farroupilha, a Revolução de 1842 e movimentos menores, até a Praieira, de 1848, todos os movimentos de rebeldia regional foram federativos. O Ato Adicional, de 1834, desconcentrou um pouco o poder, com a criação das Assembleias Legislativas Provinciais, mas a reforma de Araújo Lima e a Maioridade favoreceram nova centralização. No Manifesto Republicano, de 1870, foi clara a expressão do projeto federativo. E os constituintes de 1891 aprovaram o texto da Carta Republicana sob a influência de Ruy Barbosa e de Joaquim Nabuco, federalistas históricos. Pouco a pouco, os direitos federativos dos estados foram corroídos pela centralização do poder na União. Com a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, os legisladores não restauraram os direitos federativos originais, de 1891. Mesmo assim, os direitos de tributação dos estados – que não foram alterados substancialmente durante o governo Vargas – se mantiveram. O regime militar a partir de 1964 acabou, de fato, com a federação, ao liquidar sua autonomia econômica e política. A Constituição de 1988 restaurou-a, em grande parte, mas poderia ter sido mais ousada, no que se refere à independência orçamentária. Nenhum governo foi tão completo no assassinato da federação quanto o de Fernando Henrique Cardoso. Atendendo ao governo mundial, exercido nominalmente por Washington e de fato pelos grandes bancos, o então presidente conseguiu do Congresso a aprovação de minutas redigidas nos Estados Unidos, como as da Lei de Responsabilidade Fiscal – arrocho contra os estados –, a Lei Kandir, a emenda da reeleição e a privatização dos bancos estaduais. Agora, o Congresso Nacional quer federalizar, na prática, a segurança pública, com a PEC 300. Ora, enquanto o Brasil não se desenvolver como um todo, cada estado estará submetido às receitas tributárias desiguais. Não se trata, apenas, de impor aos estados a elevação brutal de despesa com o aumento, mas, também, de garroteá-los politicamente, com a redução dos poderes de decisão de seus cidadãos. Cada uma das unidades federadas tem a própria história e a própria cultura, que devem ser respeitadas para a construção da grande identidade nacional. A União é um pacto político, não ata de submissão aos eventuais ocupantes do poder central. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
PEC do trabalho escravo: agora vai (?)
JOSÉ CRUZ/ABR
Manifestação pela aprovação da PEC: antes que mais mortes aconteçam
pretende votar a matéria este ano. Além disso, a Câmara dos Deputados está para abrir uma CPI sobre o tema. “Existe uma bancada muito conservadora na Câmara que representa interesses muito arcaicos e que tenta negar a própria existência do trabalho análogo ao escravo”, diz o parlamentar. http://bit.ly/rba_pec_438
A culpa é dos outros
OIT e o direito de greve
Decisão anunciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que aceitou denúncia sobre trabalho escravo contra o senador João Batista de Jesus Ribeiro (PR-TO), chamou a atenção também pela manifestação de um de seus ministros. Para Gilmar Mendes, as más condições a que estavam submetidos os trabalhadores em uma João Batista: réu fazenda no Pará, de propriedade do senador, são resultado da desigualdade brasileira. “A inexistência de refeitórios, chuveiros, banheiros, pisos em cimento, rede de saneamento, coleta de lixo é deficiência estrutural básica que assola de forma vergonhosa grande parte da população brasileira, mas o exercício de atividades sob essas condições que refletem padrões deploráveis e abaixo da linha da pobreza não pode ser considerado ilícito penal, sob pena de estarmos criminalizando a nossa própria deficiência”, argumentou o ministro, que foi voto vencido. A maioria acolheu denúncia da Procuradoria-Geral da República, transformando o senador em réu. A acusação se baseou em denúncia feita à Comissão Pastoral da Terra que resultou em fiscalização do Ministério do Trabalho, em 2004. http://bit.ly/rba_escravidao
A 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) condenou uma empresa por ver prática antissindical na demissão de um funcionário que participou de uma greve. O ministro Vieira de Mello Filho destacou acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. E ressaltou que, embora não seja habitual, não há dúvida de que a Convenção 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é aplicável. “De acordo com o artigo 1º dessa convenção, todos os trabalhadores devem ser protegidos de atos discriminatórios que atentem contra a liberdade sindical, não só referentes à associação ou direção de entidades sindicais, mas também quanto à participação de atos reivindicatórios ou de manifestação política e ideológica”, declarou. http://bit.ly/rba_tst_oit
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ANTONIO CRUZ/ABR
AGÊNCIA SENADO
O deputado Cláudio Puty (PT-PA) acredita que, dessa vez, a proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre trabalho escravo será votada na Câmara. O texto está na fila há oito anos, sob vigilância da bancada ruralista. Prevê, entre outros itens, confisco de propriedades nas quais for encontrado trabalho escravo. O governo diz que
As construtoras que mais doaram para a campanha do então Kassab: candidato Gilberto Kassab uma mão conseguiram, até agora, lava a outra mais de R$ 2 bilhões em contratos com a prefeitura paulistana. O arquiteto e urbanista Kazuo Nakano observa que o “capital imobiliário faz políticos” e posiciona representantes na máquina administrativa, viabilizando seus interesses no município: obras que não atendem às necessidades da cidade, mas às demandas dos grupos empresariais. http://bit.ly/rba_kassab_empreiteiras
Crime contra a humanidade
A paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em São José dos Campos, palco do despejo dos moradores da comunidade Pinheirinho, pretende criar um memorial em homenagem às 1.600 famílias que habitavam o local e perderam quase tudo. A ideia é não permitir que o episódio caia no esquecimento. http://bit.ly/rba_memorial_paroquia Em entrevista a Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual, o procurador do estado de São Paulo Marcio Sotelo Felippe, ex-procurador-geral, afirmou que o governador Geraldo Alckmin, o especulador Naji Nahas e o presidente do Tribunal de Justiça paulista, desembargador Ivan Sartori, deveriam responder por crime contra a humanidade. Leia mais na página 8 e ouça a entrevista de Marcio Sotelo neste atalho: http://bit.ly/rba_alckmin_nahas. E leia ainda o depoimento da psicanalista Maria Rita Kehl, para quem no Brasil a propriedade privada está acima da vida humana: http://bit.ly/rba_maria_rita.
Fogo e paixão no Senado Habituados a trocar farpas, representantes do governo e da oposição se uniram por alguns momentos para homenagear o cantor Wando, que morreu no início de fevereiro, Wando: aos 66 anos. paz e amor Eduardo Suplicy (PT-SP) destacou a trajetória humilde do artista e seu sucesso popular, enquanto Álvaro Dias (PSDB-PR) lembrou a participação de Wando na campanha pelas eleições diretas, em 1984. http://bit.ly/rba_fogo_paixao REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
DIVULGAÇÃO
DANILO RAMOS
Pinheirinho: propriedade acima da vida
FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR
Capital imobiliário
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RÁDIO
Maria e João não querem nada além dos seus direitos
Quando o Estado PAULO PEPE
falha
Na periferia de São Paulo, mãe não consegue garantir o direito à escola e ao transporte para o filho cadeirante. No interior paulista, procurador vê crime contra a humanidade em ação que despejou 6.000 pessoas
“M
ãe, é o sistema.” Essa frase Maria Elvira Martins de Assis ouviu em uma das várias tentativas que fez para garantir o direito ao transporte para seu filho João de Assis Cipriano, cadeirante de 6 anos. Em entrevista à repórter Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual, Maria exemplificou o drama das famílias que têm crianças e adolescentes com deficiência física. “Tudo é muito burocrático. Estou de mãos atadas. Os governantes deveriam ter um mínimo de sensibilidade e se colocar na situação da gente.” João tem má-formação congênita (quadril, joelhos, pés) e só se locomove com cadeira de rodas. Já passou por oito cirurgias. A escola onde deveria ser matriculado este ano fica em Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo. Sem 8
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transporte adequado, mãe e filho – que moram no Jardim das Camélias, longe dali – precisam usar dois ônibus e percorrer um trecho a pé, incluindo uma ladeira. Na Delegacia de Ensino, Maria viu que o caso não era isolado: “Várias outras mães estavam sofrendo com o mesmo problema”. Ela tentou transferir o filho para uma escola mais próxima, mas não conseguiu. “Do meu ponto de vista, o Estado deveria fornecer o transporte e ter um sistema de inclusão”, diz Maria. O advogado Ariel de Castro Alves, presidente da Fundação Criança e vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), vê uma “atuação criminosa” por parte do poder público. Crianças e adolescentes devem ter prioridade em qualquer atendimento,
ainda mais em um caso como esse. Ele lembra que esse direito é garantido pela Constituição e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Ouça: http://bit.ly/rba_cadeirante
Pinheirinho
O procurador do Estado São Paulo Marcio Sotello Felippe debruçou-se sobre o processo de Pinheirinho e constatou irregularidades, além da ação de despejo, que avalia como um crime contra a humanidade, caso para ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional. Segundo ele, um aparato jurídico e policial foi posto a serviço de um só beneficiário, o especulador Naji Nahas. Por isso, o governador Geraldo Alckmin e o presidente do Tribunal de Justiça paulista, desembargador Ivan Sartori, poderiam ser presos em qualquer lugar do mundo.
TVT No aspecto jurídico, o procurador contesta a existência, inclusive, de uma massa falida. “Todos os créditos já foram pagos ou satisfeitos. O próprio Naji Nahas comprou esses créditos. Não existem empregados para receber créditos trabalhistas”, diz Felippe, que foi procurador-geral do estado de 1995 a 2000. “Toda essa tragédia beneficiou apenas o maior especulador deste país”, acrescenta. “Por que a máquina do estado de São Paulo foi movimentada para beneficiar Naji Nahas?” A desocupação da comunidade localizada em São José dos Campos, no interior de São Paulo, ocorreu em 22 de janeiro. Felippe lembra que apenas três dias antes foi feito um acordo para suspender a operação por 15 dias. Não foi respeitado, e a polícia realizou uma operação com “brutalidade e selvageria”, como define, condenando a natureza da operação: “Invadir uma área às 5 da madrugada e jogar 6.000 pessoas no nada”. http://bit.ly/rba_crime_humanidade
Na web, as notícias que os outros não dão Desde o final do ano, o Jornal Brasil Atual não é mais veiculado pela emissora de FM que transmitia o programa de rádio para toda a Grande São Paulo. A rádio Terra FM 98,8, com a qual a Rede Brasil Atual tinha contrato para a utilização de horário determinado, sem nenhuma relação administrativa e operacional, foi tirada do ar por questões técnicas alheias à RBA. O Jornal Brasil Atual continua normalmente na internet, das 7 às 8 da manhã, de segunda a sexta. O programa pode ser ouvido em tempo real no mesmo horário, ou a qualquer momento de qualquer lugar do mundo, no endereço www.redebrasilatual.com.br/radio. No site, o ouvinte tem também acesso a toda a programação da rádio, reportagens especiais, ao time de colunistas e a um vasto material do acervo editorial para os temas cidadania, política, mundo do trabalho, cultura – e muita informação que as outras rádios não dão.
Aprender por música No programa Bom para Todos, conheça como vão ser as aulas que devem sensibilizar alunos do ensino fundamental
O músico Uirá Kuhlmann
A
s escolas de ensino fundamental iniciam o ano letivo com uma novidade: começam a ser postas em prática as aulas de música, conforme determina a Lei nº 2.732, aprovada há quatro anos. Cada escola determina os métodos, o tipo de conteúdo e a frequência das aulas que trazem o resgate da cultura musical popular. Devem ser observadas também as especificidades de cada região, de modo a estimular a identificação do aluno com a cultura que o envolve. Ainda deverão fazer parte do conteúdo as danças, os ritmos, os instrumentos e os cantos cívicos. Outra possibilidade trazida pela novidade curricular é a criação de sons a partir de objetos do cotidiano, não engessando o ensino musical à leitura de partituras e formação clássica. O método permite a pesquisa de múltiplas formas de desenvolvimento da sensibilidade e de promoção da sociabilidade. No programa Música nas Escolas, da série Bom Para Todos da TVT, a mestre em educação da Universidade Metodista Roseli Fischmann e o músico
Uirá Kuhlmann, consultor de educação musical para escolas públicas e privadas, respondem às perguntas de pais e alunos, que foram gravadas nas ruas. As preocupações dos pais foram quanto às contribuições que as aulas de música vão trazer para as crianças, como deve ser a formação dos professores responsáveis e como eles, pais, podem colaborar com os filhos para melhor assimilação do novo conteúdo. Já os jovens estavam interessados em saber se ia valer nota, como será a avaliação e se poderiam escolher os instrumentos da preferência. Saiba as respostas e mais detalhes da novidade no site da TVT. Clique em “Programas”, depois em Bom para Todos e no espaço de busca digite “Música nas Escolas”.
Como sintonizar Canal 48 UHF ABC e Grande São Paulo (NGT) Canal 46 Mogi das Cruzes (UHF) Na internet www.tvt.org.br REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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ECONOMIA ALEGRIA NA BOVESPA Leilão dos aeroportos: participação ativa dos fundos de pensão
voo Concessão de três aeroportos à iniciativa privada causou rebuliço no governo, na oposição e no PT. A dúvida é se os fantasmas são reais ou imaginários Por Vitor Nuzzi
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a posse de Maria das Graças Foster na direção da Petrobras, em 13 de fevereiro, a presidenta Dilma Rousseff destacou a importância estratégica da companhia e lembrou: “Felizmente, sobreviveu a todos os ventos privatistas e persistiu como empresa brasileira, sob controle do povo brasileiro, e hoje exerce papel fundamental em nosso modelo de desenvolvimento”. Uma semana antes, em São Paulo, manifestantes protestavam contra o leilão que transferiu ao setor privado o controle de três dos principais aeroportos nacionais. Diziam: “Dilma, eu não me engano, privatizar é coisa de tucano”. Nesse curto intervalo, a polêmica se ins-
NILTON FUKUDA/AE
O próximo
talou e mexeu com dogmas e brios, revivendo a peleja entre defensores e críticos do Estado – numa simplificação, entre estatizantes e neoliberais. Responsáveis por 57% da carga movimentada no país e 30% dos passageiros, os aeroportos de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, Campinas, no interior paulista, e Brasília foram leiloados por R$ 24,5 bilhões, valor 348% acima do mínimo estipulado. Cada um foi adquirido por um consórcio, com destaque para o de Guarulhos. Seu leilão totalizou R$ 16,2 bilhões, bancados por um consórcio composto pela Invepar – empresa de infraestrutura formada pelos fundos de pensão Previ (Banco do Brasil), Petros (Petrobras) e Funcef
PROTESTO NA BOVESPA Do lado de fora, sindicatos e centrais se manifestavam contra o leilão
movida pelo governo do PSDB, quando empresas estatais de mineração (Vale), de siderurgia (CSN), de telecomunicações (sistema Telebrás) e a Rede Ferroviária Essas são as diferenças. Mas o PT co- Federal foram passadas para a iniciativa meteu erros no caminho, prossegue Po- privada (em operações até hoje nebulomar: “Do ponto de vista tático, a conces- sas), esses aeroportos continuarão patrisão foi economicamente desnecessária e mônio do povo brasileiro”, sustenta. politicamente incorreta”. A estratégia do O presidente do Sindicato Nacional dos PT e do governo não é privatizante, mas Aeroportuários (Sina), Francisco Lemos, há tentações no caminho. não vê a questão com tanta simplicidade. Durante as comemorações pelos 32 “A palavra não é concessão nem privatianos de fundação, em fevereiro, o pre- zação. É política neoliberal”, critica, refesidente nacional do partido, Rui Falcão, rindo-se ao leilão dos aeroportos. “Quem disse que não se pode confundir conces- vai responder pelas consequências negasão com privataria. “Há muito tempo te- tivas é o PT. O partido foi omisso, não mos concessões de rodoparticipou do processo. Foi vias. As concessões fazem tudo entregue nas mãos de parte da Constituição e o PT tecnocratas. Não foi por falta de alerta.” nunca votou contra a concessão de serviços públicos, Por sua vez, o presidente nacional da CUT, Artur tanto que o transporte coletivo na maior parte das ciHenrique, receia que isso dades é objeto de concessão vire tendência. Para ele, o e o transporte é um serviço governo deveria ter enfrentado as dificuldades e respúblico”, afirmou. trições impostas pela legisO líder do PT no Senado, Walter Pinheiro (BA), lação (como a Lei nº 8.666, Para Valter Pomar, do PT, “a concessão defende a estratégia adotade licitações) ou mesmo foi economicamente da no caso dos aeroportos. pelo Tribunal de Contas da desnecessária e poli“Ao contrário do que ocorUnião (TCU), em vez de ticamente incorreta” reu com a privatização probuscar o caminho “mais fáCESAR OGATA
(Caixa), além da construtora OAS – e pela Acsa, operadora estatal de aeroportos sul-africanos. O prazo de concessão é de 20 anos. O presidente da Previ, Ricardo Flores, disse que o crescimento da Invepar – conjugado à entrada em novos negócios – amplia a capacidade de retorno do investimento. O fundo do BB tem 36,85% de participação na empresa, que por sua vez representa 90% do consórcio vencedor do aeroporto de Guarulhos. A palavra “concessão” entrou no debate com força na briga entre PT e PSDB. Os tucanos, na tentativa de marcar um gol, viram uma bola rolando e chutaram de bico. Acusaram o PT de cometer “estelionato eleitoral”, por passar tanto tempo condenando as privatizações. Os petistas formaram a barreira afirmando que o adversário engana a torcida, porque o modelo adotado foi diferente. O barulho aumentou pelo fato de o leilão ter ocorrido ainda sob o impacto de um livro sobre supostas mazelas nos governos FHC (A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr.). No chamado mercado, a notícia animou observadores e analistas, que – por mais que o governo negue – viram no leilão uma mudança de pensamento. “A privatização de três dos maiores aeroportos brasileiros é, até este momento, a grande realização do governo Dilma Rousseff ”, cravou o jornalista Cristiano Romero, colunista do jornal Valor Econômico. Para ele, além de uma “quebra de paradigma” em governos petistas, o fato pode abrir caminho para que outros setores sejam entregues à iniciativa privada, como o portuário. Membro do diretório nacional do PT, Valter Pomar escreveu artigo para tentar esclarecer: concessão é uma modalidade de privatização. Mas é uma modalidade distinta da transferência de patrimônio, “especialmente quando feita em troca de nada, como os tucanos fizeram com a Vale do Rio Doce”. Outra diferença, destaca Pomar: o PSDB fez “privataria”, segundo ele uma “etapa superior da privatização”, enriquecendo os envolvidos. Por fim, afirma que para os tucanos as privatizações são parte essencial de uma estratégia neoliberal de desenvolvimento, em um modelo de sociedade dominada pelos chamados “mercados”.
DINO SANTOS
ECONOMIA
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ECONOMIA
JAILTON GARCIA
cil”, de conceder uma ativida Universidade Estadudade ao setor privado. “O al do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), vê pouca relevância governo poderia atrair o capital privado mantendo a para o processo eleitoral Infraero (no controle). Se o deste ano. “O debate da privatização teve importância BNDES empresta os recursos para bancar 80% dos na eleição presidencial de investimentos necessários, 2006, mas acho que não por que não fazer o mesmo tem para uma eleição municipal”, observa. Mesmo com a Infraero?”, questiona. assim, ela percebe na reMas ele também diferencia O jornalista Luís cente polêmica um debate os modelos, já que o governo Nassif lembra que o cidadão tem de ser mais ideológico, em busca Fernando Henrique Cardoo foco das políticas so teria promovido um “cade algum retorno eleitoral. públicas pitalismo sem riscos”. Ou mesmo uma tentativa Para o jornalista Luís Nasquase desesperada da oposif, enquanto o governo FHC exagerou na sição de atingir um governo que vem se liberalização, o governo Lula recuperou mostrando relativamente bem-sucedido. o papel do Estado. Mas o ideal, segundo O processo em si pode ser questionado, ele, é fazer com que as políticas públicas mas Argelina nota exagero nas comparatenham o cidadão como foco, sem viés ções. “Tem uma diferença entre vender ideológico. “É aí que se insere a priva- para sempre e fazer uma concessão por tização dos aeroportos – sem abrir mão prazo determinado.” No caso atual, o deda capacidade de regulação do Estado”, bate teria impacto se envolvesse instituianalisa. Em sua opinião, mais relevante ções simbólicas, como a Petrobras. O ministro da Fazenda, Guido Manteque discutir se há privatização ou não é ga, apontou outra diferença. Segundo ele, se fixar na eficiência da gestão pública. A professora Argelina Figueiredo, do os recursos não serão usados, como no Instituto de Estudos Sociais e Políticos governo FHC, para pagamento da dívida
pública, mas para investimentos. Mesmo assim, o governo não pensa, pelo menos nesse momento, em fazer novas concessões. “Duvido”, reage Francisco Lemos. “É intenção da Secretaria da Ação Civil, da Agência Nacional de Aviação Civil, ampliar esse projeto. Cabe à presidenta Dilma brecar isso e ao partido, se pronunciar energicamente.” Para o cientista político Fabiano Santos, também da Uerj, recorrer à iniciativa privada nunca chegou a ser um dogma para o governo Dilma nem para o de Lula. “Algum grau de delegação do Estado ao setor privado já ocorreu em diversos momentos. Não vejo uma questão dogmática. Se isso fosse realmente um ponto dogmático, acho que o governo teria feito uma agenda de reversão de privatizações”, afirma. Mas não se pode dizer que as visões do PT e do PSDB em relação ao papel do Estado sejam idênticas. “Certamente, a concepção é bem distinta. Claro que os dois governos trabalham dentro de realidades. Mas é curioso que não se lembre das críticas pela ‘volta ao estatismo’ que teria marcado o segundo governo Lula, quando Dilma já era a grande arquiteta.”
A proposta de mudança de nome da Petrobras representou uma das últimas grandes polêmicas do governo FHC. O presidente da companhia na época, Henri Philippe Reichstul, alegava ser uma tentativa de facilitar a internacionalização da marca. Eram três as alternativas: manter Petrobras no Brasil e no exterior, usar Petrobrax apenas no exterior ou usar o novo nome aqui e fora do país. Trabalhadores identificaram uma tentativa clara de privatização. No final de dezembro de 2000, o líder do governo no Senado, José Roberto Arruda (PSDB-DF) – aquele mesmo que depois perderia o cargo
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e repetiria a dose no governo do Distrito Federal –, disse que o presidente Fernando Henrique Cardoso determinara pessoalmente a Reichstul que arquivasse o projeto. “Não há por que insistir numa providência que não tenha aprovação da opinião pública”, afirmou Arruda. Na passagem de cargo para Graça Foster, em fevereiro, o presidente José Sergio Gabrielli fez o balanço dos dez últimos anos, já no cenário posterior ao fim do monopólio estatal no setor. A produção cresceu 4,2% ao ano, em média, o número de funcionários passou de 46.723 (2002) para 81.918 (2011), os investimentos saltaram de R$ 18,8 bi-
NELSON PEREZ
O xis da questão
Henri Reichstul e o que seria o futuro da Petrobras: voo de galinha
lhões para R$ 72,5 bilhões no mesmo período (embora tenham ficado abaixo de 2010), o lucro líquido foi de R$ 8,1 bilhões para R$ 33,3 bilhões
(também um pouco abaixo de 2010) e os acionistas, de 176 mil para 674 mil. Parece que o nome terminar com “s” não era o “x” da questão.
LALO LEAL
Apoio popular à lei de meios Sem um amplo debate, a liberdade de expressão continuará privilégio de poucas famílias, que apostam na confusão para manter tudo como está
H
á exatos 13 anos estive com a então deputada Marta Suplicy no gabinete do ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga. Integrávamos a ONG Tver, e ele, o segundo governo de FHC. A audiência tinha a ver com as manifestações recebidas pela organização sobre a qualidade da programação da TV brasileira, que naquele momento parecia ter chegado ao fundo do poço. Repudiávamos qualquer tipo de censura, entendendo que o problema só poderia ser enfrentado com a existência de leis claras e objetivas, formuladas democraticamente e aprovadas pelo Congresso Nacional. Estávamos no gabinete do ministro para saber se ele concretizaria a promessa do antecessor, Sérgio Motta, de pôr em discussão o projeto de uma lei de comunicação eletrônica de massa, para substituir o velho Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962 e totalmente ultrapassado. Não fomos felizes. O ministro parecia desconhecer o assunto, pedindo seguidas informações aos auxiliares. Ainda assim, prometeu que até o final daquele ano promoveria debates públicos sobre o projeto. Realizou um, fechadíssimo, em Brasília, e nada mais. Vivi o caso de perto. Mas ele não é excepcional, é apenas exemplar. Faz parte da luta pela regulação da comunicação no Brasil, iniciada antes da Constituinte de 1988, que persiste até hoje. Nela defrontam-se grupos da sociedade em defesa de uma lei para a comunicação, os empresários do setor beneficiários do vazio legal que lhes permite obter lucros fabulosos sem contrapartida social e os governos, sempre ameaçando entrar em cena e recuando, temerosos do poder da mídia. Chegamos a 2012 com o aceno de que agora a sociedade será consultada sobre os termos da futura lei. Não se sabe quais propostas formuladas ao final do governo Lula e encaminhadas ao novo ministro das Comunicações serão aproveitadas nessa consulta. No entanto, há uma condição prévia para que reflitam a vontade popular: a ampla divulgação do que está sendo discutido. Senão, mais uma vez os meios hegemônicos confundirão a sociedade. Dirão, como vêm dizendo, que tudo não passa de uma nova forma de censura. Seguirão escamoteando a existência de um mercado de comunicações altamente concentrado, limitador da diversidade e da pluralidade de ideias. Para que a manifestação da população seja consciente, três pontos precisam ficar bem claros para todos:
1. O rádio e a TV ocupam um espectro eletromagnético escasso e finito, operando por isso como concessões públicas, outorgadas pelo Estado em nome da sociedade. A qualidade dos serviços prestados deve ser controlada pelos usuários, como em qualquer concessão (de empresas de ônibus, por exemplo). São necessários órgãos reguladores para fazer a intermediação entre o público e as emissoras. 2. A regulação de conteúdo (classificação indicativa e preferência para finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas) aplica-se apenas ao rádio e à TV, conforme determina a Constituição, e não aos jornais e revistas. Os veículos comerciais costumam confundir as coisas dizendo que a regulação se aplicaria a toda mídia, para sustentar a falsa ideia da censura. Outra falácia é a afirmação de que o controle remoto é o melhor controle, como se a oferta de programações não fosse limitada e semelhante. Muda-se de canal para ver quase a mesma coisa no outro. 3. O fim da propriedade cruzada dos meios de comunicação (empresas proprietárias de vários meios: rádio, jornais, revistas, TV, gravadoras, editoras etc.), abrindo espaço para mais vozes, hoje caladas. Atualmente, a liberdade de expressão é privilégio das poucas famílias que controlam a mídia brasileira. Ao governo cabe a tarefa de popularizar esses temas convocando, por exemplo, cadeias nacionais de rádio e TV para explicá-los à sociedade. Caso contrário, corremos o risco de ter uma nova lei apenas para garantir os privilégios atuais. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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MÍDIA
A Argentina leva vantagem ao criar uma televisão que dá espaço a todos os sotaques e vozes. No Brasil, a sociedade quer a ajuda de Dilma para avançar com um projeto já rascunhado. E a Bahia saiu na frente
Acorda, Br Por João Peres
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amián Loreti olhava com ciúme para o outro lado da fronteira. O Brasil tinha tantos grupos que discutiam a necessidade de democratizar a comunicação e o debate era tão avançado que o veterano estudioso do tema sentia saudável inveja. Na Argentina da virada do século, o tema estava restrito a algumas dezenas de “maníacos”, mas em pouco tempo a equação se inverteu. Quem acompanha o assunto do lado de cá olha para o lado de lá admirado. 14
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“Sem vontade política é impossível. Sem um bom projeto, também”, resume o decano do curso de Comunicação da Universidade de Buenos Aires (UBA) sobre a Lei de Meios, sancionada em 2009. O projeto existia havia tempos, composto por 21 objetivos, e a vontade política amadureceu na entrada do novo século, quando centenas de entidades se somaram na Coalizão por uma Radiodifusão Democrática. Corria 2008 e o governo de Cristina Kirchner estava em pé de guerra com os representantes do agronegócio.
Não tardou para que o gabinete presidencial se desse conta de que circulava somente uma versão dos fatos: a dos empresários, fruto da concentração de emissoras de rádio e TV nas mãos do grupo Clarín, comparável às Organizações Globo. Apenas sete cidades recebiam mais de um sinal de canal de televisão aberta. Sem programações que mostrassem o mundo de diferentes pontos de vista, estava imposta uma verdade única. Era hora de tirar o pó do projeto apresentado pela sociedade quatro anos antes.
JUAN MABROMATA/AFP PHOTO/GETTY IMAGES
MÍDIA
rasil
Na ocasião, o Brasil preparava a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Pela primeira vez reuniram-se governos, empresários – embora alguns tenham se negado ao debate – e pessoas dos mais diversos segmentos em torno do objetivo de tornar a produção de informação um retrato mais fiel da diversidade cultural, geográfica e política do país. Foram centenas de reuniões primeiro nas cidades, com propostas depois levadas a edições estaduais e, por fim, ao encontro nacional, em dezembro de 2009.
HABLEMOS TODOS Mudança na legislação passou mais de um ano sendo discutida no Congresso
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MEMÓRIA Mães da Praça de Maio lembram as relações do Clarín com a ditadura de Jorge Videla
O então ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, Franklin Martins, experiente jornalista com passagens por Globo e Bandeirantes, começou a elaborar um anteprojeto para promover a democratização da comunicação. O texto tomou como base os debates da conferência nacional e as experiências de diversos países de avançada democracia – entre os quais a Argentina, já com sua nova legislação em vigor. O esboço de Franklin foi repassado ao ministério de Dilma Rousseff, mas ainda não andou.
REAÇÃO DE CRISTINA A presidenta argentina se viu acuada pelo monopólio da informação em seu país, mas não recuou: era hora de aprovar a regulação do setor
PRESIDÊNCIA/AFP PHOTO/GETTY IMAGES
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MARCELLO CASAL JR/ABR
MÍDIA
ANTONIO CRUZ/ABR
NAS GAVETAS DE BRASÍLIA Franklin Martins, então no governo Lula, apresentou esboço de projeto para o setor, com base nas discussões da Conferência Nacional de Comunicação e na experiência de vários países...
...mas o texto ainda não foi levado adiante pelo ministro Paulo Bernardo
Cem mil mulheres chegam a Brasília vindas de todas as partes do território nacional. São trabalhadoras rurais, caminham durante dias e são recebidas pela presidenta da República para discutir reforma agrária. Em outro dia, 20 mil produtores rurais ocupam a Esplanada dos Ministérios. Querem que o Congresso vote as mudanças na legislação florestal para poder desmatar além dos limites atuais. Dois temas relevantes para a sociedade? Não para a Globo. A Marcha das Margaridas recebeu 18 segundos da edição de 17 de agosto de 2011 do Jornal Nacional. Já o churrasco da maior entidade ruralista, 127 segundos. “Ninguém quer acabar com a Globo nem democratizar a Globo. Ela cumpre um papel político e cultural no Brasil”, diz Renata Mielli, da coordenação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Em outras palavras, cada empresa pode transmitir o que 16
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achar importante, mas as margaridas, as Como qualquer contrato de aluguel, acácias, as violetas e todas as flores têm há direitos e deveres. Se descumpridos, direito a uma emissora que as represen- implicam advertência, multa e até romte – e todo cidadão, o direito de buscar pimento do vínculo. O Brasil, por ene encontrar uma cobertura quanto, não discutiu essas diferente. “O objetivo é forregras. Há conceitos apretalecer um campo público sentados pela Constituição de comunicação e discutir a ser refinados para, caso o regras transparentes para a inquilino desrespeite o acorconcessão de canais.” do, o locatário – o povo braAs estações de televisão -sileiro – poder solicitar de ou de rádio que escolhevolta o imóvel, ou melhor, a mos todos os dias são um frequência. espaço público. Esse espaço O texto constitucional de é invisível, está no ar, mas 1988 diz que o setor não poé limitado, o que significa de ser alvo de monopólio ou Damián Loreti: “Sem vontade que não se pode abrir infioligopólio, mas não estão política e um bom nitas emissoras. Essa restridefinidos quais são os parâprojeto é impossível” ção torna necessária a premetros que configuram essa sença do Estado para regular e disciplinar concentração. Os veículos de rádio e TV a distribuição das concessões, feitas me- devem dar preferência a conteúdos edudiante leilões válidos para um determi- cativos e culturais – porém, sem esmiuçar nado período. Na prática, é como se uma o que isso significa, a sociedade não tem pessoa alugasse uma frequência. como cobrar a aplicação. MINISTERIO DE SEGURIDAD DE ARGENTINA
Como se faz democracia
MÍDIA
Por essa e por outras, a Constituição prevê que eles não participem de concessões de serviços públicos, para evitar que legislem em causa própria. Em dezembro passado, o Intervozes e o PSOL ingressaram com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar essa situação.
DANIEL AUGUSTO JÚNIOR
Pontapé inicial
“O discurso da censura é o discurso dos censores”, lamenta João Brant, do Coletivo Intervozes, atuante na batalha pela democratização da comunicação. “A regulação precisa incidir diretamente sobre a questão do pluralismo e da democracia e garantir que as diferentes vozes e perspectivas fluam ao debate público.” Assim ficou definido nas nações europeias e nos Estados Unidos, e é desse modo que deseja a Unesco, órgão das Nações Unidas para a educação e a cultura. Toby Mendel, consultor internacional da entidade, lembrou durante um seminário realizado em Brasília em 2010 que liberdade de expressão não é só o direito de ouvir: é o direito de falar. O preceito é reafirmado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que enxerga a comunicação como um direito humano básico, a exemplo da saúde, da educação e da alimentação. Se há conselhos municipais, estaduais e nacionais para discutir essas questões, por que a comunicação ficaria de fora?
A FACA E O QUEIJO A Globo monopoliza as transmissões do futebol e a TV paga. Na Argentina, futebol é declarado bem de interesse público
Na Argentina, diferentemente da Europa, as concessões sempre estiveram com o setor privado. Sempre esteve evidente que poder e comunicação andam juntos, e rapidamente as frequências de transmissão foram distribuídas entre amigos. “Se há algo claro é que o mercado não assegura pluralismos. Os que não têm dinheiro não falam”, adverte Loreti. Quadro parecido com o brasileiro. As outorgas são de atribuição do Ministério das Comunicações e o governo precisa de apoio no Congresso. Parlamentares querem o seu veículo para controlar o noticiário em sua região. A organização Transparência Brasil encontrou 52 deputados e 18 senadores associados a empresas concessionárias de comunicação. A renovação das outorgas é atribuição dos parlamentares.
Chega o domingo à tarde e você está sedento pela partida de seu time. Liga a tevê e aparece a arquibancada repleta. Ajeita-se, separa o amendoim, a cerveja, junta os amigos. Começa o espetáculo. A câmera continua mostrando a torcida. Um narrador conta o que ocorre no gramado – e você, que não comprou o pacote premium, não verá o jogo. Até 2009, os direitos de exibição do futebol eram um monopólio na Argentina. O Clarín, detentor desses direitos, é também proprietário de operadoras de TV a cabo. Os demais operadores, impedidos de exibir o esporte popular, fecharam as portas. O Clarín passou a controlar a maior parte dos assinantes, 65% da população, e o espectador, sem direito de escolha, submeteu-se ao “pague para ver”, o que deu ao grupo uma enorme escala financeira. O quadro foi revertido quando Cristina declarou o futebol bem de interesse público e as transmissões passaram à TV aberta. No Brasil, as operadoras que transmitem as partidas controlam mais de 90% da base de assinantes, 11 milhões de pessoas. No último Campeonato Brasileiro, a Globo, que tem o monopólio do setor, convenceu mais de 1 milhão deles a aderir ao “pague para ver”. O acesso às partidas custou entre R$ 40 e R$ 60 ao mês. Quando apresentou suas vantagens para a renovação do contrato com os clubes, a Globo lembrou que chega a 99,67% dos lares brasileiros. Uma situação que mataria de susto estudiosos da comunicação na França. Nenhuma emissora daquela nação pode atingir mais de 20% da audiência nacional – se passar disso, deve se livrar de canais até que volte aos níveis permitidos. Há restrições também à chamada propriedade cruzada, que é o controle por um mesmo grupo empresarial de veículos de rádio, TV, internet e impressos. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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MÍDIA FOTOS MARCELLO CASAL JR/ABR
DESPROPORÇÃO A Marcha das 100 mil Margaridas mereceu 18 segundos do Jornal Nacional. O churrasco dos 20 mil ruralistas, 127
Na Argentina, o Clarín diz contar com 237 licenças de rádio e TV, além de jornais, revistas e páginas na rede mundial de computadores. Suficiente para endeusar ou demonizar a imagem de qualquer governo ou personalidade e condenar qualquer cidadão acusado de um crime pelo qual não foi julgado. Quando os Kirchner se deram conta do problema, os 21 pontos defendidos pela sociedade civil foram encaminhados ao Congresso, passaram por mais de um ano de discussão, receberam centenas de aportes, votação e em 2009 estavam sancionados. O mote “Hablemos todos”, falemos todos, levou milhares às ruas e a população se apropriou do tema. O Clarín conseguiu rapidamente uma liminar que impede colocar em curso os dispositivos anticoncentração. Espera-se que a Corte Suprema se manifeste neste ano a favor da lei, o que forçará o conglomerado a se desfazer de muitas de suas licenças, várias obtidas pelo grupo com a última ditadura (1976-1983). 18
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O espaço de frequências ficará em três fatias iguais: estatal, privado com fins de lucro e privado sem fins de lucro, destinado a sindicatos e emissoras comunitárias. Os indígenas foram incluídos na fatia do setor estatal, conquistaram frequências de rádio, reuniram em todo o país 250 comunicadores e aguardam a montagem da primeira emissora voltada aos povos originários, o que deve ocorrer em 2012. “Há que romper os cercos que foram criando monopólios da comunicação e as distorções da identidade indígena”, relata Matías Melillán, mapuche da província de Neuquén, na Patagônia.
Dividir o bolo
Representante dos povos originários no Conselho Nacional de Comunicação Audiovisual, Matías diz que a comunicação já era debate antigo entre os indígenas, que finalmente passaram a ter voz e agora entram na via de mão dupla da informação. “Não se pode ter preconceito, nem nutrir
uma visão que nos folclorize.” Além de garantir concessões a grupos até então não representados, a Lei de Meios prevê que 30% da programação terá de ser exibida com conteúdo local e, nas maiores cidades, 30% da grade diária de atrações será de produção local independente. Nenhuma rede poderá controlar mais de 35% da audiência nacional. No Brasil, segundo o projeto Os Donos da Mídia, há 34 redes de comunicação, mas mais da metade das emissoras está afiliada a quatro delas (Globo, SBT, Band e Record). O grupo Rede Bahia controla dez veículos de comunicação no estado, entre os quais seis geradoras de TV e três rádios, que costumam retransmitir a programação da Globo. “Nós queremos nos ver na televisão. A televisão neste país é Sudeste, ela não é a cara de todo o povo brasileiro”, queixa-se Julieta Palmeira, médica e integrante do recém-criado Conselho Estadual de Comunicação da Bahia. “Queremos incentivos à produção in-
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do Carnaval que a revisão do Questionado pela repórter Lúcia Rodrigues, da Ráprojeto de marco regulatório dio Brasil Atual, sobre a lenjá estaria concluída e deverá tidão na comparação com o ser objeto de consulta pública em breve. O ministro não país vizinho, o ex-ministro mencionou prazos e pondeFranklin Martins lançou rou que vai precisar converuma hipótese: “O Brasil não sar mais dentro do governo. caminha galopando, tirando as quatro patas do chão Em seu primeiro ano de ao mesmo tempo como um gestão, Dilma quase não tocou no assunto. Agora, o tepotro argentino, que é muiRenata Mielli: a to rápido, mas às vezes corma parece ter dado um sinal Globo tem o seu papel e ninguém re para um lado e depois é de vida. Na mensagem do quer interferir em obrigado a voltar porque Executivo ao Congresso Nasua programação cional, na abertura do ano lenão tinha criado um consenso. O Brasil é como um gislativo de 2012, é citada a elefante, para movimentar uma pata, pre- pretensão do governo de concluir o Recisa ter as outras três no chão”. gulamento do Serviço de Radiodifusão A metáfora, se não bate de frente, tam- (de 1963). E também de “prosseguir com bém não alivia para o ministro das Co- ações voltadas à atualização do marco lemunicações do governo Dilma, Paulo gal das comunicações eletrônicas”. Os braBernardo – em cuja gaveta hiberna o ante- sileiros ávidos por um sistema mais deprojeto de regulação rascunhado há quase mocrático esperam, enfim, ter tocado o dois anos. De acordo com o Observató- coração da presidenta. Sem a ajuda dela, rio do Direito à Comunicação, Bernardo o elefante segue adormecido, sufocando as afirmou durante um seminário dias antes vozes de quem ficou lá embaixo. VANDRÉ FERNANDES
dependente e à produção regional para que nosso povo possa se ver na televisão.” Como as chamadas “cabeças de rede” ficam no Sudeste, concentra-se aí 60% do faturamento em publicidade. Na Argentina, a expectativa é garantir a criação de postos de trabalho e o desenvolvimento de um mercado de comunicação fora de Buenos Aires, com o que se desconcentra também a verba publicitária e se assegura a valorização das notícias e dos aspectos culturais de cada região, sem que a visão portenha se transforme na visão nacional. Para os grupos que querem discutir a regulação, reside aí uma das explicações para que as redes de televisão brasileiras não tenham a mesma disposição. A distribuição da publicidade do governo brasileiro passou por um processo importante de desconcentração ao longo da última década. Em 2003, receberam recursos de campanhas federais 499 veículos em 182 municípios; em 2010, foram 8.094 veículos em 2.733 municípios – mas a maior fatia ainda fica com a televisão aberta.
A Bahia inaugurou em janeiro o primeiro conselho estadual de comunicação do Brasil. Outros projetos do gênero surgiram em 2010, mas o apoio do governo de Jaques Wagner foi decisivo para que o colegiado baiano, fruto de uma iniciativa de movimentos da sociedade, fosse instalado. A ideia é discutir o fortalecimento da rede pública de televisão e rádio, o papel das emissoras comunitárias e a distribuição de verbas publicitárias estaduais. “Isso traz desenvolvimento regional à medida que se apoia o produtor de conteúdo onde ele estiver”, diz Julieta Palmeira, empossada no Conselho Estadual de Comunicação da Bahia em 10 de janeiro. Julieta, também do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, conside-
ra importante o fato de empresários, sociedade civil e governo terem se sentado à mesma mesa para debater o tema, apagando o preconceito em torno dos militantes. “O conselho tem caráter deliberativo, e isso ocorreu com a aceitação dos empresários, o que não é uma coisa menor.” A Rede Globo foi a exceção. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), representante dos maiores grupos midiáticos, que já havia se negado a participar da Conferência Nacional de Comunicação em 2009, tampouco quis integrar o grupo de trabalho que elaborou o projeto do conselho baiano. Em nota, a Abert manifestou considerar inconstitucional a iniciativa por acreditar se tratar de uma prerrogativa da Federação, vetada
MANU DIAS/SECOM
Ouça um bom conselho
Jaques Wagner: fortalecimento da rede pública de comunicação
aos estados. “A Constituição brasileira é clara ao garantir o exercício da liberdade de expressão e de imprensa, da manifestação do pensamento e de opinião, sem nenhum tipo de censura, licença ou controle”, acrescenta. “Não pode haver temas in-
terditados para o debate público”, rebate Renata Mielli, do FNDC. “Como vou controlar a Globo? Não tem como controlar. Mas tenho como discutir critérios de distribuição de publicidade oficial. Quando se fala sobre isso, esses veículos ficam enlouquecidos.”
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TRABALHO
Falso
brilhante Para o Fórum em Defesa dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, a tese de que essa prática cria bons empregos é tão insustentável quanto uma criança montar mil bijuterias num dia por R$ 10 Por Leandro Melito
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o final de 2011, um caso de corrupção envolvendo a família do prefeito Silvio Félix levou a população de Limeira (SP) às ruas e Félix ao impeachment. Não era uma estreia no noticiário de escândalos. Meses antes, explodira outro, relacionado a uma das principais atividades econômicas da cidade. Um acidente na empresa Milon Semijoias matou o trabalhador Guilherme Ragonha, expôs à intoxicação outros quatro e revelou os riscos dos serviços na cadeia produtiva de joias, semijoias e bijuterias, que dão fama ao município. Essa cadeia é formada por um seleto grupo de proprietários que levam uma vida muito boa cercada de trabalho precário por todos os lados. Para o engenheiro de segurança Luiz Antonio Valente, o caso de Guilherme Ragonha trouxe à tona a ferida: “Muitas das centenas de galvanoplastias em Limeira estão na mesma situação dessa empresa”.
O vereador Ronei Martins considera o caso emblemático ao pôr às claras esse setor, que, embora seja determinante para a economia do município, tem efeitos colaterais como a terceirização e a quarteirização do trabalho, “inclusive com a transferência da produção do chão de fábrica para o espaço doméstico”. Uma comissão presidida pelo vereador constatou a grande participação de mulheres na atividade, com jornadas diárias de até 13 horas. A cada mil brincos montados, ganham-se R$ 10. “Elas não têm direitos, se sofrem um acidente não têm respaldo, não têm férias, décimo terceiro salário, licença-maternidade”, critica Ronei. “Há jovens empresários que construíram patrimônio incompatível com a má qualidade do emprego que proporcionam.” A produção doméstica de joias se concentra nos bairros periféricos e pode ser vista até nas calçadas. Jaqueline de Paula Prado, 13 anos, aluna da 7ª série do ensino fundamental, ajuda a mãe. Nas férias,
FOTOS DANILO RAMOS
TRABALHO
PRECÁRIO, PERIGOSO E ILEGAL Em locais improvisados e expostas a riscos de acidentes graves, mulheres e crianças montam bijuterias durante o dia todo na cidade de Limeira. Uma jornada de 13 horas rende R$ 30
monta 2.700 peças em um dia. Santinha de Oliveira, 49 anos, há cinco retira e entrega as encomendas na fábrica e monta mil peças por dia. Soninha, antes catadora de papelão, faz o serviço que lhe rendeu problemas na coluna e calos nas mãos, “para não ficar parada”. Uma de suas filhas, de 5 anos, ajuda a emendar uma peça na outra. Edith de Oliveira, 68 anos, reforça com bijuterias a renda de pensionista. Haydee Calixto, 54, aos 11 começou a labutar em plantações de tomate, laranja, café, cana e algodão; depois, em indústria têxtil e em lotérica. Aos 23 anos passou a trabalhar em uma fábrica de joias e há dez faz peças em casa, 2.500 por dia – corte, solda e montagem de correntes. Haydee produz direto para a fábrica e nenhuma das pessoas que trabalham com ela é registrada. Ronei Martins imputa aos atravessadores, que pegam as encomendas nas empresas e levam até a casa das mulheres, a dificuldade de identificar as que recorrem ao trabalho doméstico.
“Muitas mulheres trabalham sem saber para quem, qual a razão social ou o CNPJ da empresa; há uma cortina de proteção aos empresários de um possível processo judicial.”
Ventos liberais
Limeira fica a 154 quilômetros da capital paulista, na região de Campinas. O setor de bijuterias e lapidação de pedras ganhou destaque no município durante a década de 1990, com empresas familiares de micro e pequeno porte. Na ocasião, a desregulamentação no mundo do trabalho, favorecida no Brasil por elevadas taxas de desemprego, impulsionou uma onda generalizada de terceirizações. Segundo estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o grande salto nas terceirizações no estado ocorreu entre 1995 e 2000, quando a contratação indireta de mão de obra passou de 9% para 97% do saldo líquido de empregos gerados.
A Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho, revela queda no estoque de empregos com carteira assinada na cidade, de 49.309 em 1989 para 42.013 uma década depois. Uma pesquisa feita por Marcos Antonio Libardi Ferreira, mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Metodista de Piracicaba, concluiu que 56 mil pessoas estão envolvidas informalmente na produção de joias em Limeira. Apontou ainda a existência de trabalho infantil no setor e a participação de cerca de 25% dos estudantes da rede pública de ensino. Com a transferência do serviço para o espaço doméstico, para lá migraram também os riscos correlatos, como contatos com produtos químicos e gases perigosos, uso de ferros elétricos, materiais pontiagudos, movimentos repetitivos e posturas corporais forçadas – caminhos para as Lesões por Esforço Repetitivo e Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (LER/Dort). REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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MAIS INSEGURO Setor elétrico: maior número de acidentes entre terceirizados
JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM
Nas próximas semanas, é possível que informações como essas passem ao largo dos debates que estão por vir no Congresso Nacional. Existem diversos projetos de lei para regulamentação da terceirização no país, mas o que está em pauta hoje é o do deputado Sandro Mabel (PMDB-GO). No final do ano passado, uma Comissão Especial da Câmara aprovou o substitutivo ao projeto, assinado pelo deputado Roberto Santiago (PSD-SP). O texto atende ao lobby de empresários, com apoio de alguns grandes meios de comunicação, interessados numa legislação mais flexível e tolerante. As terceirizações, segundo seus defensores, são um fenômeno moderno, ajudam a superar encargos trabalhistas e a criar empregos formais e especializados. Além desses setores, o relatório tem apoio da União Geral dos Trabalhadores (UGT), central da qual Roberto Santiago é vice-presidente, e da Força Sindical, do também deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP). O substitutivo precisa agora ser votado pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara, presidida pelo deputado Ricardo Berzoini (PT-SP). Berzoini é contrário ao projeto, assim como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), a Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST) e a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB). Sindicalistas ligados a essas centrais, procuradores do Trabalho, juízes e organizações da sociedade civil criaram o Fórum em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização. Para o Fórum, companhias que contratam prestadoras de serviços devem ter responsabilidade solidária pelo cumprimento dos direitos dos funcionários – podendo ser acionadas diretamente pelo empregado da terceirizada que tiver seu direito aviltado. Na avaliação de Ana Tércia Sanches, diretora do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região e integrante do Fórum, o substitutivo de Santiago dificulta a defesa do direito do trabalhador. “Ele vai ter de esgotar todas as vias na Justiça questionando a empresa intermediária, não a contratante, e esse processo pode levar muitos anos”, critica.
“Além disso, não é raro empresas serem abertas só para determinada empreitada e depois fecharem sem pagar o que devem.” O Fórum adverte que o fenômeno da terceirização há muito tempo não é “exclusividade” dos joalheiros de Limeira e está disseminado em todos os setores.
Ramificações
Em novembro de 2011, o Ministério Público do Trabalho de Campinas entrou com duas ações civis públicas que pedem a condenação da construtora MRV ao pagamento de R$ 11 milhões em multa pela utilização de trabalhadores em condição análoga à escravidão em duas obras no interior de São Paulo. As fiscalizações identificaram trabalho precário associado a terceirização, por meio de empreiteiras contratadas pela MRV. Na mesma Campinas, o Ministério do Trabalho e Empre-
go interditou um alojamento de operários que trabalhavam na construção de um centro de processamento do banco Santander, no distrito de Barão Geraldo, devido às péssimas condições de moradia. Fiscalização feita no final de dezembro encontrou 20 operários dividindo uma casa, onde alguns dormiam na varanda por falta de espaço. Um deles, sem colchão, chegou a dormir três noites dentro de um armário para se proteger do frio. Outro setor que teve o nível e a qualidade do emprego violentamente afetados é o financeiro. Estudo do Dieese mostra que a terceirização envolve desde áreas de processamento dos documentos, atividades de tesouraria, centros administrativos até pontos de atendimento por meio de correspondentes bancários e promotoras de crédito, call centers, internet banking e terminais de autoatendimento.
TRABALHO
No final dos anos 1980 havia 900 mil empregos diretos em instituições bancárias. Hoje, do contingente de 1 milhão de pessoas que atuam no ramo financeiro, menos da metade – 470 mil – são funcionários de bancos. Segundo o Dieese, os terceirizados ganham 27% menos e permanecem no emprego 2,6 anos, em média, enquanto um bancário resiste 5,8 anos. No setor elétrico, a transferência de mão de obra teve impulso com o processo de privatizações, iniciado no governo Collor e acentuado durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Dados da Fundação Coge, criada e gerida pelas empresas de energia, constatam que o nível de terceirização na área atualmente supera a casa dos 55% da força de trabalho. O Relatório de Estatísticas de Acidentes no Setor Elétrico Brasileiro, elaborado desde 2000 pela fundação, revela que a área de energia tinha 232 mil trabalhadores em 2010, sendo 127 mil terceirizados. Houve 741 registros de acidentes entre os contratados e 1.283 entre os terceirizados. As ocorrências fatais mostram uma realidade muito mais alarmante: das 79 mortes por acidente ao longo daquele ano, 72 foram de “prestadores de serviço”. A taxa de mortalidade média entre os trabalhadores diretos é de 14,8 para cada 100 mil, e entre os terceirizados, de 47,5.
O setor de petróleo também lamenta o alto índice de acidentes fatais. A Federação Única dos Petroleiros (FUP) denuncia a ocorrência de 283 mortes por acidentes no sistema Petrobras, 228 delas de terceirizados, entre 1995 e 2010. Durante reunião na Secretaria-Geral da Presidência da República em dezembro, o dirigente da FUP João Moraes ressaltou que o crescimento do setor nos últimos anos estimulou a contratação indireta, tanto na Petrobras quanto nas empresas privadas. Segundo Moraes, se o país caminha para ser o terceiro maior produtor de petróleo do mundo, deveria cuidar para que as condições de trabalho não se degradem.
Regulamentação
Apesar de apontar avanços como a melhora dos salários de 10,2% em dez anos e o aumento da escolaridade – em 2010, quase 60% dos trabalhadores terceirizados tinham concluído o ensino médio, ante 16% em 1995 –, Marcio Pochmann, do Ipea, ressalta que persistem características de precariedade. “O curto período de permanência não dá oportunidade para o trabalhador obter melhor qualificação nem trajetória de remuneração ascendente”, avalia. Pochmann defende a discussão de regras e garantias de condições adequadas para essa forma de contratação.
“A escassez legal faz com que não exista igualdade de condições de competição tanto do ponto de vista patronal quanto do laboral.” O projeto em tramitação mais adiantada na Câmara, entretanto, agrava a situação e permite a subcontratação por meio da terceirizada, ou seja, “quarteirização”, e assim por diante. Daí a importância da responsabilidade solidária das contratantes, como ressalta o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio. “Quando uma empresa contrata outra precisa assumir o ônus sobre todo tipo de passivo que a prestadora não cumpra”, diz. “Não queremos alterar as relações do ponto de vista da organização da produção, o que não consideramos justo é que essas relações aviltem direitos e criem condições precárias e desiguais. E há muita terceirização realizada com esse objetivo.” O texto do substitutivo defende a igualdade de condições para questões de alimentação, transporte, ambulatório e medidas de segurança, mas não em relação a salários e jornada de trabalho. “A gente não pode partir para consolidar uma sociedade resignada, em que as grandes corporações tenham um núcleo de trabalhadores efetivos, uma nova elite, enquanto uma massa de terceirizados tem os direitos pulverizados”, alerta Ana Tércia Sanches, do sindicato dos bancários.
No centro da capital paulista, um restaurante chama a atenção pelo primeiro de seus “dez mandamentos” divulgados aos clientes: “Não recorremos à terceirização”. Regina Célia Caldas de Arruda Leite, proprietária do estabelecimento inaugurado em 1993, afirma ter decidido desde o início andar na contramão da tendência da época. “Montamos a estrutura e fomos ensinando como trabalhar com produto integral, criando as próprias receitas e formando a equipe. Eles aprendem nosso modo de trabalhar e vão se formando aqui mesmo.”
A maioria dos 13 funcionários está no local há mais de dez anos. A cozinheira Alice Victória Azevedo está há 16 anos no restaurante, seu primeiro emprego. “Além da experiência que a gente vai adquirindo, a gente tem aqui também uma família.” Ela considera a baixa rotatividade um estímulo. “Dá mais segurança, você passa a ter mais confiança até nos patrões.” Agora em março, a CUT, integrante do Fórum em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, realiza uma campanha
PAULO DONIZETTI DE SOUZA
Selo de qualidade
Alice: segurança traz confiança, que traz qualidade
em torno do assunto. Para Artur Henrique, presidente da central, as empresas socialmente responsáveis devem tomar conta dos processos de produção e prestar aten-
ção em quem contratam. “A terceirização é prejudicial para a saúde do trabalhador, para a produtividade da empresa e para o desenvolvimento do país”, resume.
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CIDADANIA
Cerco ao
se colar colou Por causa de metas sem conexão com a realidade, bancários são pressionados a vender e clientes a gastar com o que não precisam. Cenário de abusos une ambos em campanha por ética na relação banco-consumidor Por Suzana Vier
O
s cinco maiores bancos tiveram em 2011 novos ganhos recordes. Seus lucros somados encostaram em R$ 51 bilhões. Do lado de dentro do balcão, porém, nem tudo é festa. Trabalhadores acusam aumento de 100% nas metas a bater. Francisco Botim, funcionário de um call center direto do banco Santander, antes incumbido de captar R$ 500 mil em empréstimos consignados a cada mês, teve sua carga majorada para mais de R$ 1 milhão. “As pessoas vivem todos os dias em função das metas. Tenho de bater, minha cabeça está a prêmio”, alarma-se. Juntos, Itaú Unibanco, Banco do Brasil, Bradesco, Santander e Caixa Econômica Federal representam 85% de todo o sistema financeiro brasileiro. Quatro deles destacam-se em outro ranking: o de reclamações de clientes por serviços mal prestados. Segundo o Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec), ligado ao Ministério da Justiça, o Itaú Unibanco alcançou o topo da lista encaminhada pelas unidades estaduais do Procon de todo o Brasil. O rol tem ainda Bradesco (4º lugar), Santander (7º) e Banco do Brasil (9º). Os assuntos que mais aborrecem a população são cobranças, serviços e contratos mal-feitos ou não explicados. 24
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CIDADANIA
IMPREVIDÊNCIA Conceição pagou o que não podia por um plano de previdência e acabou perdendo dinheiro
Para a presidenta do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira, a política abusiva de resultados acaba afetando trabalhadores e clientes. “O funcionário tem metas muito altas de venda de produtos e sofre uma pressão absurda para atingi-las. No outro lado, o cliente tem problemas com produtos inadequados, como plano de previdência complementar vendido para idoso”, afirma. A correntista Alexandra Previtale coleciona contratempos relacionados a serviços financeiros, como débitos não autorizados em sua conta, seguro de vida nunca contratado, lançamentos indevidos em cartões de crédito, alterações de tarifas sem consulta. O primeiro problema começou em junho de 2010 e demorou meses para ser resolvido pelo Banco do Brasil. Alexandra percebeu descontos mensais de R$ 8 e, ao cobrar explicações, descobriu tratar-se de um seguro de vida que nunca contratara. “Não movimentava essa conta, quando vi estava negativa, com débitos sucessivos de um seguro de vida que eu desconhecia.” O banco demorou meses para diagnosticar o lançamento indevido. Antes do veredito, havia sugerido que a correntista não se lembrava da contratação do serviço. “Questionei então quem eu teria indicado como beneficiário”, desafiou. “A gente se sente impotente e roubada ao mesmo tempo.” Somente entre 2010 e 2011, a receita dos cinco maiores bancos com tarifas e prestação de serviços aumentou 14%, para R$ 74 bilhões. Resta saber o quanto do “se colar colou” entra nessa fatura – que, para se ter uma ideia, supera todo o orçamento do Ministério da Saúde para este ano, de R$ 72 bilhões bilhões.
PAULO PEPE
Armadilhas
Há mais de 20 anos empregada no setor, Maria Salles, do Itaú Unibanco, diz que a orientação das instituições é “rentabilizar” a conta. A recomendação tem força de lei. E implica “empurrar” serviços, necessite o cliente ou não. “O banco deixa claro que só tarifa não dá. Tem de agregar seguro, às vezes dois, título de capitalização, cartão de crédito”, enumera. Na corrida contra o tempo, os bancários sujeitam-se a humilhações. Maria diz que não é raro pedir a algum conhecido “pelo amor de Deus, me ajude” com um seguro ou título de capitalização. “Fomos transformados em meros vendedores, inclusive os gerentes”, afirma. “Não basta ser cliente, tem de ser rentável.” Entre as orientações questionáveis do ponto de vista ético e financeiro, a funcionária assinala a aber-
tura de contas com cobrança de tarifas mais altas. “O banco conta que vai passar batido pelo cliente. E ai de quem ‘errar’ e lançar uma tarifa mais barata”, explica. Produtos como títulos de capitalização são vendidos como poupança. “Essa é uma das piores aplicações do mercado”, diz o consultor Pio Mielo, especialista em educação financeira e políticas de investimento. Os rendimentos dos títulos de capitalização implicam perda para o cliente de 25%. Enquanto a poupança rende 0,5% de juros mais TR (taxa referencial), os rendimentos de um título de capitalização ocorrem sobre 75% dos depósitos do cliente mais correção mensal da TR. O restante é dividido em cotas de sorteio (15%) e de carregamento, que são as despesas operacionais do banco (10%). Outra venda na base da pressão e da desinformação ocorre com fundos de previdência. Apesar de serem interessantes para quem realmente deseja contratar, são uma péssima escolha para idosos ou quando vendidos sem avaliação criteriosa do perfil do cliente, de suas condições financeiras e sua necessidade futura. Há cinco anos, numa simples ida ao Bradesco, a massoterapeuta Maria Conceição Santos, de 61 anos, voltou para casa com um contrato de previdência privada. Seis meses depois, constatou que não tinha mais como manter os depósitos mensais. Acabou amargando prejuízo do que já havia depositado. “É comum dizer que é uma aplicação”, lamenta a bancária Maria Salles.
Perfil dos problemas As demandas mais frequentes no Sindec 19,99%
Ofertas
11,62% 35,46% 11,19% 12,26% Cobranças
9,48%
Divergências contratuais Má qualidade de produtos ou serviços
Garantia de produtos
Outros tipos REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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CIDADANIA
No Top 10 da reclamação Entre as dez empresas mais citadas no Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor em 2011, quatro são bancos. Estes, mais a Caixa Federal, faturaram R$ 74 bilhões em 2011 com tarifas e prestação de serviços – mais que todo o orçamento do Ministério da Saúde, de R$ 72 bilhões
1º
2º
3º
Juvandia critica os bancos e considera que a solidez e a lucratividade do sistema permitiriam uma conduta mais ética. “Há clientes que compram produtos sem saber o que estão adquirindo.” Pio Mielo admite que nunca é tarde para ter uma previdência privada. No entanto, quanto mais tardia a decisão de contratação do serviço, maior será o valor a desembolsar. “É preciso ter muita atenção. O valor pode ser alto em relação à capacidade do cliente e levá-lo a não dar conta de manter o investimento”, alerta. Conceição diz que só percebeu o mau negócio quando tentou cancelar o serviço. “Fui induzida pelo projeto de uma boa aposentadoria. Se soubesse dos detalhes não teria feito. Ficou a raiva de ter sido passada para trás”, protesta. No call center do Santander, o bancário Francisco resume o tormento: “Eu gostaria de chegar à meta, mas é inalcançável, e isso nos faz passar como incompetentes diante da equipe”. A estratégia da empresa para “fidelizar” clientes é não estimular a quitação da dívida e prorrogar o recebimento dos juros. “Se o cliente ligar para quitar, a indicação é evitar.” Embora Francisco conte, em tese, com autonomia para liberar o boleto de quitação para o cliente, ele é “proibido” de fazê-lo. Pesquisa do Sindicato dos Bancários sobre a saúde dos trabalhadores divulgada em 2011 comprovou que as metas impostas sem discussão com os funcionários nem relação com a realidade da clientela são a principal causa de adoecimento. “É uma situação muito humilhante”, diz Maria Salles, do Itaú Unibanco. “O bancário vive à base de antidepressivos.” 26
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4º
5º
6º
7º
Apesar de a maioria ser jovem, – dois terços da categoria têm até 35 anos –, 84% relataram já ter enfrentado problemas de saúde, a maioria decorrente de estresse. No levantamento realizado entre novembro de 2010 e janeiro de 2011, 72% dos caixas e 63% dos gerentes declararam sofrer pressões abusivas para superar as metas e 42% afirmaram ter sobrecarga de trabalho.
Venda responsável
O problema das metas não se restringe a uma limitação física. Há também um peso moral. A pressão excessiva para superar metas abusivas foi muito citada na pesquisa como desrespeitosa com as convicções pessoais dos bancários. Esse cenário degradante está unindo representantes dos empregados e dos clientes de instituições financeiras num movimento por esclarecimento e conscientização. A campanha Direitos dos Consumidores e dos Trabalhadores Bancários: pela Venda Responsável de Produtos e Serviços Financeiros está sendo preparada pelo Sindicato dos Bancários e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Um seminário agora em março dá início às discussões sobre o tema. As duas entidades produziram uma publicação que esclarece os consumidores sobre alguns dos serviços bancários com maior incidência de reclamações e que são objeto de metas – como títulos de capitalização, previdência privada, seguro de vida e de automóveis –, além de informações sobre tarifas. “A ideia é reunir dois lados que são atingidos pelo mesmo problema”, explica Lisa Gunn, coordenadora executiva do Idec. “A política imposta de me-
8º
9º
10º
tas compromete a capacidade dos trabalhadores de fazer uma orientação isenta.” Durante a campanha, os bancos serão convidados a aderir à Declaração sobre a Venda Responsável de Produtos Financeiros, documento elaborado pela United Networks International (UNI), rede global de sindicatos do setor de serviços com 900 entidades filiadas em 150 países. A declaração defende o fim das metas abusivas e o compromisso de uma “cultura interna de negócios e procedimentos operacionais”, pelo estabelecimento de uma relação ética com a clientela. Entre os pontos, estão a garantia de que os sistemas de incentivo para os empregados sejam realistas, justos e transparentes, baseados em objetivos sustentáveis. Os trabalhadores querem garantia, também, de que os produtos financeiros sejam adequados para as necessidades dos consumidores. A UNI Finanças, braço da UNI Sindicato Global, representa cerca de 3 milhões de trabalhadores de bancos e empresas de seguros em todo o mundo. No ano passado, a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) já havia sido convidada pelos sindicatos bancários a assinar o compromisso durante a campanha salarial, mas se recusou. Agora, será novamente pressionada a assumir responsabilidade sobre o que é vendido.
Pressão internacional
O “se colar colou” não é exclusividade dos bancos brasileiros. A Consumers International, federação que reúne organizações de defesa do consumidor em nível mundial, desenvolve uma campa-
JAILTON GARCIA
CIDADANIA
PESO MORAL Francisco, do Santander: ordem é desestimular o cliente a quitar o empréstimo consignado para poder prorrogar o ganho com os juros pagos pelo tomador
nha há três anos no grupo de países que formam o G-20, pela regulação dos serviços financeiros. “Existe um movimento tanto de trabalhadores como de consumidores para a venda responsável de produtos e serviços financeiros”, afirma Lisa Gunn, do Idec. “É papel de um Estado forte regular, fis-
calizar e proteger o consumidor, a fim de garantir o equilíbrio do sistema. Isso passa pela venda de produtos financeiros de forma responsável.” O Idec, em conjunto com outras organizações de trabalhadores e consumidores, criou também o Guia de Bancos Responsáveis (www.guiadosbancosresponsaveis.org.br). A ferramenta foi elaborada com base em pesquisa sobre práticas de responsabilidade social adotadas pelas instituições financeiras. O site oferece a possibilidade de avaliação e comparação de desempenho dos bancos a partir de diversos quesitos, nas áreas de direitos do consumidor, respeito ao trabalhador, práticas sustentáveis. Além de conhecer melhor o comportamento de cada empresa, quem acessa pode também reclamar enviando um cartão amarelo ao banco que desejar. O cliente ou usuário que se sente lesado deve, primeiro, procurar o próprio banco para tentar resolver a questão. Se não houver resolução, deve se dirigir a um órgão de defesa do consumidor e, ainda, registrar a reclamação no Banco Central. “Determinados tipos de prática, em grande volume, podem comprometer o equilíbrio do sistema porque criam situações de endividamento”, alerta a coordenadora do Idec.
Principais serviços-alvo de metas de vendas Serviços
Prós
Contras
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Título de capitalização
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Poupança forçada. Ajuda a guardar o dinheiro.
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Seguro de vida
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Garantia de segurança em caso de fatalidade.
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Previdência privada
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Retorno futuro do capital investido, acrescido de atualização monetária de forma programada.
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Uma das piores aplicações do mercado. Bancos utilizam o fato de ser débito em conta corrente como vantagem. Nem todo o valor aplicado é retornável se resgatar antes do vencimento. Quanto maior o prêmio oferecido, menor o total capitalizado. Em caso de premiação por sorteio, o valor deve ser declarado ao IR (taxação de 30% sobre o prêmio e de 20% sobre os rendimentos obtidos).
O valor pago não é devolvido caso não haja sinistro. Quanto maior a idade do segurado, maior seu custo com seguro. Coberturas muitas vezes desnecessárias ao perfil do usuário compõem e encarecem o plano. ■ Nem sempre o usuário é alertado, na escolha das coberturas, sobre exclusões e condições específicas para indenização. ■ Bancos impõem a aquisição às vezes como condição para outros negócios. Longo período de capitalização. Possui taxas incidentes em qualquer tipo de plano. Possui taxas de administração, que podem variar de banco para banco. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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ENTREVISTA
futuro 28
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A ministra responsável pelo programa mais importante do governo Dilma diz que não se erradica a miséria em dois anos, mas sabe que o IDH do Brasil na próxima década depende da consistência das políticas de hoje Por Paulo Donizetti de Souza
AUGUSTO COELHO
Tereza mira o
ENTREVISTA
A
economista Tereza Campello é uma das dez mulheres que integram o primeiro escalão do governo Dilma Rousseff com status de ministra. Tereza está na condução do programa mais importante do mandato de Dilma. No Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), é responsável pela meta de retirar 16 milhões de brasileiros da extrema pobreza até 2014. “O IDH do país daqui a dez anos será resultado do que fizermos agora”, diz. Ao falar sobre a ascensão das mulheres na gestão, a ministra pondera que o Lula foi um excepcional presidente. “Tivemos um conjunto de ganhos de política de gênero ao longo desses últimos oito anos implementado por um presidente homem”, afirma. E qual é a importância, então, de ter uma presidenta e tantas outras mulheres em postos-chave da gestão pública? É mostrar para uma menina, acredita Tereza, que ela pode até conduzir um ministério com homens e mulheres e as pessoas se orgulharem dela. É uma boa explicação para o sentido do termo “empoderamento feminino”. Da vitória contra o câncer de mama diagnosticado poucos meses antes de assumir o MDS às conquistas do Brasil sem Miséria – que alcançou 500 mil novas famílias em sete meses –, Tereza falou à reportagem durante 60 minutos. “Isso me empurrou. Lancei o programa de peruca”, disse, referindo-se ao tratamento de quimioterapia que não a afastou nem um dia do trabalho. Leia a seguir os principais trechos da entrevista. A íntegra está disponívek no site. O combate à fome foi eleito prioridade no governo Lula, há nove anos, e foi pouco entendido. Depois veio o Bolsa Família, que deu certo, mas alguns ainda o desqualificam. A senhora vê defeitos a serem superados e virtudes a serem aprimoradas nessas experiências?
É bom começar falando do Brasil sem Miséria pela história. Por que hoje a gente pode lançar o Brasil sem Miséria e por que a gente fez o Fome Zero lá em 2003? São dois países totalmente diferentes. Hoje o Brasil é um outro Brasil. Eu participei da construção do Bolsa Família, do próprio Fome Zero. Existia essa expectativa de enfrentar a fome, mas era um sentimento contraditório da sociedade brasileira. Tinha parcela muito grande da população muito pobre, muitos passando fome, e o Estado e a sociedade discutindo se devia dar a vara, mas não o peixe, se podia dar só o peixe, se era assistencialista reduzir a situação de dor e sofrimento dessas pessoas e se isso não levaria as pessoas a ter preguiça. E por que mudou isso? Porque estamos há nove anos fazendo isso e está provado estatisticamente que isso não aconteceu.
Existe um mapeamento de pessoas que d izem “obrigado, não preciso mais”?
Em algumas pessoas a gente tem essa evolução. Em outras, o cartão vence – o cartão do Bolsa Família não é para a vida toda, tem uma duração de dois anos. A pessoa, para continuar ganhando, tem de ir ao gestor do Bolsa Família – em geral as prefeituras – e renovar seu cadastro, atualizar informações, “agora eu tenho uma cisterna”. Se não, é notificada, o beneficio é suspenso e depois cancelado. Nós temos mais de 5 milhões de benefícios que foram cancelados ao longo desses oito anos, mostrando que uma parcela grande das pessoas não precisou mais. Se podem contar com o benefício e abrem mão dele, significa que evoluíram. Então, hoje está comprovado o ganho que temos, e por isso podemos dar esse novo passo, que é o Brasil sem Miséria. E qual é o ganho?
Primeiro, a população apoiada pelo Estado não abandona o trabalho, ao contrário, ela ganha condições de procurar o trabalho, porque tem o recurso para pegar o ônibus, porque melhorou sua situação de conforto pessoal, se sente mais estimulada a buscar emprego. Segundo, as crianças estão em sala de aula. Nós acompanhamos a frequência escolar de 15 milhões de crianças do Brasil, filhos das famílias do Bolsa Família. São as únicas crianças que têm frequência escolar acompanhada no Brasil, as outras não. Sejam filhos de rico, sejam filhos de classe média, se abandonar a escola ninguém toma providência. As crianças do Bolsa Família, se abandonam a escola por algum motivo, nós vamos atrás, tentamos resgatar. Nós tivemos uma redução de mais de 50% da desnutrição infantil nas crianças do Bolsa Família. Crianças na idade de 0 até 5 anos em desnutrição infantil são prejudicadas pelo resto da vida. Não adianta você entrar com escola e alimentação depois dos 5 anos: se a criança passou fome no período de formação da sua capacidade cognitiva, nunca mais vai se recuperar. Esses efeitos na renda criam por si só condições para que as pessoas possam viver sem o Bolsa Família ou são necessárias políticas paralelas para abrir portas de saída?
É exatamente essa a ideia do Brasil sem Miséria. As pessoas sabem que o Bolsa Família é bom para a sociedade, porque é consumo, é recurso no mercado, se você perguntar hoje para comerciante, para industrial, ninguém é contra o Bolsa Família como era oito anos atrás.
As pessoas que conseguem mais uma faxineira por menos que o Bolsa ainda são, né?
Não parei de trabalhar em nem um momento, tinha uma tarefa gigantesca, acabar com a minha doença e assumir a principal bandeira da presidenta Dilma. Isso me empurrou. Lancei o programa de peruca
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ENTREVISTA
Havia mais de 70% das crianças com deficiência no Brasil fora da escola. Fomos tentar entender e descobrimos que a maioria estava fora por desconhecer seu direito, ou por vergonha. Em dois anos triplicou o número de crianças na sala de aula
Mas não é só por causa do Bolsa Família isso, viu? O Brasil de fato está em outra condição, cresce de forma sustentável porque inclui, e é um exemplo de enfrentamento da crise para o resto do mundo. Por quê? Porque também valorizou o salário mínimo, apostou no fortalecimento da agricultura familiar. Isso é inclusão produtiva. Então, tem porta de saída hoje no Brasil sem Miséria. Tem muito lugar que procura mão de obra. Falta empacotador em supermercado, falta empregada doméstica, falta engenheiro, falta pedreiro, falta eletricista. Antes o Brasil crescia assim: Rio, São Paulo. Hoje você vai para Pernambuco, cresce; Ceará, cresce. O Piauí é um dos estados que mais crescem no país, até porque era muito pobre, e partindo de um patamar muito baixo cresce a taxas chinesas. Falta mão de obra em tudo quanto que é lugar. Essa população é o público do Brasil sem Miséria, população que a gente diz que é extremamente pobre porque a família ganha menos de R$ 70 reais per capita. Ela é pobre de renda, mas é pobre de um conjunto de outras coisas. E 70% dessa população são negros. Essa população é pobre de conhecimento e de informação também.
É uma população com baixíssima escolaridade, muitos são analfabetos. Então, a gente fala de quem não vai acessar naturalmente as oportunidades que o Brasil hoje está oferecendo. Grande parte desse público de extrema pobreza tem estratégia de sobrevivência, usa cozinha para fazer bolo para vender na obra de construção civil na esquina, usa a sua residência para fazer pequenos reparos, costura, conserta sapatos, as pessoas vendem coisas na sinaleira. Então, podia melhorar seu negócio, mas não consegue porque não tem acesso a conhecimento. O Brasil sem Miséria está chegando com esse conjunto de suportes que permitirão que essas famílias se qualifiquem. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (Pronatec) dá conta disso?
Muita gente não sabe, mas o Pronatec não é só para ensino médio. Nós temos três, um para estudante do ensino médio, outro para o trabalhador desempregado e outro para o Brasil sem Miséria, que é um Pronatec para o público do Bolsa Família, que tem baixa ou nenhuma escolaridade. Para mapear as pessoas que precisam do programa, localizá-las no interior, nas periferias urbanas, é necessásrio o entusiasmo dos parceiros locais, os municípios. Existe esse entusiasmo, ou as coisas, localmente, são movidas a dividendos políticos? 30
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Todos os municípios estão envolvidos, e há estados lançando programas próprios. Batemos várias das nossas metas graças ao engajamento desses atores públicos. Por exemplo, um dos eixos do Brasil sem Miséria é o que a gente chama de busca ativa. Ainda tem 16 milhões de brasileiros em situação de extrema pobreza que são os que queremos localizar. Lançamos o Brasil sem Miséria em junho do ano passado. Até janeiro deste ano localizamos 500 mil famílias, e isso foi um esforço dos municípios. Elas estão no perfil do Bolsa Família e estavam fora porque não tinham acesso a informação. Essas famílias são tão pobres, tão pobres, que nem sequer têm energia ou informação para ir atrás do Estado. O Estado vai ter de ir atrás dela. Existe no governo a busca de uma transversalidade, juntar ministérios para tocar políticas públicas que um só não dá conta. E quando um não faz sua parte como isso é localizado?
Olha só, esse assunto da transversalidade, intersetorialidade, talvez seja uma das grandes novidades do Estado moderno, que é quebrar as caixinhas e começar a trabalhar junto, e não ficar naquela história de “ah, isso não consta nas minhas atribuições”. Isso não se faz com decreto. Só tem um jeito de fazer isso: fazendo. O Bolsa Família talvez seja o maior exemplo disso, principalmente junto com a Educação. A gente tinha mais de 70% das crianças com deficiência no Brasil fora da escola. Juntamos a assistência social, que é quem dá o BPC (Benefício de Prestação Continuada), um salário mínimo que vai para a pessoa com deficiência em situação de pobreza. Juntamos assistência social e escola e fomos à casa dessas crianças tentar entender qual era o problema e descobrimos que a maioria estava fora da sala de aula por vergonha, por desinformação, porque a família achava que a criança não tinha direito, ou perderia se fosse pra escola. Não é só a escola que fecha a porta para ela?
Não, aliás, ao contrário. Existia um receio da família de que a escola fechasse. E o objetivo nosso na política educacional do Brasil é a inclusão das crianças com deficiência em escola regular, não em escola especial. Isso é fundamental para que ela supere as suas dificuldades, inclusive na vida adulta. Fomos à casa dessas crianças, e só de ir buscá-las elas voltaram, e triplicamos o número de crianças na sala de aula. O indicador do Brasil não muda em dois anos. Para ver o indicador mudando, leva dez, quinze anos. Nós mudamos em dois anos, com medidas bastante simples: integrar os dados do BPC com os dados da escola. Agora nós estamos na segunda f ase,
ENTREVISTA
Por que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) medido pelo Pnud coloca o Brasil numa posição tão vergonhosa ainda?
A maior parte desses indicadores não muda de um ano para outro. A gente conseguiu, por exemplo, reverter esse indicador que comentei, de crianças com deficiência fora de sala de aula. Outro indicador muito dramático no Brasil é a alfabetização dos adultos. As crianças em idade escolar estão na sala de aula. Agora, você tem um estoque gigantesco de adultos, que quando eram crianças estavam fora da escola e portanto têm baixa escolaridade. Isso a gente não conseguirá reverter em curto prazo. Existe um esforço de alfabetização de adultos, fazer o ensino fundamental, fazer o ensino médio e entrar em uma universidade. O IDH está olhando “a foto” do momento. E se na foto de hoje o IDH ainda continua muito para baixo, só com trabalho permanente e consistente nós vamos conseguir reverter esses indicadores. Assim estaremos interferindo na foto que será vista no futuro. Como a senhora vê o crescimento da participação feminina no governo?
Acho que o principal ganho que nós temos com a presença de mulheres no primeiro escalão, e não é só no primeiro escalão, é um ganho de efeito demonstração. A presidenta ser mulher mostra para a cultura, para o conjunto das meninas do Brasil, que é possível uma mulher ser presidenta da República, ser eficiente, não que vá ser melhor porque é mulher. Lula foi um excepcional presidente, foi ele quem fez uma transformação grande nas políticas públicas para inclusão de mulheres. Foi ele quem decidiu que as mulheres recebessem o cartão do Bolsa Família, que quando se faz uma regularização fundiária no campo as mulheres tivessem o seu nome na escritura. Nós tivemos um conjunto de ganhos de política de gênero ao longo desses últimos oito anos implementado por um presidente homem. Qual é o grande ganho de termos a presidenta Dilma? É mostrar que é possível, que ela é eficiente, que sabe fazer, que sabe conduzir um ministério com homens e mulheres, que sabe comandar um país inteiro e que a gente pode se orgulhar dela.
E sem perder a ternura? Ou de vez em quando perde?
(Risos) Eu acho que tem essa questão. A gente é cobrada, se uma mulher é mais decisiva e assertiva no poder, as pessoas ficam surpresas. Se um homem é mais decisivo e assertivo, é isso que esperam dele. Se é uma mulher, as pessoas esperam que ela seja sempre meiguinha. Muitas vezes, para administrar uma rede de serviços públicos no Brasil, você tem de tomar decisões que são difíceis. Acho que esta que é a grande surpresa: uma mulher poder ser eleita e poder conduzir um país gigantesco e continental. E isso vale também para as ministras mulheres. Nós estivemos no Rio Grande do Sul agora numa agenda técnica de trabalho. Era uma reunião com o governador Tarso Genro, com o prefeito José Fortunati, e quem conduzia era a secretária de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki. A representante da Força Aérea Brasileira era uma mulher, a secretária de Assistência Social era uma mulher, a maioria do segundo escalão presente à reunião era de mulheres. E eu acho que isso é exemplo: as meninas podem apostar e construir suas carreira, porque o Brasil está aberto para elas. Em 2010, a senhora fez tratamento de um câncer de mama. O fato de ter objetivos, sonhos, ambições, do tipo “amanhã farei grandes coisas”, ajuda no tratamento?
Eu acho que é uma vitória para o Brasil também hoje as pessoas públicas terem coragem de contar que ficaram doentes. Antes tinha uma mística em torno do câncer, as pessoas tinham medo de dizer, achavam que iam ser estigmatizadas. As autoridades não terem vergonha de dizer que estiveram doentes é muito importante. Eu nunca escondi minha doença, quando assumi como ministra eu já estava em processo de tratamento com quimioterapia, e não parei de trabalhar nem um dia. Não é só acreditar que você vai ficar boa, é uma coisa que ajuda no combate de qualquer doença. Qualquer oncologista do Brasil confirma que é completamente diferente tratar um paciente que acredita que vai se curar, que acredita que vai vencer a doença e que não para de fazer as suas atividades. Pior coisa é você ficar trancada em casa, chorando sobre a própria doença. Tem de enfrentar. Eu não parei de trabalhar em nenhum momento, eu sabia que tinha uma tarefa gigantesca, que era acabar com a minha doença e ao mesmo tempo assumir uma pasta importante com a principal bandeira da presidenta Dilma, que é a superação da pobreza no Brasil. Isso me empurrou. Lancei o programa de peruca. Eu acho que isso faz parte desse novo Brasil que consegue enfrentar todos os seus problemas, inclusive as suas doenças.
FOTOS AUGUSTO COELHO
esenvolvendo um conjunto de políticas e inclusid ve de veículos especiais para buscar essas crianças e levá-las à escola. Um trabalho conjunto, com Ministério da Educação e Ministério do Desenvolvimento Social, mas integrado lá na ponta pelo centro de referência de assistência social do município, junto com a escola, para fazer a busca dessas crianças. E eu estou dando só um exemplo do que evoluiu o Estado brasileiro.
O principal ganho da presença de mulheres no primeiro escalão é o efeito demonstração. A presidenta ser mulher mostra para a cultura, para as meninas do Brasil, que é possível ser presidenta da República, ser eficiente, não que vá ser melhor porque é mulher
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SAÚDE
As outras dores do
parto
Como pacientes são maltratadas e por que a cesárea, a episiotomia e o uso de ocitocina são considerados abusos Por Cida de Oliveira e Yohana de Andrade Fotos de André François
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ra final de tarde de uma quarta-feira chuvosa quando Ana Cristina percebeu que estava na hora. Dirigiu-se ao Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, no Belenzinho, zona leste paulistana, e, com dores e inquieta, aguardou pelo atendimento. “Eles tratam mal quem faz escândalo”, temia. Depois de esperar por quatro horas, na companhia da mãe, foi informada: não havia vagas e deveria procurar outro lugar para ter o bebê. Telefonou para o irmão e pediu ajuda. Precisariam atravessar a cidade para ir até a Santa Casa de Misericórdia, na região central – reconhecida pela qualidade do atendimento, apesar da quantidade enorme de pacientes. Finalmente, à 1h da manhã, Ana conheceu João, seu primeiro filho. Essa via crucis é uma face da violência a que muitas mulheres em todo o mundo, em especial as mais pobres, estão expostas na hora do parto. No momento mais importante de sua vida, em que deveria prevalecer o sentimento de felicidade pela chegada do filho, são vítimas de negligência, discriminação social, violência verbal (grosserias, ameaças, reprimendas, gritos), humilhação intencional e violência física, como a falta de medicação anestésica quando indicada pelo médico, e até mesmo abuso sexual. 32
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Frases como “Na hora de fazer não doeu, né?”, “Não fechou as pernas na hora certa, agora aguenta!” estão entre as mais lembradas pelas entrevistadas na pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, de 2010, feita pela Fundação Perseu Abramo e pelo Serviço Social do Comércio (Sesc). A cada quatro gestantes, uma sofreu maus-tratos quando deu à luz, aponta o estudo. Os relatos são de exame de toque doloroso, negativa de alívio da dor, falta de explicação para os procedimentos adotados, grosserias e ausência de atendimento. Para o sociólogo e coordenador da pesquisa, Gustavo Venturi, da Universidade de São Paulo (USP), nem todas têm consciência de estar sendo maltratadas. “Mulheres com menor escolaridade não consideram ter sido desrespeitadas. Para elas, que se baseiam no que ouviram da experiência de amigas e parentes próximas, o parto em hospital é assim mesmo. Vai doer; vão gritar com ela. Há até a percepção de algo negativo, mas por ser visto com naturalidade não é entendido como maus-tratos” , afirma. Isso explica em parte por que muitas, assustadas, sufocam sua maneira de expressar a dor e, caladas, chegam a morder a si mesmas.
SAÚDE
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SAÚDE
Segundo pesquisa da psicóloga Janaína Marques de Aguiar, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, ligada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a violência institucional nas maternidades é determinada, em parte, por uma discriminação de gênero, que transforma diferenças – ser mulher, pobre de baixa escolaridade – em desigualdades. Quando é negra, sofre ainda discriminação racial. Outro aspecto grave é a persistência de uma relação hierárquica na qual a paciente é tratada como uma peça de intervenção profissional, e não sujeito dos próprios atos e decisões sobre o que lhe acontece. Isso tudo num contexto histórico e ideológico que coloca a mulher num papel inferior tanto do ponto de vista físico como social, no qual seu corpo e sua sexualidade tornam-se objeto de controle da medicina. A desinformação é outro fator que contribui para a violência na maternidade. “A maioria das mulheres vai para o parto sem nenhuma informação”, aponta Simone Diniz, professora do Departamento de Saú34
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de Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da USP. “Muitas são convencidas a aceitar a cesárea na hora, momento de dor aguda não apropriado para a reflexão sobre qual é a melhor decisão.” Esse tipo de parto, rápido e prático apenas para o médico, pois na maioria das vezes é desnecessário e expõe a parturiente aos riscos que envolvem uma cirurgia, vem sendo considerado uma das maiores violências. De acordo com o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e o Sistema de Informação Hospitalar (SIH/SUS), todo ano são registrados cerca de 3 milhões de nascimentos no Brasil, dos quais 46,6% por parto cirúrgico. Em 2007, no sistema público, a taxa de cesarianas foi de 35% e, no atendimento privado, de 80%. O limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é 15%. O índice brasileiro é superior aos registrados em qualquer outro país do mundo. Segundo a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, de 2006, a maioria das cesarianas é agendada com antecedência.
SAÚDE
Violência: como denunciar A mulher vítima de violência na hora do parto pode e deve ligar para o número 180, da Central de Atendimento da Secretaria de Políticas para as Mulheres. A reportagem fez o teste e encontrou um atendimento rápido e eficiente. Funciona 24 horas, todos os dias. As atendentes são treinadas. O serviço consiste não no registro de denúncias, mas em ouvir a mulher e orientar, instruir, sobre como, onde e a quem procurar em busca de ajuda e como fazer pa-
Fotografia humanizada Fundador da ImageMagica, organização brasileira que promove educação, cultura e saúde por meio da fotografia, o fotógrafo André François documentou de norte a sul do país manifestações da humanização da medicina em 25 mil fotos. O resultado é o livro Cuidar – Um documentário sobre a Medicina Humanizada no Brasil. São dele as fotos que ilustram esta reportagem. A ImageMagica, reconhecida como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), sem fins lucrativos, tem um vasto material sobre diversos aspectos do direito humano à saúde. O trabalho pode ser visto no site www.imagemagica.org.
As gestantes que conseguem ter parto natural são, na maioria das vezes, submetidas à episiotomia, procedimento condenado internacionalmente, no qual as mulheres têm a vulva e a vagina cortadas e costuradas sem necessidade. Hoje se sabe que a recuperação é mais rápida quando há laceração muscular devido à pressão natural da cabeça do bebê, e não quando o corte é feito artificialmente, por meio de bisturi. Outro procedimento agressivo é a administração excessiva do hormônio ocitocina, que potencializa as contrações uterinas – e as dores – para que o nascimento seja mais rápido. “O trabalho de parto, que pode durar de oito a dez horas, é uma oportunidade para a equipe de saúde conversar e estabelecer um vínculo com as pacientes”, opina Elder Lanzani Freitas, estudante da Faculdade de Medicina da USP. O Sistema Único de Saúde (SUS) e a Agência Nacional de Saúde (ANS), que regulamenta as operadoras de saúde no Brasil, já realizam algumas ações para a humanização do parto e a conscientização de médicos e pacientes. Desde 2000, o programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais pretende melhorar a atenção ao parto domiciliar e busca sensibilizar os gestores do SUS e profissionais de saúde para que reconheçam as parteiras como parceiras e desenvolvam ações para apoiar e qualificar o trabalho. Nesse caso, entende-se por humanização o parto natural centrado na individualida-
ra denunciar de maneira mais eficiente o hospital, médicos, enfermeiros e demais profissionais que a atenderam. A secretaria informa que a comunicação não precisa ser feita exclusivamente pela vítima, muitas vezes fragilizada e traumatizada. Parentes e amigos podem ligar para o 180. E quanto antes melhor, pois é possível até tentar um flagrante. As Delegacias da Mulher da localidade mais próxima também estão entre os locais em que a denúncia deve ser feita.
de da mulher e com a abordagem de tecnologia adequada. Seu predomínio significará que as taxas de maus-tratos na hora do nascimento terão diminuído.
Grávida: o que fazer?
Muitos dos abusos cometidos contra as mulheres não aconteceriam se elas estivessem bem informadas. Assim, o primeiro passo é entender o próprio corpo e o que acontece com ele na gravidez. Cada uma deve ter capacidade de escolher o que é melhor para si, não para a equipe médica ou para o marido. Também se deve lembrar que, por milhares de anos, bebês nasceram sem a necessidade de uma cirurgia: partos normais eram o bastante. Com isso em conta, cada grávida poderá saber como funciona uma cesárea e compará-la ao parto normal. É importante conversar com o médico sobre o uso de ocitocina e sobre a prática da episiotomia e opinar contra ou a favor. A lei brasileira garante a toda grávida o direito de ter um acompanhante na hora do parto. Deve-se exigi-lo. Além de auxiliar a mulher nessa hora, a pessoa pode intimidar ou evitar qualquer tipo de violência por parte da equipe médica. Caso a paciente sinta que sofreu algum ato de violência, deve-se denunciar prontamente. Gritos, tapas e mau atendimento em um momento tão importante não devem ser considerados práticas-padrão. E toda grávida tem o direito de expressar dor, sempre. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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Seja um doador de รณrgรฃ
trans
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Seja um doador de vidas. Deixe sua visão para o homem que nunca viu o amanhecer nos braços de sua amada. Deixe seu coração para a mulher que vive para fazer o coração de seu filho feliz. Deixe o exemplo. E, principalmente, deixe sua família saber do seu desejo de ser um doador de órgãos. Quem deixa o seu melhor deixa a vida seguir em frente. Acesse: www.facebook.com/doacaodeorgaos e divulgue nas redes sociais: #doeorgaos.
O maior sistema público de splantes do mundo é do SUS.
CULTURA
A sabedoria do Em sua forma de retratar o homem do campo, Mazzaropi sonhou criar uma indústria para chamar de sua, apanhou da crítica, foi sucesso de público e está na memória nacional Por Guilherme Bryan
A
mácio Mazzaropi realizou 32 filmes e deixou um, “Maria Tomba Homem”, incompleto. Em seu tempo, a TV não reinava absoluta dos lares, o Brasil urbano era pouco mais que um projeto e o caipira, um ícone da identidade nacional. Não havia como sua produção cinematográfica passar batido na memória cultural do país. Com filmes como Sai da Frente (1952), Jeca Tatu (1959), Tristeza do Jeca (1961), O Corintiano (1966), O Jeca e a Freira (1967), Mazzaropi foi campeão de bilheterias e deixou como legado o sonho de uma indústria cinematográfica. “Mazzaropi tinha grande facilidade de comunicação e a capacidade de fazer dinheiro com cinema. Vi, revi e ‘trevi’ todos os filmes dele, e dei muita risada”, relata o historiador e crítico Celso Sabadin, às voltas com a finalização do documentário Mazza.doc, com lançamento esperado para o fim do ano. “Sou um cinquentão. Só que o pessoal da produção e da edição do filme, moçada de 20, 30 anos, também riu muito. Como se explica isso? Mesmo quando a piada não é boa, vinda dele fica uma maravilha.” 38
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Filho de imigrante italiano com uma portuguesa, Mazzaropi nasceu em São Paulo em abril de 1912. Mudou-se com 2 anos para Taubaté (SP) e quando retornou à capital, aos 5, o mito do personagem caipira já estava colado à sua personalidade. De centro das atenções nas festas escolares a artista de circo foi um tirinho de espingarda. Aos 14 anos, passou a integrar a equipe do Circo La Paz. Antes de ir parar no cinema teve experiência teatral, com o espetáculo A Herança do Padre João, e passagem de sucesso pelo rádio e pela TV Tupi, com o programa Rancho Alegre.
Bom de marketing
A estreia no cinema ocorreu em 1952, com Sai da Frente, realizado pela Vera Cruz. Depois de outros quatro filmes feitos por diversas produtoras, Mazzaropi vendeu sua casa, criou a Produção Amácio Mazzaropi (PAM Filmes) e passou a produzir e distribuir suas obras. Em 1961, começou a construir em Taubaté o estúdio de gravação, que mais tarde ganharia oficina de cenografia e hotel para atores e técnicos. Dali saiu seu primeiro longa em cores, Tristeza do Jeca, no qual o herói vira cabo eleitoral de políticos inescrupulosos.
CULTURA
Jeca
FOTOS ACERVO MUSEU MAZZAROPI
Cena de Lamparina, de 1964
CAIPIRA O estereótipo criado por Mazzaropi remetia aos moradores do interior de São Paulo, aproximando-se do Jeca Tatu de Monteiro Lobato
O Puritano da Rua Augusta (1965)
O recorde de bilheteria foi do filme O Corintiano, de 1966. Nele, o ator vive um barbeiro fanático pelo time do Parque São Jorge, capaz de andar em burro em preto e branco – e não é uma zebra –, fazer promessas malucas ou subornar um juiz. Durante boa parte da carreira, Mazzaropi foi perseguido pela crítica especializada, e para Celso Sabadin não raras vezes a crítica tinha razão. “Acontecia um fenômeno parecido com as chanchadas da Atlântida, que o público amava e a crítica odiava”, avalia. Mesmo assim, influenciou comediantes e ainda hoje há quem o cultue. O estereótipo criado por Mazzaropi remetia aos moradores do interior de São Paulo, aproximando-se do Jeca Tatu de Monteiro Lobato. “O Jeca de Mazzaropi difere do personagem do Lobato. Aqui falamos no caipira matuto, engenhoso, que não se deixa levar e sempre tem uma resposta para tudo. É autodidata, sobrevive com o que a natureza oferece e com o que pode fazer com as próprias mãos. Herança indígena”, diz a assistente cultural Pâmela Botelho, do Museu Mazzaropi. Pâmela destaca o fato de Mazzaropi ter sido também crítico dos poderosos e dos preconceitos sociais, e muito bom de mar keting – lançou muitos filmes no aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro. “Ele criou uma indústria de cinema de um homem só, o que continua a parecer algo impossível hoje. A estrutura criada mostra seu lado visionário, ao unir a magia do cinema ao lazer com a PAM Filmes Park Hotel.” O Corintiano (1966)
Segundo Sabadin, não depender de ninguém foi fundamental para o sucesso. “Os produtores eram escancaradamente roubados pelas distribuidoras e donos de cinema. E Mazzaropi controlava tudo, do início ao fim do processo, colocando até fiscais particulares nas bilheterias. De caipira ingênuo, ele não tinha nada.” Desde 1994, a memória do ator está reunida no Museu Mazzaropi, em Taubaté, onde ele vivia quando morreu, em 1981. O museu começou a funcionar nas dependências de onde era o estúdio e, em 2010, ganhou um novo prédio, com entrada independente e de melhor acesso. Em 2011, foi inaugurada a exposição permanente e interativa Mazzaropi, para a Felicidade do Brasil, que exibe equipamentos de filmagem, objetos cenográficos e figurinos. Os traços do personagem também são perpetuados por meio do trabalho do ator André Luiz de Toledo, que hoje assume o sobrenome Mazzaropi e se apresenta como “o filho do Jeca”. Em 1968, aos 11 anos, André conheceu o cineasta durante as filmagens de No Paraíso das Solteironas, e a partir de então não desgrudou mais dele, nem mesmo nos momentos em que o ídolo ficou doente. Juntos, realizaram centenas de apresentações e vários filmes, como Jecão... um Fofoqueiro no Céu (1977), Jeca e Seu Filho Preto (1978) e A Banda das Velhas Virgens (1979). “O povo brasileiro ama o Mazzaropi, com quem tem uma identidade construída com dignidade e coragem, de menino pobre ao Jeca mais rico e famoso do Brasil”, afirma André Luiz, idealizador da ExpoJeca, com a qual pretende percorrer cem cidades do estado de São Paulo até dezembro – encerrando, claro, em Taubaté.
Zé do Periquito (1960) REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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ESPORTE
A graça do
rúgbi O esporte tido como violento e para homens é cada vez mais praticado por mulheres Por Gabriela Capo PUXADO Treino da seleção feminina: duro, sem perder a ternura
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MARÇO 2012 REVISTA DO BRASIL
MATHEUS GONÇALVES
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las calçam as chuteiras e se levantam. Estão concentradas. Sabem o que as esperam: tackles, encontrões, arranhões nos joelhos, nos cotovelos. Seguem em frente, pensando só em conseguir ganhar mais esse jogo, o do título. Em campo, cada uma faz sua parte, conhece seu potencial, desconhece seu limite. Após algumas falhas e 14 minutos de jogo, vencem, pela sétima vez, o Campeonato Sul-Americano de Rúgbi. São as jogadoras da Seleção Brasileira feminina de Sevens, que já vinham de um recente quinto lugar conquistado em fevereiro num torneio em Las Vegas, atrás apenas de seleções mais experientes – Canadá, Estados Unidos, Holanda e França. No Brasil, o rúgbi está longe de ser popular. As publicidades de uma marca esportiva até brincam com o quase anonimato da modalidade, que de fato tem crescido muito no país. Fora daqui, depois da Copa do Mundo de futebol e dos Jogos Olímpicos, o evento mais visto no
DA FACULDADE PARA A SELEÇÃO Marjorie, do SPAC e da USP: no começo, amigas de fora inteiravam a equipe. Hoje, seis jogadoras do time treinam pela Seleção Brasileira Feminina de Sevens
FELIPE ARAÚJO/AE
ESPORTE
planeta é a Copa do Mundo de Rúgbi. No ano passado, a competição recebeu forte investimento em divulgação, apoiada em outras grandes chances de ganhar visibilidade. O Brasil participou dos Jogos Pan-Americanos e o esporte foi confirmado como modalidade olímpica – por enquanto só para as seleções masculinas. Mesmo assim, o Brasil tem meninas promissoras. “O rúgbi tem tudo para chegar a um nível bom em campeonatos mundiais em cinco a oito anos”, estima Timothy Baines, ex-treinador de times femininos como o tradicional São Paulo Athletic Club (SPAC) e o universitário da Faculdade Cásper Líbero. Atualmente, as meninas têm um espaço na federação paulista para cuidar de assuntos como organização de campeonatos e divulgação. Elas encaram o campo de treino com seriedade. Fazem de tudo: flexão, agachamento, tiros de corrida, desenvolvem exercícios próprios do esporte tão
bem quanto os parceiros de time, mas sempre na proporção de suas características físicas. “As mulheres participam dos mesmos treinos que os colegas, embora se separem dos homens para fazer exercícios específicos em determinados momentos”, explica Justin Thornycroft, presidente do Rio Rúgbi FC.
Onde tudo começou
Criada na Inglaterra, em uma cidadezinha que cedeu seu nome ao esporte, a brincadeira teve início ainda no século 19, quando um menino chamado William Webb Ellis, em uma partida de futebol, pegou a bola com as mãos e colocou-a na linha do gol do adversário. O esporte foi difundido entre os países colonizados por europeus, cresceu na Oceania, onde é potência, e na América do Sul. Chegou ao Brasil com o paulistano Charles Müller, que o trouxe na bagagem em 1894, junto com o futebol, ao voltar de seus estudos na Inglaterra, onde ambos eram praticados.
Existem diversos clubes no Brasil – e a maioria conta com times femininos. O SPAC, da capital paulista, com sede próxima à Represa de Guarapiranga, começou como iniciativa das jogadoras. “A Natasha (Olsen), jogadora do Pasteur Athlétique Club e sócia do SPAC, pediu permissão à administração do campo do clube”, conta Marjorie Yuri, jogadora do SPAC e do universitário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “No começo eram apenas cinco ou seis meninas, que traziam amigas de fora para inteirar a equipe.” Hoje, seis jogadoras do SPAC treinam pela Seleção Brasileira Feminina de Sevens. A força feminina não se restringe a São Paulo. Em Pernambuco, o Recife Rugby Club (RRC) tem um time dono de vários títulos regionais. Renata Barros, jogadora dos Tubarões de Boa Viagem – como o clube é conhecido –, conta que, para formar a equipe atual, o RRC passou por muito perrengue. “Após meu primeiro torneio, em novembro de 2009, em Salvador, voltamos ao Recife Rugby com apenas duas meninas, já que uma estava lesionada, outra engravidou e a terceira foi fazer intercâmbio. No ano seguinte, treinei sozinha com o time masculino durante seis meses”, lamenta. Com uma boa campanha de divulgação, treinador só para elas e muita dedicação nos treinos, as “tubaroas” terminaram 2009 com saldo positivo: campeãs do campeonato estadual, vice do Nordeste Sevens e sexto lugar no campeonato nacional, com 12 equipes. Em 2010, além de vencer a primeira edição do Circuito Feminino de Rúgbi do Nordeste, levaram a Taça Bronze do Nordeste Sevens. No ano passado, participaram de um torneio juvenil em Pernambuco contra times masculinos, por falta de um respaldo feminino por parte de outros clubes, e ganharam a segunda etapa do Circuito Feminino de Rugby do Nordeste. Não conseguiram disputar o campeonato nacional por falta de apoio. “Fomos convocadas pela confederação, pois somos a equipe feminina mais ativa e com mais vitórias do Nordeste. Mas faltou patrocínio.” Mesmo sem recursos de publicidade, as meninas se viram. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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ESPORTE
Venderam rifas e fizeram até calendário sensual para conseguir viajar e jogar. Um dos planos este ano é levar duas jogadoras à seletiva da seleção brasileira. Para que o esporte atinja mais adeptos, muita coisa deve mudar. O crescimento do rúgbi está em duas frentes: nas universidades e entre as crianças, somadas a uma forte campanha de divulgação. Sócio-fundador do Instituto Rugby para Todos, Fabrício Kobashi acredita que o talento do brasileiro para os esportes é indiscutível. “A democratização da modalidade é essencial para o crescimento de nossas seleções no cenário internacional, mas esse trabalho precisa ter foco na qualidade e na cultura e ser de longo prazo.” Em Paraisópolis, zona sul de São Paulo, o projeto de Fabrício dá suporte a crianças da comunidade. A ideia partiu dele e de seu companheiro Maurício Draghi. Ambos jogam no Pasteur Athlétique Club. “Depois de termos a ideia do projeto, fomos conhecer o campo de futebol de Paraisópolis e seus responsáveis. Houve uma divulgação intensa nas escolas. Passamos de sala em sala mostrando o que é uma bola de rúgbi e conhecendo as crianças”, lembra Fabrício. No primeiro dia, mais de 70 apareceram. “Com o tempo, conseguimos voluntários dedicados e também apoiadores. Inicialmente, eram jogadores de rúgbi de diversos clubes de São Paulo.”
GERARDO LAZZARI
Fonte de crescimento
RUGBY PARA TODOS No bairro de Paraisópolis, em São Paulo, projeto dá suporte a jovens da comunidade
FOTOS JOSY MANHÃES/RIO RUGBY BRASIL
SEM ESTRELISMOS Os cariocas do Rugby FC jogam nas areias de Ipanema. Justin destaca os valores de união e respeito cultivados pelo esporte
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“Hoje, o time se expandiunas áreas de psicologia, educação física, nutrição, medicina etc., e aparecem mais a cada mês”, acrescenta. E cerca de 400 crianças são atendidas. Os treinos são semanais e a garotada já mostra que a cultura do esporte foi bastante divulgada. Em 2010, na última etapa do Beach Rugby para Todos, modalidade jogada na areia e com apenas cinco jogadores em cada time, os Leões de Paraisópolis fizeram um jogo demonstrativo e mostraram que o esporte tem tudo para ser grande. “Desde o início, o rúgbi e o projeto foram muito bem recebidos pelas crianças e por toda a comunidade. Introduzir uma nova cultura esportiva numa realidade dominada pelo futebol foi um enorme desafio. Valeu o esforço”, afirma Fabrício. Em novembro de 2011, as crianças viajaram para fazer um jogo de exibição no torneio uruguaio Valentin Martinez, promovido pelo Carrasco Polo Club, de Montevidéu. “Para muitos, foi a primeira viagem de avião e, para todos, a primeira para fora do país. Todos se divertiram, aprenderam sobre o rúgbi e seus lemas. O aprendizado é sempre o mais importante.”
Esporte universitário
O Instituto Rugby para Todos trabalha para aperfeiçoar e ampliar o atendimento dentro da unidade-piloto, em Paraisópolis. A visibilidade do projeto, porém, provoca novas demandas, como planos de alto rendimento, visando aos Jogos Olímpicos de 2016 e 2020, e a implementação
FABIO CUTRUFO
ESPORTE
AMOR À CAMISA Renata, do Recife Rugby Club, teve de treinar com o time masculino durante seis meses
do projeto em outros estados brasileiros. “Não se pode descartar a importância da categoria universitária”, aponta Marjorie. Segundo ela, o contato é também oportunidade de desenvolverem habilidades sociocognitivas negligenciadas pelo currículo de educação física das escolas. Além disso, o rúgbi tem grandes trunfos na coletividade e no trabalho em equipe.
Inclusivo O rúgbi aceita todos como são: barrigudinho, alto, atlético ou desengonçado. Cada posição é ocupada por um tipo de jogador. Na primeira linha acontece o maior contato físico. Nela ficam os pilares e hookers, que aguentam os impactos do scrum, uma típica cobrança de falta. Os mais fortes são requeridos. Os jogadores mais rápidos ocupam as pontas, pois, quando a bola chegar até eles, precisam correr o suficiente para driblar jogadores com sidesteps e marcar o try, como é chamado o gol. Vale
cinco pontos e dá o direito de chutar a bola em cima do H, formado pelas traves. Os times têm sete jogadores, conhecidos como sevens, ou 15, chamados de union. A bola só pode ser passada para trás; para a frente é falta. Então cobra-se um scrum, penalidade em que ela é disputada com formação fixa de três ou oito jogadores. Quando a bola sai, é cobrado o line-out, ou lateral. Um jogador a lança entre as duas equipes, que ficam paralelas para recepcionar a oval.
Lilian Oliveira, estudante de Publicidade e Propaganda e jogadora do time universitário da Cásper Líbero, acredita na disseminação do esporte e dos seus valores no país. “O interesse e a curiosidade crescentes fomentam o surgimento de novos times e atletas em potencial.” O arquiteto Victor Dariano, que jogou por muito tempo no time da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo da USP, confere a expansão. “A diferença é absurda do que era o rúgbi em 2004, quando comecei a jogar, e o que é hoje. Praticamente toda faculdade tem um time ou quer montar um. Nesse primeiro momento, é onde o esporte tem de crescer. Claro que não podemos nos esquecer da base de qualquer esporte, que são as crianças”, diz. “Foi o cenário universitário que mais deu base dentro do Brasil. O que a gente mais encontra na Federação Paulista de Rugby é time universitário”, completa Vinicius Correia, também arquiteto.
Divulgar é preciso
Todos os times têm um jeitinho de atrair novos jogadores. No Rio de Janeiro, quarta-feira é dia de homens e mulheres do Rugby FC jogarem nas areias de Ipanema para chamar a atenção de quem passa por ali. “Além de atrair novos colegas, aproveitamos para desenvolver a parte física”, explica Justin Thornycroft, presidente do time. Justin observou o boom com o anúncio da entrada do esporte nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, em 2016, e, para ele, o caminho é sem volta. “Os projetos sociais para levar o esporte para as comunidades estão ganhando força, mas vejo um crescimento mais sustentável nas equipes juvenis.” O mais importante do rúgbi, como observa, são os princípios, muito diferentes dos do futebol. “Respeito às autoridades e jogadores é, sem dúvida, uma lição importante para todo mundo. Nunca veremos um jogador xingar o árbitro e sair impune. União é outro fator importante. Sem a equipe, nada funciona, e uma pessoa não faz sua parte sem afetar o time todo”, explica o dirigente. É por isso que o rúgbi não tem “estrelinhas” em campo. “Estrela é quem cria a jogada para o resto da equipe completar.” REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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VIAGEM
Oásis
ambiental e cultural
Jardim botânico e, ao mesmo tempo, museu a céu aberto, o Instituto Inhotim se destaca pela harmonia entre conservação e cultura na cidade mineira que tem as marcas da mineração Por Sucena Shkrada Resk
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hegar ao Instituto Inhotim é como deparar com um oásis. A área particular de 100 hectares fica no meio de um território devastado pela mineração no município de Brumadinho, a 60 quilômetros de Belo Horizonte. O instituto integra um jardim botânico e grandes instalações de arte contemporânea nacional e internacional. São centenas de espécies de palmeira do mundo inteiro, bromélias, orquídeas, antúrios e outras belezas, dispostas harmoniosamente em meio a cinco lagos. Nessa paisagem, um museu com 500 obras e exposições fixas e itinerantes de artistas das mais diversas escolas completa a cena. É impossível não notar o contraste entre as erosões e o desmatamento do entorno, onde a extração de recursos naturais deixa suas marcas, e o trecho de mata nativa ainda intocada. Um aspecto
curioso no histórico do espaço é o fato de um dia ter sido uma fazenda, recuperada pela iniciativa do empresário do ramo minerador e colecionador de arte Bernardo Paes, à frente dela desde os anos 1980. A partir de 2005 a área começou a ser aberta ao público e em 2010 tornou-se jardim botânico. O toque do paisagista Burle Marx pode ser percebido em vários trechos. O Centro de Educação e Cultura do instituto leva seu nome. Dependendo do interesse do visitante pelos propósitos do espaço, talvez um único dia não baste para conhecer tudo. Ainda mais para quem tem disposição para longas caminhadas – com mapas e sem medo de se perder, nem de se encontrar. Há também passeios monitorados, com sabor ambiental e artístico, em horários programados. Se bater o cansaço, é só sentar em um dos bancos de madeira ao longo das trilhas. Ou apelar para os carrinhos de
VIAGEM True Rouge, de Tunga (1997)
EDUARDO ECKENFELS/INSTITUTO INHOTIM
EDUARDO LOUREIRO/CREATIVE COMMONS
Beam Drop Inhotim, de Chris Burden (2008)
RÉGINE DEBATTY/CREATIVE COMMONS
Área foi aberta ao público em 2005
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VIAGEM
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STEPHANIE TORRES/CREATIVE COMMONS
Invenção da cor, Penetrável Magic Square nº 5,de Hélio Oiticica (1977)
Rodoviária de Brumadinho, de John Ahearn e Rigoberto Torres (2005)
RÉGINE DEBATTY/CREATIVE COMMONS
INSTITUTO INHOTIM Brumadinho (MG). De terça a sexta-feira, das 9h30 às 16h30. Sábado, domingo e feriado: das 9h30 às 17h30. R$ 20 e R$ 10 (estudantes e maiores de 60 anos). Entrada franca às terças. Informações: www.inhotim.org.br
Narcissus garden Inhotim, de Yayoi Kusama (2009)
RÉGINE DEBATTY/CREATIVE COMMONS
golfe alugados por R$ 10. Isso se não se constranger com a sensação de estar num cenário de um seriado de TV como a Ilha da Fantasia. A possibilidade que não há é encontrar alguém fazendo piquenique. O local tem bons restaurantes, cachorro-quente, bar, cafés, pizzaria e omeleteria. E, claro, a lojinha básica de jardinagem e suvenires não pode faltar. Não estranhe se, de repente, topar com esculturas ao ar livre, acomodadas em piscinas, ou com Fuscas coloridos em meio aos jardins. Entre as curiosidades impressionantes está a instalação Sonic Pavilion, de Doug Aitken, na qual se pode ouvir ruídos do fundo da Terra. Uma perfuração com 200 metros de profundidade ligada a microfones possibilita essa interação. Num espaço recoberto por uma espécie de cúpula pode-se sentar ou deitar e se deixar levar pelos sons. Na categoria estética, a obra da japonesa Yayoi Kusama é uma das que sobressaem. Dezenas de esferas brilhantes, à medida que se movem sobre as águas de uma piscina a céu aberto, formam desenhos os mais variados. Volta e meia é possível flagrar diferentes aves interagindo com esses círculos, nas árvores frutíferas das proximidades. Com uma pegada socioambiental, outra instalação, De Lama Lâmina, do norte-americano Matthew Barney, desperta reflexões sobre a destruição da natureza. Entre as obras de artistas brasileiros, as de Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, na Galeria Cosmococa, misturam propostas de audiovisual com as quais o público pode interagir com a arte, tornar-se parte dela, entrando em uma piscina ou deitando em redes. Enfim, são infinitas as experiências e possibilidades entre as criações conceituais e as belezas naturais. O viveiro educador, em formato de mandalas, o trabalho de recuperação e conservação de remanescentes de Mata Atlântica, como samambaias-açus e palmitos, o jardim de arbustos de patas-de-elefante.
EDUARDO LOUREIRO/CREATIVE COMMONS EDUARDO LOUREIRO/CREATIVE COMMONS
Troca-Troca, de Jarbas Lopes (2002)
Instituto tem espaço para recuperação da mata nativa
ROSINO/CREATIVE COMMONS
VINICIUS DEPIZZOL/CREATIVE COMMONS
VIAGEM
Faceland II, de Franz Ackermann (2002)
Jardins de Burle Marx
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CURTA ESSA DICA
Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
O pecado mora na estante Marilyn Monroe já havia participado de duas dezenas de filmes, em 1952, quando viveu pela primeira vez seu momento de protagonista
Adorável Pecadora (1960)
O Rio das Almas Perdidas (1954)
Os Homens Preferem as Loiras (1953)
Road disco
1922 passo a passo
O terceiro álbum de estúdio da cantora Céu, Caravana Sereia Bloom, traz sua fascinação pelo pé na estrada e pelas aventuras das viagens. Releitura cool de um baile da saudade, o CD com 13 faixas tem músicas românticas, de dor de cotovelo, como Retrovisor; ritmo latino (Contravento), iê-iê-iê pop (Amor de Antigos), toque brega (Baile da Ilusão) e pitada reggae (Asfalto e Sal). Em Palhaço, de Nelson Cavaquinho, Céu é acompanhada pelo pai, Edgard Poças, no violão e assovio. R$ 26.
Passaram-se 90 anos desde aquele 13 de fevereiro em que diversos artistas se manifestaram, no Teatro Municipal de São Paulo, pela modernização da arte e contra o conservadorismo. Em 1922 – A Semana Que Não Terminou (Cia. das Letras, 376 pág.), o jornalista Marcos Augusto Gonçalves descreve o que desencadeou o movimento e o passo a passo do evento, desmitifica a Semana de Arte Moderna de 1922 e explica a antropofagia. Com muitas fotos e reproduções. R$ 49 (impresso) R$ 34 (eletrônico).
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Ela chegara ao cinema depois de ter sido descoberta seis anos antes, em Los Angeles, pelo fotógrafo Davis Conover. Sua graça natural e sensualidade inata já corriam o mundo, mas foi num filme de suspense, Almas Desesperadas, de Roy Ward Baker, sua estreia num papel principal. A aura de inocência e o olhar ingênuo e arrebatador a fazer de Marilyn ingrediente clássico para as comédias românticas seriam novamente desafiados naquele mesmo ano, em Torrentes de Paixão. Dessa vez dirigida pelo já consagrado Henry Hathaway, faz aflorar uma loura má – deve ter aprendido com Bette Davis, quando figurou em A Malvada (1950) – que seduz o amante a dar um fim no marido. A jovem Norma Jeane Mortensen estava, enfim, pronta e plena para o cinema. Um pouco de tudo que foi Marilyn Monroe – morta há 50 anos – está presente na coleção recém-lançada pela 20th Century Fox. São 12 dos seus 30 trabalhos no cinema, com mais de 1.500 minutos de filmes, curiosidades e outros extras, além de O Fim dos Dias, projeto inacabado da atriz, recriado por meio de entrevistas e arquivos. A coleção permite conferir a versatilidade da deusa em dramas, comédias, musicais, westerns e thrillers. Traz, de quebra, oportunidades de rever os mais distintos mestres, como Billy Wilder, John Huston, Otto Preminger e Howard Hawks,
além de outros mitos do olimpo hollywoodiano, como Ane Bancroft, Jane Russel, Lauren Bacall, Clark Gable, Jack Lemmon, Tony Curtis, Robert Mitchum. Assim como as grandes entrevistas da Playboy valem uma olhadela na revista, lançada em 1953 com Marilyn na capa, o desejo de ter na estante esse rico acervo da história do cinema justifica o investimento nos dois volumes (R$ 90 cada caixa).
Mais Marilyn
Agora em março, há outras duas oportunidades de revisitar o legado da diva. O circuito comercial exibe Sete Dias com Marilyn, que rendeu a Michele Willians a indicação ao Oscar de melhor atriz e ao veterano Kenneth Branagh a indicação para melhor coadjuvante. Conta a história do romance entre Colin Clark, jovem assistente do cineasta Lawrence Olivier, e a mulher mais cobiçada do planeta. Em São Paulo, a mostra Quero Ser Marilyn Monroe apresenta filmes e mais de uma centena de objetos de artistas como Andy Warhol, Henri Cartier-Bresson, Peter Blake, Cecil Beaton, retratando a carreira da estrela. Na Cinemateca Brasileira. De segunda a domingo, das 10h às 21h. Largo Senador Raul Cardoso, 207, na Vila Clementino. Até 1º de abril. www.marilynmonroe.com.br.
Nunca Fui Santa (1956)
Paulo Donizetti de Souza
Sertão de Lima Barreto
Um site para Caio
O filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, foi restaurado e relançado em edição especial com DVD duplo pela Versátil Filmes. Premiada em Cannes em 1953, a obra foi exibida em mais de 80 países. Conta a história do bando do capitão Galdino, que saqueia um vilarejo, persegue mulheres e rapta uma professora. A refém desperta paixão e discórdia no grupo. Um DVD tem curtas-metragens raros de Barreto e o outro, uma versão inédita do documentário O Velho Guerreiro Não Morrerá – O Cangaceiro de Lima Barreto 50 Anos Depois (2011), dirigido por Paulo Duarte. R$ 49,90.
Manuscritos, fotos, textos publicados em jornais e revistas, trabalhos acadêmicos e mostras de obras do escritor e jornalista Caio Fernando Abreu estão reunidos no site que leva seu nome, lançado no mês passado. Caio, morto em 1996 aos 46 anos, fez a cabeça de grande parte da geração dos anos 1980. Sua obra mais conhecida, o livro de contos Morangos Mofados, completa 30 anos em 2012. O site foi uma alternativa ao desejo frustrado de fazer de sua casa em Porto Alegre – que acabou vendida – uma espécie de memorial sobre sua vida e sua obra. www.caiofernandoabreu.com REVISTA DO BRASIL MARÇO 2012
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MOUZAR BENEDITO
Batatinha e Janete
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urante anos meu destino de fim de férias era Salvador. Geralmente ia para alguma parte do sertão do Nordeste, às vezes chegava ao litoral de algum estado, mas, fosse para onde fosse, acabava os últimos dias na capital baiana, onde tinha muitos amigos. E gostava muito da cidade. Era um tempo em que a cidade já era tida como turística, mas não havia um turismo de massas. Eram poucos turistas. Por volta de 1970 começou a se firmar lá um turismo mais predatório, com muitos ônibus de excursão, fora o pessoal que chegava lá de avião, ônibus ou carro, introduzindo um modo mais “comercial” de se relacionar com a cidade e seus moradores. Pelas minhas viagens de férias ficava conhecendo as músicas de Roberto Carlos que faziam sucesso no ano, pois em São Paulo eu só ligava o rádio nos programas de notícia. Música, só de discos, e eu não comprava discos do então já proclamado rei. Uma juventude que eu achava meio besta, a que o cultuava. No Nordeste, principalmente no sertão, o disco do ano de Roberto Carlos tocava direto. Em dezembro de 1971 fiz o contrário dos anos anteriores: comecei as férias por Salvador. Fui encontrar um grupo de amigas que tinha ido antes. Cheguei lá de trem, depois de quatro dias de viagem, saindo de Belo Horizonte. Ah, podia-se chegar lá de trem, que já era um meio de transporte um tanto precário, mas existia. Havia linhas de trem – funcionando! – de Salvador para Belo Horizonte, Juazeiro e Aracaju. Nessa viagem, ouvia uma moça cantar uma música estranha, que começava com “debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, o 50
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grande sucesso de Roberto naquele ano. Só anos depois é que fiquei sabendo que foi composta em homenagem a Caetano Veloso, que estava no exílio em Londres, e “descobri” que a letra tinha um certo sentido. Minhas amigas que estavam na Bahia, professoras, haviam levado alguns colegas da escola em que trabalhavam, entre eles um carinha debochado, chamado Mário. Fiquei hospedado numa república em que morava o Elso. Um fim de tarde, fui tomar uma cerveja com ele numa birosca ao lado da TV Itapoan, onde ele trabalhava. E lá trabalhava também o grande compositor Batatinha, autor de muitos sambas com uma característica interessante: a música era sempre animada, mas a letra era quase sempre triste. Basta lembrar o começo de uma delas: Todo mundo vai ao circo menos eu, menos eu. Por não poder pagar ingresso fico de fora escutando as gargalhadas... Batatinha teria caído no anonimato se alguns artistas, como Maria Bethânia, não reconhecessem a beleza de suas músicas e as gravassem. Fiquei emocionado ao conhecer o Batatinha, dividir cervejas com ele e o Elso. Aí chegou o Mário, também hospedado na república do Elso. Não sei o que deu nele quando o apresentei ao Batatinha. Respondeu todo formal: — Muito prazer: Mário Pires. Ficou um clima estranho e, para quebrar a formalidade, eu disse: — Mas pode chamar de Janete, que é o apelido dele à noite. O problema é que o Elso acreditou. E passou a chamar o Mário de Janete. Aliás, o apelido pegou e na Bahia todos o chamaram de Janete por muito tempo, já que ele passou a ir pra lá regularmente. Um dia, o Mário conheceu uma moça muito bonitinha na praia e combinou de saírem à noite. Ela passou na república à noite, bateu na porta e saiu o Luís, um dos moradores. Ela disse que queria falar com o Mário, ele respondeu que não tinha nenhum Mário ali. — É um baixinho que mora em São Paulo – disse ela. — Ah... é Janete – ele concluiu. E gritou para dentro: — Janete, tem uma moça querendo falar com você. Ele saiu animadão, mas ela já tinha se mandado.