MISSISSIPPI X NISSAN Por liberdade e democracia na fábrica, a comunidade reage
nº 81
março/2013
ARTE VISCERAL Frans Krajcberg e as formas brutas e belas da natureza
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O SUCESSO DAS COTAS
Pesquisa aponta: a política que abriu as portas da universidade para negros, índios, estudantes pobres e de escolas públicas conquista apoio da maioria da sociedade
Vanessa estuda Engenharia de Produção na Universidade Federal de São Carlos, SP
CADA VEZ MAIS AS MULHERES CONQUISTAM SEU ESPAÇO. CADA VEZ MAIS O BRASIL É FEITO TAMBÉM POR MULHERES.
Hoje, as mulheres brasileiras se destacam como agentes do desenvolvimento econômico e social e na construção de um país melhor. E todas podem contar com as políticas públicas que garantem seus direitos à saúde, educação, renda, acesso à moradia, distribuição de terra, autonomia econômica, igualdade no trabalho e proteção contra a violência. 8 DE MARÇO. DIA INTERNACIONAL DA MULHER.
Informe-se sobre as políticas públicas para as mulheres: spm.gov.br
ÍNDICE
EDITORIAL
10. Economia
O Estado toma seu rumo e vai em busca de investimentos
14. Mídia
Rede de intrigas lembra 1964, mas os tempos são outros
18. Entrevista
Gilberto Carvalho: “O poder passa, fica nosso legado de mudanças”
22. Capa
PAULO PEPE/RBA
A oportunidade faz o doutor, e a política de cotas sobe no ibope
26. Trabalho
Luta por direitos civis ganha uma nova causa no velho Mississippi Agenor, Vanessa e Edmar: cotas democratizam o acesso à universidade pública e gratuita
30. América Latina
O triunfo de Rafael Correa e sua Revolução Cidadã no Equador
Quem vive compara
34. Cidadania
A
As Mães de Maio celebram o fim da “resistência seguida de morte”
40. Cultura
CELSO MALDOS
Frans Krajcberg: arte, ativismo e gratidão pelo encontro da paz
44. Viagem
Cenário incrível, povo carinhoso e outros encantos do Nepal
Seções Cartas 4 Mauro Santayana Destaques do mês
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Atitude: dança x violência
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Crônica: Mouzar Benedito
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genor Custódio nasceu no interior de Mato Grosso do Sul, numa comunidade indígena Terena. Teve tantas dificuldades para estudar que só conseguiu terminar o ensino médio com 28 anos e a faculdade de Audiovisual da Universidade São Carlos aos 39 – e está pronto para o mestrado. Vanessa Campos, de 23 anos, já presta consultoria na área de ergonomia enquanto cursa a faculdade de Engenharia de Produção na mesma UFSCar. Ali também o ex-metalúrgico Edmar ingressou em Ciências Sociais apesar da má qualidade das escolas por onde estudou anteriormente. Eles, como o médico Ícaro Vidal – que atua no Programa Saúde da Família de Salvador –, são gênios qualificados, mas sabe-se lá para onde iria tanto talento se não existisse a política de cotas para negros, índios, estudantes pobres e provenientes de escola públicas. As cotas multiplicaram as chances de brasileiros com esses perfis de ingressar numa universidade pública, gratuita e de qualidade – algo impensável em sua infância e na adolescência. Esses cidadãos abraçam a oportunidade com desempenho melhor que o dos não cotistas e ganas de concluir o curso também maior. Essa é uma das provas do que é capaz uma gestão ousada e criativa do Estado. Foi essa a principal mudança de mentalidade notada nos últimos dez anos. O Estado-problema dos anos 1990 tornou-se Estado-solução. Sem ditar normas de como o mercado deve ou não deve funcionar, pode criar meios de induzir a economia e as políticas públicas a atender as pessoas que dele mais precisam. Na segunda metade dos anos 1990, por exemplo, uma das principais conquistas do país, o controle da inflação, deveu-se em grande parte ao fato de um em cada cinco brasileiros não ter emprego e de os outros quatro não terem forças para conseguir ganhos reais de salário. Essa lógica foi invertida. Valorização do salário mínimo, programas de transferência de renda, redução de impostos para a classe média puseram mais dinheiro em circulação, mais empregos foram criados e a renda passou a crescer. Somem-se a isso políticas criativas, como as cotas e o ProUni, e o resultado é que o país ampliou suas taxas de inclusão e de crescimento – pasme, sem a inflação desandar. Por isso, o verbo “comparar” faz arder as orelhas dos governante passados, mas a comparação é inevitável. A maioria dos brasileiros acaba fazendo isso involuntariamente, ao sentir as mudanças, para melhor, na própria pele. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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www.redebrasilatual.com.br Núcleo de planejamento editorial Cláudia Motta, Daniel Reis, Paulo Salvador e Vanilda Oliveira Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Maurício Thuswohl, Raimundo Oliveira, Sarah Fernandes e Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Fotos de Paulo Pepe, Paulo Donizetti de Souza (Mississippi) e Renata Rocha (F. Krajcberg) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Benedito Augusto de Oliveira, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Sérgio Nobre Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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MARÇO 2013 REVISTA DO BRASIL
O MESMO BRASIL. MAS EM OUTRA VERSÃO
ASSINE POR APENAS R$60 AO ANO. ACESSE WWW.REDEBRASILATUAL.COM.BR/LOJA carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
MAURO SANTAYANA
O capitalismo e a mulher
O desprezo do liberalismo econômico pela vida começa pelas mulheres. Surpreende que ainda se reproduza, em várias partes do mundo, a acumulação de riqueza por meio de escravização e terceirização
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á uma razão mais forte, hoje, para lembrar a opressão histórica contra as mulheres, que se tornou ainda mais cruel no sistema econômico moderno. Há reiteradas manifestações patológicas contra elas. O estupro praticado por grupos, o assassinato com crueldade e as mutilações – sem nenhuma possibilidade de defesa – reclamam a reflexão de todos. É urgente recuperar, com ação coerente, o humanismo como argamassa da civilização – que se dissolve no culto à violência e nas ilusões da técnica. O capitalismo usa da astúcia de absorver e administrar os movimentos de defesa dos trabalhadores. Faz isso com reconhecida competência, na infiltração e doma dos partidos políticos de esquerda, dos sindicatos e dos movimentos revolucionários; na orientação ideológica do sistema universitário; na cooptação dos intelectuais; no controle dos meios de comunicação e entretenimento. Foi assim que o Dia Internacional da Mulher, escolhido para lembrar a resistência feminina contra o trabalho quase escravo a que foram submetidas no liberalismo da Revolução Industrial do século 19, se tornou data de festinhas em escritórios e pátios de fábrica, com refrescos e bolinhos, e flores oferecidas pelos chefes às secretárias. Embora o Dia Internacional da Mulher se celebre em 8 de março, outra data mais forte para marcar a luta pela igualdade no trabalho e pela dignidade da condição feminina é 25 de março de 1911. Na tarde daquele dia, o incêndio irrompeu no sétimo e no oitavo andar de um edifício de
Nova York, o Asch Building (em ironia trágica, asch se assemelha a ash, cinza), em que funcionava a Triangle Shirtwaist Factory, grande confecção de blusas femininas. Ali trabalhavam jovens de 15 a 22 anos, vindas, em sua maioria, do interior, e imigrantes do Leste Europeu, muitas judias da Polônia e filhas de trabalhadores que fugiam da miséria, impelidos pelo sonho americano. As condições eram duras. Recrutadas por empresas terceirizadas, trabalhavam de 10 a 12 horas diárias, em ambiente com pouca circulação de ar. As portas eram fechadas por fora, para impedir os furtos, segundo os donos. Ao irromper o fogo, não houve quem abrisse as portas a tempo. As moças, e alguns poucos homens que ali trabalhavam, só tinham uma saída: saltar para a morte pelas janelas. Houve 146 mortes. Quando os bombeiros chegaram, a escada de que dispunham só alcançava o sexto andar. As leis protegeram os donos. Eles haviam feito um seguro de vida dos trabalhadores contra acidentes: receberam US$ 400 por vítima e pagaram aos familiares US$ 75 – ganharam US$ 325 por pessoa morta. O desprezo do capitalismo moderno pela vida começa em sua relação com as mulheres. Sua inclusão no mercado de trabalho, em que, normalmente, recebem menos que os homens, é vendida pelos seus teóricos como parte da emancipação feminina, quando, na verdade, e da forma em que se dá, não passa de nova servidão. É sempre conveniente lembrar a constatação de uma grande pensadora, Hannah Arendt: o trabalhador moderno é um escravo em tempo parcial, nas horas em que se aluga ao patrão. É um milagre que não ocorram, frequentemente, tragédias como a de Nova York naquele 25 de março de 1911 – dias depois da comemoração, pela primeira vez, do Dia Internacional da Mulher, criado um ano antes, em Copenhague, proposta da ativista alemã Clara Zetkin durante a 2ª Conferência Internacional de Mulheres Socialistas. O novo liberalismo é o velho sistema de acumulação acelerada de capital, com o aluguel de escravos pelas firmas terceirizadas – na Ásia, na África, nos Estados Unidos, e mesmo no Brasil, onde especialmente grandes marcas de confecções se viram envolvidas por desfrutar da mão de obra de pessoas nas mesmas ou em piores condições do que as do princípio do século 20. Nesse mercado infame, as maiores vítimas são as mulheres. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA
Mario e Lino: livre é o poder econômico
Liberdade, abre as asas
A Justiça de São Paulo manteve proibição ao blog Falha de São Paulo, sátira ao jornal Folha de S.Paulo, alegando uso comercial indevido. Para os irmãos Lino e Mario Bocchini, entretanto, a ação do jornal não tem nada a ver com questão comercial e fere o princípio da liberdade de expressão ao censurar o recurso ao humor como exercício da crítica. Pior, abre precedente preocupante. “Há uma tradição na manutenção ao que é mais favorável ao grande poder econômico”, lamentou Lino. Eles pretendem recorrer. http://bit.ly/rba_falha_de_sp
A vitória como resposta No ato de comemoração de dez anos do PT à frente do governo federal, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que a resposta do partido aos críticos será uma nova vitória de Dilma Rousseff em 2014. A declaração foi feita no mesmo dia em que o principal presidenciável tucano, o senador Aécio Neves (MG), listou na tribuna 13 “erros” do PT à frente do Executivo
federal. Autor de um livro com artigos de 23 pensadores brasileiros, o sociólogo Emir Sader acredita que este é um momento de reflexão sobre avanços e desafios do projeto de governo iniciado em 2003. Para ele, é hora de “quebrar a hegemonia do capital financeiro que resiste aos impulsos de continuidade do desenvolvimento econômico do Brasil”. http://bit.ly/rba_pt_10_anos
Haddad, Mercadante e Paulo Bernardo: banda larga
Existe internet em São Paulo
No final de fevereiro, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, reuniu-se com os ministros Aloizio Mercadante, da Educação, e Paulo Bernardo, das Comunicações, para discutir a ampliação dos serviços de telefonia e internet no município. A ideia é que as operadoras melhorem a cobertura de acesso sem fio à internet e, em contrapartida, a administração municipal flexibilizaria as regras para instalação de antenas. “A prefeitura quer fazer uma troca legítima no interesse público: liberar a construção de infraestrutura pelas operadoras e reservar uma parte dessa infraestrutura para uso de políticas públicas”, disse Bernardo. http://bit.ly/rba_bernardo 6
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VALTER CAMPANATO/ABR
Maus perdedores Derrotadas nas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2012, as forças políticas representadas pela mídia tradicional e pela oposição institucional estão “irritadas” e buscam outros meios para voltar ao poder. A análise é do jornalista Paulo Moreira Leite, que lançou livro em que aborda “o outro lado” do julgamento do chamado mensalão petista. “Eles desaprenderam. Como a oposição não encontra resposta no campo democrático, tudo é motivo para achincalhar o governo.” http://bit.ly/rba_outro_lado
JENNIFER GLASS
Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
FRANCISCO VALDEAN/ARQUIVO RDB
Morro de Santa Marta, RJ
Preconceito x mercado
Pesquisa do Data Popular, em parceria com a Central Única das Favelas (Cufa), mostra que os moradores das favelas brasileiras consomem aproximadamente R$ 56 bilhões por ano, o equivalente ao PIB da Bolívia. O poder de consumo triplicou em dez anos. Segundo o diretor do instituto, Renato Meirelles, esse contingente de 12 milhões de habitantes “era um mercado invisível, e estava debaixo do nosso nariz, mas as pessoas só enxergavam a favela pela ótica da violência e do tráfico”. http://bit.ly/rba_data_favela
Investigação da Comissão da Verdade de São Paulo lança suspeitas sobre a participação de empresários e do Consulado dos Estados Unidos em atividades da ditadura. Em livros que registram entrada e saída de funcionários do Dops (ao lado), há a assinatura de pessoas que se identificaram como representantes da Fiesp e em nome da representação diplomática, inclusive em horários pouco convencionais. Um dos documentos mostra o registro de ingresso de um membro do consulado minutos depois do capitão Enio, conhecido torturador. “A oposição à ditadura sempre disse que havia beneficiamento e ligação de empresários com a repressão. Queremos saber qual foi a participação deles”, afirmou o diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política, Ivan Seixas. http://bit.ly/rba_eua_fiesp
ANTONIO CRUZ/ABR
Lições e dores da ditadura
Broch: Estado voltado para o agronegócio
De braçada
Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Alberto Ercilio Broch, o setor de agronegócio “nada de braçada” no Brasil, mesmo com avanços na agricultura familiar. “O Estado brasileiro foi montado para o agronegócio, está calcado nesse modelo de desenvolvimento. Apesar das nossas conquistas, que não foram poucas”, diz o dirigente. A entidade, que completa 50 anos em dezembro – foi criada no governo João Goulart –, esperava 2.500 delegados para seu 11º congresso, neste início de março. http://bit.ly/rba_contag REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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TVT
Mídia tipo exportação Entidade internacional cita programa sobre “sindicalismo on-line” por abordagem inovadora
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m ano atrás, em 13 de março, o programa Clique Ligue, da TVT, levou ao ar a reportagem “Sindicalismo on-line”, sobre o uso das novas tecnologias pelo movimento sindical, no Brasil e no mundo. Recentemente, a Union Solidarity International (USI), organização apoiada por sindicatos do Reino Unido, exibiu o programa e citou a programação da TVT como exemplo de “criatividade e inovação” em comunicação sindical. “Os ativistas sindicais brasileiros adotaram as novas tecnologias em sua comunicação e mostram que os sindicatos brasileiros estão exercendo e praticando um nível de inovação que é raro em outros países”, diz a USI. Segundo a entidade, o programa abordou “o uso criativo e inovador das tecnologias de comunicação pelos sindicatos brasileiros”. E recomenda: “Vale a pena ver, todos nós podemos aprender alguma coisa com nossos camaradas brasileiros”. Participaram do programa o sociólogo Alex Capuano, do Instituto Observatório Social, e Wellington Messias Damasceno, presidente da Juventude Metalúrgica do ABC. Por Skype, Thiara Nascimento, secretária de Juventude da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação, Agroindústria, Cooperativas de Cereais e Assalariados Rurais (Contac), Maurício Jansen, diretor do Sindicato dos Químicos e Petroleiros da Bahia, e Giovanni Alioti, pesquisador do Departamento Internacional da Federação Italiana de Metalúrgicos. A reportagem do Clique Ligue aborda ainda a mudança do papel das entidades sindicais, que hoje vão além da pauta de reivindicações, participando de atividades relacionadas à cidadania, como questão ambiental e igualdade de gênero e raça. “Os sindicatos brasileiros também atuam fortemente na campanha de inclusão digital, no acesso à banda larga, Como sintonizar que ainda é irregular fora dos grandes centros, e Canal 48 UHF (18h às 20h30) ABC e Grande São Paulo (NGT) na formação de seus paCanal 46 UHF res, além de oferecer treiMogi das Cruzes e Alto Tietê namento para que seus TV a cabo (NET) no ABC filiados possam utilizar ECO TV: canais 96 (analógico) politicamente as novas e 9 (digital) tecnologias de comuniTV a cabo em São Paulo Canais 9 e 72 TVA (analógico) NET cação.” Enfim, abrem-se e 186 (digital) TVA outros campos de inteNa internet ração entre os trabalhawww.tvt.org.br dores. 8
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Marcelo Godoy, apresentador do Clique Ligue
Wellington Messias
Alex Capuano
RÁDIO
Tirania premiada? Filho do jornalista Vladimir Herzog lança petição pública na internet para que aliado do regime que matou seu pai não seja contemplado com o título de ‘anfitrião’ da Copa de 2014
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Ouça a reportagem de Marilu Cabañas: http://bit.ly/radio_fora_marin
LIGAÇÕES COMPROMETEDORAS Marin: discurso elogiando o torturador Sérgio Paranhos Fleury
Sintonize JOSÉ CRUZ/ABR
vo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura, em 1975, lançou em 18 de fevereiro uma petição na internet (www. avaaz.org) que pede o afastamento de José Maria Marin da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Documentos da Assembleia Legislativa de São Paulo atestam que, na década de 1970, o atual presidente da CBF proferiu um discurso com críticas à ausência da TV Cultura na cobertura de um evento do governo de exceção. Marin era deputado estadual pela Arena, partido de sustentação da ditadura. Em sua fala, exigia “providência” em relação ao jornalismo praticado pela emissora para que a “tranquilidade” fosse recuperada no estado. Dezesseis dias depois, Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da emissora, foi preso. Acabou assassinado nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Segundo Ivo, o discurso foi um dos fatores que levaram seu pai à morte. “Um ano depois, Marin fez discurso na Assembleia Legislativa em que tecia elogios de herói ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, famoso torturador e sequestrador de presos políticos. É inaceitável que essa pessoa, com esse passado, seja anfitrião do maior evento esportivo do Brasil”, disse Ivo ao programa matutino da Rádio Brasil Atual. “Não podemos julgar essas pessoas, porque o país tem uma Lei de Anistia torta, mas que pelo menos não se crie uma grande festa da qual ele seja o grande representante. Estamos pagando por essa Copa. Estamos pagando pela festa de José Maria Marin”, protestou.
Legislativo inócuo O analista político Paulo Vannuchi considerou “intolerância política” o tratamento dado pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ao Poder Legislativo do estado. O veto a projetos aprovados pelos parlamentares é uma prerrogativa do chefe do Executivo. Entretanto, Alckmin abusou: 621 assuntos aprovados pela Assembleia Legislativa paulista foram barrados pela caneta
93,3 FM Litoral paulista 98,9 FM Grande São Paulo 102,7 FM Noroeste paulista Na internet www.redebrasilatual.com.br/radio
do governador. Segundo Vannuchi, há excessiva partidarização no trato de projetos como o que restringe a publicidade infantil de alimentos, por exemplo, recentemente vetado. “Dentro da democracia, é legítimo discordar, mas discordância não pode ser transformada em guerra sectária que impeça avanços nas políticas públicas”, apontou Vannuchi. http://bit.ly/radio_vetos REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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O PRÓXIMO ROUND Nos anos 1990, o Estado foi tratado como problema para os liberais no poder. Nos últimos dez anos, ao induzir o crescimento com distribuição de renda, foi solução. Desafio é ampliar os investimentos Por Vitor Nuzzi
ROBERTO STUCKERT FILHO/PR
m 20 anos, o Brasil passou por dois modelos de gestão distintos. O Estado, que era um problema pelo dogma liberal, passou a solução na visão dos chamados desenvolvimentistas. As comemorações pelos dez anos de governo sob a gestão do PT, após oito anos de administração tucana, precipitou o debate de 2014. Para Fernando Henrique Cardoso, “ficar o tempo todo olhando para trás” parece picuinha e o melhor é comemorar a “vitória do Brasil”. Luiz Inácio Lula da Silva, diz que não tem medo de comparação. O economista Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo, observa que o país passou – ou ainda passa – por uma longa transição, de uma economia de “financeirização da riqueza”, nos anos 1980 e 1990, para uma economia “sustentada pelos investimentos produtivos”. Saiu da condição de oitava economia mundial, em 1980, para a 13ª em 2000. Agora, caminha para ser a quarta. Para isso, os investimentos são fundamentais. O diretor executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) pelo Brasil e Suriname, Ricardo Carneiro, vê muitas diferenças entre as gestões FHC e Lula. No primeiro período, ele identifica a influência do chamado Consenso de Washington, do final dos anos 1980, que trazia princípios de liberalização e globalização da economia. “O resultado é ruim. Os indicadores sociais e econômicos (no governo FHC) não são bons. É um dos períodos da economia brasileira comparáveis ao da década perdida (1980), com abertura e privatização rápidas, sem muito critério, para atingir determinados objetivos fiscais.” A “herança boa”, para Carneiro, foi o controle da inflação. Houve, sim, um início de implementação de políticas sociais, mas em escala reduzida. Segundo Carneiro, o governo Lula iniciou um movimento em direção a políticas mais progressistas, entre as quais a do salário mínimo, que o diretor do BID considera a marca da gestão do período 20032010, destacando a marcha das centrais sindicais pela valorização da remuneração. “É a grande política do governo Lula. Aliás, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, está descobrindo isso agora.”
Dilma: aprofundamento das políticas sociais
BRASIL
A economista Tania Bacelar, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), vê erros e acertos, mas considera o ambiente macroeconômico “muito” melhor, com a inflação sob controle, a redução da dívida pública e o crescimento das reservas internacionais. “Do ponto de vista do crescimento, acho que a gente não melhora significativamente”, diz a professora, também diretora da Consultoria Econômica e Planejamento. Tania reconhece a importância do controle da inflação pelo governo Fernando Henrique. Mas identifica uma “grande mudança” na gestão Lula quanto ao aumento da renda e do emprego formal e à redução das disparidades, a partir da combinação de políticas sociais e econômicas. A professora também destaca a valorização do salário mínimo. “Foi muito positivo sobretudo para o Nordeste, onde 70% da população ocupada ganha até dois salários mínimos, e metade ganha no máximo um. Tanto que o Norte e o Nordeste lideram as vendas no varejo.” DIVULGAÇÃO/FURNAS
ESTRUTURA Obra do PAC: o emprego formal e a renda reduzem disparidades
Emprego formal no Brasil 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
(em nº de vagas)
892.184 502.214 88.495 74.576 274.116 387.207 501.630
Criação de vagas
1.235.364 960.985 1.494.299 861.014 1.862.649 1.831.041 1.916.632
Período 1995-2002 5.016.672 Período 2003-2010 15.384.442
2.452.181 1.834.136 1.765.980 2.860.809 2.242.276
Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (Rais)/Ministério do Trabalho e Emprego
Ousadia
A economista vê como principal desafio, agora, fazer deslanchar o investimento. “É nossa variável estratégica”, observa. Em economês, investimentos são as aplicações necessárias para se melhorar o potencial produtivo de um governo ou empresa. São, por exempo, os recursos empenhandos em melhoria e ampliação de estradas, portos, aeroportos, geracão de energia, em ciência e tecnologia, máquinas e equipamentos, qualificação de pessoal. Em linhas gerais, economistas estimam que o Brasil precisa de uma taxa de investimentos correspondente a 25% do Produto Interno Bruto (PIB) para crescer 5% ao ano. Desde os anos 1980, esse percentual oscila entre 15% e 20%. O objetivo do governo Dilma é chegar a 23%. Para Tania, a presidenta está fazendo mudanças importantes no sentido de preparar o país. “Ela já está construindo o segundo momento. Já está sinalizando para a frente.” No caso, discutir onde o Estado deve e não deve investir e onde deve entrar o investimento privado – em rodovias, portos e aeroportos, por exemplo. REVISTA DO BRASIL
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Minha Casa, Minha Vida, Mangueira, RJ
Em sua análise, o desmonte ocorrido em períodos anteriores deixou o setor público desprovido de estruturas executivas. Isso provoca, inclusive, dificuldades na execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Por isso, Tania acredita que Dilma está iniciando um debate interessante. “É uma ousadia para um governo do PT rediscutir o papel do Estado”, afirma. Para Ricardo Carneiro, após anos de crescimento sustentado, basicamente, pelo consumo, com o aumento da renda e do acesso ao crédito, o país esbarra em alguns “tetos”, como infraestrutura e balança de pagamentos. O terceiro está na disponibilidade de mão de obra no mercado de trabalho. “O crescimento demográfico é menor, a oferta de trabalho está diminuindo, pessoas entram
Obras na rodovia BR-101, AL
mais tarde (no mercado). O emprego com carteira assinada cresceu mais no setor de serviços, em que a qualificação média não é tão grande. Era necessário criar mais empregos em setores com requisitos técnicos mais substantivos, em cadeias com maior valor agregado.” Os indicadores na última década derrubaram a tese de que o custo do trabalho formal seria um entrave para a abertura de empregos. De 2003 a 2010, o país criou mais de 15 milhões de vagas com carteira assinada, o triplo do período 1995-2002. Em relação ao desemprego, embora os dados não sejam mais comparáveis, porque houve mudança na metodologia do IBGE justamente em 2002, é possível dizer que as taxas ficaram muito tempo em dois dígitos. No ano passado, a média foi de 5,5%, a menor da série.
DIVULGAÇÃO/ELETROSUL
TÂNIA RÊGO/ABR
Atrofiado durante os governos tucanos, o Estado voltou a estimular a economia de forma direta com as obras do PAC espalhadas pelo Brasil
DIVULGAÇÃO PUGÁS/DNIT
Infraestrutura e cidadania
Parque Eólico Cerro Chato, RS
Acomodação
Atual secretário de Desenvolvimento Social de Feira de Santana (BA), o sociólogo Ildes Ferreira vê mudanças importantes nas duas últimas décadas, “em parte como resultado da ação do Estado”. Mas lembra que houve menor crescimento populacional. O número médio de pessoas por família passou de seis, 30 anos atrás, para pouco mais de três. “Isso também influencia.” Para Ferreira, a ação do Estado com segmentos mais vulneráveis tem um efeito positivo e outro questionável. “Temos de comemorar não haver mais pessoas com fome”, diz, para em seguida criticar: “O Bolsa Família acomoda as pessoas. Precisa ser redesenhado para a inserção na produção”. “É uma crítica conservadora”, reage Tania Bacelar. “Primeiro, (o Bolsa Famí-
Dez anos depois Guaribas, no interior do Piauí, a 600 quilômetros de Teresina, foi a primeira a receber o programa Fome Zero, em 2003. Era uma cidade extremamente pobre, com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, sem água encanada nem energia elétrica. O repórter Lucas Rodrigues, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que foi ao local após dez anos, descreve avanços e antigos problemas: “O município conquistou o principal objetivo: acabar com a miséria. Mesmo assim, ainda está entre os mais pobres do país e enfrenta o êxodo dos jovens em busca de emprego em grandes cidades. Segundo o IBGE, entre 2000 e 2007, quase 10% dos moradores deixaram Guaribas”. A reportagem cita, entre outros, o caso do aposentado Eurípedes Correa da Silva, que chegou a trabalhar de vigia nas poucas fontes de água, racionada nos longos períodos de seca. “Hoje, a água chega, encanada, à casa dele.” Com sete filhos, Eurípedes agora tem televisão e geladei12
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ra – a energia chegou ao município – e recebe o benefício do Bolsa Família, que substituiu o Fome Zero. A meta é aumentar de 1.500 para 2.000 o número de residências alcançadas pelo benefício, o que representaria 80% da população. Segundo a coordenadora local do programa, Raimunda Correia Maia, “o dinheiro que gira no município, das compras, da sustentação dos filhos, promove desenvolvimento”. Os irmãos Alan e Rosângela, também entrevistados, contam que as melhorias não serão suficientes para continuar no município, já que nenhum dos dois encontra trabalho e não é possível sustentar a família, de oito pessoas, com um cartão de R$ 130 do Bolsa Família. E já foram para São Paulo. O casal Irineu e Eldiene, por sua vez, fez o caminho inverso: voltaram e estão organizando uma pousada no centro da cidade. Uma obra mais para o futuro, segundo Irineu. “Estou vendo que a cada ano Guaribas está se desenvolvendo mais.”
DIVULGAÇÃO
JUVENAL PEREIRA/DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO/MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO
BRASIL
Sistema de esgotamento sanitário, BA
DIVULGAÇÃO/ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DE CRUZEIRO DO SUL, AC
lia) custa pouco. Segundo, o cara não se acomoda com R$ 170. O problema é que as pessoas não têm qualificação. Elas estariam desempregadas. O Bolsa Família mobilizou as pequenas bases produtivas dos municípios. É a padaria, a farmácia...” Ricardo Carneiro diz que o programa corresponde a aproximadamente 0,5% do PIB. “É um piso de sobrevivência, não de remuneração, como é o salário mínimo.” Ferreira acredita que o avanço foi relativo. “Dá para botar arroz e feijão na panela. Em emprego, educação, avançamos pouco. A distância entre o topo e a base continua muito grande.”
Terminal 3 do aeroporto de Guarulhos, SP
O índice de Gini, que mede a distribuição de renda, vem caindo, como mostra o economista João Sicsú: foi de 0,585, em 1995, para 0,501 em 2011 – quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade. Também tem melhorado a distribuição da renda. A participação dos salários no PIB foi de 46,3%, em 2003, para 51,4% em 2009. “Não vivemos em nenhum paraíso. Muito longe disso. Mas, em contrapartida, a situação é muito melhor que a do final dos anos 1990 e início dos anos 2000”, disse Sicsú em texto publicado na revista CartaCapital. “Não haverá desenvolvimento sem desconcentração da renda.”
Urbanização da Vila do Mar, CE
“Você só avança mesmo se houver uma política mais eficaz do Estado”, diz Ricardo Carneiro, para quem o país ainda tem estrutura tributária distorcida. “É preciso tributar a renda, e não a produção, o consumo.” A professora da UFPE pede investimento público prioritariamente em educação. “Isso mudaria o Brasil”, afirma. Mas, com toda a desigualdade que ainda existe, ela aponta um efeito psicossocial relevante nas políticas públicas, como a garantia da alimentação. “Acordar de manhã e saber que não tem comida para dar aos filhos é inaceitável. Você tem de trabalhar para que não haja mais isso na próxima geração.”
PISO DE SOBREVIVÊNCIA Alvo de críticas conservadoras, o Bolsa Família já corresponde a 0,5% do PIB e firmase como um dos maiores programas de redistribuição da renda no mundo. “O Bolsa Família mobilizou as pequenas bases produtivas dos municípios. É a padaria, a farmácia...” diz a professora Tania Barcelar REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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MÍDIA
O Millenium e as Organização que une empresários, imprensa e oposição ao governo lembra cenário do golpe de 1964. Seu poder de propagar intrigas e más notícias, porém, não tem sido capaz de superar a solidez e os resultados do projeto político em vigor Por Lalo Leal 14
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O
economista Cristiano Costa foi recebido em fevereiro pelo pessoal do grupo A Tarde, em Salvador. A companhia de comunicação, que tem provedor e portal na internet, agência de notícias, jornal impresso, emissora de FM, gráfica, reuniu seus profissionais para servirem-se de uma pa-
AUTOBAJULAÇÃO E LIBERDADE EMPRESARIAL Fernão Lara Mesquita, de O Estado de S. Paulo, recebe o prêmio Abap Ícones da Comunicação na categoria “Liberdade”. Ao seu lado estão João Roberto Marinho, das Organizações Globo, e Roberto Civita, da Editora Abril, também premiados
WILTON JUNI0R/AGÊNCIA ESTADO/8/04/2010
MÍDIA
em que critica duramente a política econômica do governo e ataca sem rodeios o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Em um deles, cita o programa Minha Casa, Minha Vida como um dos responsáveis por inflacionar o setor imobiliário. Isso num ambiente em que até os preços de imóveis de alto padrão dispararam. As pessoas estão mais seguras no emprego e foram comprar, a queda dos juros levou mais gente a ter acesso a crédito, ou mais gente a tirar dinheiro de aplicações financeiras para investir em imóveis. Há muitos fatores em jogo, mas lá vai o programa federal destinado a famílias de baixa renda pagar o pato da especulação. Outras redações de jornais e revistas foram brindadas pelo Millenium com palestras sobre assuntos variados, da reforma do Judiciário à assustadora “crise econômica”. O currículo dos palestrantes, colaboradores do instituto, explica o objetivo real das palestras: consolidar no meio jornalístico o papel oposicionista da mídia brasileira. Há algum tempo os ambientes de redação eram conhecidos por ter profissionais críticos, independentes, e o direcionamento da informação era resultado da sintonia dos editores com os donos dos veículos. Não era incomum a conclusão do jornal ou da revista acabar em atrito entre repórter e superiores. Agora, os donos dos veículos preferem formar “focas” que já cheguem às redações comprometidos com suas crenças. Essas crenças, recheadas de interesses políticos e econômicos, vêm sendo difundidas de maneira afinada pelos meios de
lembranças lestra da série Millenium nas Redações. Blogueiro e professor de uma universidade capixaba chamada Fucape Business School, Costa é também colaborador cativo do Instituto Millenium, articulador desses eventos destinados a “aprimorar a qualidade da imprensa no Brasil”. A base de sua explanação são seus artigos reproduzidos no site do instituto,
comunicação reunidos no Millenium. Resultado concreto desse trabalho pôde ser visto neste início de ano. Três assuntos, alardeados como ameaças ao país, ocuparam as manchetes dos grandes jornais e foram amplificados pelo rádio e pela TV: apagão, inflação e crise na Petrobras. Além do noticiário parcial, analistas emitiam previsões catastróficas. Como
elas não se confirmavam, o assunto era esquecido e logo substituído por outro. No dia 8 de janeiro, o jornal O Estado de S. Paulo estampou na capa: “Governo já vê risco de racionamento de energia”. Um dia antes a colunista da Folha de S.Paulo Eliane Cantanhêde chamava uma reunião ordinária, agendada desde dezembro, de “reunião de emergência” do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico convocada às pressas por Dilma para tratar do risco de racionamento. Diante da constatação de que a reunião nada tinha de extraordinária, a Folha publicou uma acanhada correção. Como de costume, o tema foi sendo lentamente deixado de lado. O risco do “racionamento” desapareceu. Pularam para o “descontrole” da política econômica e a ameaça de um novo surto inflacionário. “Especialistas” tentavam, a partir dos índices de janeiro, projetar uma inflação futura capaz de desestabilizar a economia. Aproveitavam para crucificar o ministro Mantega, artífice de uma política que contraria interesses dos rentistas nacionais e internacionais: a redução dos juros bancários está na raiz da gritaria. Não satisfeitos, colocaram a Petrobras na roda, responsabilizando a “incapacidade administrativa” dos dirigentes da empresa pela redução dos dividendos pagos aos acionistas. Sem considerar que, dentro da estratégia atual de ação da Petrobras, os recursos de parte dos dividendos retidos passaram a contribuir para o desenvolvimento do país na forma de novos investimentos.
Variações de uma nota só
Aparentemente isoladas, essas versões jornalísticas são, na verdade, articuladas a partir de ideias comuns que permeiam as pautas dos principais veículos. No site do Instituto Millenium elas estão organizadas e publicadas de maneira clara. O Millenium diz ter como valores “liberdade individual, propriedade privada, meritocracia, Estado de direito, economia de mercado, democracia representativa, responsabilidade individual, eficiência e transparência”. Faz lembrar a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, que chegou a dizer que só o indivíduo existe, a sociedade é ficção. REVISTA DO BRASIL
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MARLENE BERGAMO/FOLHAPRESS/29/10/2010
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DERROTA Kamel, diretor de jornalismo da Globo, dirige Serra durante debate eleitoral: mídia conservadora perdeu no campo democrático
Fundado em 2005, o Millenium foi oficialmente lançado em abril de 2006 com o apoio de grandes empresas e entidades patronais lideradas pela Editora Abril e pelo grupo Gerdau. Trata-se de uma liderança significativa, pois reúne uma empresa propagadora de ideias e valores e outra produtora de aços, base de grande parte da economia material do país. A elas juntam-se a locadora de veículos Localiza, a petroleira norueguesa Statoil, a companhia de papel Suzano, o Grupo Estado e a RBS, conglomerado de mídia que opera no sul do Brasil. A Rede Globo, como pessoa jurídica, não aparece na lista, mas um dos seus donos, João Roberto Marinho, colabora. Essa integração entre empresas de mídia e empresários faz do Millenium uma organização capaz de formular e difundir programas de ação política em larga escala, com maior capacidade de convencimento do que muitos partidos políticos. Com a oposição partidária ao governo enfraquecida, ocupa esse espaço com desenvoltura. 16
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Apesar do apego declarado à democracia, alguns dos colaboradores não escondem o desejo de combater o governo de qualquer forma. É o que está explícito na fala de outro de seus colaboradores, o articulista Arnaldo Jabor, quando num dos eventos promovidos pelo instituto disse: “A questão é: como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?” Essa articulação faz lembrar a de organismos privados como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), fundado em 1959, e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), nascido em 1961. Ambos uniram empresários e mídia conservadora na formulação e divulgação de ideias que impulsionaram o golpe de 1964. “Ipes e Ibad não eram apenas instituições que organizaram uma grande conspiração para depor um governo legítimo. Elaboraram um projeto de classe. O golpe foi seguido por uma série de reformas
no Estado para favorecer o grande capital”, lembra o pesquisador Damian Bezerra de Melo, da Universidade Federal Fluminense (UFF). No cenário atual, de decadência do modelo neoliberal e de consolidação de políticas desenvolvimentistas no Brasil, o Millenium seria um instrumento ideológico para dar combate a esse processo transformador. “Nos anos 1990 ocorreu a disseminação da ideologia do pensamento único, de que o capitalismo triunfou, o socialismo deixou de existir como projeto político”, lembra a historiadora Carla Luciana da Silva, da Universidade do Oeste do Paraná. “Quando surgem experiências concretas que podem desafiar essas ideias, aparece em sua defesa uma organização como o Millenium para manter vivo o ideal do pensamento único.” A difusão dessas ideias não é feita por meio de manifestos ou programas partidários, como observa a pesquisadora. “É
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muito difícil pegar uma revista como a Veja ou um jornal como a Folha de S.Paulo e conseguir visualizar os sujeitos que estão produzindo as ideias defendidas ali. Cria-se uma imagem do tipo ‘a’ Folha, ‘a’ Veja, como se fossem sujeitos com vida própria. É uma forma de não deixar claro em nome de que projeto falam, como se falassem em nome de todos.”
Contra as versões, fatos
Conhecendo as ações do instituto e seus personagens fica mais fácil compreender como certos assuntos tornam-se destaque de uma hora para outra. A presença nos quadros do instituto de jornalistas e “especialistas” com acesso fácil aos grandes meios de comunicação leva suas “notícias” rapidamente ao centro do debate nacional. E fica difícil contra-argumentar com colaboradores do Millenium, não pela qualidade de seus argumentos, mas pela força de persuasão dos veículos pelos quais difundem suas ideias. Como retrucar, com igual alcance, comentários de Carlos Alberto Sardenberg, na CBN, de Ricardo Amorim, na IstoÉ, na
rádio Eldorado e no programa Manhattan Connection, da GloboNews, de José Nêumanne Pinto, no Estadão e no Jornal do SBT, de Ali Kamel, diretor de jornalismo da TV Globo, entre tantos outros? Não é mera coincidência a preferência dos integrantes do Millenium pela subordinação do Brasil aos grandes centros financeiros internacionais e sua ojeriza diante das relações harmônicas entre governos latino-americanos. Trata-se de uma tentativa de ressuscitar um projeto político implementado durante a ditadura que só passou a ser confrontado, ainda que parcialmente, a partir de 2003, com a posse do governo Lula. Mas parece não haver espaço para uma hipótese golpista, apesar do já citado dilema de Jabor. Para a professora Tânia Almeida, da Unisinos de São Leopoldo (RS) e diretora de relações públicas da Secretaria de Comunicação do Rio Grande do Sul, um dos ganhos da crise política de 2005, com a questão do chamado “mensalão”, foi ter forçado análises e estudos em busca de explicações de como o então presidente Lula conseguiu suportar tanta
notícia negativa e manter elevados índices de aprovação. “Não era só carisma. Desde 2003, havia uma gestão de governo em funcionamento. Não existia somente aquilo de que os jornais e revistas tratavam, não era só escândalo. Outra proposta política estava acontecendo”, observa Tânia. Para a professora, os avanços sociais alcançados não permitem crer em crise que leve a uma ruptura institucional. “O Millenium é um agente articulador, social, político, que pode fomentar e aquecer debates, mas não teria potencial para causar uma crise nos moldes de 1964. O poder de influência da mídia ficou relativizado desde 2006 em função dessa política que chega lá na ponta e inclui quem estava fora.” Damian Melo, da UFF, tem visão semelhante, mas com um pé atrás: “O Millenium não possui hoje estratégia golpista. Quer emplacar seu projeto, e isso pode ser pela via eleitoral mesmo. Muito embora nossa experiência nos diga que é melhor ficarmos atentos”. Colaborou Rodrigo Gomes
O Ibad foi a mais descarada forma de intervenção norte-americana no processo político brasileiro, mas não a primeira. No governo Dutra (1946-1951), o grande desembarque econômico norte-americano no Brasil, os ianques agiam com desenvoltura na vida brasileira. Nessa fase, denominada pelo historiador Gerald K. Haines como “americanização do Brasil”, editoriais dos grandes matutinos cariocas chegaram a ser redigidos na Embaixada dos Estados Unidos. O Ibad nasceu da esperteza de um negocista, Ivan Hasslocher. Ele criou a agência de publicidade Incrementadora de Vendas Promotion para servir como operadora do sistema e levantou milhões de dólares da CIA e de empresas norte-americanas, a fim de eleger parlamentares de direita – já
no fim do governo Juscelino, em 1959. Após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, passou a atuar descaradamente. Clandestinamente, o instituto financiou, com a cumplicidade do deputado de extrema direita João Mendes, a formação de sua própria bancada de parlamentares comprometidos com sua orientação ideológica. O embaixador norte-americano no Brasil naquele período, Lincoln Gordon, confessou, depois, que a CIA fora a principal fonte pagadora de Hasslocher. Uma CPI foi instalada em 1963 para investigar o instituto, mas não pôde ir adiante. Seus membros mais ativos – Eloy Dutra, José Aparecido de Oliveira, João Dória, Benedito Cerqueira, Bocaiúva Cunha – foram cassados em 1964. Outro membro ativo, Rubens Paiva, seria assassinado pelo DOI-Codi em 1971.
ACERVO ICONOGRAPHIA
O Ibad como modelo Por Mauro Santayana
MEMÓRIAS DE UM GOLPISTA Lincoln Gordon (dir.) com o general Castelo Branco: em 1964 a CIA foi a principal patrocinadora do Ibad
Jango foi corajoso ao suspender as atividades do Ibad duas vezes, por 90 dias, até que a Justiça mandou fechar a instituição. Mas já era tarde. Hasslocher e seus assalariados continuaram a atuar clandesti-
namente, em associação com o Ipes. O Ibad tinha também em sua folha de pagamentos a jornalistas, sem falar na adesão “gratuita” dos donos dos grandes jornais – com exceção do Última Hora. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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ENTREVISTA
Gilberto Carvalho frequenta o primeiro escalão do governo há dez anos. Admite ter envelhecido com a intensidade da rotina, mas dá graças a Deus por estar ali. “O poder passa, ficam as mudanças que deixamos para o país” Por Maurício Thuswohl
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FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR
Cansado, e muito feliz
ENTREVISTA
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os oito anos de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, Gilberto Carvalho foi seu chefe de gabinete. Desde a posse de Dilma Rousseff, é ministro da Secretaria-Geral da Presidência. Nos últimos dez anos, não há decisão na República que tenha sido tomada sem ter passado em sua órbita. Um dos mais importantes canais de interlocução entre o Palácio do Planalto e os movimentos sociais, Carvalho tem rotina intensa, à qual atribui, com bom humor, um envelhecimento mais acelerado de 2003 para cá. O agendamento desta entrevista mesmo foi uma novela que se arrastou por meses, já que os editores reivindicavam pelo menos uma hora de gravação. “Mais de uma hora de conversa eu não tenho nem com a Dilma”, brincava. Mas a conversa aconteceu, no último dia 5 de fevereiro, em seu gabinete. O ministro é cristão fervoroso, diz que o ritmo intenso de trabalho não o afasta da convivência afetiva com os filhos e que é grato pelo privilégio de viver no centro das decisões sem jamais ter se deixado levar por vaidades dos ritos de poder. Afirma que não eram apenas interesses mesquinhos o que impedia governantes anteriores de promover as mudanças sociais ocorridas no país na última década. Faltava-lhes, acredita, a sensibilidade, a sabedoria e a coragem do operário de nove dedos e da ex-guerrilheira. Gilberto Carvalho revela ver na reta final deste mandato de Dilma o “horizonte” de sua missão: “Eu diria que sou um homem cansado, mas muito feliz, com muita vontade de continuar lutando. Para isso eu não preciso estar aqui”. O senhor está no Palácio do Planalto desde 2003, como chefe de gabinete do presidente Lula e agora ministro da Secretaria-Geral. Há diferenças entre o atual governo e o anterior?
O governo da presidenta Dilma, no essencial, tenta consolidar aquilo que já veio se tornando uma cultura, uma prática de governo na gestão Lula. Na economia, com a questão do crescimento com distribuição de renda, o mote essencial e uma fixação é acabar com a miséria. O programa Brasil sem Miséria, assim como o Brasil Carinhoso, tenta até 2014 fechar a tarefa iniciada no governo Lula. Há ainda toda a incrementação do programa ligado ao Pronatec, à educação. O ex-presidente Lula teve um grande trabalho de expandir o ensino universitário; Dilma faz agora um trabalho muito forte com as escolas técnicas, começado com Lula. E, assim por diante, área por área, estamos conseguindo cumprir uma missão que eu digo que é da nossa geração: devolver a dignidade ao povo. Eu fui ontem (4 de fevereiro) com a presidenta Dilma inaugurar um laticínio, uma cooperativa de agricultores assentados no norte do Paraná, e vi a alegria daquelas pessoas, a ma-
neira como acolhem a presidenta. E fiquei pensando: qual governo reuniria, dentro de um assentamento rural de trabalhadores do MST, a presidenta da República, três ministros, três senadores, o presidente do BNDES, o vice-presidente do Banco do Brasil e mais uma série de funcionários altamente qualificados para celebrar com os sem-terra? Este é o grande sinal que estamos dando: é o povo retomar sua autoestima, acreditar que é participante da construção de um país. O senhor citou o MST. A presidenta esteve com a CUT no dia seguinte. Como o senhor, interlocutor do governo com os movimentos sociais, vê essa relação? Está enfraquecida?
Há uma mudança de estilo, mas não de linha. Hoje, vendo a presidenta conversar com a CUT de uma maneira carinhosa, de igual para igual, pensando juntos um programa estratégico, ontem com os sem-terra, e em todas as audiências e reuniões que tivemos aqui no Palácio, eu devo dizer: embora mude o estilo, a linha de trabalho, de ouvir os movimentos e permitir sua participação, de maneira alguma foi alterada. Acho que ela até deu algum salto em termos de organização. Por exemplo, a consolidação do compromisso da cana-de-açúcar com o setor sucroalcooleiro, a criação do compromisso do trabalho decente na construção civil, as mesas de negociação que continuamos tendo aqui.
No ano passado, o governo conviveu com uma série de greves no funcionalismo. Com o Orçamento limitando a margem de manobra, como o governo se prepara para as próximas demandas salariais que certamente vão ocorrer?
Tivemos durante o governo Lula um crescimento econômico grande do país, que nos deu folga e possibilidade de fazer uma correção na situação salarial dos trabalhadores públicos federais. Tínhamos de restaurar a dignidade desses trabalhadores e refazer seu poder de compra, muito aviltado nos governos passados. Demos um salto. Houve uma recuperação salarial importante. Nos próximos dois anos, vamos ver a evolução orçamentária, a evolução da economia. O governo não pode cometer irresponsabilidades, sob risco de mais tarde ter uma repercussão negativa para os próprios funcionários. Estamos trabalhando forte para a regularização da Convenção 151 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina a negociação com os servidores.
Após as eleições da Câmara e do Senado, parlamentares petistas pregaram a necessidade de uma reforma política. Essa será uma bandeira também do Executivo?
Há uma mudança de estilo, mas não de linha. Estou cansado de ver gente plantando informações na tentativa de separar Dilma de Lula. Nunca vi relação política tão respeitosa e carinhosa como a dos dois. Não há hipótese de haver uma separação
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FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/ABR
ENTREVISTA
Não dá para ter partidos sérios no futuro se não tivermos a coragem de realizar a reforma política, particularmente com a questão do financiamento público e com o voto em lista. Eu considero essencial que o governo apoie essas medidas. Sempre digo que o financiamento privado de campanha é um dos grandes fatores de corrupção. Então, espero que todos os partidos da nossa base, todos os partidos sérios do Brasil, joguem muito peso nessa campanha. O governo da presidenta Dilma vai apoiar esse processo. Durante boa parte do governo Dilma houve uma tentativa da oposição e de parte da imprensa de “cooptar” a presidenta e de afastá-la do ex-presidente Lula?
A gente que vive aqui no dia a dia fica olhando para essas coisas com uma certa perplexidade. Um O poder dia, por exemplo, um jornalista me ligou dizendo econômico que Lula seria candidato em 2014 e que Dilma poque expressa deria se juntar a Eduardo Campos contra Lula. Eu o pensamento respondi: manda internar quem disse isso, com todas elites do o respeito aos que vivem internados. Não vamos montou brincar. Estou cansado de ver gente que tem plantajornais, TVs e do informações na tentativa de separar Dilma de Luoutras mídias. la. Eu vivo aqui há dez anos e conheço a presidenta Dilma desde quando ela era ministra. Nunca vi uma Controlam relação política entre duas pessoas tão madura, equiquem fala librada, respeitosa e carinhosa como a dos dois. Não e não fala e há hipótese nenhuma de haver uma separação ou um contratam quem mostre racha entre os dois. Essas plantações são um pouco parte desse jornalismo que vive excessivamente do suas ideias. colunismo, e não do noticiário sério e do tratamenFaltam to democrático da informação.
no Brasil veículos que expressem a imensa voz das maiorias
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A democratização da comunicação no Brasil é bandeira de boa parte da sociedade e um clamor das bases do PT. Essa é uma bandeira também do governo?
O governo não tem como não apoiar qualquer iniciativa de democratização dos meios de comunicação, sobretudo no que diz respeito ao acesso aos meios, dar voz àqueles que não têm. Sobre o projeto que foi elaborado ainda no tempo do ministro Franklin Martins, a presidenta está analisando. Eu não quero me arvorar em porta-voz dela nessa questão. Muitas vezes falta iniciativa, como essa de vocês, de montar uma revista, de montar uma rede de rádio e de televisão. Os setores populares perderam muito tempo na história. Católicos e evangélicos montaram redes que são legítimas e disputam a opinião pública, assim como o poder econômico que expressa o pensamento das elites montou os grandes jornais, TVs e outras mídias. São donos, e controlam, naturalmente, quem fala e quem não fala. E contratam quem eles desejam que
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expresse seus pensamentos. Faltam no Brasil veículos que possam expressar a imensa voz das maiorias. Eu fui a um evento com a presidenta Dilma maravilhoso. Nos jornais de hoje nada expressa aquilo que foi ontem, a valorização dos assentados, devolver autonomia a pessoas que foram subjugadas a vida inteira, moraram debaixo de lona e hoje são produtores e estão construindo a riqueza de uma região. Nada disso foi disponibilizado como informação ao cidadão. A presidenta Dilma abriu caminho para mudar a relação do sistema bancário com o setor produtivo e os consumidores? Ainda pode avançar nesse enfrentamento?
O cuidado de um governo é não hostilizar nem eleger inimigos. Seria muito fácil você eleger inimigos e dizer: bom, esse aqui vai pagar o pato. O que a presidenta Dilma fez foi uma medida natural e necessária para romper a barreira para o crescimento que nós tínhamos no Brasil. Inclusive diante da crise internacional, os juros eram obstáculos absurdos para podermos continuar crescendo. Com cuidado, pedagogicamente e com muita comunicação, fez a mudança. Trabalhou forte os bancos estatais para a questão do spread. E não fez nenhuma determinação, nenhum decreto, mas um processo de indução para que o sistema financeiro se adapte ao padrão internacional. A mesma coisa o setor elétrico. Se você já tinha pagado todo o investimento das usinas, por que agora iria renovar o contrato e deixar da mesma forma, não mexer nas tarifas? Mas esses setores têm os porta-vozes deles, os famosos especialistas, que vêm anunciar que vai ter apagão, que o Brasil não vai crescer mais. Falta a gente ter voz para dizer: esses caras estão falando isso porque representam tais e tais interesses. Como o senhor vê hoje a correlação de forças dentro da Igreja Católica? Houve uma guinada à direita? A Teologia da Libertação estaria em decadência?
É inegável que houve uma mudança no papel da Igreja. Sob a ditadura, os movimentos sociais não tinham como se pronunciar, não havia partidos livres nem liberdade sindical e de expressão. A igreja foi um espaço sagrado e necessário para que a gente pudesse reconquistar a democracia. Tivemos dom Hélder Câmara, dom Pedro Casaldáliga, dom Tomás Balduíno, uma série de saudosos bispos que desempenharam papel fundamental. Na Pastoral Operária, fazíamos muito o que o movimento sindical não podia fazer. Foi natural que, com o advento do movimento sindical mais livre e mais combativo depois de conseguirmos derrotar a ditadura, a Igreja deixasse de ter esse protagonismo.
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É inegável também que houve uma política orientada por Roma – pelos papas João Paulo II e Bento XVI – que determinou um recuo da igreja, o que eu acho lamentável. Acho triste. Com esse recuo, a igreja perdeu a oportunidade de vivenciar na América Latina em geral e no Brasil em particular um processo de construção de uma sociedade muito mais solidária e com valores muito mais orientados pelo cristianismo. Se é verdade que não se tem mais de combater a ditadura, é tão verdade também que temos de combater o individualismo, o consumismo, a cultura da violência. Ao perder legitimidade social, a igreja perde a capacidade de influenciar nesses temas. E poderia estar influenciando muito mais. O senhor é muito próximo do ex-presidente Lula. Como vê a volta dele ao jogo político?
Ele tem ainda uma missão grande, no sentido de animar e mobilizar a sociedade. Quem sabe um dia ele volte à Presidência da República, talvez em 2018, a gente ainda não sabe. Ele é hoje referência na América Latina, na África e no mundo. Então, tem muita coisa ainda a contribuir, vai ser muito importante para a gente, para a presidenta Dilma e para o nosso projeto. Como o senhor resumiria esses dez anos de PT no poder?
Eu tentaria sintetizar dizendo que o PT – e aí não vai nenhuma arrogância – mudou o Brasil. A classe trabalhadora no Brasil serviu sempre para votar, para ser operário, soldado, e ponto. Os trabalhadores podem governar. Tivemos a sorte de esse cara ser um cara genial – um dom de Deus, eu insisto –, e nós pudemos então começar a mudar as coisas no Estado que nenhum dos grandes doutores tinha se dado conta. Por que esses caras não tinham enxergado uma coisa tão óbvia como os recursos que estavam parados no BNDES, na Caixa Econômica, no Banco do Brasil e no FAT e só serviam para pagar os juros da dívida? Eu me recuso a imaginar que era apenas má-fé, compromisso com a banca. Eu não sei o que faltou para esses caras tão ilustrados verem que bastaria fazer movimentar essa máquina do governo. Foi preciso ter inteligência e muito amor no coração para dizer: não, eu vim de lá e vou mudar aquilo lá. Essa é a essência do nosso governo. É claro que erramos muito e poderia ter sido melhor. Mas na somatória... Basta ver a presidenta Dilma andando na rua. Ou, então, experimenta colocar Lula ao lado de Fernando Henrique na Avenida Paulista (risos).
É simples assim. O povo entende e conhece, mais do que os sabichões imaginam, quem fez o bem e quem poderia ter feito muito mais. Por isso nosso zelo para que esse nosso projeto possa continuar. Quando, mais tarde, olharmos para os nossos netos e contarmos a eles o que aconteceu nesse tempo, vamos poder dizer que a nossa geração teve o orgulho de combater a ditadura, de construir a democracia e de abolir – na essência, vamos ter clareza – a miséria no Brasil. MARCELLO CASAL JR./ABR
Mas parece ter havido uma mudança em relação a valores sociais que acaba influenciando os rumos da política.
Como é sua rotina, a convivência com suas filhas pequenas? Como foram estes últimos dez anos para o homem Gilberto Carvalho?
O que aconteceu foi que envelheci pra caramba (risos). A vida aqui é muito intensa, e eu já estou vendo o horizonte da minha missão agora no final deste governo da presidenta Dilma. Se eu ficar até o final, vão se completar 12 anos de Palácio do Planalto. De um lado, agradeço muito a Deus o privilégio e a honra de ter podido trabalhar todos esses anos com Lula e com Dilma. Também sou grato ao partido, porque, se não fosse o PT, a bondade e a compreensão dos amigos, eu não estaria aqui. Eu me considero um homem muito feliz. Tenho cinco filhos: três do primeiro casamento e duas meninas adotivas, de 7 e 9 anos, que vieram como presente de Deus, há três anos. Elas são a alegria de casa. Dão uma trabalheira danada. Às vezes eu saio daqui morto, à noite, e tenho de contar historinhas, porque é sagrado a gente contar uma história antes de elas dormirem. Procuro, mesmo na loucura disso aqui, ter atenção com a família. Não dá para separar a militância política da sua vida. Da sua autenticidade, da sua camaradagem, de você não se deixar levar pela vaidade. Quando cheguei aqui, em 2003, e entrei na minha sala, fiz dois pedidos a Deus. O primeiro, para que a gente não se desviasse do ideal político e ético que nos trouxe até aqui, que é cuidar dos pobres, cuidar dos excluídos, que é o estabelecimento da justiça e da dignidade para o nosso povo. O segundo, para que a gente não se deixasse levar pelos ritos do poder, pela vaidade. Tudo isso aqui passa, o poder passa. O que vai valer e durar é a rede de fraternidade e comunhão que construirmos ao longo desses anos e o serviço que prestarmos ao povo. Então, é isso que a gente procura viver aqui. Tenho uma equipe maravilhosa. Tenho o apoio da presidenta Dilma. Eu diria então que sou um homem cansado, mas muito feliz, com muita vontade de continuar lutando até o último dia da minha vida. Para isso eu não preciso estar aqui.
É claro que erramos muito e poderia ter sido melhor. Mas na somatória... Basta ver a presidenta Dilma andando na rua. Ou, então, experimenta colocar Lula ao lado de Fernando Henrique na Avenida Paulista (risos)
Colaborou Uelson Kalinovski, da TVT REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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EDUCAÇÃO
Pela porta da frente Apoiada por 62% dos brasileiros, a política de cotas ampliou sete vezes a presença dos alunos pobres nas universidades e, portanto, a sua oportunidade de fazer parte de um país mais escolarizado Por Cida de Oliveira 22
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oder voltar à escola e ter mais chances de conseguir um trabalho longe da rotina extenuante do canavial. Esse era o maior desejo de Agenor Custódio, que entre os 12 e 18 anos cortava cana em Mato Grosso do Sul. O que jamais imaginou esse brasileiro nascido numa comunidade indígena da etnia Terena, em Aquidauana, era que, aos 39 anos, se formaria em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tampouco que viria a ter possibilidades de passar pela seleção do programa de mestrado na mesma instituição, qualificando-se a disputar, em condições de igualdade, uma boa vaga na área de audiovisual ou na carreira acadêmica. Loca-
lizada no interior paulista, a 230 quilômetros da capital, a UFSCar é uma das dez melhores do país, segundo indicadores de qualidade do Ministério da Educação. Agenor sempre teve dificuldades para estudar. Na adolescência largou a escola para trabalhar. Aos 21 anos se matriculou no ensino médio, que só concluiu aos 28. Mesmo assim foi aprovado no vestibular de Turismo de uma universidade pública de seu estado. Estava no terceiro ano quando teve de parar por falta de dinheiro para alimentação, moradia e transporte. Mas o sonho não morreu. Em 2008 ingressou na UFSCar graças à cota para indígenas; neste mês de março vai colar grau. “De outra forma seria impossível entrar numa universidade pública,
FOTOS PAULO PEPE/RBA
EDUCAÇÃO
EX-CORTADOR DE CANA Agenor, da etnia Terena, trabalhou no canavial entre os 12 e 18 anos. Formou-se em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos: “Sem as cotas seria impossível entrar numa universidade pública, gratuita, prestigiada, estudar, pesquisar e ainda ter a chance no mestrado”
gratuita, prestigiada, poder estudar como estudei, pesquisar e ainda ter a chance no mestrado”, avalia. Sua vizinha de república, Vanessa David de Campos, 23 anos, aluna de Engenharia de Produção, também tem grandes expectativas. Ingressou na UFSCar em 2008, beneficiada pelas cotas para negros. Além de estudar, desenvolve atividades de pesquisa num grupo que dá consultoria em ergonomia para grandes empresas. Vanessa atua ainda na divulgação científica por meio do teatro, o que lhe permitiu conhecer praticamente todo o país, e num coletivo de estudos africanos. Negra e primeira da família a entrar na universidade, a futura engenheira nasceu e cresceu na periferia pobre de Taubaté (SP). Sempre estudou em escola pública e até o ensino médio acreditava que toda faculdade era paga. Por isso foi estudar modelação industrial no Senai para entrar mais cedo no mercado de trabalho. Fazia curso técnico junto com o colegial, era aprendiz numa indústria de autopeças e tinha aulas nos fins de semana num cursinho popular. Aos 18 anos, com dinheiro emprestado, viajou sozinha pela primeira vez para se matricular em São Carlos. Sem computador portátil e dinheiro que mal dava para xerox, enfrentou dificuldades. “Tive muitas desilusões. Embora não seja declarado, o racismo existe aqui também”, afirma.
Uma nova cultura
Ex-metalúrgico, o colega Edmar Neves da Silva, 21 anos, do terceiro semestre de Ciências Sociais, ingressou na faculdade por meio da cota para oriundos da escola pública. Cursou a primeira metade do ensino fundamental na rede municipal de Mogi-Guaçu (SP), depois seguiu na rede estadual até o ensino médio. “A formação foi muito ruim, em especial no colegial, quando praticamente não tive professor de História”, lembra o estudante, que sempre quis chegar ao ensino superior público, pela gratuidade e pela qualidade. O que o ajudou a suprir as falhas foi uma bolsa de um curso pré-vestibular particular que ganhou em 2010. Durante o dia trabalhava no controle de qualidade de uma fábrica e estudava à noite e também nos fins de semana. Dirigente do diretório acadêmico da UFSCar, Edmar é o segundo entre os familiares a entrar numa faculdade. A irmã mais velha cursou Administração com bolsa integral do Programa Universidade para Todos (ProUni) e agora faz pós-graduação em Marketing. Os pais não conseguiram terminar o ensino fundamental. Uma minoria da população brasileira, que pôde pagar por bons colégios particulares para que seus filhos chegassem a cursos prestigiados das melhores universidades públicas, ainda se incomoda ao vê-los passar a dividir as salas de aula
Uma minoria da população, que pôde pagar por bons colégios para que seus filhos chegassem a cursos prestigiados das melhores universidades públicas, ainda se incomoda ao vê-los passar a dividir as salas de aula com negros, indígenas e estudantes pobres vindos da escola pública
PRIMEIRA DA FAMÍLIA NA UNIVERSIDADE Vanessa nasceu e cresceu na periferia pobre de Taubaté. Sempre estudou em escola pública e até o ensino médio acreditava que toda faculdade era paga. Aos 18 anos, com dinheiro emprestado, viajou sozinha pela primeira vez para se matricular na Federal de São Carlos. Sem dinheiro até para xerox, enfrentou dificuldades num curso difícil, como é a Engenharia REVISTA DO BRASIL
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EDUCAÇÃO
Adversidades
Por meio da imprensa conservadora, os porta-vozes da classe social que o ex-governador paulista Cláudio Lembo batizou de “elite branca” empreenderam uma verdadeira cruzada. Espalhou-se uma visão enviesada, segundo a qual as cotas ferem o princípio da igualdade e do mérito acadêmico, são ineficazes – já que o problema estaria na péssima qualidade 24
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ESCOLA PÚBLICA Edmar cursa o terceiro semestre de Ciências Sociais na UFSCar. Fez todo o ensino fundamental e médio em escola pública: “A formação foi muito ruim, em especial no colegial, quando praticamente não tive professor de História”. O que o ajudou a suprir as falhas foi uma bolsa de um curso prévestibular particular que ganhou em 2010. Durante o dia trabalhava no controle de qualidade de uma fábrica, estudava à noite e também nos fins de semana
do ensino básico público, e não na má distribuição de renda –, rebaixam o nível acadêmico, desfavorecem os brancos mais pobres em detrimento dos negros e prejudicam essa população ao estigmatizá-la como incompetente. Para completar, esses setores da imprensa tentavam fazer crer que a sociedade brasileira é contrária à política. Todos esses mitos, porém, estão sendo derrubados. Em 2006 e 2008, pesquisas do instituto Datafolha indicavam, sem alarde, que mais de 80% da população aprovava as cotas. Em fevereiro passado, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma pesquisa do Ibope que mostra que 62% dos entrevistados (dois em cada três brasileiros) apoiam cotas em universidades públicas para alunos negros, pobres e estudantes da escola pública. A pesquisa foi realizada em todas as regiões brasileiras e constatou que é maior (77%) o apoio às cotas para os de baixa renda e/ ou conforme a origem escolar dos pretendentes, seguido por 64% de aprovação às baseadas em critério de raça. A oposição é maior entre os entrevistados brancos, das classes A e B, moradores das capitais, em especial nas regiões Norte e Centro-Oeste. E menor entre
PAULO PEPE/RBA
com negros, indígenas e estudantes pobres vindos da escola pública. São estudantes que, antes de as cotas começarem a ser adotadas, em 2004, dificilmente estariam ali. Mas é possível que esse incômodo seja diluído à medida que parte dessa elite passe a se conscientizar de que as boas escolas públicas são mantidas pelos impostos pagos por todos. Há também casos como o da fisioterapeuta Silvia Martinez, que sempre pagou boa escola particular para a filha que, neste ano, ficou na lista de espera da Universidade de Brasília (UnB). “Se não houvesse vagas reservadas para as cotas, ela teria entrado na primeira. É uma mudança de mentalidade, talvez leve algumas gerações para ser culturalmente assimilada. Mas, por uma questão de justiça social, valerá a pena”, opina. É uma visão que faz sentido. Um estudo dos pesquisadores Jacques Velloso e Claudete Batista Cardoso, da UnB – a primeira a adotar cotas para negros e pardos, em 2004 –, simulou as chances de ingresso de candidatos negros em processos seletivos no período entre 2004 e 2008 caso as cotas não existissem. Na maioria dos casos, as cotas mais que dobraram as probabilidades de ingresso desses candidatos. Para completar, no final de agosto de 2012 a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.711, que disciplina o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. O prazo é de quatro anos para que essas instituições passem a reservar metade das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Desse percentual, metade é para estudantes de famílias com renda de até 1,5 salário mínimo per capita.
os estudaram da 5ª à 8ª série, emergentes da classe C, nordestinos e moradores do interior. Segundo o jornal, os que buscam ascensão social e econômica são mais simpáticos a políticas que aumentem suas chances de chegar à faculdade. A pesquisa mostra que, em todas as camadas sociais, o apoio é maior que a contrariedade. O recado da pesquisa é claro: está aprovado o mecanismo que permitiu aumentar a presença de populações excluídas nas universidades. “De 2004 a 2011, a proporção de pessoas pertencentes à faixa de menor renda aumentou sua presença no ensino superior, passando de 0,6% para 4,2%. No mesmo período, a inserção dos pretos saltou de 5% para 8,8% e dos pardos, de 5,6% para 11%”, diz o professor e pesquisador João Feres Júnior, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
População esclarecida
Na avaliação de frei David Raimundo dos Santos, diretor da ONG Educação e Cidadania de Afrodescendentes (Educafro), a aprovação das cotas é fruto do entendimento dos argumentos sólidos dos
LUCIA CORREIA LIMA/RBA
EDUCAÇÃO
NÃO BASTA Icaro foi o primeiro aluno a ingressar em Medicina da UFBA por meio de cotas e se formou em 2011. Hoje é médico do Programa Saúde da Família da Prefeitura de Salvador: “As cotas facilitaram minha entrada na faculdade, mas isso não é suficiente, é preciso melhorar a escola pública. Atendo adultos e crianças de 12 anos que não sabem ler nem escrever”
defensores da medida. “Com humildade, sabedoria e vigor, essas pessoas levaram esclarecimento à opinião pública, o que não aconteceu com os críticos que apareceram em 90% de todas as reportagens contrárias publicadas nesses 10 anos”, diz. “Quando a imprensa aprofundar o debate de maneira responsável, a tendência é a aprovação aumentar ainda mais.” Entre os que não apoiavam as cotas e mudaram de ideia está o juiz federal William Douglas, do Rio de Janeiro. A princípio contrário à reserva para negros, ele passou a defender o aperfeiçoamento
das ações afirmativas. Branco, filho de pai lavrador e mãe operária, enfrentou dificuldades para chegar aonde chegou, mas não acredita mais na exigência do que chama de heroísmo. “Minha filha estuda em colégio caro, onde nada falta, com professores bem pagos e ótima estrutura. O mesmo não acontece com a maioria das crianças pobres, que estudam em escolas sem professores, carteiras ou banheiros. Não é justo nem honesto que todos sejam exigidos da mesma forma na hora de ingressar na universidade”, diz. Como lembra frei David, há cotas ape-
nas para o ingresso. A permanência e a conclusão são por conta do aluno. E, com o mesmo nível de exigência durante o curso, os cotistas têm demonstrado capacidade de superar as deficiências do ensino básico e render igual ou melhor que não cotistas. Em 2008, foi constatado na que o desempenho acadêmico dos cotistas negros era de 6,41 e daqueles das escolas públicas 6,56, acima do 6,37 dos não cotistas. Além disso, a taxa de conclusão dos cursos era maior. Dados semelhantes foram encontrados na Universidade Estadual de Campinas. Embora as estaduais paulistas não adotem sistema de cotas, a Unicamp tem um programa que concede pontos adicionais na nota do vestibular dos egressos da rede pública. A comissão permanente para o vestibular constatou que a nota média desses alunos beneficiados foi mais alta que a dos demais. Outra resposta ao discurso de que a política de cotas seria demagógica e os beneficiados abandonariam o curso vem de um estudo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A maioria dos cotistas já tinha cumprido a maior parte dos créditos das disciplinas e o desempenho estava entre os mais altos em cursos como Matemática, Física, Engenharia Elétrica, Ciências Biológicas, Odontologia, Farmácia, Filosofia, Comunicação, Nutrição, Psicologia e Direito. Os cotistas também estiveram menos sujeitos a reprovação por faltas. Primeiro aluno a ingressar na UFBA por meio de cotas, Icaro Vidal formou-se em Medicina em 2011. Negro e oriundo da escola pública, viu graduarem-se inúmeros “grupinhos” de estudantes brancos, formados nas melhores escolas particulares de Salvador. Nunca fez parte de nenhum deles, tampouco sentiu na pele preconceito por ser cotista. Mas sabe que existia, de forma velada. Médico do Programa de Saúde da Família da Prefeitura de Salvador e servidor estadual num instituto de criminalística, Icaro agora torce pela educação brasileira. “As cotas facilitam a entrada na faculdade, mas isso não é tudo. É preciso melhorar a escola pública. Atendo adultos e crianças de 12 anos que não sabem ler nem escrever.” REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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TRABALHO
Sonhos violados
No estado norte-americano do Mississippi, polo da luta por direitos civis nos anos 1960, trabalhadores e comunidade cobram da montadora Nissan democracia e respeito ao direito humano de se organizar Por Paulo Donizetti de Souza, enviado aos Estados Unidos
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a noite de 12 de junho de 1963, o presidente norte-americano fazia um discurso na TV. Lembrava que a lei da abolição ainda não bastava para fazer os homens “enxergarem” o que é direito. “Enfrentamos uma questão moral: se todos os americanos podem ter direitos e oportunidades iguais”, dizia John Kennedy, admitindo que cidadãos, por ter a pele escura, não podiam comer num restaurante, pôr os filhos em escola pública, votar nem ter uma vida livre. “Cem 26
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anos se passaram desde que Lincoln libertou os escravos, mas seus herdeiros não são livres da opressão social e econômica. Este país nunca será livre até seus cidadãos serem livres.” Pouco antes da fala de Kennedy, o ex-corretor de seguros Medgar Wiley Evers estacionava na porta de casa num bairro de Jackson, capital do estado do Mississippi. No quarto, sua mulher Myrlie via TV com os três filhos pequenos, Darrell, James Van e Reene. Todos ouviram o estampido. Medgar saía do carro quando a bala acertou-lhe as costas.
Era um batalhador. Quando adolescente, andava quilômetros para cursar o ensino médio porque não podia ir no ônibus dos brancos. Em 1943, aos 18 anos, lutou na Segunda Guerra. Voltou, formou-se em Administração e engajou-se na luta pelos direitos da população negra – ao voto, à educação, a oportunidades de sonhar o sonho americano. Quando morreu, era uma liderança destacada da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (Naacp, na sigla em inglês), uma das maiores entidades civis do mundo, com mais de 500 mil associados e apoiadores. Medgar liderava uma campanha de boicote a postos de gasolina onde os negros podiam abastecer automóveis, mas ir ao banheiro, não. O empresário do ramo de fertilizantes Byron De La Beckwith era membro do Conselho de Homens Brancos da cidade e integrante da organização racista Ku Klux Klan. Sabia que a suspeita sobre ele lhe conferiria prestígio na elite branca, e ao mesmo
FOTOS ROGELIO V. SOLIS/AP PHOTO/GLOW IMAGES
TRABALHO
Território fértil
O Mississippi é famoso por fornecer talentos ao mundo. Entre eles, deuses do blues e do jazz, como Robert Johnson, Muddy Waters, John Lee Hoocker, Lester Young, Bo Diddley, B.B. King. Elvis Presley nasceu e viveu no estado até os 12 anos, antes de se tornar o “rapaz de Memphis, Tennessee” e rei do rock. O veterano ator Morgan Freeman, a popularíssima entrevistadora Ophra Winfrey e a polêmica Britney Spears também são de lá. Mas não foi a fertilidade cultural
REPRODUÇÃO
tempo contava com a impunidade. Atirou, largou o rifle de mira telescópica no chão e sumiu. Nos dois primeiros julgamentos, em 1964, saiu livre, e assim ficou por 30 anos, até que Myrlie conseguiu reabrir o processo. Em 1994, Beckwith foi condenado a prisão perpétua. O crime é uma das marcas das lutas sociais década de 1960. Nos Estados Unidos, o Mississippi foi o principal polo de movimentos por direitos civis. Em Jackson, lugares-símbolo dessa luta integram um roteiro turístico social, como o escritório local da Naacp, instalado no templo maçô-
nico M.W. Stringer Lodge, um dos primeiros focos de reunião de afro-americanos no século 19, e o Council of Federated Organizations (Cofo), instituto que nos anos 1960 foi uma espécie de guarda-chuva a abrigar vários movimentos sociais. A casa de Medgar permanece como em junho de 1963 e foi transformada em museu. Sua curadora é Minnie White-Watson, amiga da família que mora até hoje na mesma rua. “Os vizinhos não os aceitavam, não por não gostar deles, mas porque tinham medo do ativismo. Até coquetel molotov já foi jogado aqui”, conta.
HISTÓRIA DE LUTAS Medgar foi morto em 1963. Minnie cuida do seu acervo. Para Daphne (dir.), do instituto Cofo, lutas dos trabalhadores e por direitos civis se integram
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LIBERAL Gerente da Nissan em Canton, Dan Bednarzyk discursa em cerimônia dos 10 anos da unidade, para palmas do governador Phil Bryant (à direita). Na pátria-mãe do liberalismo, Bryant diz que a presença de um sindicato seria negativa para fábricas da região
e artística do território nem a grandeza de caráter como o de Evers o que atraiu empresas transnacionais à região nas últimas décadas do século 20. O estado que já foi o maior exportador agrícola do século 19 tem hoje a menor renda per capita dos Estados Unidos, cerca de US$ 25 mil por ano. O ambiente de miséria formado após o fim da escravidão se consolidou com a falta de empregos de qualidade. Progrediram a concentração de renda e a desigualdade social. E a pobreza é território fértil para as más condições de trabalho, com pouca ou nenhuma margem de negociação entre o empregador e os empregados. Para instalar uma fábrica na cidade de Canton em 2003, por exemplo, e ali criar 4 mil postos de trabalho, a montadora japonesa Nissan, controlada pela francesa Renault, obteve do estado subsídios fiscais de US$ 425 milhões e 30 anos de desoneração tributária. Hoje, prestes a se completarem 50 anos da morte de Medgar Evers, organizações estudantis, igrejas, associações comunitárias e parlamentares comprometidos com causas sociais se ocupam de novos desafios, sem perder de vista aqueles provocados pela opressão racial. A luta por direitos humanos como serviços públicos de educação, saúde, cultura ocupa como nunca a agenda dos movimentos do Mississippi. Inclusive a liberdade dos trabalhadores de se organizar por trabalho decente Nos Estados Unidos, não há legislação trabalhista consistente. Direitos como férias, licença-maternidade, auxílioREVISTA DO BRASIL
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PAULO DONIZETTI DE SOUZA
TRABALHO
FAÇAMOS MELHOR JUNTOS Universidade Tougaloo, em Jackson, ex-fazenda escravocrata, hoje é referência para movimentos sociais e integra estudantes à causa dos trabalhadores da Nissan
-acidente, seguro-saúde, aposentadoria, participação nos resultados, indenização por demissão imotivada, 13º salário – tão elementares para os trabalhadores formais no Brasil – só são possíveis aos norte-americanos em duas situações: por liberalidade da empresa ou por negociação firmada por sindicatos. “Mas se os direitos não são protegidos
por contrato, por meio da negociação coletiva, não há liberalidade que os garanta. Nada define se determinada empresa vai manter, reduzir ou excluir certos direitos quando bem entender”, afirma o diretor do United Auto Workers (UAW) Richard Bensinger, que coordena na região campanha pelo direito à sindicalização na Nissan.
O UAW é o sindicato que representa metalúrgicos dos Estados Unidos, Canadá e Porto Rico. No país de Barack Obama, para que uma entidade seja representante dos funcionários de uma fábrica, a filiação precisa ser referendada por 50% mais um do quadro de pessoal. E, para que essa votação aconteça, tem de ser reivindicada formalmente por pelo menos 30% dos empregados. Não é fácil. Apenas 7% dos trabalhadores do setor privado norte-americano estão protegidos por acordos coletivos firmados entre entidades sindicais e empresas no país. É o mais
Direitos globalizados “Numa economia globalizada, os direitos também têm de ser globalizados.” Assim o presidente da CUT, Vagner Freitas, justifica o apoio da central ao UAW. Para os sindicalistas, a política da Nissan tem de ser vista como uma ameaça de retrocesso ao padrão século 19 na relação capital-trabalho. Por isso a briga caminha para uma dimensão internacional. “Se não interrompermos essas estratégias de ataque aos sindicatos nos Estados Unidos, as multinacionais e seus aliados políticos passarão a usá-las em outras economias”, alerta o presidente da entidade, Bob King. O professor Lance Compa, da Universidade de Cornell, estado de Nova York, lembra 28
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que em outras regiões, onde sindicatos e empresas se relacionam democraticamente, se constroem acordos e as empresas vão bem. “A companhia fere princípios básicos de convivência estabelecidos por organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização para a Coope ração e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).” Freitas lembra que os planos da montadora no Brasil estão associados ao bom momento econômico, com nível de emprego e de renda em alta há dez anos. “Se o momento é bom para a estratégia da empresa, será bom também expandir essa campanha até lá”, diz. A Força Sindical participará da próxima
Vagner Freitas e Bob King: política da Nissan é retrocesso
reunião internacional programada pelo UAW para este mês de março, com centrais do mundo todo. A ideia é disseminar as denúncias das práticas da Renault-Nissan nos mercados consumidores. Em Curitiba, onde fica a fábrica da Renault, e em Resende (RJ), onde a Nissan se instalará, os sindicatos locais são ligados à Força. A unidade de Resende terá
investimentos de R$ 2,5 bilhões para entrar em atividade em 2014. “Boa parte desses investimentos sairá de linhas de crédito do BNDES. Será importante cobrarmos que os empréstimos tenham como contrapartida a garantia de trabalho decente, no Brasil e no mundo”, defende o presidente da CUT. No início de fevereiro, em Washington, o UAW ganhou um reforço mundialmente respeitado para sua campanha. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, convidado a discursar na abertura de uma conferência da entidade, deixou seu recado. “Como se pode falar em democracia e em liberdade se não há liberdade de o trabalhador se organizar?”
baixo índice de sindicalização da história é resultado dos ataques aos movimentos desferidos nos últimos 30 anos. No caso da Nissan, a dificuldade é ainda maior. A montadora, segundo os dirigentes do UAW, mantém um clima ameaçador em suas dependências. E produz uma anticampanha no interior da fábrica em Canton, pela qual dissemina recados intimidadores, do primeiro contato com o RH, no momento da admissão, a reuniões periódicas nos locais de trabalho. A prática causa reações iradas no Mississippi, onde a montadora desfruta de agrados tributários. A luta pelo direito à sindicalização une parte dos políticos locais e movimentos sociais. “Queremos apenas o direito a uma eleição limpa e que cada parte expresse seu ponto de vista democraticamente”, diz o deputado estadual Jim Evans, do Partido Democrata.
Medgar estaria aqui
Movimentos de juventude e estudantis põem pilha na campanha. No final de janeiro, o UAW promoveu eventos com a comunidade de Jackson. Das reuniões nas sedes dos poderes legislativos locais, em universidades, com estudantes e acadêmicos participaram os sindicalistas brasileiros Vagner Freitas, presidente da CUT, e João Cayres, secretário de Relações Internacionais da Confederação Na-
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TRABALHO
Cayres: “É uma surpresa que nos EUA, supostamente a maior democracia do mundo, haja esse tipo de restrição”
Jim Evans: “Queremos apenas o direito a uma eleição limpa e que cada parte expresse seu ponto de vista democraticamente”
cional dos Metalúrgicos (CNM-CUT). O senso de integração está expresso no mote da campanha: Do better together, façamos melhor juntos. “O bem-estar dos trabalhadores está associado ao bem-estar da comunidade”, afirma a professora Daphne Chamberlain, diretora do Cofo, hoje mantido pela Universidade do Mississippi. “Os trabalhadores merecem fazer valer seu direito de poder sentar à mesa em seu local de trabalho com o empregador para negociar”, diz um documento distribuído por jovens da Aliança Estudantil pela Justiça (SJA). Vagner Freitas disse aos estudantes que considera a participação exemplo de maturidade. “A luta por direitos prossegue quando o estudante de hoje se tornar o trabalhador amanhã. Então, construir um movimento sindical forte e respeitado também é missão do movimento estudantil”, afirmou o presidente da CUT.
A vice-reitora da Universidade Tougaloo, Betty Parker-Smith, associou o apoio ao movimento à história da instituição, instalada há 144 anos, numa ex-sede de fazenda escravagista. “Os prédios são os mesmos, e há sangue de afro-americanos neste solo. Os antigos proprietários devem se revirar no túmulo. A escola tornou-se santuário dos movimentos sociais. Trazer essa luta para cá faz parte da preparação dos alunos para o mundo globalizado”, diz Betty. Numa manifestação que lotou o auditório da universidade com mais de 500 pessoas, Cayres, da CMN-CUT, disse que a postura da empresa na região surpreende: “Existe uma unidade da Renault no Brasil, onde já existe sindicato, e outra da Nissan prestes a ser instalada, onde também já há sindicato. É uma surpresa que nos Estados Unidos, supostamente a maior democracia do mundo, haja esse tipo de restrição”. O ator Danny Glover, conhecido por sua participação em causas sociais, era um dos oradores mais esperados no ato da Tougaloo. “Estou aqui para ser parte do que vocês estão fazendo. O movimento prospera com apoio externo. Vocês não estão sós. Eu penso que Medgar Evers, que tinha apenas 37 anos quando morreu, estaria exatamente aqui e agora”, disse.
Não fosse pelo asfalto no lugar da poeira e pelos automóveis no lugar dos cavalos, caminhar pelo centro de Canton remeteria a um cenário de filme de caubói. O coronelismo político também lembra o tempo das diligências. Recentemente, o governador do Mississippi, o republicano Phil Bryant, teria dito num evento em Oxford que a existência de sindicato é negativa para as indústrias automobilísticas. O operário Lee Ruffin, técnico em manutenção na fábrica, sugere ao governador “descer aqui embaixo para trabalhar” e verificar a realidade. Lee chegou a se acomodar com o
trabalho, mas nos últimos anos tornou-se ativo defensor da sindicalização. “Houve perda de benefícios, aumento do seguro-saúde, interrupção de contribuições ao fundo de pensões, aceleração do ritmo de trabalho e aumentos dos acidentes.” Ele e a mulher, Patricia, defendem um processo democrático para que os empregados decidam por si próprios pela entrada ou não do UAW. “Sem acordo coletivo negociado nossos direitos nunca estão garantidos. E sem sindicato não há acordo”, diz Patricia, analista de processos e contratada desde 2003. “A empresa insiste que a maioria não
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Aos que vierem depois
Lee e Patricia: agir, em vez de ficar esperando acontecer
quer o sindicato, mas não se expõe às urnas.” Eles temem sofrer retaliações. “Estou para completar dez anos de casa e prestes a
ter direito a duas semanas de férias – quem tem entre cinco e dez anos tem direito a uma. Não duvido que mexam com a contagem de tempo para reduzir minha férias”, preocupa-se Lee. Patricia lembra que acabaram de comprar a casa e “temos a vida toda pela frente para pagar”. Mas ambos preferem se mexer a esperar que as coisas aconteçam. “Lutamos por dois grandes sonhos: um é poder se aposentar e ter mais tempo para cuidar do nosso jardim. Mas antes queremos alcançar o direito de sindicalizar, para os que vierem depois terem maior segurança para ir atrás de seus sonhos”, diz Lee.
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AMÉRICA LATINA
Segue a revolução cidadã Rafael Correa é reeleito com folga no Equador e desarticula opositores. Com maioria de dois terços, terá força no Congresso para consolidar mudanças – entre as quais a Lei de Comunicação Por Tadeu Breda, de Quito 30
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omo toda grande vitória, a obtida pelo presidente equatoriano Rafael Correa na eleição de 17 de fevereiro trouxe consigo uma grande derrota. A oposição saiu com o rabo entre as pernas. Os que mais perderam foram os grupos que se punham à esquerda do presidente, perplexos ante a magra votação – frente ao esmagador apoio popular recebido pelo governo. Candidato à reeleição, com 57,7% dos votos Correa acabou a disputa com sobras logo no primeiro turno. Mais que abreviar a corrida presidencial, a vantagem ampliada foi a novidade. Quatro anos atrás, reeleito pela primeira vez depois de um mandato de
dois anos e meio, o presidente já havia conseguido dispensar um segundo turno. O país acabava de aprovar uma nova Constituição e, com o apoio de todos os movimentos sociais e partidos de esquerda, ele obteve 51% dos votos. “Isso demonstra que a tese tão comum no pensamento político – de que o poder desgasta – só é válida na democracia quando os cargos públicos são exercidos em benefício das minorias endinheiradas ou quando os processos de transformação social são paralisados”, avalia o sociólogo argentino Atilio Boron, professor da Universidade de Buenos Aires, membro da comissão internacional de observação eleitoral no Equador.
AMÉRICA LATINA
GARY GRANJA/REUTERS
ESCOLA E HOSPITAL Com um governo que prioriza a educação e a saúde, Rafael Correa venceu duas eleições já no primeiro turno
“Quando se governa levando em consideração o bem-estar das vítimas do sistema, acontece o que aconteceu: em vez de desgaste, consolidação e crescimento do poder presidencial.” A liderança de Rafael Correa ante a população também influenciou a formação da Assembleia Nacional. O partido do presidente, Alianza País, ocupará ao menos 90 das 137 cadeiras disponíveis para a próxima legislatura. Significa que a bancada governista terá maioria absoluta e qualificada, inclusive, se pretender realizar mudanças pontuais na Constituição. A segunda força política do país está representada pelo recém-fundado Creando Oportunidades (Creo), liderado por Guillermo Lasso, ex-banqueiro e simpatizante do grupo fundamentalista cristão Opus Dei. Lasso foi superministro de Finanças por alguns meses, em 1999, quando o país afundou numa crise que dolarizou sua economia e o deixou até hoje sem moeda própria. Paralelamente, os equatorianos tiveram seus depósitos congelados pelo Estado. O episódio conhecido como “feriado bancário” custou o cargo ao então presidente Jamail Mahuad, derrubado por manifestações populares. Uma das principais propostas de Guillermo Lasso, expoente do neoliberalismo e defensor do Estado mínimo, foi a redução dos impostos e o direito a “pensar diferente” no Equador – termo que utilizou para criticar o suposto autoritarismo de Rafael Correa. A despeito de sua plataforma polí-
tica conservadora e sua trajetória desastrosa na administração pública, o candidato do Creo conseguiu 22,3% dos votos. “Temos um quarto da população respaldando nossas propostas. Ganhamos esse apoio caminhando pelas ruas e defendendo nossos princípios. Por isso, inauguramos uma nova oposição, que vai combater com ideias, não com insultos”, disse Lasso em discurso após as eleições, quando decretou: “Acabo de me transformar no segundo líder político do Equador”.
Mero detalhe
Os demais adversários colheram resultados pífios. O ex-presidente Lucio Gutiérrez, do Partido Sociedade Patriótica (PSP), obteve 6,2% dos votos. Logo atrás aparece o neoconservador Maurício Rodas, do Movimento Sociedade Unida Mais Ação (Suma), com 4,4%, seguido pelo bilionário bananeiro Álvaro Noboa, do Partido Renovador Institucional Ação Nacional (Prian), que em sua quinta tentativa de chegar à Presidência conseguiu 3,5%. Surpresa foi o baixíssimo índíce de votação do economista Alberto Acosta, candidato de uma coalizão de partidos e movimentos sociais que se autodenominou Coordenadora Plurinacional pela Unidade das Esquerdas. Fizeram parte da aliança o Movimento Popular Democrático (MPD) e os indígenas do Pachakutik, além de grupos políticos menores. Todos estiveram com Rafael Correa em
STRINGER/REUTERS
“DIREITA IDEOLÓGICA” A segunda força política do país está representada por Guillermo Lasso, ex-banqueiro e simpatizante do grupo católico Opus Dei (Obra de Deus). Em 1999, Lasso era ministro das Finanças quando o governo dolarizou a economia do país e congelou depósitos bancários REVISTA DO BRASIL
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Mais gente na escola Nos últimos seis anos, 600 mil crianças ingressaram em escolas públicas no Equador, com material, uniformes e merenda. Atualmente, 95% delas estão no ensino primário
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terminantes para convencer o eleitorado nem mesmo nas regiões mais afetadas pelo extrativismo”, observa o sociólogo Pablo Ospina, professor da Universidade Andina Simón Bolívar (UASB). “Outros temas, como o conteúdo da educação pública e o sentido da saúde coletiva, eram sofisticados demais para ser entendidos pela população ou fazer alguma diferença nas urnas.” De acordo com Ospina, os setores populares e a esquerda equatoriana se definem principalmente pelo antineoliberalismo, que se traduziu nas ruas em décadas de luta contra as privatizações. Como o governo de Rafael Correa colocou um freio eficiente no Consenso de Washington, ressuscitando o Estado e expandindo direitos sociais, a discussão patrocinada pela Coordenadora das Esquerdas – “que tipo de Estado queremos?” – tornou-se assun-
to para acadêmicos e pouco mais que picuinha para o eleitor. “Um mero detalhe”, define o sociólogo. A análise faz sentido com uma simples espiadela nas realizações do correísmo. Para além da nova Constituição, bandeira histórica dos movimentos sociais, e de ações soberanistas – como desalojar uma base militar dos Estados Unidos, expulsar do país os escritórios da CIA e auditar a dívida externa, medidas tomadas à primeira hora –, a Revolução Cidadã consegue demonstrar com números o avanço dos serviços públicos no Equador. Ao aproveitar a alta nos preços internacionais do petróleo, principal produto de exportação do país, o governo tomou uma medida tão natural para o bom senso quanto revolucionária para o contexto equatoriano: reverter os recursos estatais DISSIDÊNCIA A coalizão de esquerda, liderada por Alberto Acosta, teve apenas 3,2% dos votos
TADEU BREDA
sua primeira vitória eleitoral, em 2006, e ajudaram a construir a proposta da Revolução Cidadã. A principal divergência de Acosta com o governo descansa na Constituição Plurinacional, impulsionada pelo presidente e aprovada em 2008 com amplo respaldo de seu partido. Ex-ministro e ex-presidente da Assembleia Constituinte, em sua opinião Correa rasgou a Carta quando autorizou a entrada da mineração industrial no Equador e iniciou o leilão de novas concessões petrolíferas na Amazônia. A virulência discursiva do presidente – que considera “infantis” e “terroristas” os indígenas contrários à extração – também feriu de morte a antiga parceria com as organizações da Coordenadora. O apego à Constituição e o apreço aos movimentos sociais, porém, não convenceram o eleitorado. Entre aventurar-se pela “verdadeira Revolução Cidadã”, que reivindicava Acosta, e seguir com sua versão atual, protagonizada por Correa, os equatorianos optaram maciçamente pela continuidade. Os opositores de esquerda ficaram em sexto lugar, com 3,2% dos votos, atrás de personagens já considerados folclóricos no cenário político nacional. Acosta conseguiu vencer apenas um jovem progressista chamado Norman Wray e um pastor evangélico fundamentalista, Nelson Zavala, cujo projeto era inaugurar o “reino de deus” no Equador. “As propostas que distinguiam Alberto Acosta e Rafael Correa, como o rechaço à mineração em grande escala, não foram de-
FOTOS GARY GRANJA/PRESIDÊ NCIA DA REPÚBLICA
AMÉRICA LATINA
em benefício da maioria da população. O resultado até agora foi uma redução de nove pontos nos índices de pobreza, que passou de 37% para 28% da população. Isso significa que 900 mil dos 15 milhões de equatorianos aumentaram seus rendimentos e deixaram de viver com menos de US$ 2,50 por dia. Nos últimos seis anos, 600 mil crianças ingressaram em escolas públicas. Atualmente, 95% delas estão matriculadas no ensino primário, graças à eliminação de taxas de matrícula e ao fornecimento de material, uniformes e merenda – que antes os alunos tinham de pagar mesmo na rede estatal. O governo também ajustou o salário dos professores e estabeleceu critérios de remuneração condizentes com o desempenho. O investimento em saúde passou de US$ 535 milhões em 2006 para US$ 1,7 bilhão em 2012. O número de consultas gratuitas nos hospitais e postos de saúde, de US$ 16 milhões para US$ 34 milhões. A mortalidade de crianças com menos de 1 ano chegou a oito para cada mil nascidos vivos – eram 27 –, e o número de filiados ao Instituto Equatoriano de Seguridade Social cresceu em mais de 1 milhão de pessoas. Na primeira metade de 2013, o governo deve entregar 16 novas e modernas unidades hospitalares em todo o país. Finalmente, a implantação de políticas públicas para as pessoas com deficiência, conduzidas pelo vice-presidente Lenin Moreno, que é cadeirante, catapultou a imagem do governo.
Não faltaram obras de infraestrutura. Três dias depois das eleições, a capital Quito ganhou um aeroporto internacional maior, mais moderno e mais seguro que o provinciano terminal de passageiros existente até então. O governo também investe na construção de usinas hidrelétricas, em parceria com a China, para reduzir a dependência de petróleo; numa refinaria, em cooperação com a Venezuela, para deixar de importar gasolina; e em rodovias, cujas obras de ampliação e pavimentação são visíveis por quem viaja pelo país. Mais de 1 milhão de equatorianos pegaram a estrada no carnaval. “Apenas por ter voltado a fazer do Estado equatoriano um Estado desenvolvimentista, como acontecia nos anos 1970, Rafael Correa já terá apoio popular por muitos e muitos anos”, analisa o professor Alejandro Moreano, catedrático da Universidade Central do Equador (UCE). “Ao recuperar a capacidade redistributiva do país, o presidente conseguiu golpear fortemente as oligarquias políticas e partidárias que davam as cartas por aqui.” Um levantamento do instituto mexicano Consulta Mitofsky divulgado em setembro de 2012 colocou o presidente do Equador como o líder mais querido das Américas, incluídos Estados Unidos e Canadá, com 80% de aprovação. Com toda essa conjuntura favorável, Rafael Correa afirma que o grande desafio de seu novo mandato será institucionalizar a Revolução Cidadã para deixar o po-
der, dentro de quatro anos, sem incorrer no risco de as transformações experimentadas retrocederem. O presidente está especialmente interessado em manter o chega pra lá político dado nas elites equatorianas, nos partidos tradicionais, em banqueiros e na imprensa. “O desafio agora é tornar irreversível essa mudança nas relações de poder. Essa é a chave para o desenvolvimento”, afirmou Correa durante conferência de imprensa logo após o fechamento das urnas. Em sua avaliação, mesmo com todas as suas riquezas, a América Latina só não se desenvolveu por causa de suas classes dominantes. “São grupos excludentes que sempre manejaram nossos países em função dos próprios interesses e dos interesses das grandes economias capitalistas.” O respaldo eleitoral motivou o presidente a desconhecer os opositores mais radicais, aos quais acusa de antidemocráticos por terem sido coniventes com o golpe que alguns setores da polícia e das Forças Armadas tentaram levar a cabo em 2010 – e quase custou a vida do mandatário. De outro lado, estendeu a mão ao segundo colocado no pleito, Guillermo Lasso, e comemorou o surgimento, finalmente, de uma “direita ideológica” com quem pode debater. Os meios de comunicação comerciais – que perderam força com o avanço das emissoras e jornais públicos criados por Correa – não escaparam da artilharia. A maioria na Assembleia dará ao governo condições de aprovar sua Lei de Comunicação, pronta para ser votada há quase um ano. “Queremos uma imprensa honesta, jamais com censura prévia. Uma boa imprensa é fundamental para a democracia, assim como uma má imprensa pode ser mortal para essa mesma democracia”, afirma o presidente. Para ele, os resultados ratificam as escolhas de seu governo. Mais que isso, significam que o povo quer que a Revolução Cidadã siga na mesma toada. “Aceitamos essa vitória com imensa gratidão, mas também com muita firmeza”, declara. “Ou transformamos o Equador agora, ou não o transformaremos nunca. É uma oportunidade histórica para os equatorianos e não iremos desperdiçá-la.” REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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CIDADANIA
Maio sem fim
Mulheres que tiveram filhos executados desde 2006 têm na busca por justiça sua razão de viver. O fim do termo “resistência seguida de morte” nos BOs das ações da polícia de São Paulo é um filho dessa luta Por Gisele Brito 34
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á consegui o pedreiro para arrumar o quintal, mas ele precisa de duas semanas, e não consigo ficar aqui”, diz, rindo, Débora Maria Silva, prestes a sair mais uma vez de sua casa em São Vicente, litoral de São Paulo. Desta vez, irá acompanhada da reportagem da Revista do Brasil. Vamos ao encontro de outras mulheres que, como ela, tentam na luta por justiça remediar a dor da perda de filhos mortos pelo
DANILO RAMOS/RBA
DA DOR À LUTA O filho de Débora, fundadora do movimento Mães de Maio, foi assassinado aos 29 anos. Vera (abaixo), que perdeu a filha, virou “pesquisadora de homicídios”
YASUYOSHI CHIBA/AFP
CIDADANIA
Estado. Débora é fundadora do movimento Mães de Maio. Minutos antes de espairecer com a situação precária do quintal, contava como tem sido sua vida sete anos após o assassinato do filho Edson Rogério da Silva, aos 29 anos, em 15 de maio de 2006. Ao lado de Débora, na sala modesta, está Vera Lúcia dos Santos, que também perdeu a filha naquele mês. Sobre os móveis há vários jornais do litoral e da capital. “Eu me tornei pesquisadora de homicídio”, conta. De 12 a 20 de maio de 2006, pelo menos 493 pessoas foram assassinadas. Entre elas, 43 agentes de segurança – bombeiros, guardas municipais e policiais –, em decorrência de uma onda de ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) a desafiar o sistema de segurança pública do estado. De acordo com evidências levantadas por organismos não governamentais, as demais 450 pessoas teriam sido executadas por policiais. Relatórios do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe), do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, da Justiça Global e da Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard revelam que as execuções ocorreram em represália às ações do PCC – em supostos “gestos de resistência” a perseguições policiais ou em ações de grupos de extermínio formados por policiais encapuzados. Os sinais de execução: 60% dos mortos tinham pelo menos uma bala na cabeça, 46% tinham projéteis em outras regiões de alta letalidade e 57% das vítimas foram baleadas pelas costas. Edson Rogério abastecia sua moto quando policiais o agrediram. Um carro de polícia o “socorreu”. Minutos depois, ele apareceu morto em uma rua próxima ao posto. Débora conseguiu provar que o Estado não investigou o caso como deveria. A Justiça reconheceu que o Estado havia matado seu filho, mas não apontou os assassinos por falta de provas. Uma das mais importantes era uma bala cravada na coluna cervical. No laudo pericial feito na época do crime constava que não havia ferramentas para retirá-la. O caso foi arquivado, como todos os outros daquele período.
Seis anos depois
No ano passado, Débora conseguiu que o corpo fosse exumado e a bala, localizada. “O que mata muito mais a gente é a impunidade. Quem matou nossos filhos tem nome, sobrenome e identidade. Eu paguei a bala que matou meu filho. É o que mais me corrói. Paguei a dor de retirarem meu filho...”, constata, e segue seu relato. “Há seis anos eu vivia dentro da coluna cervical do meu filho. E a dor de saber que ele tinha um projétil alojado na espinha e aquele era o único modo de saber qual revólver matou meu filho? Eu comia as unhas das mãos de sangrar! Não vivia, vegetava. Gritava que o projétil estava dentro da espinha do meu filho e tinha de ser retirado. Ouviram a minha voz depois de muito grito. A resistência faz parte da mãe. A mãe tem o dever de não se curvar para um Estado como este, que deveria proteger nossos filhos. Conviver com o luto é uma situação que não dá para explicar. Não desejo isso nem para a mãe do assassino do meu filho. Então tenho de lutar para que outras mães não sintam essa dor. Não tenho raiva de quem matou meu filho. Preciso avançar. O ódio não vai trazer meu filho, só vai me consumir. E não vou dar esse gosto.” Depois de perder Rogério, Débora ficou doente e precisou ser internada por quase 40 dias. No hospital, diz que uma visão do filho a incitava a lutar. “Saí e já fui atrás das outras mães”, lembra. Santos e São Vicente são cidades vizinhas e pequenas, comparadas a São Paulo. Nas duas, 27 pessoas foram assassinadas naqueles dias, e ali nasceu o Mães de Maio. A primeira a se aliar a Débora foi Ednalva Santos, a Nalva. No Dia das Mães daquele ano, seu filho levou dez tiros, disparados por homens dentro de um carro preto. Algumas pessoas viram o rosto de alguns. Contaram a ela que se tratava de policiais, mas nunca tiveram coragem de testemunhar oficialmente, como na maioria dos casos. “Ela chegou e perguntou se eu queria lutar com ela. Ir atrás de quem matou meu filho. Aí a gente se uniu.” Foram a fóruns, delegacias, à Defensoria Pública e ao Condepe. Sem condições emocionais de trabalhar e sem dinheiro REVISTA DO BRASIL
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CIDADANIA
para a peregrinação, chegaram a passar fome. Nalva conta que em 2007 foi presa em represália a sua busca. Policiais militares foram procurar drogas no bar onde ela trabalha com o companheiro servindo lanches e marmitas. “Um deles perguntou se eu não ia parar de fazer acusações de que a polícia havia matado o meu filho”, conta. “Eu disse que ia denunciá-lo à Corregedoria por ameaças. Daí eles foram embora.” No dia seguinte, o casal foi abordado por policiais civis. “Apontaram arma para a cabeça do meu companheiro dizendo que tinham recebido denúncia dos amigos de farda”, lembra. “Não acharam nada. Um deles apareceu com uma sacola de drogas na mão dizendo que tinha achado lá nos fundos. Prenderam a mim, meu companheiro e dois fregueses que estavam aqui. Fiquei oito dias presa. Acusação de tráfico e formação de quadrilha. Daí a Débora foi fazer minha defesa”, ri.
MISTÉRIO A última vez que o irmão de Francilene foi visto, ele estava sendo levado por uma viatura da Rota
“Eu fiz a defesa da Nalva e entreguei para a Defensoria. Eles deram entrada na defesa do jeito que entreguei. Às 9h do dia seguinte ela estava solta. Inédito isso. O juiz deu que a prisão tinha sido arbitrária”, conta Débora, que tem “loucura para fazer Direito e ser uma doutora popular”. Tudo que sabe aprendeu nas idas e vindas à Justiça, na conversa com outros militantes. “Eu sou muito ligeira. Meu apelido lá no Jóquei (bairro de São Vicente) era Cabulosa. Imagina que boa zinha eu era?”, brinca. Mas a faculdade é sonho difícil. Débora recebe uma pensão de R$ 350 do ex-marido, com quem ainda divide a casa. O casamento acabou em grande parte por conta da militância. O Mães de Maio é apoiado por uma rede de solidariedade que inclui grupos como o Tortura Nunca Mais, sindicatos, o Fundo Brasil de Direitos Humanos e a Fundação Rosa Luxemburgo, que colaboram com transporte, alimentação e divulgação. A rede financiou ainda dois livros publicados pelo movimento, e sua venda também ajuda a manter as atividades. “A militância tomou conta de tudo, me consome e me alimenta ao mesmo tempo”, resume Débora. 36
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Doutora popular
Desaparecidos Francilene Gomes Fernandes não teve um corpo para velar, mas acredita que seu irmão Paulo Alexandre Gomes, então com 23 anos, foi morto por policiais em 16 de maio de 2006, em Itaquera, zona leste de São Paulo. Na capital, 163 pessoas foram contabilizadas como vítimas dos crimes de maio. A última vez que Paulo foi visto, segundo informações dadas em segredo à família, estava sendo levado por uma viatura da Rota. “Só não tenho, ainda, como provar que ele foi preso e executado.” Paulo estava no perfil da maioria dos mortos: negro, com menos de 30 anos, tatuado e com o agravante de ter antecedentes criminais. Em função de tudo isso, refugiou-se em casa durante dois dias e só saiu depois de ouvir um coronel da PM afirmar que a vida da população podia voltar ao normal. Paulo era muito apegado à sobrinha, então com 4 anos, e não teria motivo para se desligar da família. Na época, Francilene quase desistiu da faculdade de Serviço Social. Acabou fazendo em seu trabalho de conclusão de curso um paralelo entre os desaparecidos da ditadura e os crimes de maio. No mestrado, agora, trata da violência policial como política institucional e da atuação da Rota desde os anos 1970. “Meu pai até hoje procura meu irmão em pessoas nas ruas. Ele diz que às vezes para para ver se um mendigo é o meu irmão.” Francilene estudou quatro casos para concluir suas teses. Em 2007, depois de uma reunião na Secretaria da Segurança, foi aberto inquérito para investigar os desaparecimentos. Estima-se que 19 pessoas tenham sido enterradas em valas comuns. A medida significou para o movimento o reconhecimento da responsabilidade do Estado.
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“ELES NÃO DIZEM QUE MATARAM” Nair, mãe de Nenê Tattoo, acredita que policiais queriam achacá-lo e o acusaram de ser tatuador do PCC
Nalva não é a única das Mães que foi presa. Em 2009, Vera Lúcia dos Santos, a terceira a compor o movimento, foi acusada de tráfico e condenada a oito anos de prisão. Cumpriu três em regime fechado. Dois dias depois de sair, foi para um ato das Mães em frente ao Fórum da Barra Funda, em São Paulo. “Se acharam que iam me intimidar, se enganaram.” Vera perdeu três pessoas de sua família no dia 15 de maio de 2006. A filha, o genro e o bebê que esperavam. Ana Paula faria uma cesariana no dia seguinte para dar à luz Bianca. Nos protestos de que participa, Vera carrega uma chapa de ultrassom, a “foto” da neta que não chegou a nascer. Obra de policiais encapuzados, segundo testemunhas. “Disseram que ele pediu para liberarem a minha filha porque ela estava grávida e responderam: ‘Ah, ela tá grávida? Tava’. E atiraram. Meu genro se
desesperou e começou a gritar o nome dos policiais, e aí atiraram nele”, relata. Da estatística oficial a bebê não consta. “Então são 494”, diz Débora.
Um filho das Mães
O grupo conquistou reconhecimento dentro e fora do Brasil. Débora e suas companheiras participam de conversas com outros movimentos sociais e instâncias do poder público e repetem “na bolinha do olho” de ministros e desembargadores suas histórias. Durante a onda recente de violência, similar à de 2006, elas foram os principais agentes a denunciar falhas na conduta do Estado. Entre o que consideram vitórias, destacam a extinção das ocorrências policiais registradas como “resistência seguida de morte”, determinada pelo governo de São Paulo e há muito tempo recomen-
dada por entidades da área jurídica, por integrantes do Ministério da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O governador Geraldo Alckmin, que já havia empregado sem constrangimento a frase “quem não reagiu está vivo” ao defender uma ação da Rota na qual nove “suspeitos” terminaram mortos em 11 de setembro passado, parece ter mudado de postura. Como os conflitos com facções criminosas se acirravam e a situação saía do controle, o comando da Secretaria da Segurança foi substituído e o Palácio dos Bandeirantes se aproximou do governo federal para discutir ações conjuntas. O fim do registro de resistência é um filho das Mães de Maio, agora nós queremos a desmilitarização”, afirma Débora. Além do engajamento político e jurídico, o grupo tem uma espécie de ativismo REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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CIDADANIA
“A GENTE ESTAVA CEGA” Pina, filho de Helena, foi morto “numa limpa” feita pela PM depois do assassinato do sargento Marcelo Fukuhara, exibido em rede de TV
emocional, com que trata a dor e dá esperança a famílias que se envolvem. Helena Teles Pina se tornou uma Mãe de Maio em setembro do ano passado. Seu filho José Rodrigo de Pina Júnior, o Pina, 25 anos, foi um dos mortos no 11 de setembro, horas depois do assassinato do sargento da PM Marcelo Fukuhara, o 38
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Japonês. “Depois que ele morreu saíram fazendo a limpa”, relembra Helena. A morte do sargento foi mostrada pela televisão graças a gravações de câmeras de segurança. Mas nenhuma registrou a morte de Pina, segundo as informações dadas à família até agora. “A família é meio enxerida. Tentou investigar. As pes-
soas contam para nós o que aconteceu, mas não contam para as outras pessoas”, diz Helena. “A gente estava cega. As Mães já têm os caminhos”, define. Uma vizinha de Helena as colocou em contato. “Depois do enterro do meu filho, Débora veio aqui, me guiou por onde eu devia ir, o que devia e não devia fazer.” O amparo também foi importante para Nair Torres. Seu filho Marildo Jofre Ferreira, o Nenê Tattoo, foi morto em dezembro de 2006. Mas só no final de 2011 ela se aproximou das Mães. Nené tinha como clientes vários artistas, entre eles rappers. A família acredita que policiais queriam achacá-lo e o acusaram de ser tatuador do PCC. No dia seguinte à sua morte, um comandante disse na televisão que o rapaz havia trocado tiros com policiais. Dois dias depois, mudaram a versão e apresentaram drogas como sendo dele. “Eles não dizem que mataram, mas dizem que ele morreu porque tatuava o PCC”, relata Nair, em sua casa em Santos, rodeada pelos dois filhos de Nenê e pelo pai dele, o também tatuador Marildo Ferreira. “As últimas palavras do meu filho, segundo me contaram, foram: ‘Vocês vão me matar? Eu sou pai de família’. E eles responderam que ‘pai de família também morre’. Perder filho é uma dor que não passa.” Nair começou a estudar Direito porque queria “buscar justiça” e considera Débora um elo. “Antes eu não confiava em ninguém.” Segundo Vera, a principal reparação reivindicada pelas Mães é que o governo do Estado assuma. “Os crimes de maio foram um erro gravíssimo tanto do governo quanto do Judiciário”, diz. “O do Judiciário foi muito maior porque não se matam quase 600 pessoas e não se faz nada. A gente quer que as mães venham para o movimento sem os filhos morrerem”, convoca Vera. Atualmente, 15 pessoas participam ativamente. “Mas as Mães são infinitas. As histórias se repetem. Tem mãe de maio, de abril, de dezembro”, afirma Débora. “Eu vi meu irmão desaparecer nos anos 80, na época do esquadrão da morte. Depois vi o pai do meu filho ser assassinado, depois vai meu filho. E não quero ver o meu neto. Então, essa é a luta do movimento.”
ATITUDE
Dança contra a violência Um bilhão de mulheres violadas é uma atrocidade. Um bilhão de mulheres dançando é uma revolução Por Xandra Stefanel
U
ma em cada três mulheres no planeta será estuprada ou espancada ao menos uma vez na vida, e a americana Eve Ensler faz parte dessa estatística da Organização das Nações Unidas (ONU). Quando criança, ela sofreu abuso sexual e psicológico do pai, um dos fatores que fizeram com que se tornasse uma ativista pelo fim da violência contra mulheres e meninas. Aos 45 anos, Eve conversava com uma amiga sobre menopausa e ouviu pela primeira vez um desabafo sobre o estado da vagina naquele período. O tema chamou sua atenção e ela colheu depoimentos de mais de 200 mulheres, o que virou, em 1998, a peça teatral Monólogos da Vagina, encenada pela primeira vez no Teatro Here Arts Center, em Nova York. Ao fim de cada apresentação, uma fila de mulheres se formava para dividir com a diretora experiências quase sempre estarrecedoras. “Elas não faziam fila para me contar sobre a incrível vida sexual que tinham, mas como eram estupradas, espancadas, como sofriam ataques coletivos em estacionamentos ou como eram abusadas por seus tios”, contou Eve em uma conferência. Ela reuniu mulheres para discutir o que poderiam fazer de concreto e um ano depois nasceu o V-Day, ou Dia V (de vitória, vagina e de Valentine’s Day), um movimento mundial que promove obras como os monólogos de Eve e arrecada fundos para grupos antiviolência. A peça fez estrondoso sucesso de bilheteria e foi adaptada em mais de 140 países. Com o Dia V, o movimento levantou mais de US$ 80 milhões, que foram distribuídos para aproximadamente 120 mil programas comunitários de combate à violência
FELIPE PIO
contra a mulher. Para comemorar os 15 anos do Dia V, a organização preparou a campanha mundial 1 Bilhão Que se Erguem (One Billion Rising) na data em que muitos países comemoram o Dia dos Namorados (Valentine’s Day), 14 de fevereiro. Foi um protesto em que mulheres do mundo todo dançaram “juntas” numa demonstração coletiva de força. Com o lema “Um bilhão de mulheres violadas é uma atrocidade. Um bilhão de mulheres dançando é uma revolução”, grupos ensaiaram uma coreografia e, às 14h do dia 14, ligaram o som em lugares públicos e acenaram um basta à covardia com o movimento de seus corpos. Integrante de um grupo de cerca de 200 pessoas, a professora Carole Bégin, 52, munida de um cartaz, dançava na Praça da Rainha Victoria, no centro de Montreal, no Canadá. “Em níveis diferentes, eu sofri violência por 30 anos. No dia 4 de fevereiro de 1987, fui vítima de uma grave agressão. Ele me deixou praticamente morta. Meu corpo ficou azul. Saí com um cara que parecia gentil, mas descobri que era um psicopata. Por muito tempo eu não quis falar sobre isso, me fazia mal. Mas a violência não me venceu. Estou me reerguendo. Com esse movimento, as mulheres podem ver que não estão sozinhas”, disse Carole. No Brasil, a dança contra a violência foi organizada no sábado 16 de fevereiro, nas Cataratas do Iguaçu, em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Londrina, Recife e Vitória. Para assistir às danças pelo mundo, visite http://www. onebillionrising.org/livestream. O vídeo oficial da campanha 1 Bilhão Que se Erguem pode ser visto em http://bit.ly/1bilhaodiav REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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CULTURA
Detestava os homens. Fugia deles. Levei anos para entrar em casa de alguma pessoa. Isolava-me completamente. A natureza me deu a força, devolveu-me o prazer de sentir, de pensar e de trabalhar. De sobreviver
Uma trajetória incomum entre a arte e a natureza, plena de combates, beleza e dor. Assim é a vida do artista plástico e ativista ambiental Frans Krajcberg, prestes a completar 92 anos Por Eloísa Aragão 40
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TIAGO QUEIROZ/AE
Encontro prodigioso
CULTURA
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RECONHECIMENTO A obra do brasileiro nascido da Polônia foi consagrada, nacional e internacionalmente. O Espaço Cultural Frans Krajcberg, em Curitiba (acima), e o Espaço Krajcberg, em Paris, expõem pinturas, esculturas e fotografias do artista
MANU DIAS/AGECOM
a década de 1970, Frans Krajcberg instalou seu ateliê no município de Nova Viçosa, no sul da Bahia. O lugar rodeado pela Mata Atlântica recebeu o nome de Sítio Natura, e lá o artista vive até hoje, numa casa construída em cima de um enorme tronco de árvore e onde também começou a construir um museu. Na fase madura de sua produção, numa batalha contínua que reúne sensibilidade e denúncia, Krajcberg expõe, por meio de fotografias e esculturas – feitas de matérias calcinadas da vegetação, como árvores, troncos, raízes –, a destruição causada por queimadas e desmatamentos no Brasil. O próprio artista não tem tido sossego em seu refúgio, porque ali passou por assaltos umas tantas vezes e o clima de tensão aumenta pelo fato de já terem ateado fogo à mata do sítio. É preciso ter boa reserva de disposição para a luta, matéria da qual se fortalece desde criança. Nascido na cidade de Kozienice (Polônia), em abril de 1921, é o terceiro de cinco filhos de uma família judia. Em criança, costumava se isolar na floresta, onde fazia seus primeiros questionamentos existenciais. Adolescente, Frans Krajcberg começou a se politizar e a ter vontade de pintar, mas a dificuldade trazida pela pobreza era grande – faltava dinheiro até para comprar papel. Estranhamentos e traumas maiores ainda estariam por vir, num mundo assolado pela barbárie: em 1939, ele perdeu toda a família, vítima do Holocausto, no limiar da Segunda Guerra Mundial. Chegou a servir no Exército polonês por quatro anos e, terminada a guerra, abandonou a vida militar. Aprendeu arte e engenharia na Universidade de Leningrado, na Rússia. Em busca de novos ares para se lançar ao universo da arte, mudou-se para a Alemanha e ingressou na Academia de Belas Artes de Stuttgart. Conheceu a escola Bauhaus e os grandes movimentos da arte moderna. O mestre Willi Baumeister, depois de reconhecer o significativo talento de seu pupilo – ao qual já tinha premiado duas vezes –, aconselhou-o a continuar os estudos em Paris. Krajcberg chegou lá com uma carta de recomendação a Fernand Léger. Em certa ocasião, numa festa na casa do pintor Marc Chagall, um dos convidados, dono de uma agência de viagens, sugeriu-lhe morar no Brasil – que ele nem sabia onde ficava. A passagem para o Rio de Janeiro, em 1948, e junto com ela o distanciamento de um continente que marcara Krajcberg por vivências traumáticas, foi presente de Chagall. Saído de uma atmosfera em que a morte era mais cotidiana do que a vida, da solidão e do silenciamento em torno de suas memórias dolorosas o artista foi arrancando o impulso para viver. Uma peculiaridade: ficar apenas em companhia própria não era nem foi uma opção que o assustasse, pois não teve filhos nem se casou. Nas dobras insondáveis de um futuro que estaria por chegar, sua mudança para o Brasil representaria a abertura a uma experiência desafiadora. Sem falar o idioma, e sem dinheiro no bolso, sua morada por certo tempo foi a praia de Botafogo e outros espaços igualmente precários. Mas isso não podia durar muito e, ainda naquele ano, rumou para São Paulo à procura de trabalho. Foi contratado co-
mo encarregado da manutenção do Museu de Arte Moderna de São Paulo e trabalhou com Mario Zanini, Volpi e Waldemar Cordeiro. Em 1951, conheceu o mecenas Ciccillo Matarazzo e conseguiu vaga para trabalhar na montagem da primeira edição da Bienal de São Paulo, evento no qual expôs alguns de seus REVISTA DO BRASIL
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CULTURA
FOTOS FUNDAÇÃO MUSEU ARTÍSTICO FRANS KRAJCBERG
Flor do Mangue foi construída a partir de resíduos de árvores de manguezais destruídos
quadros. No mesmo ano mudou-se para o Paraná, onde desempenhou a função de engenheiro numa fábrica de papel. A decepção, no entanto, foi tamanha que abandonou o emprego e decidiu isolar-se na floresta para pintar. “Detestava os homens. Fugia deles. Levei anos para entrar em casa de alguma pessoa. Isolava-me completamente. A natureza me deu a força, devolveu-me o prazer de sentir, de pensar e de trabalhar. De sobreviver. Quando estou na natureza, penso a verdade, digo a verdade, exijo-me verdadeiro. Um dia me convidaram para ir ao norte do Paraná. As árvores eram como os homens calcinados pela guerra. Não suportei. Troquei minha casa por uma passagem de avião para o Rio”, relatou em entrevista concedida a Denise Mattar, para o catálogo de uma exposição de suas obras no Centro Cultural Banco do Brasil. Nessa nova temporada no Rio (1956 a 1958), dividiu o ateliê com Franz Weissmann e logo começou a pintar uma série de samambaias. O projeto rendeu-lhe o prêmio de melhor pintor brasileiro na Bienal de São Paulo de 1957. A inquietação novamente bateu à porta, ele vendeu suas telas e foi para Paris. Em 1964, quando recebeu o prêmio na Bienal de Artes da cidade de Veneza, resolveu voltar ao 42
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Brasil e instalar seu ateliê em Cata Branca, próximo ao Pico do Itabirito, em Minas Gerais. Ali fez suas primeiras esculturas com troncos de árvores mortas. Não teve paragem. Seguiu para a Amazônia e para o Pantanal Mato-Grossense, denunciou desmatamentos por meio de esculturas feitas com cipós, raízes e troncos, além de séries de fotografias. Ao lado dos amigos Sepp Baendereck e Pierre Restany, Krajcberg viajou pelos rios Solimões, Amazonas, Purus, Negro. Ficaram fascinados pela beleza excepcional da região, e estarrecidos com a devastação. “Hoje, vivemos dois sentidos da natureza: aquele ancestral, do ‘concedido’ planetário, e aquele moderno, do ‘adquirido’ industrial e urbano. Pode-se optar por um ou outro, negar um em proveito do outro; o importante é que esses dois sentidos da natureza sejam vividos e assumidos na integridade de sua estrutura antológica, dentro da perspectiva de uma universalização da consciência perceptiva – o Eu abraçando o mundo, fazendo dele um uno, dentro de um acordo e uma harmonia da emoção assumida como a única realidade da linguagem humana”, declaram, no Manifesto do Rio Negro, que lançariam em 1978. A obra do brasileiro nascido da Polônia foi consa-
EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS
CULTURA
A fantástica casa do artista, em Nova Viçosa, sul da Bahia
FOTOS FRANS KRAJCBERG
ALÉM DAS ARTES PLÁSTICAS Krajcberg dedica-se também à fotografia, com a qual demonstra um olhar especial para os temas da natureza
grada, nacional e internacionalmente. O Instituto Frans Krajcberg, em Curitiba, e o Espaço Krajcberg, em Paris, expõem pinturas, esculturas e fotografias do artista. Em fevereiro, a Assembleia Legislativa da Bahia aprovou projeto que cria a Fundação Museu Frans Krajcberg. Além de Nova Viçosa, o novo espaço também terá uma unidade em Salvador. O artista doou seu patrimônio ao Estado da Bahia. Nas entrevistas que tem concedido, ele costuma se queixar da espera pela concretização de novos espaços para exposições permanentes de suas obras. Reclama também da própria falta de segurança que sente onde vive, no Sítio Natura. E, ainda, do surgimento no mercado de obras falsificadas atribuídas a ele. Nada disso, no entanto, fez com que perdesse a gana de viver rodeado pela mata, pelas árvores frutíferas, pelas bromélias, pelo pau-brasil. E de falar sobre arte. De quando em quando lhe perguntam a qual movimento artístico se alinha. A nenhum, expressou certa vez: “Os únicos movimentos que me levam são os dos astros, marés e ventos. A Natureza é a minha arte – como posso fugir dessa realidade?” A natureza e a arte, entrelaçadas por forte comprometimento socioambiental na paleta e na vida do artista, são testemunhas da fidelidade de Krajcberg a esse princípio. REVISTA DO BRASIL MARÇO 2013
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VIAGEM Templo em Katmandu, capital do país
Nepal, esse desconhecido
Num país de espiritualidade, natureza magnífica e povo carinhoso, é possível servir-se de experiências com sabor de esperança. E descobrir no imaginário de suas crianças a simplicidade da vida Texto e fotos de Celso Maldos
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exta-feira 15 de fevereiro, aeroporto de Katmandu, Nepal. Aqui, foram 20 dias, última parada após outras três semanas na Nova Caledônia, uma ilha do Pacífico. Acompanho a equipe da cineasta Ariane Porto. Seu filme Bem Te Vi tem como ponto de partida oficinas de animação feitas com crianças no Brasil e ao redor do mundo. O foco é investigar como seria o mundo ideal segundo a imaginação delas. O trabalho é uma parceria com a Fundação Playing For Change (PFC, na sigla em inglês), organização não governamental que dá suporte a um projeto multimídia idealizado pelo enge44
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nheiro de som Mark Johnson. A ideia é envolver músicos e artistas de todos os cantos do planeta em propostas sociais transformadoras. A fundação entra com a tarefa de montar escolas de música em comunidades carentes. E, assim, criar oportunidades de formar e descobrir talentos locais e envolvê-los na produção de álbuns e clipes. Visitei diferentes escolas e projetos da fundação com François Viguie e Willian Aura, responsáveis pelas ações na África e na Ásia. Em Katmandu, trabalhamos com as crianças de Mitrata, um orfanato criado há anos por Nanda Kulu, ativista de origem muito pobre engajada em ajudar crianças a ter mais oportunida-
VIAGEM
Cordilheira do Himalaia
Nepal
China
Índia
Crianças de Tintale com o harmônio
Oceano Índico
des que ela própria. O orfanato abriga cerca de 40 crianças e adolescentes, e mais de 100 já passaram pela casa nos últimos dois anos. Nessa parceria com a PFC, há aulas de flauta, sarangui, harmônio, tabla e dança. Quando não estávamos trabalhando com as crianças, visitamos lugares e pessoas normalmente inacessíveis aos turistas, fizemos gravações com professores, sempre músicos locais, em diferentes locações, para futuros clipes de canções como Clandestino e Sem Documentos, de Mano Chao. Willian Aura conta que sua aventura no Nepal começou em 2002, antes mesmo de ingressar na PFC. Caminhando pela Praça de Patan, um complexo arquitetônico com palácio e templos
construídos entre os séculos 12 e 17, é abordado por um guia, um menino de 15 anos, que pede para praticar seu inglês com ele. De lá para cá, está na 26ª viagem ao país.
Raízes
Shyam, um dos intérpretes do nepalês para o inglês que nos acompanhava, deixou a comunidade rural de Tintale aos 10 anos de idade, sozinho. Queria estudar. Ao visitar Tintale, Aura se encantara com as pessoas. Chocado com a dura realidade local, decidiu apoiar os estudos de Shyam, desde Los Angeles. Depois de trabalhar por muito tempo como produtor musical REVISTA DO BRASIL
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VIAGEM
Todos os obstáculos parecem ser nada para essa população gentil, acostumada a dificuldades de toda ordem
Templo de Pashupatinath, dedicado ao deus Shiva, periferia de Katmandu
da gravadora EMI, ele deixou a empresa e passou a visitar a região regularmente. Criou a Aura Imports Sponsorship Project (uma espécie de importadora de patrocínios) e começou a levar produtos nepaleses para os Estados Unidos e a buscar padrinhos para outras crianças. Shyam estudou e voltou a Tintale. Com a ajuda das pessoas da comunidade, criou e construiu a escola de ensino básico. Nesse ínterim, as mulheres de Tintale fundaram a Mother’s Society. A organização, a partir de linguagem e técnicas teatrais, estimula a formação de grupos de discussão de direitos femininos e de enfrentamento a dramas como violência doméstica, gravidez precoce e sequestro de meninas. Mediante promessas de casamento ou trabalho, meninas de 11 a 15 anos são levadas geralmente para a Índia, desaparecem, tornam-se escravas e são obrigadas a se prostituir. No último ano, a incidência desses crimes chegou a uma assustadora média de 900 casos por mês. Como muitos homens das vilas onde a Mother’s Society apresenta suas peças não gostam do trabalho do grupo, Shyam e outros amigos atuam como seguranças do grupo. As peças são sempre acompanhadas por música e dança, resultado da entrada de Aura na PFC, onde estimulou a criação do Programa Música na Escola. Dessa parceria surgiram novos apoiadores ao desenvolvimento da educação na comunidade. Doações em torno de US$ 40 mensais por criança podem custear uniformes, materiais escolares e alimentação. 46
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Durante a realização do filme, pedimos às crianças que desenhassem seu mundo ideal. Descobrimos que desejam fazer o segundo grau em Tintale, para que não precisem caminhar por cinco horas para ir e voltar da escola, onde a jornada é de quatro. E contar com um hospital local, pois o mais próximo no mundo real fica em Kataria, a dez quilômetros.
Caldeirão de experiências
O país é impressionante e surpreendente. Comunista, maoísta, com uma população 80% hindu, menos de 20% budista e ínfimo número de cristãos, tem berço do Buda na cidade de Lumbini, perto da fronteira com a Índia. A grandiosidade dos palácios e templos, com ornamentos finíssimos, imagens de pedra e metal que evidenciam uma sofisticação secular na sua metalurgia artística, é capaz de nos impor o silêncio. No Himalaia, a geografia majestosa de montanhas geladas, altíssimas, é cortada por estradas sinuosas, pontes construídas nos anos 1970, em parceria com a antiga União Soviética, sobre rios de leitos secos e pedregosos – que na época das chuvas, porém, isolam várias comunidades. Tudo isso parece ser nada para essa população gentil, acostumada às dificuldades de toda ordem. Em visita à casa de uma senhora tibetana, ela contou a fuga de sua família, em 1969, após a ocupação chinesa. Seus pais tiveram os bens confiscados e, por medo, partiram com a roupa do corpo, a cavalo, pelas montanhas. Ela estava com 6 anos de
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Mother’s Society de Tintale: dança e música para ensinar os direitos das mulheres e meninas
Praça de Durbar em Patan, onde ficam varios templos e o Museu de Patan
idade. Hoje, sozinha com três filhas, o trio produz joias de uma beleza carregada de ancestralidade. Depois, na garupa de uma moto pelo trânsito caótico de Katmandu, sou levado a uma comunidade periférica rural de artesãos em madeira, onde o tempo parece ter parado há alguns séculos: mulheres fiando algodão sentadas em frente de casa, patos, galinhas e cabras soltas, grandes grupos de homens desempregados jogando cartas, crianças brincando nas ruas, algumas pessoas lavando roupa, outras os cabelos, em bacias na rua, cortejos de casamento, uma exuberante cerimônia onde um menino de 8 anos é iniciado para tornar-se monge. A má qualidade do ar, os rios poluídos, o lixo a se acumular, as condições precárias de higiene, nada nesse cenário é possível esquecer. Mas prevalece na memória o país mágico. Os templos, a espiritualidade e a natureza magnífica. E o povo gentil e carinhoso, capaz de nos servir um místico caldeirão de experiências com sabor de esperança. A curiosidade de investigar o mundo ideal presente no imaginário, levada por Ariane a uma produção cinematográfica, proporá mais adiante uma reflexão. Se no inconsciente das crianças já estaria impregnado o modo individualista de conduzir a vida tão característico das sociedades contemporâneas ou se ainda é possível encontrar no horizonte um espaço social conduzido pelo coletivismo, a solidariedade, a não violência. Ali, no Nepal, ainda é.
Desenhando, as crianças expressam seu mundo ideal
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CURTA ESSA DICA
Por Xandra Stefanel Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Dignidade
O diretor Michael Haneke com os atores Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant
O filme do austríaco Michael Haneke não poderia ter título melhor. Amor – recém-premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro – mostra a mudança radical na rotina do casal de músicos aposentados Georges (JeanLouis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) depois de ela sofrer um derrame e ficar com um lado do corpo paralisado. Triste e intenso, o longa-metragem passa longe das histórias adocicadas de amor e ilumina um tema delicado: o direito à dignidade na velhice, especialmente quando a saúde física e mental se esgota. Em DVD.
Pós-manguebeat
Em ritmo de comemoração, a banda pernambucana Mombojó lança Mombojó 11º Aniversário (Joinha Records), uma espécie de “balanço de carreira”. O disco traz em nova roupagem antigas composições e clássicos que fizeram parte da história do grupo. Tem participação especial do pianista Vitor Araújo, de Cannibal (banda Devotos), China, Bruno Ximarú, Igor Medeiros e da Nação Zumbi. O álbum marca uma nova fase do Mombojó, com menos instrumentos acústicos e mais sutilezas eletrônicas em sua sonoridade, mais leve e pop. O CD dos herdeiros do manguebeat custa R$ 20 e o LP, R$ 50. Os álbuns anteriores podem ser ouvidos e baixados, de graça, em www.mombojo.com.br/blog/discografia.
O nome do game É mais frequente ver um jovem em frente ao computador do que segurando um livro. Foi por isso que Celso Santiago idealizou o projeto Livro e Game, que alia entretenimento e leitura de clássicos num ambiente de jogos on-line. Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e Dom Casmurro, de Machado de Assis, já estão disponíveis no site www.livroegame.com.br. Ao navegar, o internauta pode ir clicando em objetos e fotos para ler trechos de livros, responder a questões, desbravar labirintos, resolver jogos de memória, montar quebracabeças, entre outros desafios. A fórmula pode atrair os jovens para o universo da literatura, embora ainda possa ser aprimorada tecnologicamente para agilizar os comandos. Grátis. 48
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ALEXANDRE VIANNA/DIVULGAÇÃO
Jaca em choque A galeria de arte contemporânea Choque Cultural, em São Paulo, apresenta trabalhos do artista gaúcho Jaca até 26 de abril. A mostra homônima traz oito telas inéditas que retratam personagens fantásticos que oscilam entre o cômico e o trágico. Jaca (ou Paulo Carvalho) começou a carreira como ilustrador e tornou-se referência
Poesia alternativa
Apesar de avesso à tecnologia, o poeta, cronista, economista e exsindicalista Lula Miranda lançou em janeiro o livro digital de poesia A Dor Essencial (Ed. Brasil 247 S.A.) na loja virtual Amazon (www.amazon.com.br). A obra ficou por duas semanas seguidas no terceiro lugar entre os 100 livros de poesia mais vendidos do site. O preço camarada (US$ 5, cerca de R$ 11) é para fazer com que seu livro seja acessível – o que condiz com a história de Lula Miranda.
internacional em quadrinhos. Ele ainda contribui com edições de HQ, como a experimental Le Dernier Cri, publicação francesa a ser lançada com exclusividade no Brasil durante a exposição. De segunda a sexta, das 10h às 18h. Sábado, das 13h às 18h, na Rua Medeiros de Albuquerque, 250, Vila Madalena. Grátis.
Surpresas no porão
O medo de passar para a vida adulta é um dos problemas de Lorenzo, o personagem principal do livro Eu e Você (Editora Bertrand Brasil, R$ 29), de Niccolò Ammaniti. Antissocial e tímido, o adolescente se refugia no porão de casa durante uma semana de pausa escolar a que os alunos têm direito na Itália. Livros, comida, música e filmes. Ali ele tem tudo de que precisa para escapar do mundo e das pessoas. Mas sua paz é interrompida com a chegada inesperada de sua meia-irmã Olivia, viciada em drogas. O livro agrada a jovens e adultos e ganhou recentemente adaptação para o cinema, dirigida por Bernardo Bertolucci. REVISTA DO BRASIL
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MOUZAR BENEDITO
Minha primeira passeata
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essa onda da renúncia do Papa Bento XVI e escolha de seu sucessor, lembrei-me de uns padres da minha terra, no meu período de infância e início da adolescência. Imagine uma cidadezinha de 2 mil habitantes no perímetro urbano, perdida no alto de uma serra no sul de Minas, onde chegava uma “jardineira” por dia, trazendo cartas e poucos jornais, e pouca gente tinha rádio. A gente ouvia falar de greves, passeatas e outras coisas, mas como algo distante, que acontecia num mundo paralelo. E também de “comunistas” que faziam essas coisas em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outros poucos lugares. Mas já havia lá, desde 1957, um “ginásio comercial”, no qual terminávamos o equivalente ao nono ano atual, mas com uma formação muito melhor, e a gente aprendia nele tudo o que era necessário para trabalhar num escritório, inclusive datilografia e caligrafia. Recebíamos o diploma de “auxiliar de escritório”. O responsável por isso foi o padre Caio, com sua visão progressista, numa época em que a economia regional estava totalmente estagnada e os jovens saíam para trabalhar, como mão de obra barata, em São Paulo e outras cidades grandes. Ele convenceu a população a levantar o dito estabelecimento escolar, com a colaboração de professores que trabalhavam praticamente de graça. Saindo com formação, os jovens poderiam arrumar empregos melhores nas cidades grandes e ter chance de continuar os estudos. Mas, como a prefeitura e o estado não toparam assumir o ginásio 50
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construído pelo povo, ele se tornou “propriedade” da igreja, e do padre, do diretor. O padre Caio, porém, se casou e teve de deixar Nova Resende. Aí começou uma fase de dificuldades. Por ali passaram alguns diretores provisórios até aparecer um padre húngaro direitista, neurótico de guerra. Durou pouco. Veio o padre Adriano, um holandês completamente maluco. Estava quase sempre meio bêbado. Fumava muito, e na aula de inglês, em que era professor, dava charutos para o aluno que quisesse. Tinha uma adega ótima para os padrões regionais, com vodca, rum e gim, e os coroinhas e amigos podiam atacá-la à vontade. Como era de imaginar, sua administração no ginásio foi um caos. Não pagava nem aquele salariozinho ínfimo dos professores. E começou a ter problemas. Chegou a ponto de nós mesmos, alunos, concluirmos que se ele ficasse ali mais um tempo acabaria com o ginásio construído com muita dificuldade. Fizemos a primeira greve estudantil de Nova Resende e a coroamos com uma passeata, também a primeira da história da cidade, por volta de 1960. Demos uma volta na praça gritando palavras de ordem e fomos para a casa paroquial. Cercamos a casa e continuamos nossa manifestação. Ele não ligou muito, mas a passeata teve um resultado inesperado: as crianças de 5 ou 6 anos de idade nunca tinham visto uma coisa daquelas e resolveram imitar os estudantes. Todos os dias, se juntavam em bandos, saíam gritando as nossas palavras de ordem contra o padre, cercavam a casa dele e continuavam a gritaria. Depois de uma semana ele não aguentava mais, e resolveu se mandar. Foi de um extremo do estado para outro: a igreja o transferiu para o nordeste do estado, lá no Vale do Rio Doce. Foi para Governador Valadares, a mais de mil quilômetros de distância. O nosso ginásio voltou a funcionar bem e nos deu uma formação de fazer inveja às escolas atuais. Foi ou não foi uma passeata bem-sucedida? Ah, se a molecada de hoje fizesse coisas como essa em vez de brigar entre eles e agredir professores... Bem, os diretores não são todos como o padre Adriano, há muitos bons. Seria legal se os adolescentes, como nós éramos na época, se dedicassem hoje a ir mostrando para as crianças de 5 ou 6 anos o bom caminho da azucrinação construtiva sobre secretários de Educação e outros responsáveis pelo caos no sistema de ensino.