Revista do Brasil nº 088

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LULA, EXCLUSIVO

‘Temos de agradecer as manifestações de junho e trabalhar para fazer acontecer as melhorias que a sociedade brasileira deseja’

nº 88

outubro/2013

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TERRA BRUTA Violência contra indígenas e trabalhadores rurais cria um país à parte, onde a vida é refém da força dos coronéis

No sul da Bahia, o cacique Babau lidera uma aldeia tupinambá sob permanente ameaça


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ÍNDICE

EDITORIAL

6. Na Rede

Notícias que foram destaque na RBA no mês que passou

14. Entrevista

Para Lula, segundo mandato de Dilma será melhor que o primeiro

20. Economia

Sob controvérsias, vai a leilão o trilionário campo de Libra

24. Corumbiara

GERARDO LAZZARI/RBA

O interior do interior do país, onde os fracos não têm vez

30. Índios

Fazendeiros e seus braços no Congresso: riscos à demarcação

Anita, Lucélia e os filhos: pobreza e falta de políticas para assentamento em Corumbiara (RO)

34. Mundo

As barbeiragens das potências ocidentais no conflito da Síria

Avanços e mazelas

36. Cultura

O

Contaminação por agrotóxicos em Paulínia (SP) vira filme

38. Leitura

Pescadores da comunidade de Santa Isabel

44. Viagem

Ribeirinhos da Lagoa Mirim (RS) e suas histórias de pescador

Seções Cartas 4 Destaques do mês

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: Ademir Assunção

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ANA MENDES

Do homem de neandertal ao neoliberal, uma leitura marxista

uem viu há de se lembrar. Quem não viu pode procurar. Ao promulgar a Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, após 20 meses e 320 sessões, o deputado Ulysses Guimarães lembrou do regime de exceção que terminara havia pouco tempo. “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, bradou, para em seguida “amaldiçoar” a tirania “onde quer que ela desgrace homens e nações”. Ao mesmo tempo, admitia que não era a Constituição perfeita, mas seria pioneira. Passaram-se 25 anos, o mais longo período de continuidade institucional, com tropeços, sustos, soluços, avanços e mazelas. O Brasil passou pela transição, consolidou a democracia, voltou a eleger seus governantes pelo voto direto – foram seis eleições presidenciais de lá para cá –, mesmo que os políticos sejam alvo de críticas. Mas o país continua com graves problemas sociais. Injustiça e desigualdade são marcas difíceis de arrancar. A violência no campo expulsa e mata trabalhadores. Direitos dos índios são desrespeitados. Conquistas trabalhistas obtidas com dificuldade volta e meia entram na mira conservadora. Episódios como o massacre de Corumbiara, tema de capa desta edição, não foram suficientes para mudar a face perversa da sociedade brasileira. Os avanços são inegáveis, mas as mazelas são crônicas e persistentes. Não foi a Constituição que queríamos – com tantos artigos até hoje por regulamentar e outros tantos já emendados – nem vivemos ainda o país que sonhamos. Um passo foi dado na ruptura com o regime autoritário, apesar de a cultura da violência e dos caminhos tortos do não diálogo seguirem como empecilho à democracia. Em cerimônia para lembrar os 25 anos da Carta, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entrevistado também nesta edição, disse que em 5 de outubro de 1988 o país encerrou “uma longa noite de atritos”. Fez uma espécie de mea-culpa, já que o PT expressou votos contrários ao texto final da Carta, embora tenha concordado em assiná-la. E observou que vários programas sociais de seu governo tinham por base a Constituição de 1988. A fotografia estampada na capa mostra um Brasil que, mesmo tendo melhorado consideravelmente no período recente, ainda pode ser frágil como uma criança. Padece de democracia, de justiça e de cidadania. REVISTA DO BRASIL

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MÍDIA

Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Nicolau Soares, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Fotos de Marcelo Min e Andris Bovo/ABCD Maior (Lula) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Hélio Rodrigues de Andrade, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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FOTOS REGINA DE GRAMMONT/RBA

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Anelize e Marilu: reconhecimento à competência e a uma pauta com foco humanista

Trabalho premiado Repórteres da Rádio Brasil Atual levam Prêmio Herzog de Direitos Humanos

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arilu Cabañas e Anelize Moreira, da Rádio Brasil Atual, estão entre os vencedores da 35ª edição do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com entrega marcada para o dia 22 deste mês, em solenidade no Memorial da América Latina. Marilu receberá o prêmio de melhor reportagem na categoria Rádio, pela série “Voz Guarani-Kaiowá”, veiculada em novembro do ano passado. A série retratou a luta pela terra da etnia Guarani-Kaiowá, em municípios de Mato Grosso do Sul, como Iguatemi, Dourados e Antônio João. Lutar até a morte é a disposição desses indígenas para recuperar o “tekoha”, solo sagrado. Marilu ouviu familiares de índios mortos por causa da luta, lideranças ameaçadas, líderes da Aty Guassu, professores indígenas, políticos e representantes do Conselho Indigenista Missionário. Visitou acampamentos em beira de estrada e aldeias onde só é possível

entrar com escolta da Polícia Federal e da Força Nacional. Marilu tem 50 anos, 30 de profissão, e integra a equipe da Rádio Brasil Atual desde 2011. Durante a carreira já recebeu seis Prêmios Vladimir Herzog. Anelize Moreira tem 28 anos, quase três de RBA. Receberá menção honrosa pela série “Dores do parto”, apresentada em maio deste ano durante a Semana Mundial de Respeito ao Nascimento. As reportagens denunciam a violência contra mulheres e mostram personagens que optaram pelo parto humanizado. Esta edição do prêmio recebeu 443 inscrições em nove categorias: Artes (ilustrações, charges, cartuns, caricaturas e quadrinhos), Fotografia, Documentário de TV, Reportagem de TV, Rádio, Jornal, Revista, Internet e Categoria Especial (todas as mídias), que neste ano teve como tema “Violências e agressões físicas e morais contra jornalistas e contra direito à informação”. Para o diretor da Editora Atitude, Paulo Salvador, um dos responsáveis pela RBA, a premiação é um reconhecimento ao talento das jornalistas e amplia a presença da rádio no noticiário humanista. “Representa o que é praticado na Revista do Brasil, no portal da RBA, nos jornais, na TVT e no ABCD Maior: informação de qualidade, que tem os direitos humanos como matéria-prima”, diz.


ROBERTO PARIZOTTI/CUT

TRABALHO

Manifestação em São Paulo

Freio na terceirização “Votar um projeto que degrada os direitos dos trabalhadores não seria uma boa maneira de homenagear a Constituição no mês em que completa 25 anos”, diz sindicalista

O

presidente da CUT, Vagner Freitas, é cauteloso, mas está otimista em relação à tramitação do pro­ jeto que regulamenta a ter­ceirização. “Foram tantas as pressões dos trabalhadores que ficou difícil para a Câmara votar um texto tão controverso”, avalia. Desde julho, quando começou a andar o PL 4.330, de 2004, de autoria do

deputado Sandro Mabel (PMDB-GO), as centrais não tiram os pés de Brasília. Foram dezenas de reuniões e manifestações na tentativa de chegar a bom termo para levar o texto a votação. A peleja é dura. A bancada empresarial, com mais de 200 parlamentares na Câmara, é três vezes maior que a dos 70 deputados com origem sindical. Mesmo na Comissão de Constituição e Justiça

(CCJ) a correlação é desigual. Os trabalhadores não admitem que o projeto seja votado sem assegurar pontos considerados inegociáveis. Um deles, o que admite ser “terceirizável” (como dizia um antigo sindicalista) apenas os serviços que não fazem parte da atividade principal da empresa. Outro, o que torna a empresa contratante responsável em caso de a terceirizada violar direitos e obrigações. É comum uma terceirizada passar anos sem recolher FGTS e INSS, por exemplo, fechar as portas e deixar empregados a ver navios. As centrais exigem ainda que os terceirizados sejam representados pelo sindicato da categoria preponderante. Por exemplo: um funcionário que realiza serviço de compensação de cheques deve ser associado ao sindicato de bancários. Sem acordo, o deputado Décio Lima (PT-SC) afirmou que enquanto presidir a CCJ não vota o projeto na comissão. “A decisão do presidente da CCJ, com minoria ante a bancada empresarial, só foi possível graças às pressões do movimento sindical, dentro e fora do Congresso”, observa Freitas. Até ministros do Tribunal Superior do Trabalho contestaram a legitimidade do PL 4.330. “Significará um rebaixamento na renda do trabalho de cerca de 20 milhões de pessoas de imediato, e ao se generalizar, as categorias profissionais tenderão a desaparecer. Todas as empresas vão terceirizar as suas atividades”, disse o ministro Maurício Delgado. Com a decisão da CCJ, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), anunciou que o projeto seria levado diretamente a plenário. Deputados vêm intercedendo junto a Alves para convencê-lo de que o projeto não conseguiu criar um ambiente que permita ir à votação. “Seria criado um clima de disputa entre vários partidos, e isso não é bom para a Câmara”, diz o deputado Ricardo Berzoini (PT-SP). Para Vagner Freitas, se não houver a retirada, seria um bom gesto o Congresso sinalizar que o PL será engavetado. “Votar um projeto tão degradante para os direitos dos trabalhadores não seria uma boa maneira de homenagear a Constituição no momento em que completa 25 anos.” REVISTA DO BRASIL

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

ENZO FORCINITI /SXC.HU

Banda surda

Em palestra a empresários e investidores em Nova York no final de setembro, a presidenta Dilma Rousseff reconheceu a necessidade de melhorar o Programa Nacional de Banda Larga, lançado em 2010. Além de possíveis deficiências estruturais, o PNBL enfrenta dificuldades de outra natureza: as empresas de telefonia habilitadas a oferecê-lo estão longe de facilitar o acesso da população ao serviço. A reportagem da RBA fez a tentativa, tanto pela internet como pelo atendimento telefônico. Os obstáculos tornaram a missão impossível. Na web, as empresas simplesmente não incluem essa opção para o usuário. Na conversa por telefone, o candidato ao PNBL ouve que é melhor ir a uma loja física para se informar, recebe ofertas de pacotes das próprias operadoras ou tem a ligação derrubada. Houve caso 6

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de uma atendente falar em exigências inexistentes, como a necessidade de ser beneficiário do Bolsa Família. Segundo o Ministério das Comunicações, “as informações constatadas pela reportagem não estão em acordo com as obrigações estabelecidas nos termos de compromisso celebrados pelo ministério, Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e concessionárias de telefonia fixa”. E acrescenta que qualquer cidadão pode fazer denúncias à Anatel sobre o não cumprimento da oferta do PNBL. A Anatel, porém, atribui ao ministério a responsabilidade pela fiscalização do atendimento às solicitações do serviço. As empresas que deram retorno à reportagem reafirmaram seu apoio ao plano do governo e cumprimento do termo de adesão. Algumas alegaram

possíveis erros de procedimento ou falhas pontuais. Em um caso, a operadora informou oferecer “vendas conjuntas” a fim de “promover a adesão ao serviço”. Segundo o governo, o objetivo do PNBL, criado pelo Decreto nº 7.175, de 12 de maio de 2010, “é expandir a infraestrutura e os serviços de telecomunicações, promovendo o acesso pela população e buscando as melhores condições de preço, cobertura e qualidade”. O plano, de acordo com o ministério, atinge 3.214 municípios em 25 estados e no Distrito Federal. A meta anunciada é proporcionar acesso à banda larga a 40 milhões de domicílios, até 2014, com velocidade mínima de 1 Mbps (megabit por segundo), ainda um número baixo para padrões internacionais. bit.ly/rdb_bandalarga


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A presidenta Dilma Rousseff reagiu duramente à espionagem em escala mundial promovida pelos Estados Unidos, durante seu discurso de abertura da 68ª Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, em 24 de setembro, . “Imiscuir-se assim na vida de outros países é ferir o direito internacional e a boa convivência das nações. Jamais pode uma soberania firmar-se em detrimento de outra soberania. Jamais podem os direitos dos cidadãos de um país ser garantidos pela violação dos direitos dos cidadãos de outros países. Pior quando as empresas privadas de telecomunicações estão envolvidas.” Ela defendeu reformas amplas no gerenciamento da rede mundial. “Como vários latino-americanos, lutei contra a censura, e não posso deixar de defender o direito à privacidade das pessoas. Sem ele, não há direito à liberdade e à liberdade de expressão. E não há democracia”, disse. Antes, já havia anunciado cancelamento de visita oficial de Estado que faria a Barack Obama. bit.ly/rdb_onu

ROBERTO STUCKERT FILHO/PR

De olho nos espiões

Dilma: EUA ferem o direito internacional e a boa convivência das nações

BERTIL ENEVAG ERICSON/EFE

O presidente do IPCC, Rajendra Pachauri: responsabilidade humana é evidente

O verdadeiro culpado

Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) das Nações Unidas ratifica conclusão de 2007: “A influência humana no sistema climático é clara. E é evidente na maioria das regiões do planeta”, assinala o documento. “É extremamente provável que a influência humana tenha sido a causa dominante do aquecimento global observado desde meados do século 20.” Segundo o documento, elaborado por 259 cientistas de 39 países, cada uma das últimas três décadas tem sido sucessivamente mais quente. “A temperatura da atmosfera e dos oceanos se elevou, a quantidade de neve e de gelo diminuiu e o nível do mar e de concentração de gases de efeito estufa aumentou”, destacou um dos coordenadores do relatório, Qin Dahe. bit.ly/rdb_aquece

Novos atores por uma nova lei

O Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC) vai promover durante uma semana, neste mês de outubro, várias atividades para reforçar a campanha por mudanças no setor, denominada Para Expressar a Liberdade. O movimento vem coletando assinaturas para apresentar um projeto de lei de iniciativa popular pela Lei de Meios. “Temos conseguido incluir outros atores na pauta, como os movimentos de juventude, mulheres, negros, dos trabalhadores do campo”, afirma Orlando Guilhon, representante da Associação das Rádios Públicas do Brasil na coordenação do FNDC. A entidade também vive a expectativa de votação do marco civil da internet. bit.ly/rdb_meios REVISTA DO BRASIL

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Brasil, avanços e impasses A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo IBGE em 27 de setembro, mostra avanços em diversos indicadores sociais, mas também revela dificuldades a serem enfrentadas. A concentração de renda, por exemplo, diminuiu de 2011 para 2012, mantendo a tendência de queda verificada nos últimos anos. E a taxa de desemprego atingiu seu menor nível (6,1%), com alta de 5,8% no rendimento médio dos trabalhadores. Mas aumentou a desigualdade entre o que recebem homens e mulheres. No ano passado, o país estava com 3,5 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando – 156 mil a menos. A taxa de analfabetismo passou de 8,6% para 8,7%, com o número de analfabetos com 15 anos ou mais somando 13,2 milhões. Ao mesmo tempo, os indicadores revelam aumento da escolaridade: entre os ocupados no mercado de trabalho, 48% têm 11 anos ou mais de estudo. A taxa de sindicalização mantém-se relativamente estável, passando de 17,1% para 16,7% em 2012. Dez anos antes, esse índice era de 16,8%. O número de domicílios com acesso a rede coletora de esgoto subiu de 55%, em 2011, para 57,1%. Se o acesso à coleta de esgoto continua baixo, o número de domicílios com iluminação elétrica atingiu 99,5%. No caso da rede de abastecimento de água, a porcentagem de domicílios beneficiados é significativamente maior, chegando a 85,4%. E o número de domicílios atendidos por coleta de lixo foi de 88,8% do total em 2012. A quantidade de brasileiros que acessam a internet subiu 6,8%. De acordo com a Pnad, 83 milhões de pessoas, com 10 anos ou mais, declararam ter acessado a rede mundial de computadores, o que corresponde a 49,2% da população nessa faixa. No ano anterior, foram 77,7 milhões. O 8

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197

milhões População em 2012

100

48,7 51,3

% têm iluminação elétrica

% mulheres

% têm fogão

% têm geladeira

Novo perfil

94 6

milhões de ocupados

% contam com rede de esgoto Fonte: Pnad/IBGE

milhões de desempregados (6,1%)

aumento no número de internautas foi verificado em todas as faixas etárias. O serviço de telefonia cresceu 4,1% e chegou a 91,2% dos domicílios. Em 2012, 1,85 milhão (3%) tinham apenas telefone fixo, mostrando a tendência de queda nesse serviço, que foi de 12,5% em relação a 2011. Por outro lado, o número de domicílios com apenas telefone celular subiu de 49,7% para 51,4%, somando 32,28 milhões de lares. E 36,9% têm telefone móvel e fixo. O número de pessoas que têm telefone celular passou para 122,7 milhões, crescimento de 6,3%. Pela pesquisa, a população brasileira aumentou 0,8% e alcançou 196,9 milhões. Já o número de domicílios subiu 2,5%, chegando a 62,8 milhões. bit.ly/rdb_pnad1

Incerteza

99,5 97,7 96,7 57,1

% homens

milhões População economicamente ativa

Entre os números positivos, está a menor taxa de desemprego

Nos domicílios

A economia ainda dá sustos e revela incertezas, mas o mercado de trabalho, mesmo em ritmo menor,

continua exibindo baixo desemprego. A pesquisa feita pelo IBGE mostra que a taxa média de desemprego calculada em seis regiões metropolitanas recuou para 5,3% em agosto, o menor resultado do ano e também para o mês na série histórica, iniciada em 2002. Consideradas as médias anuais, no período janeiro-agosto também é a menor (5,7%), empatada com 2012. Os dados são positivos, mas não sugerem pleno emprego, como afirmam alguns mais animados. Calculada com metodologia e em regiões diferentes, a pesquisa Dieese/ Fundação Seade também revelou queda em agosto, para 10,9%. Na região metropolitana de São Paulo, a taxa de 10,4% foi a menor para o mês desde 1989. O economista Alexandre Loloian, do Seade, não vê “catástrofe” no horizonte”, embora a economia ainda cause insegurança. Para ele, os números estão “desmentindo os pessimistas”. bit.ly/rdb_emprego1


Sete = 700 mil

Chico Buarque e Beth Carvalho: solidariedade a Genoino

DIVULGAÇÃO

A notícia sobre a adesão do compositor e escritor Chico Buarque a um abaixoassinado em defesa do deputado José Genoino provocou reações extremadas e pouca ou quase nenhuma reflexão. O recurso ao xingamento e às pedras pareceu para alguns um caminho mais fácil que o exercício de raciocínio sobre as razões da decisão de Chico. A lista pró-Genoino tem apoios como os do escritor Fernando Morais, do cineasta Toni Venturi, da psicanalista Maria Rita Kehl e até do exministro Nelson Jobim. A carta “Nós estamos aqui” virou o mês com mais de 10 mil assinaturas, entre as quais as do jornalista Juca Kfouri e da cantora Beth Carvalho. bit.ly/rdb_chico E a aceitação dos chamados embargos infringentes pelo Supremo Tribunal Federal provocou também muito bateboca e pouca análise, fruto da cobertura do julgamento do mensalão. O ministro Celso de Mello queixou-se de pressões de alguns veículos na tentativa de “subjugálo” antes de proferir seu voto. Apesar desse cenário desfavorável, instalado desde o ano passado, até personalidades conservadoras do meio jurídico, casos do jurista Ives Gandra da Silva Martins e do ex-governador paulista Carlos Lembo, se manifestaram em favor do direito de defesa. bit.ly/rdb_mensalão

MARCOS DE PAULA/AE

Chico e o zepelim

A Lei Maria da Penha (nº 11.340) completou sete anos de implantação, em 22 setembro. Até março último, os procedimentos judiciais contra agressores de mulheres somavam aproximadamente 700 mil, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça. O CNJ não dispõe de dados atualizados sobre quantos viraram processos criminais. Em 2009, 80% de 400 mil casos tinham seguido adiante na Justiça, com quase 80 mil sentenças definitivas e 9 mil prisões provisórias ou em flagrante. Mas essas 80 mil sentenças correspondem a apenas 20% dos casos registrados até aquele ano, enquanto as prisões equivaliam a pouco mais de 2%. bit.ly/rdb_maria

Cantada é elogio?

Pesquisa com quase 8 mil mulheres mostra que praticamente todas (99,6%) já sofreram algum tipo de assédio sexual ou verbal na rua, no transporte público, no trabalho e em baladas. Para 83%, as chamadas cantadas são consideradas algo negativo, enquanto 90% declararam ter trocado de roupa antes de sair de casa, com medo de sofrer assédio. Segundo a responsável pela pesquisa, a jornalista Karin Hueck, as cantadas são algo pelo qual toda mulher passa de forma recorrente. Apesar da prática generalizada, esse é um tema pouco abordado quando se discutem questões de gênero, por ser visto como natural. “Acho que a pesquisa pegou bem num ponto de uma ferida exposta há muito tempo, da qual ninguém estava querendo tratar.” bit.ly/rdb_cantadas REVISTA DO BRASIL

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A criação do Programa Mais Médicos permitiu a Kátia Marquinis, formada há 15 anos, realizar um antigo desejo: atuar no serviço humanitário. Kátia largou o emprego de especialista para trabalhar em um bairro na periferia de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. “Todos me apoiaram. Quando você faz uma escolha e as pessoas estão vendo que te faz bem, elas apoiam”, diz. “Quando eu estava terminando a faculdade, cheguei a procurar informações para ir à África. O plano acabou meio adiado, mas aí veio o programa federal, sem que eu precisasse sair do meu país. Não preciso ir para fora porque faltam médicos aqui.” bit.ly/rdb_médicos

Kátia Marquinis: verdadeira vocação

STRINGER/EPA/EFE

Inferno na Copa

Yasir Al-Jamal, diretor técnico da Copa de 2022, mostra maquete de estádio: 32 trabalhadores vindos do Nepal morreram nas obras

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A realização da Copa do Mundo de 2022 no Catar suscita discussões sobre os riscos aos atletas em uma disputa sob elevadas temperaturas. Mas os problemas começaram bem antes. A Confederação Sindical Internacional (CSI) criticou a postura da Federação Internacional de Futebol (Fifa) em relação aos trabalhadores em obras para o evento. Apenas em julho, diz a CSI, falando em “escravidão moderna”, 32 trabalhadores vindos do Nepal morreram devido ao calor, muitos deles jovens de 20 a 30 anos. O jornal britânico The Guardian menciona pelo menos 44 mortes entre junho e agosto, a maioria de ataque cardíaco. “Informes por parte de outros países indicam números parecidos de trabalhadores que também estão perdendo a vida”, afirma em nota a CSI. No início de outubro, o Comitê Executivo da Fifa se reuniria para discutir as datas da Copa. A CSI diz compreender as preocupações com a saúde e segurança de jogadores e espectadores, mas acrescenta que o movimento sindical está “profundamente decepcionado” pelo fato de a Fifa não considerar uma situação “muitíssimo mais grave”, relacionada à situação dos trabalhadores responsáveis pelas obras de infraestrutura. bit.ly/rdb_copa

ANDRIS BOVO/ABCDMAIOR

Médico para quem precisa


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Gushiken na greve dos ancários de 1986

Lula à Presidência, em 1989. Foi um dos líderes do governo de transição e, em 2003, compunha o núcleo decisivo mais importante do primeiro mandato do ex-presidente. Ele sempre considerou a comunicação como peça estratégica das transformações do país e dizia que a imprensa não poderia ser tratada de forma maniqueísta. “Devemos ter a nossa própria mídia”, defendia. A inclusão de seu nome no processo do chamado “mensalão” fez de Gushiken “uma das vítimas de uma parte da imprensa deste país”, segundo Lula. “Eu sei o que o companheiro

Ex-deputado estadual e federal, ex-vice-prefeito de Santo André e originalmente dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos, José Cicote morreu em 21 de setembro, aos 76 anos, vítima de problemas cardíacos. Foi um dos fundadores do PT, em 1980, e eleito deputado estadual na primeira eleição do partido, em 1982. Nasceu em Polone, cidade do interior paulista, onde trabalhou na lavoura. Foi mecânico de manutenção na Pirelli e iniciou sua militância sindical e política no ABC. Foi vice-prefeito de Santo André na primeira gestão de Celso Daniel (1989-1992). bit.ly/rdb_cicote

Professor Carlão ROBSON MARTINS/APEOESP

Cicote, na história do ABC

Gushiken sofreu com as infâmias que levantaram contra ele”, disse o expresidente, lembrando que os mesmos jornalistas que o atormentaram não se preocuparam, depois, em dar manchetes se desculpando pelos próprios erros. “A indignidade estava em quem o acusou falsamente e em quem prolongou o sofrimento jurídico e pessoal de Gushiken”, escreveu o jornalista Paulo Nogueira. Para a presidenta Dilma Rousseff, ele morreu da mesma forma que viveu: “Com coragem”. E com serenidade. bit.ly/rdb_gushiken

RAQUEL CAMARGO/SMABC

Poucos dias antes de morrer, Luiz Gushiken convocou antigos companheiros ao hospital onde estava internado para o que se pressentia ser uma última conversa, um rito de despedida. No início da noite de 13 de setembro, Gushiken morreu, aos 63 anos, após longo período de luta contra o câncer. Para o China, não faltavam histórias, desde o início de sua militância, no começo dos anos 1970. Participou da retomada, em 1979, do Sindicato dos Bancários de São Paulo, integrou a diretoria cassada pela ditadura ainda em 1983, que mesmo assim continuou imprimindo o jornal Folha Bancária, e liderou a maior greve nacional da categoria, em 1985. Gushiken assumiu como deputado constituinte em 1987 e ajudou a escrever a Constituição que está completando 25 anos. Foi um dos fundadores da CUT e do PT e coordenou a primeira campanha de

DIDA SAMPAIO/AE

O legado de Gushiken

Carlos Ramiro de Castro, o Carlão, começou a lecionar em 1971, dando aulas de Ciências e Biologia na rede pública estadual em São Paulo. Presidiu a Apeoesp, o sindicato dos professores do ensino oficial, de 2002 a 2008. Morreu em 5 de setembro, aos 64 anos, em consequência de complicações causadas por diabetes. Nasceu em Birigui, no interior paulista, mas a família vivia em Braúna, onde seu corpo foi enterrado. Cresceu em Lins e virou torcedor do time local. Também foi vice-presidente estadual da CUT e suplente do senador Eduardo Suplicy (PT), além de assessor especial no Ministério da Educação. Carlão participou da criação da Revista do Brasil e da Rede Brasil Atual. bit.ly/rdb_carlão REVISTA DO BRASIL

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Derly e seus irmãos Joel e Daniel, mortos numa emboscada

Tragédia familiar ou nacional?

D

erly, Daniel, Joel, Devanir e Jairo se mudaram do interior de Minas Gerais para São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista, na década de 1960, junto com os pais, em busca de melhores oportunidades. Tornaram-se operários e começaram a construir a vida recém-iniciada quando o golpe de 1964 lhes alterou drasticamente os planos. A intrigante trajetória da família Carvalho se mistura à nebulosa história recente do país, ainda repleta de perguntas sem respostas. Para os cinco irmãos, que buscavam uma vida feliz da família, o caminho foi o da luta armada e da clandestinidade. As ferramentas de trabalho foram trocadas por metralhadoras e granadas. Tentando desvendar um pouco dessa luta desigual, o programa ABCD em Revista, da TVT, mergulhou na história dos cinco irmãos. Foram ouvidos familiares, viúvas, filhos, um neto historiador, um companheiro de luta e um dos irmãos sobreviventes. Com depoimentos, documentos e reconstituições dos momentos determinantes, foram produzidos dois programas de 24 minutos. O material foi reunido e transformado num documentário de 50 minutos sobre um enredo real e mais intrigante do que 12

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A história de cinco jovens irmãos operários em busca de melhores condições de vida na metrópole um roteirista de cinema poderia imaginar. A sessão de lançamento foi realizada num Sábado Resistente, evento do Memorial da Resistência de São Paulo e do Núcleo de Preservação da Memória Política. Companheirismo, heroísmo, traição, violência, tortura, mortes. Todos esses elementos permitem ao telespectador um contato com fatos ainda pouco conhecidos do grande público. A reconquista da democracia no Brasil custou

Sintonize Canal 13 NET Digital: Grande S. Paulo Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

centenas, talvez milhares de vidas de brasileiros. Entre eles, estão três dos cinco irmãos operários. Um morto por tortura e dois desaparecidos. A ditadura brasileira foi concretizada sob o pretexto de afastar a ameaça do regime comunista do mundo ocidental com o patrocínio dos Estados Unidos – o país que se gaba de ter sido construído sob o teto da democracia é o mesmo que ajudou a fortalecer regimes autoritários pela América Latina para defender seus interesses. O que surpreende na história dos ­irmãos Carvalho é que eles não pertenciam à elite cultural. Não eram intelectuais, estudantes, nem tinham curso superior. Eram operários de chão de fábrica que se indignaram com a intransigência do poder constituído pela força e conseguiram se mobilizar corajosamente contra o inimigo poderoso que governava com o peso do arbítrio. Ao assistir ao documentário Família Carvalho – Retrato da Resistência Operária contra a Ditadura, o espectador tem a oportunidade de tirar da “clandestinidade”, ou do desconhecimento, Devanir, Derly, Joel, Daniel e Jairo. Os bravos irmãos Carvalho. O programa pode ser visto pelo site da TVT: http://bit.ly/tvt_familia_carvalho.

ACERVO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO

TVT


RÁDIOBRASILATUAL

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“Esse é o primeiro herói da idade moderna que faz um programa de marketing”

A história atrás do mito Trajetória de Giuseppe Garibaldi, herói na Itália e na América do Sul, ganha livro de jornalista e cientista político

O

uando morreu, em 1882, perto de completar 75 anos, o italiano Giuseppe Garibaldi já era um mito, o chamado “herói de dois mundos”. Foi um dos responsáveis pela unificação da Itália – processo concretizado em 1861 que culminou com a tomada de Roma, em 1870. Personagem fundamental da Revolução Farroupilha, no sul do Brasil, e de lutas pelo Uruguai independente, ele é retratado no livro Garibaldi na América do Sul – o Mito do Gaúcho (editora Boitempo, 304 páginas), do jornalista e cientista político Gianni

Carta, entrevistado por Oswaldo Luiz Colibri Vitta para a Rádio Brasil Atual. O primeiro e inevitável questionamento, sobre o que é lenda e o que não é, foi uma das preocupações iniciais do autor. Segundo Carta, há mitos com certos fundamentos e outros que são invenção pura. Mas uma coisa é certa: “Ele é um herói”. Condenado à morte por participar de um motim, fugiu da Itália para o Brasil em 1836. Voltaria para lá apenas em 1848. “Lutou na Revolução Farroupilha contra a segunda maior Marinha das Américas”. Em 1841, vai para a região do Rio da Prata, tornando-se herói

também na chamada Guerra Grande, no Uruguai, “que queria se desvencilhar do ditador argentino Rosas (Juan Manuel de Rosas)”. Garibaldi chegou ao Rio de Janeiro enviado por Giuseppe Mazzini (líder do movimento republicano pela unificação italiana), “que ele não conhecia; ao contrário do que dizem vários historiadores, agora está provado”, conta o jornalista e cientista político, também correspondente, na Europa, da revista CartaCapital. Os Giuseppes pertenciam ao mesmo grupo, chamado Jovem Itália (Giovine Italia). Garibaldi veio formar núcleos de apoio a movimentos na região. Dois jornalistas, Giovanni Cuneo e Luigi Rossetti,­ ajudaram a tornar seus feitos conhecidos nos continentes americano e europeu. “Esse é o primeiro herói da idade moderna que faz um programa de marketing”, comenta o autor, que passou oito anos em sua pesquisa, atrás das chamadas fontes primárias e para investigar as distorções formadas ao longo da história. “Eu não queria escrever um livro baseado em compilações de livros já escritos.” Tradutor da obra, o jornalista Flávio Aguiar, colaborador da Rede Brasil Atual, classifica Garibaldi como “herói romântico”, com legado positivo, mesmo com contradições. “O Garibaldi tem esse peso histórico de homem que se dedica a uma causa, que se entrega a ela. Isso não significa que vamos fazer uma idealização acrítica do personagem. O leitor pode formar a própria opinião.” Ouça a íntegra: bit.ly/rba_giuseppe

Sintonize O Jornal Brasil Atual vai ao ar diariamente, das 7h às 9h, com reprise às 12h30. Ao longo do dia, a Rádio Brasil Atual toca música brasileira, com flashes de noticias e prestação de serviços.

93,3 FM Litoral paulista 98,9 FM Grande São Paulo 102,7 FM Noroeste paulista Na internet www.redebrasilatual.com.br/radio

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ENTREVISTA

O país evoluiu,

a imprensa não Lula está pronto para liderar a guerra pela reeleição de Dilma e reage às mídias que sempre o combateram: quanto mais mentem, mais as pessoas percebem e recorrem a outros meios para se informar

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na que para prejuízo da democracia, mas também da credibilidade dos próprios meios de comunicação. Leia aqui o registro dos principais trechos da entrevista da qual participaram os jornalistas João Peres (Rede Brasil Atual/Revista do Brasil), Claudia Manzano e Oswaldo Colibri Vitta (Rádio Brasil Atual), Nelma Salomão (TVT), Karen Marchetti, Júlio Gardesani e Walter Venturini (ABCD Maior) e Rossana Lana (Tribuna Metalúrgica). O ex-presidente saiu da conversa ainda com fôlego para contar piadas, exibindo uma energia perturbadora para quem o queria fora do combate. Esta foi a mais longa, mas não a primeira entrevista de Lula depois de deixar a Presidência. Em março, ele havia falado ao jornal Valor Econômico. Na ocasião, disse: “Quando era presidente, fazia questão de viajar para qualquer país do mundo e levar empresários... Viajo para vender confiança. Adoro fazer debate para mostrar que o Brasil vai dar certo. Compre no Brasil porque o país pode fazer as coisas. Esse é o meu lema. Se alguém tiver um produto brasileiro e tiver vergonha de vender, me dê que eu vendo”. “Temos de agradecer as manifestações de junho e trabalhar para fazer acontecer as melhorias que a sociedade brasileira deseja.”

Eu acredito que o impacto de tudo que aconteceu em junho de 2013 deve servir como uma grande lição para a sociedade e, sobretudo, para os governantes brasileiros.

RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA

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ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve seus motivos para evitar as longas conversas com jornalistas, desde que passou o cargo a sua sucessora. Segundo ele, para um chefe de Estado que acaba de deixar o posto, é questão de zelo, diplomacia e respeito. Além disso, Lula respeitou sua saúde, empregando com parcimônia o exercício da fala enquanto se recuperava de um tratamento rigoroso. No dia 23 de setembro, ele concedeu 90 minutos de seu disputado tempo para responder a perguntas de jornalistas de um conjunto de veículos mantido pelos trabalhadores – num raro empreendimento de comunicação que une esforços de algumas das mais representativas entidades sindicais do mundo. E retomou o que promete ser uma rotina daqui para a frente. “Se tem uma coisa que eu tenho vontade é de falar. Eu tenho cócegas na garganta para falar. E vocês ajudaram a quebrar um tabu, porque fazia tempo que eu não falava durante tanto tempo”, disse. “Estou voltando, com muita vontade, com muita disposição – para felicidade de alguns, para desgraça de outros. É o seguinte: eu estou no jogo.” Alguns dos principais jornais e portais do país até reproduziram partes da entrevista, sem a elegância de citar a fonte, ou tentando desqualificá-la – em uma demonstração prática da tese empregada pelo ex-presidente durante o diálogo: a de que a imprensa não acompanha a evolução do Brasil. Pe-


ENTREVISTA

Uma coisa que sei fazer é pedir voto. Me considero razoável de palanque. Hoje a Dilma precisa menos de mim do que em 2010. Mas vou fazer o mesmo esforço. A vitória da Dilma é a minha vitória. O sucesso dela é o sucesso do povo brasileiro, das camadas mais pobres REVISTA DO BRASIL

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RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA

ENTREVISTA

Acho que os tucanos não têm mais propostas para a Grande São Paulo. O estado está perdendo força, perdendo nível industrial, não tem proposta para a educação. O crime organizado derrotou o governo de São Paulo

Certamente, muita gente de partidos políticos, sindicatos e movimentos organizados da sociedade civil foi pega de surpresa, porque foi um movimento que se deu à margem daquilo que nós conhecíamos como tradicional forma de organização. Aquilo foi um movimento em que as pessoas diziam “nós queremos mais”. Nós queremos mais educação, mais saúde, mais transporte, mais qualidade de vida. A nossa presidenta teve a sabedoria de dar uma resposta imediata, colocando a reforma política como uma coisa fundamental para que a gente possa mudar a situação do Brasil. A sociedade brasileira mudou. Está mais exigente, tem mais informações. Em vez de ficar lamentando, temos de agradecer e começar a trabalhar para fazer acontecer as melhorias que a sociedade brasileira deseja. A única coisa grave do movimento é a tentativa de manipulação para negar a política. Toda vez, em qualquer contexto histórico, em qualquer lugar do mundo, que se negou a política, o que veio depois foi pior.

O ministro Alexandre Padilha (da Saúde) sabe que o Mais Médicos não vai resolver o problema da saúde. O Mais Médicos vai dar oportunidade ao cidadão que não tem acesso a nenhum médico. E, quando esse cidadão tiver acesso ao médico, ele vai querer mais saúde, porque ele vai ter mais informações. Então, todas as vezes vai precisar formar mais gente. É um trabalho bom. Quando em 2007 os tucanos derrubaram a CPMF, fizeram isso achando que iam me prejudicar. Eles tiraram uma bagatela de R$ 40 bilhões por ano. Soma isso em quatro ou sete anos e vê a quantidade de dinheiro que tiraram da saúde. Qual era a ideia? Vamos prejudicar o Lula. Caíram do cavalo, porque terminei meu mandato com 87% de bom e ótimo. Quem eles prejudicaram? O povo. E alguns deles viraram governador ou prefeito e agora estão sabendo a quantidade de dinheiro que falta. Então, foi um gesto de insanidade.

“Só teremos reforma política plena no dia em que tivermos uma constituinte própria para fazê-la. É a melhor possibilidade para mudar a lógica da política no Brasil.”

Eu precisaria de uma bola de cristal na minha frente, porque o que eu disser aqui pode ser desmentido em uma semana com o posicionamento de um partido político. Primeiro: trabalho com a ideia de que a presidenta Dilma deve fazer um esforço para manter sua base de sustentação. Uma coisa o eleitor precisa compreender: para a Dilma ter algo aprovado ela precisa de 41 senadores e 257 deputados. Senão, não ganha. Eu fui presidente e meu partido tinha 13 de um total de 81 senadores, e 80 dos 513 deputados. Não tem milagre. Tem de fazer coalizão. Veja nos Estados Unidos, onde só tem dois partidos, o que o Obama passa. Os republicanos passam oito anos sem aprovar nada. Para um candidato disputar uma eleição em condição de vitória ele precisa de uma das duas coisas: ou ter toda a elite ao seu lado, com apoio irrestrito da grande imprensa e com muito dinheiro, como foi o Collor em 1989, ou ter um partido político forte – além, claro, de um bom candidato.

Não é fácil. É importante lembrar que fizemos a campanha das Diretas, um dos maiores movimentos cívicos deste país, fomos à rua com todos os partidos políticos, com movimento sindical, centenas e centenas de manifestações pelo Brasil inteiro, toda a sociedade querendo, e quando chegou no Congresso não tínhamos número para aprovar, e não aprovamos. Só teremos uma reforma política plena no dia em que tivermos uma constituinte própria para fazê-la. Achar que os atuais deputados vão fazer uma reforma política mudando o status quo é muito difícil. Acredito que é possível discutirmos uma mudança na votação, votar em lista, financiamento público de campanha. Por que os empresários não estão defendendo o financiamento público? Oras, é porque a eles interessa cada um construir a sua bancada. A reforma política é a melhor possibilidade para mudar a lógica da política no Brasil. Mas nada – estou avisando com antecedência –, nada mudará para as próximas eleições. As pessoas podem querer fazer as coisas para 2018, 2020, mas para essa eu acho que não vai haver mudança. “Quando em 2007 derrubaram a CPMF, que foi um ato de insanidade dos tucanos, fizeram isso achando que iam me prejudicar. Quem eles prejudicaram? O povo.”

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“Eu fui presidente e meu partido tinha 13 dos 81 senadores, e 80 dos 513 deputados. Não tem milagre. Tem de fazer coalizão.”

“Me considero razoável de palanque.”

O meu papel será o papel que a Dilma quiser que seja. Tenho de ter muito cuidado porque não posso conversar com um partido político sem que tenha orientação da presidenta ou do partido. Uma coisa que sei fazer, e espero estar em condições para isso, é pedir voto. Me considero razoável de palanque. Gosto, me sinto bem. Certamente que hoje ela precisa menos do que precisava em 2010. Mas vou fazer o mesmo esforço que fiz em 2010. É como se fosse a minha campanha. A vitória da Dilma é a minha vitória. O sucesso dela é o sucesso do povo


ENTREVISTA

“O PSB tem consciência da importância da Dilma, o PT reconhece a importância dele.”

Vi com certa tristeza o afastamento do Eduardo Campos (governador de Pernambuco e presidente do PSB) do governo. Tivemos polêmica em Pernambuco na eleição para prefeito e outra divergência em Fortaleza, e isso criou uma fissura entre o PT e o PSB. Acho que é muito importante do ponto de vista simbólico a manutenção da aliança PT-PSB. Se não der para a gente estar junto, o que precisamos estabelecer como regra é fazer uma campanha civilizada. O PSB tem consciência da importância da Dilma, o PT tem consciência da importância do Eduardo. Prefiro esperar março, até porque ele já disse que não tomará nenhuma decisão sem conversar comigo. “Os tucanos estão num processo de fadiga de material. Está provado que o crime organizado derrotou o governo de São Paulo.”

Eles não têm mais o que propor. Isso não significa dizer que o governador está acabado. Alckmin é uma figura com força política, e precisamos ter habilidade para derrotá-lo. Acho que ele não tem mais propostas para o ABCD, ou para a região metropolitana. Não tem mais o que fazer em nível estadual. São Paulo está perdendo força, está perdendo nível industrial. Não tem proposta para a educação. Está provado que o crime organizado derrotou o governo de São Paulo. Acredito que, se o Alexandre Padilha for realmente o indicado, teremos um ótimo candidato em São Paulo. “Quando o julgamento terminar, eu vou ter muita coisa para dizer.”

Eu, desde o começo, tenho dito que qualquer manifestação minha (sobre o chamado mensalão) só seria feita depois de terminar o processo. Não quero ficar colocando em dúvida questões da Suprema Corte, que tem uma importância muito grande para o Brasil. Fico um pouco chateado, pois se dependesse do comportamento de um ou de outro na imprensa não precisaria nem de julgamento.

O que deve ser garantido pelo Estado de direito, algo pelo que a gente brigou tanto, para alguns editorialistas parece ser crime contra a humanidade: o direito de defesa. Quando o julgamento terminar, seja qual for o resultado, eu vou ter muita coisa para dizer a respeito. “Tenho conversado com o Paulo Bernardo, e ele disse que faria um debate público sobre a democratização da comunicação. E não fez.”

Vamos ter em conta o seguinte: tomamos posse em janeiro de 2003. Em 2005, tivemos a movimentação do mensalão, uma questão muito delicada em que nós tínhamos de provar que o governo não estava envolvido, e ter condição para continuar governando. No meu segundo mandato, a partir de 2007, fizemos a Conferência Nacional de Comunicação (concluída em 2009, depois de etapas municipais e estaduais em que setores da sociedade debateram propostas de democratização do sistema de comunicação do país). Uma proposta surgiu do encontro – não foi a melhor de todas as propostas, foi a que se pôde construir –, mas não andou. Não andou e acho que não foi legal não ter andado. Tenho conversado com o Paulo Bernardo (ministro das Comunicações), e ele disse que faria um debate público, que iria debater na Câmara, e não fez. Temos de ter consciência da importância da regulamentação nas telecomunicações do Brasil. Nosso marco regulatório é de 1962. Não é uma tarefa fácil. “A imprensa sempre me tratou condignamente bem. Poucos presidentes tiveram tanta publicidade ‘favorável’ como eu.”

Esse é um debate que acontece em todo o mundo. E aqui no Brasil também vamos ter esse processo. Como aqui não tem briga, para tudo se chega a um acordo – até pra nossa independência que parecia que ia precisar de uma briga sentou-se à mesa e saiu um acordo –, como aqui para tudo tem um jeitinho, eu acho que a gente vai poder chegar a um acordo e ter uma regulamentação que seja confortável para todo mundo. Por isso que eu não reclamo da imprensa. Eu sou até agradecido porque eu só sou o que sou por causa da imprensa. A imprensa sempre me tratou condignamente bem. Poucos presidentes tiveram tanta publicidade “favorável” como eu... (risos) Quando eles falavam mentiras sobre mim, o povo percebia. As pessoas passaram a procurar outros meios de informação que não os tradicionais. Portanto, a imprensa só vai ganhar credibilidade se for verdadeira. Não adianta mentir. O Brasil evoluiu, e a imprensa precisa evoluir também. Eu fico vendo matérias sobre a economia e fico com a impressão de que o Brasil acaba todo dia. Tem hora que a gente fica com vontade de se trancar e nem sair de casa.

ANDRIS BOVO/ABCD MAIOR

brasileiro, das camadas mais pobres. É difícil, gente, porque nem todo mundo acha prazerosa a ascensão dos mais pobres. Tem gente que fica incomodada dos mais pobres terem acesso a universidades, a restaurantes, a exposições nas bienais. Quanto mais o pobre ascender, melhor será para todos, já que a classe média sobe junto e todo mundo ganha. Disso que temos de ter consciência, e a Dilma pode nos ajudar a construir nos próximos anos. Como eu, ela vai fazer um segundo mandato infinitamente melhor que o primeiro.

Se dependesse de um ou de outro na imprensa, não precisaria de julgamento. O que deve ser garantido pelo Estado de direito, algo pelo qual a gente brigou tanto, para alguns editorialistas parece ser crime contra a humanidade: o direito de defesa

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ENTREVISTA

RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA

Lula fala aos jornalistas de veículos mantidos pelos trabalhadores

Estou com a Marisa há 39 anos e nunca a vi chorar, nem quando ganhei ou perdi as eleições, mas naquele dia, depois da apresentação do Brasil (2009, em Copenhague), eu liguei pra casa e a Marisa estava chorando

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“Precisamos ver se a Copa vai fortalecer o Brasil no mundo, ou se vamos fazer uma Copa fracassada por conta de problemas internos. Acho um retrocesso as pessoas quererem fazer de uma coisa boa uma coisa ruim.”

Eu já conversei com muita gente sobre esse assunto. Com os ministros, com a presidenta Dilma, com o João Roberto Marinho, da emissora que vai transmitir, com o diretor da Ambev, um dos patrocinadores, com o Roberto Setúbal (do Itaú, também patrocinador). Vou conversar com a imprensa esportiva, me informar sobre o acompanhamento pelo Tribunal de Contas da União, pela Procuradoria-Geral da República... O Brasil não é um país qualquer. O Brasil é a sexta economia mundial e conquistamos o direito de realizar uma Copa do Mundo. Precisamos ver se a Copa será um evento em que o Brasil vai fortalecer sua imagem para o mundo, ou se a gente vai fazer uma Copa fracassada por conta de problemas internos. Tem governo federal, estaduais e municipais envolvidos. O Ministério Público tem um procurador designado para acompanhar os comitês organizadores da Copa e da Olimpíada. Eu publiquei decretos em dezembro de 2009 que determinaram a criação de portais, para 2014 e 2016, para que seja acompanhado em tempo real para onde vai cada centavo da União investido nesses negócios. Não podemos permitir que alguma má informação seja passada para a sociedade sem que haja resposta. Sou um homem de muitas emoções. Mas nada foi maior do que a emoção

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que eu senti com a conquista da Olimpíada de 2016. Estou com a Marisa há 39 anos e nunca a vi chorar, nem quando ganhei ou perdi as eleições, mas naquele dia, depois da apresentação do Brasil (2009, em Copenhague), eu liguei pra casa e a Marisa estava chorando. Foi um momento único. Acho um retrocesso as pessoas quererem fazer de uma coisa boa uma coisa ruim. Os governos têm de mostrar o que está acontecendo, assumir responsabilidades. As obras (de mobilidade urbana e de infraestrutura) não vão ficar? Essa é uma preocupação que eu tenho: se não for assim, vamos ter 40 mil pessoas dentro de um estádio torcendo e outras 40 mil fora dizendo que houve corrupção. É preciso construir uma narrativa do significado da Copa do Mundo e da Olimpíada para o nosso país. “Para felicidade de alguns, para desgraça de outros, estou no jogo.”

Se tem uma coisa que eu tenho vontade é de falar. Tenho cócegas na garganta. E vocês ajudaram a quebrar um tabu, porque fazia tempo que eu não falava durante tanto tempo. E nunca imaginei que justamente pra vocês eu fosse dar a entrevista mais difícil. Estou voltando com muita disposição – para felicidade de alguns, e desgraça de outros. Estou no jogo.

Leia e assista

http://bit.ly/rba_entrevista_lula http://bit.ly/tvt_lula_video


LALO LEAL

A TV esconde o Brasil

De como um grupo minguado e oportunista atropela, em poucas horas, um debate que se trava no Congresso há 22 anos e poderia impulsionar a diversidade e a produção cultural regionais

P

arece que alguns parlamentares já esqueceram as “vozes das ruas” gritadas em junho. Com desfaçatez, seis senadores e seis deputados decidiram regular por conta própria o dispositivo constitucional que determina a regionalização da programação de rádio e TV no país. Atropelaram, em poucas horas, um debate que se trava no Congresso há 22 anos. A concentração histórica das programações no eixo Rio-São Paulo faz com que o Brasil não conheça o Brasil. Por isso, os constituintes em 1988 escreveram que “a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão ao princípio da regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei”. Só que essa lei nunca saiu. Iniciativas para elaborá-la não faltaram. O projeto mais antigo é de 1991, da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ). Levou 12 anos para ser aprovado na Câmara e está há dez parado no Senado. Por ele, as TVs ficariam obrigadas a veicular, entre 17h e meia-noite, programas produzidos regionalmente. Seriam no mínimo dez horas e no máximo 22 por semana de programas regionais. Esse tempo deveria aumentar, em cinco anos, para o mínimo de 22 e o máximo de 32 horas. A ampliação do mercado de trabalho para produtores independentes é um dos pontos centrais do projeto. Hoje, quase toda a produção televisiva vem das próprias redes nacionais, concentrando-se no eixo Rio-São Paulo. Se a lei fosse aprovada, 40% dos programas regionais exibidos deveriam ser realizados por pro-

dutoras independentes, contemplando obras de ficção, documentários e teledramaturgia, dando oportunidade de trabalho a novas gerações de profissionais espalhados por todo o país. O resultado para o público seria – além de conhecer melhor a própria região – desfrutar de experimentos narrativos capazes de romper com a mesmice crônica da televisão brasileira. A aprovação na Câmara deu-se depois de longas e árduas negociações da autora do projeto com as emissoras e com os deputados que as representam. Remetido ao Senado, o projeto empacou outra vez, e a explicação para isso é simples: 25% dos senadores detêm concessões de TV. Pois justamente um deles, Romero Jucá (PMDB-RR), tornou-se relator da comissão dos 12 parlamentares surdos às vozes das ruas. Com caráter terminativo, ou seja, a decisão por eles tomada vai direto ao plenário, derrubaram em poucas horas os propósitos dos constituintes de 1988 que estavam, sem dúvida, contemplados no projeto original. A regulação estabelecida pela comissão chega a ser um escárnio. Considera os horários obrigatórios de propaganda política e as redes nacionais para o pronunciamento de autoridades como “produção regional”. Assim como programas religiosos e jogos de futebol. Como ela não define classificação de horários, as cotas regionais podem ser perfeitamente cumpridas durante a madrugada. Mas os absurdos não param por aí. Aproveitaram a oportunidade para enfiar no relatório uma cláusula que dá às emissoras o direito de acesso a 5% dos recursos do Fundo Nacional de Cultura, que tem neste ano orçamento de R$ 260,2 milhões. A justificativa é “incentivar” a regionalização. Fica difícil entender a necessidade desse incentivo para uma programação regional baseada em programas religiosos (pagos pelas igrejas) e de mensagens políticas (dedutíveis do Imposto de Renda), como prevê o relatório do senador Jucá. Triste solução para um problema grave. É inconcebível que um país com as dimensões e a diversidade cultural do Brasil mostre todos os dias pela TV, por exemplo, os congestionamentos nas marginais paulistanas. O que isso interessa ao telespectador do Acre ou do Rio Grande do Sul? Escondendo, ao mesmo tempo, acontecimentos locais importantes. Infelizmente, em vez de solução para mudar esse quadro, vem a providência oportunista e mesquinha dessas meias dúzias de parlamentares. REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA O governo acelera o passo para extrair do pré-sal recursos para ingressar numa nova era, na economia interna e na geopolítica global. Mas, para muitos movimentos, a pressa é inimiga da soberania Por Cida de Oliveira

Sob o signo de

LIBRA A

183 quilômetros da costa do Rio de Janeiro, na Bacia de Santos, está Libra, o maior campo da reserva do pré-sal. Pelas estimativas mais modestas, estão estocados ali 15 bilhões de barris de petróleo. Em seis décadas de operação, a Petrobras extraiu 20 bilhões de barris. A produção, comprovada e aceita internacionalmente – risco zero –, garante óleo para 50 anos. Como costumam dizer os trabalhadores do setor, bastar colocar o canudinho ali e extrair. Uma riqueza avaliada em R$ 3 trilhões, que a natureza levou 130 milhões de anos para lapidar. Neste 21 de outubro, em Brasília, 11 empresas vão disputar o leilão realizado pela Agência Nacional do Petróleo (ANP): 20

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as chinesas Cnooc International Limited e China National Petroleum Corporation (CNPC), a colombiana Ecopetrol, a japonesa Mitsui & CO, a indiana ONGC Videsh, a portuguesa Petrogal, a malaia Petronas, a hispano-chinesa Repsol/Sinopec, a anglo-holandesa Shell e a francesa Total, além da própria Petrobras. As gigantes norte-americanas Chevron e Exxon – as maiores do mundo – e as britânicas BP e BG desistiram da concorrência. Há quem atribua a desistência aos investimentos elevados, de alto risco, a incertezas regulatórias no modelo de partilha, com atuação da estatal Pré-Sal Petróleo (PPSA) no comitê operacional, e um “pedágio” elevado para a Petrobras em forma de fornecimento de parte do petróleo que vierem a extrair. Algo que

algumas vozes do mercado chamaram de excesso de “intervencionismo” estatal. Para quem não está nem aí com as gigantes privadas, trata-se de chororô de quem dificilmente terá bala na agulha para superar a disposição das concorrentes de entrar firme na batalha. Outra suspeita para a desistência, a despeito dessa queda de braço entre as privadas ocidentais e as estatais do oriente, é de que as companhias americanas, para desfazer possíveis ligações com as denúncias de espionagem à estatal brasileira, optaram por ficar de fora e podem vir a operar por meio das outras. A espionagem, aliás, é outro motivo que levou o Clube de Engenharia a defender a suspensão da primeira rodada de leilões do pré-sal. A entidade reúne engenheiros


FOTOS AGÊNCIA PETROBRAS

ECONOMIA

CONSÓRCIO A Plataforma SS-11 extraiu o primeiro óleo do pré-sal na Bacia de Santos em 2010. A Petrobras, sob a presidência de Sérgio Gabrielli, comandou a operação, dividida com outras três empresas brasileiras

A Petrobras está construindo cinco refinarias e encomendou 59 navios aos estaleiros brasileiros. As mais de 50 petroleiras estrangeiras que aqui operam nada constroem. Não fizeram sequer encomendas. Apenas exportam o óleo bruto junto com seus lucros.

O país e suas pressas

e técnicos para discutir questões relacionadas ao desenvolvimento nacional. Segundo o edital do leilão de Libra, os vencedores terão o direito de explorar o petróleo por no mínimo quatro anos. A Petrobras será sócia no consórcio vencedor, com participação de pelo menos 30%. A licitação será realizada em meio à necessidade da União de equilibrar suas contas. O governo também tem pressa em “colocar o canudinho” e sugar à capacidade máxima o óleo do pré-sal, por temer a redução do nível de abastecimento das atuais reservas – o que exigiria aumentar as importações de derivados para atender à demanda interna e afetar ainda mais a balança comercial já negativa. A Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet) não vislumbra tal risco. E estima que a estatal

produza sozinha, em 2015, cerca de 500 mil barris a mais que o consumo nacional; e, em 2020, 1,5 milhão de barris além do necessário. O desafio do país é a produção de derivados. Apesar de já produzir petróleo para dar e vender, a capacidade interna de refino não deu conta do crescimento da frota nacional de veículos e da demanda de gasolina. E a União paga mais pelo que importa do que pelo que vende às petroleiras estrangeiras. Pelas contas do vice-presidente da Aepet, Fernando Siqueira, o prejuízo com exportação de óleo bruto é da ordem de 40%, já que pela Lei Kandir, de 1996, o país não pode recolher uma série de impostos quando vende para fora. “Precisamos construir refinarias para exportar derivados, e não petróleo bruto.”

Sindicatos, associações, setores acadêmicos e dos movimentos sociais são contrários ao leilão. Um dos principais motivos tem amparo no artigo 12 da Lei nº 12.351/2010, conhecida como Lei do Pré-Sal, que dá à União o direito de contratar diretamente a Petrobras quando estiver em jogo a preservação do interesse nacional e do atendimento dos demais objetivos da política energética. “Se um campo correspondente a uma Petrobras inteira não é estratégico ao país, o que então será?”, questiona o coordenador-geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP), João Antônio de Moraes. “O petróleo deve ser entendido como riqueza, como alavanca do desenvolvimento, gerador de empregos nas plataformas, refinarias, terminais, na fabricação de navios e de derivados. Não podemos permitir sua exploração como foi a de outros recursos naturais, como o pau-brasil e o ouro, e o ferro, hoje”, defende. REVISTA DO BRASIL

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ACERVO FUP

Para a presidenta da Petrobras, Graça Foster, que defende a realização imediata do leilão, a empresa tem todas as condições técnicas e operacionais para explorar Libra. “Se parecer prepotência, vocês me desculpem. Mas conheço a Petrobras e as áreas de atuação. Não conheço outra empresa tão capaz para fazer e acontecer Libra”, afirmou Graça Foster, em audiência no Senado. Falta, porém, dinheiro para arcar com os R$ 15 bilhões de bônus que o vencedor do leilão pagará à União. Outro argumento dos defensores do leilão, o de que a Petrobras não teria condições financeiras de explorar sozinha, também é rebatido pelos críticos. Argumentam que se Libra é reserva comprovada, correspondente a uma Petrobras, as ações da estatal disparariam caso a empresa fosse incumbida diretamente de responder pela exploração do campo. Com isso, ainda segundo os opositores do leilão, teria todas as linhas de crédito à disposição para levantar os recursos dos quais o governo afirma não dispor para conseguir “colocar o canudinho” na bacia. Por essa linha de argumentação, os mesmos entes que vão financiar as outras companhias que estarão no leilão financiariam a Petrobras. O problema seria combinar essa crença com os russos, e os norte-americanos, que além de ter lá sua influência nos mercados financeiro e de capitais não simpatizam nada com a aproximação estratégica entre Brasil e, quem sabe, a Chi-

AGÊNCIA PETROBRAS

ECONOMIA

Graça Foster defende a realização do leilão

Moraes, da FUP: setor é vital para o país

na. Também incomoda os norte-americanos o fato de o Brasil passar a ter peso na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), onde pode se tornar voz incômoda e fortalecer sua capacidade de influência na geopolítica global. Mas a Associação dos Engenheiros reclama ainda que o edital distorce a lei da partilha, estabelecendo variações em função da produtividade, o que poderia rebaixar o patamar de arrecadação da União para menos do que havia no regime de concessão. Antes da lei de partilha, vigorou o regime de concessão, de 1997 a 2011. Em linhas gerais, por esse modelo, vencia o leilão de uma área determinada quem pagasse a maior quantia pelo direito de explorá-la, ficando com tudo que extraísse, se extraísse. Pelo modelo de partilha,

instituído para o pré-sal, vence o leilão quem oferecer a maior quantidade de petróleo extraído ao governo, sendo o lance mínimo 41,5%, mais o “ingresso” de R$ 15 bilhões para entrar no negócio, o tal bônus que impele o governo a não abrir mão no leilão já. Na avaliação de Moraes, da FUP, o Brasil pode perder mais soberania do que já perdeu com outras 12 rodadas r­ ealizadas. Um balanço da Agência Nacional do Petróleo, em 2012, indicou oito produtoras estrangeiras das dez principais em operação no Brasil. “Em caso de crise na energia, vão atender seus países, não o Brasil, que perde a chance de controlar uma fonte essencial de energia e de matérias-primas, inclusive para as futuras gerações. Trazer estrangeiros para controlar Libra é pôr em risco as futuras gerações brasileiras.”

Manifestação em São Paulo

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ROBERTO PARIZOTTI/CUT

Os astros se movem Em 24 de setembro, um dia depois de o Sol entrar no signo regido pela constelação de Libra, manifestantes começaram a montar acampamento diante da sede da Petrobras, na Avenida Chile, no Rio de Janeiro. Sem data para sair. Libra é marcado pelo símbolo da equidade; a primavera é a estação em que dia e noite têm a mesma duração e o signo tem como símbolo a balança, a mesma da justiça. Organizados na Plataforma Camponesa e Operária de Energia, dezenas de entidades como o Movimento dos Atingidos por Barragem e dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, além de sindicatos de

diversas categorias, prometem mais manifestações em todo o país para sensibilizar a presidenta Dilma Rousseff a não levar adiante o que chamam de privatização do petróleo. O governo sustenta que o Estado permanecerá proprietário de todo o gás e óleo existentes na área a ser explorada. E que o recebimento dos bônus, dos royalties, dos impostos e da sua cota a ser acertada com os vencedores – além da injeção no Fundo Soberano já com vistas a dar destino aos recursos provenientes do présal – justifica a pressa. O leilão segue marcado para 21 de outubro, um dia antes de o Sol entrar em Escorpião.


ECONOMIA

Oceano

Pós-sal

Camada de sal

Pré-sal

AGÊNCIA PETROBRAS

(cerca de 7 km abaixo do nível do mar)

Distante e profundo MG RJ

SP

Santos

Rio de Janeiro Libra

Iara Iracema PR

SC

Guará O campo de Libra fica a 183 km da costa do Rio e tem 1.500 km2

Tupi

Para o governo, porém, é esse “futuro” que move a pressa de hoje. Afinal, boa parte do dinheiro a ser extraído do pré-sal já está carimbada, por lei, para financiar o desenvolvimento da educação, da saúde e de pesquisas voltadas, inclusive, para a readequação da matriz energética nacional. Mas se existe, por um lado, a convicção de que a capacidade produtiva de Libra é líquida e certa, tanto o governo como comunidade científica sabem, por outro lado, que esses recursos não vão durar a vida toda, e os maiores países do mundo se preparam para reduzir sua dependência desse tipo de combustível fóssil em poucas décadas. Os Estados Unidos, por exemplo, possuem as maiores reservas de xisto betuminoso, do planeta, seguido pela China e Argentina. O Brasil está nesse pelotão, mas engatinha na extração e processamento. O combustível extraído do xisto é de melhor qualidade, fornece todos os tipos de combustível (gasolina, diesel, gás combustível, gás liquefeito) e pode ser mais barato. Em outras palavras, o petróleo das reservas no Brasil e no Oriente Médio podem estar, mesmo, com décadas contadas para perder mercado. Os norte-americanos trabalham com afinco e muita tecnologia para abreviar o tempo para o início da produção desse novo combustível. Sem dinheiro suficiente para tocar as perfurações em Libra, o Brasil pode ver sua reserva mirar mico. A pressa, então, é a tática decidida pelo governo federal para aproveitar o pré-sal. As manifestações das ruas pediram pressa na melhoria dos serviços públicos de saúde, educação e transporte. Foi esse o recado dado pela presidenta Dilma Rousseff no mês passado, ao sancionar a lei que destina recursos dos royalties do petróleo para a saúde. “Isso significa R$ 112 bilhões nos próximos dez anos, e do Fundo Social só do Campo de Libra a gente calcula algo em torno de R$ 368 bilhões nos próximos 35 anos”, destacou a presidenta. “Com essa opção que nós fazemos pela educação de qualidade, nós vamos tornar irreversível o processo de redução das desigualdades em nosso país.” REVISTA DO BRASIL

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Pontas soltas na

ex florest Massacre de sem-terra ocorrido há 18 anos em Rondônia está longe de desfecho: famílias sem indenização, pedido de anistia a condenados e mortes se repetem no campo Por João Peres

A

qui escorreu sangue. Não carece de assustar porque faz tempo, já lavou. Hoje é mato até a cintura, picando as mãos, ajudando a esquecer. Vai ter uma capela para lembrar dos mortos tudinho. Estavam aqui, debaixo da sola dos pés, onde o mato não deixa ver. José Carlos Leite Ferreira, o Carlim, cismou de não apagar da memória. “Eles atacaram por aqui”, aponta para a direita, e parece enxergar os policiais vindo em sua direção.“De madrugada escutava uns cain­do, outros subindo nos galhos. Começou o tiroteio. Só ouvia ‘pelo amor de Deus’, ‘não quero morrer’.” Morreram 11 sem-terra, nove deles amigos de Carlim, e dois policiais. O massacre de Corumbiara (RO), em 9 de agosto de 1995, no interior do interior do Brasil, tem muitas pontas soltas: engana-se quem acha que é passado. 24

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TERROR Carlim: “Aí começou o tiroteio. Só ouvia ‘pelo amor de Deus’, ‘não quero morrer’”


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Em 2012, o Pará foi desbancado do topo da honrosa lista elaborada pela Comissão Pastoral da Terra sobre mortes no campo. Com oito assassinatos a seis, Rondônia deixou a pecha de eterno vice. Criado em 1982, o estado é o novo oeste do Brasil, com cenas dignas de um velho e selvagem oeste dos Estados Unidos. Há muito os militares cresciam os olhos para aquela imensidão, por achar que indígenas e ribeirinhos deveriam ceder espaço a boi e plantio. Estradas para o norte, para o oeste, incentivos fiscais. Tanta tensão social no Rio e em São Paulo, tanta seca no Nordeste, tanta gente sem terra no Sul. Na década de 1970, Rondônia era uma frente de oportunidades: legais e morais, ilegais e imorais. A BR-364, de Porto Velho a Cuiabá, virou a espinha dorsal de uma região de rios caudalosos. A 100 quilômetros para cada lado dela as terras deveriam ser destinadas à reforma agrária. Nos anos 1970, 24 mil famílias foram assentadas, mas a população explodiu de 70 mil habitantes em 1960 para 491 mil em 1980. Na mesma década, 500 mil hectares de propriedades foram licitados ou doados a empresas ou grandes fazendeiros do Sul e do Sudeste. À medida que havia mais gente à espera de terra e o processo se tornava mais lento, a violência se intensificava. Vieram tempos de enfrentamentos entre jagunços e posseiros.

ta AMEAÇA NACIONAL Porteira da antiga Fazenda Santa Elina: 20 mil hectares ocupados por 532 famílias em julho de 1995 mobilizaram parlamentares ruralistas e jagunços

FOTOS GERARDO LAZZARI/RBA

Segurança de instalações

HORTA E MELANCIAS Anita é uma das 409 pessoas assentadas na região: subsistência

Foi nesse cenário que em 1995 um grupo de amigos de Corumbiara, no extremo sul, soube que a Fazenda Santa Elina e seus quase 20 mil hectares poderiam entrar para a reforma agrária. Passando ali para visitar amigos, Cícero Pereira Leite Neto, que havia comandado muitas ocupações, aceitou um convite que mudaria sua vida. “Olha, eu fico as duas primeiras semanas. Mais que isso não fico.” Mas a carne do rapaz vindo de Pernambuco era fraca para movimento. Chegado na década de 1970, tinha integrado as Comunidades Eclesiais de Base, onde se deu conta de que o ímpeto da juventude casava com a falta de oportunidades para um nordestino pobre. Em julho de 1995, quando a área foi ocupada, a notícia correu a região, por onde os líderes se mobilizavam chamando mais REVISTA DO BRASIL

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VAQUEIROS DE CHINELO Para cuidar de um rebanho que alcançou 12 mihões de animais em 2012, crianças entram na lida bem cedo

famílias – 532 no total, segundo os registros. Nesse ínterim, policiais eram procurados por funcionários de várias fazendas na área para um bico como “segurança de instalações”, com salário de R$ 800. No começo daquele agosto, os sem-terra decidiram enviar ao então governador, Valdir Raupp (PMDB), hoje senador, um ofício chamando atenção para o clima tenso. Tarde demais: em 29 de julho, o presidente da Sociedade Rural Brasileira, Roberto Rodrigues, havia endereçado carta ao gabinete de Raupp: “A classe dos produtores rurais espera e confia na ação enérgica e imediata do governo de Vossa Excelência... A violência precisa ser extirpada no início, antes que se expanda como rastilho de pólvora”, cobrou Rodrigues. O homem que seria ministro da Agricultura do primeiro governo Lula trouxe ao papel aquilo que até hoje corre à boca pequena: a preocupação dos fazendeiros era que as ocupações se espalhassem pela região. Em 1º de agosto, o juiz Glodner Pauletto expediu ofício à Polícia Militar: o 26

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VELHO OESTE Num processo que vem dos anos 1970, a floresta é queimada para dar espaço aos bois. E reforma agrária se resolve à bala

mandado de reintegração de posse deveria ser cumprido “IMEDIATAMENTE”. Tropas deslocadas de Porto Velho se somaram às de Vilhena e às de Colorado do Oeste, quase 200 homens. Uma semana após a ordem, o major José Ventura Pereira, que deveria comandar a operação, reuniu-se com os sem-terra, enquanto os colegas armavam acampamento em frente ao assentamento vizinho. Ventura prometeu que voltaria a conversar com o magistrado em busca de uma solução pacífica, o que está registrado em gravação. Naquela madrugada, porém, os PMs começaram a marchar em direção ao acampamento dos agricultores, numa estratégia mais tarde lembrada pelo responsável pela investigação como “uma máxima estratégica preconizada nos manuais militares para operações de combate, o que evidencia, pelo menos em nível de comando, que a reação era previsível e esperada”. Em juízo, Ventura declarou ter sofrido pressão de Executivo, Judiciário e fazendeiros, os três poderes constitucionais de Rondônia.

Faça a gentileza

Difícil dizer quem começou o tiroteio. Os sem-terra tinham em torno de 40 homens armados, o chamado grupo da segurança. Os sobreviventes dizem que havia pistoleiros do outro lado, e há quem admita que vários deles foram mortos. Guaxeba, ou jagunço, é uma profissão comum em Rondônia, tão comum quanto ter uma arma. Após um longo período de conflito, no começo da manhã os policiais dominaram a situação. Aí têm início abusos, tortura física e psicológica e execuções – pelo menos seis entre as nove mortes oficiais. Na versão dos sem-terra, morreram muito mais trabalhadores do que dizem os números. O posseiro Sérgio Rodrigues Gomes estava em poder da polícia quando foi retirado do local, com vida, em uma picape. O corpo apareceu boiando no dia 24 em um rio, com marcas de tortura e sinais de execução sumária. Os depoimentos conectam essa morte a um funcionário de Antenor Duarte do


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Valle, pecuarista de São Paulo que liderava os proprietários da região, fundador da seccional rondoniense da União Democrática Ruralista (UDR). Ele tem fazendas em vários municípios de Rondônia e de Mato Grosso e alguns processos por desmatamento ilegal. É também um habitué da chamada “lista suja” do trabalho escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego, que frequentou regularmente entre 2004 e 2009. Um relatório expedido ao governador no começo de agosto indicava como solução para o problema a destinação provisória de 500 hectares para uma roça comunitária dos posseiros, proposta que não foi vetada por Hélio Pereira de Morais, dono da fazenda, mas por Antenor. Quando se apresentou para depor, o pecuarista admitiu que esteve na cena do conflito, porque um policial pediu a um peão que “fizesse a gentileza” de ajudar a transportar as tropas. Há relatos, porém, de que Antenor circulou pela base da PM montada durante a operação. O médico e PM Renato Closs disse que ficou chocado ao chegar ao acampamento e ver a desenvoltura com que civis armados circulavam pela área. Informaram a ele que eram capangas de Antenor, incluindo três policiais, que disseram haver sido contratados para serviços de segurança. Sabe-se que o pecuarista esteve no 3º Batalhão da PM, em Vilhena, dias antes da operação. Lá, conversou com o capitão Vitório Regis Mena Mendes, que comandou as tropas da Santa Elina. O responsável pelo inquérito achou curioso que fossem os fazendeiros os fornecedores de todo o aparato logístico, incluindo alimentação. No começo de setembro, o capitão, que recebia R$ 1.061,14 por mês, comprou um Monza novo no valor de R$ 19.865,00.

É quase tudo pasto AMAZONAS Porto Velho MATO GROSSO

RONDÔNIA BOLÍVIA

Corumbiara

OCUPAÇÃO OSTENSIVA Em imagem de satélite da Nasa, de 2007, a maior parte do estado aparece em tons de verde claro e de terra: pouco sobrou da floresta nativa

EARTHOBSERVATORY.NASA.GOV

Ou os sem-terra, ou o Brasil

Nos meses seguintes ao massacre, o Incra assentou as famílias. Enquanto a maior parte retomava a vida, dois dos sem-terra começavam a sofrer acusações. Para o Ministério Público, Claudemir Gilberto Ramos e Cícero Pereira Leite Neto são responsáveis pela morte dos dois policiais. Na impossibilidade de que se identifique a autoria dos disparos, de REVISTA DO BRASIL

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CICATRIZ Todos os anos, em 9 de agosto, uma missa é celebrada na igreja de Corumbiara em homenagem aos 11 mortos

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escapar das pressões que ocorreriam no interior. O advogado Alexandre Lopes de Oliveira, que atua no Rio de Janeiro, estava em seu primeiro júri, e foi à capital acompanhado do experiente George Tavares para defender Cícero e Claudemir. “Era um clima horroroso. A cidade estava parada em torno do julgamento. Falava-se na absolvição dos policiais, jogava-se toda a culpa em cima dos camponeses.” A situação se mostrou complicada logo no primeiro dia, ainda durante o julgamento de PMs, quando o promotor Tarcísio Leite Mattos iniciou os trabalhos com pedido de absolvição dos agentes de segurança, alegando que haviam cumprido ordens. “Ou o Brasil acaba com os sem-terra, ou os sem-terra acabam com o Brasil”, disse. “Ele estava advogando para os policiais, e não fazendo o papel de Ministério Público. Aí o estrago já estava feito”, lamenta

Reconhecimento O atual comandante da PM de Rondônia é Paulo César de Figueiredo. Em 1999, ele foi pronunciado réu por nove homicídios qualificados de sem-terra na Santa Elina, mas não chegou a ser levado a julgamento. Julgado e absolvido, José Hélio Cysneiros Pachá, promovido no último dia 3 de setembro a coronel, assumiu a Coordenadoria Regional de Policiamento de Porto Velho. Antes, foi diretor de Ensino da PM de Rondônia.

RONDONOTICIAS

acordo com o MP, os que promoveram a ocupação devem pagar pelo crime. Do lado dos policiais, a situação foi igualmente complexa. Rondônia não contava com órgãos próprios de perícia, muitas das balas encontradas nos corpos não foram submetidas aos exames legais, o controle do uso de munição e armamento pelos batalhões era frágil e a cena dos fatos havia sido desfeita. “Eu estava com consciência de que tinham me colocado só pra ter mais um. Digo de coração: nunca imaginei que seria condenado”, recorda o soldado Airton Ramos de Morais. “As testemunhas não reconheceram, a balística não deu nada, e peguei 18 anos.” Enquanto o fazendeiro Antenor Duarte escapou já na fase de instrução do processo, dez PMs e dois sem-terra foram levados a júri popular. O júri foi deslocado para a capital Porto Velho na tentativa de


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Alexandre. O resultado foi de quatro votos a três pela condenação dos sem-terra, o que, traduzido do juridiquês, demonstra um alto grau de dúvida dos jurados, suficiente para que se convocasse novo julgamento – o que nunca ocorreu, apesar de pedidos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que cobrou ainda uma apuração imparcial, promovida por um órgão que não estivesse envolvido diretamente no episódio. Claudemir recebeu sentença de oito anos e seis meses. Cícero, de seis anos e dois meses. Entre os policiais, os jurados entenderam que eram

culpados os soldados Daniel da Silva Furtado e Airton Ramos de Morais, com penas, respectivamente, de 16 e de 18 anos. O capitão Mena Mendes recebeu sentença de 19 anos e meio de reclusão. Em 2004, quando se esgotaram os recursos, Claudemir passou a uma vida errante. Todos os dias dorme e acorda sem saber se em seguida estará só, preso ou morto. “Estou sofrendo uma prisão psicológica. Já estou cumprindo a pena. Só não me entreguei porque acho injusto.” Em 2011, o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) apresentou proposta para anistiar os

dois sem-terra. O projeto passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na qual o relator, Vieira da Cunha (PDT-RS), acrescentou o pedido de que sejam anistiados também os policiais, e agora espera pela votação em plenário. Cícero achava já estar livre da condenação, até que em 2007 foi avisado de que deveria se apresentar à Justiça: cumpriu dez meses e oito dias em regime fechado. Os soldados Ramos e Furtado estão em regime aberto, em Vilhena, e Mena Mendes, em Porto Velho. Chegou a perder a patente, mas acabou se aposentando como servidor público.

Sem acordo Anita, vive vigiada por uma das imponentes estruturas, colocada sobre a colina mais alta do local. Chegou à terra no ano passado, e agora vive em uma casinha de madeira, com um quarto e sala, uma cozinha do lado de fora e um banheiro seco, afastado. Entre 2011 e 2012, o Incra finalmente conseguiu comprar 14 mil hectares daquelas terras para reforma agrária. “Eu acho que o lugar melhor para viver é no campo”, diz, sempre olhando para baixo, num discurso corriqueiro logo deixado para trás para virem à tona as palavras imperialismo, burguesia, resistência. Não é difícil entender que ela integra a Liga dos Camponeses Pobres, grupo à esquerda do MST. É preciso dirigir 12 quilômetros desde a casa de Anita, por dentro da fazenda, para chegar à antiga sede, que hoje funciona como um centro de reuniões dos assentados pela Liga. A nova ocupação da Santa Elina, feita pela primeira vez em 2008 e retomada dois anos mais tarde, foi fruto da soma de insatisfação com a demora de que se pague indenização às vítimas do massacre, novas famílias à espera de terras e disputa entre movimentos. A Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia, um grupo antipartidário rompido com os líderes do movimento de 1995, passou a disputar a herança do

GERARDO LAZZARI/RBA

Quem vai conhecer Rondônia e não pretende se decepcionar precisa deixar para trás o préconceito de uma Amazônia idílica, moldada por divinas mãos, intocada. Boa parte da floresta virou pó (continua virando todos os anos durante a época de queimadas) e outra parte, dinheiro, carvão, construção civil e móveis. Em Corumbiara, dos 190 mil hectares disponíveis para a agricultura, segundo o IBGE, 131 mil eram usados em 2006 para pastagens pelas quais circulavam 214 mil cabeças de gado. De lá para cá, o panorama mudou, visivelmente, com a chegada da soja. À agricultura se somou nos últimos anos um elemento surreal: torres de energia imensas, do tamanho e da largura de edifícios, brotam do solo. Os fios que saem das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Porto Velho, atravessam o estado de ponta a ponta para mandar eletricidade para o Sudeste, passando pela Santa Elina. Os novos moradores, porém, das torres só desfrutam os pilares, onde se sentam para conversar ou comer alguma fruta. Tampouco há água encanada, luxo rondoniense, e as estradas são quase intransitáveis na época da chuva, de outubro a abril, quando as crianças passam semanas sem conseguir ir à escola. Dora Nilva Mendonça, a

A casa da assentada Anita: sem eletricidade

episódio. Parte dessa estratégia foi rebatizá-lo como Batalha de Corumbiara, uma maneira de enaltecer a resistência dos trabalhadores, e promover a “revolução agrária”, em que se definem o tamanho dos lotes e a distribuição sem a participação do Incra. Camponeses ligados à Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Rondônia (Fetagro)­e ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Corumbiara também reforçaram a pressão sobre o Incra pela demarcação das terras. De um lado, o relato é de que a outra entidade colocou na lista para assentamento famílias que nada têm a ver com a questão rural, acusação repetida de maneira idêntica do outro lado. “O conflito em Santa Elina foi um divisor de águas no movimento camponês, uma ruptura entre as lideranças oportunistas que defendem a reforma agrária do governo e as lideranças comba-

tivas que romperam as ilusões com o processo eleitoral”, diz o líder da Liga, identificado como Zé Gonçalves. A divisão entre movimentos é fácil de notar também no longo processo de indenização das vítimas. Ninguém sabe explicar o emaranhado de ações judiciais e negociações paralelas em torno do tema, e é impossível vislumbrar o horizonte em que entidades que pensam de maneira tão diferente e disputam um mesmo espaço cheguem a um acordo. Um pequeno grupo de famílias esteve perto de arrancar do governo estadual um benefício de um salário mínimo por mês, mas a entrada de mais pessoas fez a gestão de Ivo Cassol (PP, 2003-2010) recuar, com o argumento de que não havia caixa suficiente. Recentemente foi realizada uma audiência na Assembleia Legislativa, mas o governador Confúcio Moura (PMDB) não enviou representantes.

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Anda perigoso ter cara de

COMISSÃO GUARANI YVYRUPA

índio Demora em demarcação de terras, avanços dos ruralistas e lentidão no Ministério da Justiça afloram tensões anti e pró-indígenas pelo país Por Carlos Minuano e Tadeu Breda

O

s últimos meses têm sido de acirramento das tensões movidas a interesses que rondam a (falta de) demarcação de terras indígenas. Parlamentares da bancada ruralista apresentam projetos que, segundo antropólogos e lideranças indígenas, dificultariam ou inviabilizariam processos de demarcação que vêm sendo protelados há décadas. Um desses projetos é uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC 215. 30

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Apresentada em 2000 pelo deputado Almir Sá (então PPB-RR), transfere para o Legislativo a competência para demarcar territórios de ocupação tradi­cional no Brasil, indígenas ou quilombolas. Desde­ a Constituição, essa prerrogativa cabe ao governo federal, em basicamente três fases. A Fundação Nacional do Índio ­(Funai) ­realiza estudos que atestam a ancestralidade do território. O Ministério da Justiça assina um documento chamado Portaria Declaratória. E, por último, cabe a homologação da terra pela Presidência.

GABRIELA KOROSSY/AGÊNCIA CÂMARA

Protesto guarani em rodovia paulista

“Se não tem PEC, dialogamos com o governo. Com a ameaça da PEC, temos de lutar”, afirma Marcos Tupã, 42 anos, coordenador-geral da Comissão Gua­ rani Yvyrupa (CGY), que congrega povos Guarani Mbya e Guarani Nhandeva das regiões Sul e Sudeste. Tupã resume a razão que levou os Guarani a deixar de lado sua vocação negociadora e ir às ruas. “A PEC acaba com qualquer garantia de demarcação de novas terras”, avalia, lembrando que a bancada ruralista possui grande poder de influência no Congresso.


GABRIELA KOROSSY/AGÊNCIA CÂMARA

JOSÈ CRUZ/ABR

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GABRIELA KOROSSY/AGÊNCIA CÂMARA

Índios acompanham as discussões sobre a constitucionalidade da PEC 215, em Brasília

Almir Sá: mais dificuldades para os índios

O senador Romero Jucá (PMDB-RO) é autor de outra inciativa – redigida com a participação da Advocacia-Geral da União. Seu projeto estabelece que áreas consideradas como Terras Indígenas (TI) poderão ser excluídas dessa classificação se seus títulos de ocupação não forem “considerados válidos”. Essa manobra legislativa significaria revogar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição – que assegura a demarcação da terra à comunidade tradicional – a pretexto de “regulamentá-lo”.

Mas os projetos em andamento não são o único motivo a provocar ações como a dos Guarani, que no último 25 de setembro fecharam a Rodovia dos Bandeirantes, na região metropolitana de São Paulo. A CGY exige que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, autorize a publicação das portarias declaratórias de duas terras indígenas da capital paulista: a Tenondé Porã, na zona sul; e a do Jaraguá, zona noroeste. Ambos os territórios já foram aprovados pela Funai. “Falta apenas a assinatura do ministro”, reivindica Marcos Tupã.

O líder guarani conta que as duas terras abrigam quatro aldeias: duas em cada território. A do Jaraguá é formada pelas aldeias Pyau e Ytu, onde residem cerca de 600 guaranis. Reconhecida na década de 1980, a reserva possui área de apenas 1,7 hectare, o que faz dela a menor TI do país. A de Tenondé Porã, às margens da Represa Billings, também foi reconhecida nos anos 1980. Os indígenas que fecharam a rodovia querem ainda o fim dos processos judiciais movidos pelo governo do estado de REVISTA DO BRASIL

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Tempos de emboscadas

Onde faltam consolidação fundiária e respostas rápidas do poder público, sobram conflitos, em geral produzidos por poderes paralelos que agem à margem da lei. Uma emboscada na calada da noite mudou a rotina dos estudantes da Escola Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro, em Buerarema, sul da Bahia, a 450 quilômetros de Salvador. Em 14 de agosto, uma quarta-feira, o ataque pegou de surpresa alunos que retornavam da aula num caminhão. Dois jovens não indígenas foram feridos. Mas, segundo índios, era o início de uma nova série de investidas contra os tupinambás, que aguardam há nove anos a conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Dois dias depois, moradores atearam fogo em veículos de órgãos públicos e em um ônibus escolar. A Força de Segurança Nacional está no município para conter a crise. A violência e a tensão na região crescem. No mesmo fim de semana, casas de indígenas na área urbana foram incendiadas por moradores, em apoio aos fazendeiros. “O agronegócio está articulando essas ações criminosas, e vidas correm perigo”, denuncia a líder indígena Yakyuy Tupinambá. Ela afirma ainda estar sob ameaça de morte por parte de fazendeiros, pequenos agricultores e posseiros, supostos proprietários dos territórios em litígio. Os ataques, segundo os índios, estariam se agravando motivados pela decisão da Justiça Federal de Ilhéus de suspender liminares de ações de reintegração de posse em favor de fazendeiros. Com isso, cerca de 500 indígenas ficam autorizados a permanecer nas fazendas ocupadas. 32

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“Como indígenas, temos uma forma de viver tradicionalmente, junto à natureza”

MARCELLO CASAL JR/ABR

São Paulo contra povos Guarani cujos territórios se sobrepõem aos limites de parques estaduais. É o caso da Terra Indígena Peguoaty, no município de Sete Barras, região do Vale do Ribeira, e da Terra Indígena Paranapuã, em São Vicente, litoral sul. “Temos uma forma de viver tradicionalmente, junto à natureza”, garante Marcos Tupã. “Queremos que o governo retire essas ações judiciais e que possa haver uma gestão compartilhada entre governo do estado, povos indígenas e Funai.”

Marcos Tupã

LONGA ESPERA Etnias Guarani de diversas partes do país aguardam demarcações há décadas

A lentidão dos órgãos públicos desenha o cenário de conflitos. O Ministério da Justiça ainda não assinou a portaria declaratória para que seja concluída a demar­ cação. O processo teve início em 2004 e o relatório foi aprovado pela Funai em 2009. O documento delimita área de cerca de 47 mil hectares, incluindo terras nos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una. Cerca 4.700 tupinambás vivem na região.

Difícil retomada

A relação pouco amistosa entre índios e fazendeiros no sul da Bahia é antiga. Começou com a invasão de não indígenas ao território tupinambá no século 19, período do estabelecimento da cultura do cacau e no qual a região tornou-se a principal fronteira agrícola do estado, segundo a jornalista Daniela Alarcon, mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília e autora da pesquisa “O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá de Serra do Padeiro, Bahia”. O processo de “retomada”, como é chamado pelos tupinambás, não está fácil. Os índios enfrentam violência de fazendeiros e posseiros, que contam ainda com aparato policial e apoio político em suas investidas contra as aldeias. De acordo com o

relato de Daniela, os tupinambás têm sido vítimas de recorrente violência policial, em que se comprovaram a utilização de armamento letal, prisões ilegais de lideranças e tortura (com choques elétricos). Em carta à Funai datada de 13 de fevereiro de 2008, como relata a jornalista, o cacique Babau denunciou o radialista Rivamar Mesquita, apresentador do programa Novo Amanhecer, da Rádio Jornal, e dois convidados a abordar o caso tupinambá durante aproximadamente 40 minutos, proferindo ameaças de morte e falas discriminatórias. Babau é uma importante liderança da aldeia Serra do Padeiro, onde vivem cerca de mil índios. Ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público Federal em dezembro de 2012 cobram da União atendimento aos índios que não estejam em áreas demarcadas e o fornecimento de medicamentos. No final de agosto, foi lançada a Campanha Tupinambá, com abaixo-assinado e carta pública que pede urgência na conclusão do processo. Na mesma ocasião, procuradores do MPF em Ilhéus estiveram com lideranças dos índios e representantes da sociedade civil para tratar das recentes manifestações anti-indígenas.


KÁTIA MESSIAS

DANIELA ALARCON

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SUL DA BAHIA A tupinambá Yakyuy: “O agronegócio está articulando ações criminosas”. Líderes tentam audiência com Dilma

“A conclusão do processo demarcatório é essencial para a pacificação da região, pois trará segurança jurídica para ambas as partes”, afirmou o procurador da República Ovídio Augusto Amoedo Machado. Não demorou para outro incidente ocorrer. Em 5 de setembro, o professor Edson Kayapó, coordenador da Licenciatura Intercultural Indígena do Instituto Federal da Bahia (IFBA), foi agredido. Ele estava com o antropólogo João Veridiano, a professora de História Indígena Julia Rosa e um motorista. Retornavam de atividades em Olivença quando o carro da IFBA foi interceptado em São José da Vitória por capangas. “Disseram: ‘Tem um índio no carro’, e em seguida fomos violentamente expulsos do carro, que foi levado, incendiado e deixado no meio da BR”, diz Edson Kayapó. Ele pegou ­táxi para Itabuna e foi novamente parado, em Buerarema, espancado e ameaçado de morte por desconhecidos. “Ultimamente ninguém está se pintando nem usando adornos”, diz a líder Yakuy Tupinambá. Segundo ela, anda perigoso ter cara de índio. Toda a rotina das aldeias da região foi afetada, prejudicando o atendimento de saúde, a ida das crianças à escola, a venda de artesanato

e de produtos agrícolas. “Somos atacados com palavras racistas, estamos perdendo o direito de ir e vir.” Ela reclama que blogueiros locais incitam a violência contra o povo Tupinambá. Diante do cenário pouco animador, lideranças planejam intensificar ações e tentar audiências com a presidenta Dilma­ Rousseff e os ministros da Educação, Cultura, Promoção da Igualdade Racial e de Direitos Humanos. “Há muito os caciques do povo Tupinambá de Olivença tentam uma audiência com a presidenta, mas ela não deu nenhuma resposta até agora”, afirma a líder. Procurado pela reportagem, o Ministério da Justiça respondeu por meio da assessoria que o ministro Cardozo tem se reunido semanalmente com representantes da Presidência e de diversos ministérios no sentido de agilizar soluções para a questão de disputas de terras, especialmente em conflitos ocorridos nos estados da Bahia, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. Numa segunda tentativa de contato, informou, por e-mail, que no dia 18 de setembro uma equipe técnica do ministério esteve na Bahia para integrar grupo de discussões sobre a situação local.

“Essa é uma das diretrizes determinadas após reuniões em Brasília. O grupo formado por indígenas, agricultores e agentes da esfera pública tem o objetivo de identificar os possíveis focos de conflito na região. O Ministério da Justiça vai expedir portaria declaratória, reconhecendo-a como território tradicional indígena, após minuciosa análise jurídica da documentação antropológica feita pela Funai.” A nota termina detalhando que a última etapa é a homologação pela Presidência da República e que a Força Nacional de Segurança permanece no local para evitar novos focos de conflito. A pesquisadora Daniela Alarcon observa, porém, que o processo de demarcação no Brasil, regulamentado por decreto, é claro quando estabelece prazos máximos para cada etapa. “Então tem lá: x dias para que o grupo de trabalho elabore o rela­ tório, x dias para que a Funai faça isso, x dias para que o MJ faça aquilo. Mas a Funai, o MJ, a Presidência da República desres­peitam sistematicamente esses prazos. É gritante. O decreto fala lá em 30, 60 dias para determinadas etapas, que acabam se estendendo por anos.” O MPF propôs ação civil pública que responsabiliza o Estado por omissão e abusiva demora. REVISTA DO BRASIL

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MUNDO

Lições da guerra civil na

Síria E as barbeiragens das potências ocidentais, habituadas a sobrepor a força à diplomacia e a impor ao mundo o entendimento de que suas armas são mais legítimas que as dos outros Por Flávio Aguiar

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uso do gás sarin nos subúrbios de Damasco com­ provou mais uma vez a afirmação de que a melhor maneira de não usar uma arma é não tê-la. Caso ela exista, corre-se o grande risco de que, mesmo que seu proprietário não queira usá-la, algum outro a use. Ou que ela venha a entrar em ação por acidente. Corrobora o risco o caso recentemente revelado de uma bomba atômica que quase explodiu no estado norte-americano da Carolina do Norte, em 1961, quando o avião que transportava dois desses artefatos partiu-se em pleno ar. Ou seja, o uso do gás sarin na Síria, um horror em si, é uma advertência para os arsenais atômicos existentes no seleto clube de seus possuidores: Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido, França, Índia, Paquistão, Coreia do Norte e, ao que tudo

indica, Israel. Além disso, há ogivas nucleares norte-americanas estocadas na Bélgica, Alemanha, Itália, Holanda e Turquia. A África do Sul chegou a produzir ogivas nucleares durante o regime do apartheid, mas as desmontou depois. Um segundo recado da crise síria é que os Estados Unidos e seus aliados (Reino Unido e França, sobretudo) perderam a credibilidade para acusar este ou aquele. Não conseguiram convencer nem mesmo a própria população, pois em todos eles o apoio a uma intervenção militar era minoritário. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, passou pelo vexame de ter a proposta de intervenção militar rejeitada pela Câmara Baixa, mesmo com seu Partido Conservador tendo maioria de representantes. O presidente Barack Obama iria pelo mesmo caminho, caso uma proposta


MUNDO

FACUNDO ARRIZABALAGA/EFE

“TIREM AS MÃOS” Mulher protesta em Londres contra intervenção na Síria

semelhante fosse votada no Congresso norte-americano. Os fatores para essa perda de credibilidade foram tanto o fiasco da alegação de que o governo iraquiano possuía armas de destruição em massa para justificar a invasão do país como o fato de que algumas das intervenções do Ocidente desembocaram num julgamento de fachada (Saddam Hussein no Iraque), num linchamento (Muamar Kadafi na Líbia) ou numa guerra prolongada e aparentemente sem saída (Afeganistão). Aos anteriores, veio se somar mais um fator para a perda de credibilidade. No fogo cruzado que se estabeleceu para determinar o(s) mandante(s) do uso do gás sarin, os Estados Unidos repetiram ad nauseam ter provas de que a ordem partiu do governo de Bashar Al-Assad, aliás, dele mesmo. Mas essas provas nunca vieram à luz plena do dia, pelo menos até a

conclusão desta nota, em 23 de setembro. Houve sessões fechadas de apresentação das ditas cujas para congressistas norte-americanos, mas os relatos subsequentes davam conta de que um expressivo número não se convenceu. Mesmo que elas venham a ser exibidas no futuro, o retardo na sua apresentação traz para a mesa a hipótese de serem forjadas. Outra lição desse imbróglio vem do método constantemente descrito para a obtenção dessas provas – ou pelo menos de algumas delas: a escuta telefônica. Isso se deu num momento em que práticas da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos estavam sob denúncias e questionamentos. Tal circunstância roubou impulso e contundência às denúncias norte-americanas, porque o sentimento universal era o da ilegalidade, inadequação, de abuso de poder e outras arbitrariedades em relação a essa espionagem – além de trazer à tona, como no quadro brasileiro, a possibilidade de uso das informações obtidas para outros fins (comerciais, financeiros e industriais) que não apenas os de segurança. Lição número cinco: quando não se ocupa ou se perde um espaço em matéria de política, alguém virá ocupá-lo. Quem ocupou esse espaço de recuo deixado pelos norte-americanos e seus aliados foi a Rússia. O sempre execrado na mídia ocidental Vladimir Putin, como inimigo das liberdades democráticas e czar da truculência, de repente apareceu como campeão dos direitos humanos (caso Snowden) e como defensor da paz e do equilíbrio internacionais. Putin conseguiu o que parecia impossível: fazer Bashar Al-Assad concordar em entregar suas reservas de armas de extermínio em massa para inspeção e destruição por controle internacional. É verdade que o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, também anunciou ter provas da responsabilidade dos rebeldes no uso do gás sem mostrá-las. O anúncio de que essa comprovação estaria sendo colhida pelo Exército sírio não contribui tampouco para sua credibilidade. Mas, se como consequência dessa iniciativa de resolver o conflito diplomaticamente, em vez de (apenas) pela força das

armas, os Estados Unidos e o Irã sentarem para dialogar, como parece que vai acontecer, a credibilidade russa em matéria de política internacional estará em grande parte reafirmada. Sem falar que um movimento dessa ordem poderia criar um novo equilíbrio político, em detrimento da influência que a Arábia Saudita está tentando fortalecer na região. Mesmo a Turquia terá de rever sua posição no tabuleiro. Enredados em suas violentas disputas internas, retóricas ou até armadas, os rebeldes sírios também perderam pontos em matéria de credibilidade. Tudo parece apontar para serem mais uma colcha de retalhos com cada pedaço seu capitaneado por um “senhor da guerra” de espírito feudal do que um todo articulado cujo principal objetivo seja mesmo a democratização da Síria. Até o momento, foram os maiores perdedores desse intrincado xadrez político.

E o Brasil? O Brasil entrou no cenário pela lateral. Além das declarações que saúdam as iniciativas diplomáticas em lugar das militares, houve a coincidência de surgirem as denúncias sobre a espionagem norte-americana dos e-mails e telefonemas da presidenta Dilma Rousseff, assim como de informações confidenciais da Petrobras. A presidenta reagiu vigorosamente, exigindo explicações convincentes e depois, na ausência delas, anunciando o adiamento da visita de chefa de Estado que faria aos Estados Unidos em outubro. O governo norte-americano sentiu o golpe, e saiu pela tangente, para evitar a ampliação do estrago, dizendo que o adiamento fora decidido de comum acordo. Acontece que o episódio e a atitude da presidenta pegaram o colega norte-americano no contrapé. Na circunstância, dependendo do prestígio de seu aparato de espionagem para esgrimir seus argumentos diante dos aliados e da Rússia (também da China), o presidente Barack Obama não podia fazer nenhum movimento para desacreditá-lo ou desautorizá-lo ainda mais. Por isso mesmo, as tais explicações ficaram para as calendas, e a discussão de um protocolo que volte a regular e limitar tais práticas não aconteceu. Ficou para depois. A ver. REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

O sabor de veneno da história Depois de 12 anos de batalhas e 63 mortes, vida dos trabalhadores contaminados por agrotóxicos em Paulínia (SP) vira filme. Caso ilustra potencial destruidor dos tais “defensivos” agrícolas Por Xandra Stefanel

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DRAMA Antonio no cinema virou Demarco, vivido pelo ator Deo Garcez

DIVULGAÇÃO

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ecanto dos Pássaros. O nome desse bairro de Paulínia, a 120 quilômetros de São Paulo, pode até ser bonito. Mas lá nesse lugar o amanhecer já não é lindo, nem é permitido deitar-se na relva e escutar o canto dos pássaros, como na canção de Roberto e Erasmo Carlos. Foi nesse bairro que o químico Antonio de Marco Rasteiro viu sua saúde se esvair e muitos amigos morrer devido à contaminação causada pelas empresas Shell e Basf, nas quais trabalhou durante 21 anos consecutivos como líder de produção da unidade industrial de agrotóxicos. Ele ainda estava lá, em 1995, quando a Shell vendeu parte da área para a Cyanamid e reconheceu publicamente que os pesticidas que fabricava no local contaminaram o solo e as águas subterrâneas.


CULTURA

são a Fetquim, o sindicato de Campinas, a própria associação e os atores, que doaram os cachês, integral ou parcialmente. A previsão é que as filmagens terminem no final deste ano e que o lançamento em circuito comercial seja em 2014.

ARQUIVO UNIFICADOS

No mesmo ano em que a Basf comprou a unidade, em 2000, Antonio deixou o trabalho e começou a ter uma ideia dos males que sofreria nos anos seguintes. “Quando tomamos conhecimento da gravidade da exposição que sofremos, comecei a ter um acompanhamento de saúde diferenciado. Em 2001, na primeira reunião com os trabalhadores, ficou muito claro que eles iam desenvolver doenças e haveria vários óbitos. Já são 63 mortes”, lamenta o ex-funcionário, um dos coordenadores da Associação dos Trabalhadores Expostos a Substâncias Químicas (Atesq). Depois de 12 anos na Justiça, em 2012 a ação trabalhista foi levada ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), onde ficou até o último abril, quando as empresas, enfim, fecharam um acordo com os trabalhadores. Eles tiveram garantidos o direito ao tratamento médico vitalício para 1.058 ex-funcionários e dependentes, indenização de R$ 200 milhões por dano moral coletivo mais indenizações individuais. Antonio sobreviveu a um câncer na próstata e a outro no pulmão para contar essa história. E ela será tema do filme O Lucro acima da Vida, um longa-metragem de ficção baseado em fatos reais, ainda em fase de produção. O filme começou a ser planejado quando o processo trabalhista coletivo foi levado ao TST. “Avaliamos que iríamos enfrentar um terreno muito difícil em Brasília e tomamos algumas precauções: contratamos um bom escritório de advocacia, planejamos o filme, um livro e vários outros materiais, porque a gente precisava que as pessoas tivessem a compreensão de que esse caso não poderia ficar impune”, diz o produtor executivo Arlei Medeiros, diretor do Sindicato dos Químicos Unificados de Campinas e da Federação dos Trabalhadores do Ramo Químico (Fetquim), entidades que apoiam o projeto. “No meio disso tudo, obtivemos um acordo muito positivo para os trabalhadores. Mesmo assim, decidimos seguir adiante e contar essa história para que isso nunca mais se repita.” O ritmo de filmagem do longa, orçado em R$ 1,3 milhão, varia conforme realizadores captam patrocínios e doações. Os principais financiadores até o momento

LUTADOR Antonio na vida real: vitória sobre um câncer na próstata e outro no pulmão

Para conseguir concluir o filme e fazer a distribuição, a equipe começou uma campanha de arrecadação por meio do site oficial (www.filmecasoshell.com). “Nós sabemos que patrocínio, nesse caso, é difícil porque as empresas se comportam com corporativismo. Estamos recorrendo a ONGs, associações, sindicatos e pessoas físicas para que nos ajudem com verba, pois fazer cinema custa muito caro. Então, cada vez que conseguimos dinheiro, avançamos nas gravações”, afirma o diretor Nic Nilson, jornalista e cineasta radicado em Campinas.

Histórias reais

As filmagens, que começaram no dia 1° de maio em homenagem aos trabalhadores, estão sendo realizadas em uma cidade cinematográfica montada na Fazenda Santa Terezinha e em uma fábrica abandonada, em Paulínia. Fazem parte do elenco os atores João Vitti, da Record, Richards Paradizzi, o austríaco David Wendefilme e a alemã Constanze von Oertzen, entre outros.

O papel principal é de Deo Garcez, que interpreta Antonio Rasteiro, o articulador do movimentos dos trabalhadores expostos a substâncias químicas que, no filme, chama-se Demarco. “Está sendo muito interessante criar esse personagem que é real. Ele estava, inclusive, como figurante em uma das cenas que gravamos. Ficamos frente a frente. Essa história que mostra a luta dessas pessoas é algo dramático que precisa ser contado”, opina Garcez, que já trabalhou para Globo e Record. Cerca de 100 ex-funcionários têm feito figuração em cenas como reuniões e assembleias. Para Nic Nilson, o filme é importante, entre outros aspectos, porque mostra a força da união de trabalhadores. “Eles gostam muito de participar porque relembram coisas que aconteceram, reencontram os amigos... Nosso objetivo é mostrar a luta, o companheirismo e essa união que foi arrastando gente e mais gente para esse projeto. O processo culminou no fechamento daquela unidade da Shell e na maior ação, no Brasil, por dano moral coletivo. Mostramos que a luta de trabalhadores consegue, muitas vezes, ultrapassar os desmandos de empresas que só pensam no lucro, que não veem, por outro ângulo, a vida das pessoas.” Segundo Antonio, além de todos os problemas de saúde, os trabalhadores tiveram de enfrentar o deboche dos que achavam que essa era uma batalha perdida. “Na primeira gravação, participei como figurante. Eu me sinto contemplado tanto com o filme como com o acordo porque muita gente não acreditava na nossa luta. Sofremos muitas críticas, deboche. Diziam: ‘Vocês não vão ganhar nada, a Shell vai comprar a Justiça’. Nos chamavam de vagabundos. E hoje, depois do acordo, de vagabundos passamos a heróis.” Depois do acordo que garante atendimento médico e indenizações, esses trabalhadores poderiam considerar a batalha ganha e parar por aí. “Estamos no século 21 e temos de encontrar uma saída para não usar mais os agrotóxicos. Eles fazem vítimas no campo, na indústria e na cadeia alimentar, e não é de forma perceptível. Às vezes as pessoas desenvolvem doenças e nem sabem por quê”, afirma o ex-funcionário. REVISTA DO BRASIL

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LEITURA

Uma história marxista do mundo

Uma análise da evolução do planeta, do homem de neandertal ao neoliberal, observa que as decisões políticas em benefício de uma elite não são inexoráveis. Sempre há, como agora, possibilidades que levem em conta a vida das maiorias Por Renato Pompeu

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té hoje, apesar de a globalização e de o entrelaçamento de todos os povos do mundo numa interdependência recíproca já datarem de décadas, a história do mundo, ou história geral, na maioria das escolas e universidades e na quase totalidade dos livros, é narrada e interpretada como se a Europa Ocidental tivesse sido sempre o centro mais importante do mundo, com destaque para Grécia, Roma, a Idade Média e a Revolução Industrial. Só nos últimos poucos anos é que têm surgido no Ocidente livros de história de um ponto de vista mais global, que mostram notadamente que, diante de impérios como a China, a Índia e a Pérsia e da expansão do Islã, a Europa Ocidental foi na maior parte dos séculos e milênios uma península isolada e atrasada. Agora que a Ásia está ressurgindo como protagonista mundial, podemos ver mais claramente que o período de ascendência do Ocidente sobre o mundo durou pouco mais de um século, desde os fins do século 18 até recentemente. Fora desse período, a China e a Índia foram sempre muito mais ricas e muito mais poderosas. Até mesmo os melhores pensadores europeus, como Hegel, Marx e Engels, foram dominados pelo eurocentrismo, embora procurassem se informar sobre outros povos. Essa tradição ocidentocêntrica continuou entre os historiadores marxistas – por exemplo, o famoso livro do marxista americano Leo Huberman, História da Riqueza do Homem, mal menciona regiões­não ocidentais. 38

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Agora, porém, surgiu na Inglaterra e nos Estados Unidos a primeira história globalizada do mundo escrita por um marxista. Trata-se de A Marxist History of the World: From Neanderthals to Neoliberals, do arqueólogo e historiador inglês Neil Faulkner, autor anteriormente de estudos sobre sítios arqueológicos britânicos, as Olimpíadas gregas e a Roma antiga. A obra foi editada pela Pluto Press e o título pode ser traduzido por “Uma história marxista do mundo, dos neandertais aos neoliberais”, numa manifestação do típico humor sarcástico inglês.

Questão de escolha

Como obra marxista, a de Faulkner restabelece a visão de processo dinâmico cultivada mais por Marx que por Engels e pelos marxistas tradicionais. Não defende teses de que os desenvolvimentos históricos estiveram sempre predeterminados por estruturas econômicas que aprisionam o destino humano em rumos inexoráveis. Ele tenta mostrar, a cada passo, como as estruturas econômicas permitiam uma série de saídas e de evoluções, e não apenas as que efetivamente ocorreram, procura estabelecer que, em cada situação histórica, os seres humanos sempre podem escolher que saída adotar. Como obra de história, a de Faulkner se destaca por não parar no tempo. A maior parte dos livros contemporâneos de história do mundo se detém num ponto do passado, em geral a Segunda Guerra Mundial ou, na melhor das hipóteses, o colapso dos


ARANDO A TERRA, PINTURA DE SENNEDJEM. TUMBA EGÌPCIA, C. 1200 A.C., TEBAS

LEITURA

ESCOLHA RACIONAL A humanidade de hoje é predominantemente descendente dos grupos que inovaram a agricultura

países socialistas. Mas o autor chega até os dias de hoje, e isso é particularmente importante porque ele considera a atual crise estrutural do capitalismo mundial o maior desafio que a humanidade teve de enfrentar em todos os tempos. Faulkner reforça sua tese de que nosso destino não está traçado inexoravelmente pelas estruturas econômicas vigentes, pois dentro dessas estruturas há forças que permitem diferentes saídas, das que beneficiem uma elite da população às que beneficiem a maioria. Como bom marxista não ortodoxo, defende a tese de que nada está predeterminado, tudo depende da luta, tudo depende do empenho de cada um e de todos em mudar o seu destino. Não era obrigatório, por exemplo, que os antigos primatas hominídeos se transformassem em seres humanos socialmente cooperativos, nem era inevitável que no Paleolítico Superior houvesse uma revolução tecnológica no uso de instrumentos de pedra. Tudo isso foi objeto de escolhas conscientes. Já no Neolítico, havia pelo menos duas saídas para alimentar a crescente população de sociedades comunísticas: ou a guerra global por recursos escassos, ou a intensificação da agricultura. Na verdade, conforme a região, as duas situações ocorreram, sendo a humanidade de hoje predominantemente descendente dos grupos que inovaram na agricultura, na proteção militar, no controle da irrigação, na coleta de impostos, no controle da distribui-

ção da produção, enquanto a maioria continuava no cultivo. Tudo isso decorreu da criatividade humana, do mesmo modo que a saída da crise atual vai depender da criatividade de bilhões de pessoas. No Egito e no Grande Zimbábue (na África), na Suméria (na Ásia) e no México (na América do Norte), a intensificação da agricultura permitiu que houvesse um superávit alimentar que sustentava enormes populações de governantes, soldados e sacerdotes, que não precisavam produzir a própria comida. Que isso foi objeto de escolhas conscientes, e não de reflexos sociais inexoráveis a partir das condições econômicas, fica provado pelas enormes diferenças estruturais, sociais e culturais entre as sociedades egípcia, zimbabuana, suméria e mexicana. A única coisa em comum são seus artefatos de cobre. Quando se adotam instrumentos de bronze, se sucedem, principalmente na Mesopotâmia e no Egito, impérios que nascem, ascendem, chegam ao auge, decaem e desaparecem, sempre em meio a crises e guerras, num processo que se replica várias vezes. Aqui Faulkner, que está longe de ser um historiador “objetivo” e sempre toma partido da maioria, se insurge como um profeta bíblico contra as vitórias das minorias, que segundo ele transformaram a Idade do Bronze numa sucessão de desperdício de recursos e de violências e guerras intermináveis. Ele vai notar, mais adiante, que hoje estamos diante de escolhas semelhantes. O próximo grande passo da história não foi dado no Egito, no Grande Zimbábue, na Suméria ou no México, mas em pontos periféricos (na época), como a Pérsia, onde se passou a adotar instrumentos agrícolas e de artesanato e armas de ferro, não mais de bronze. O excedente de alimentos aumentou enormemente em relação à Idade do Bronze: a Idade do Ferro se consolidou mais ou menos 1.300 anos antes de Cristo. Surgem os impérios Indiano e Chinês. Aqui Faulkner vai observar que, com a instauração da propriedade privada, as mulheres passaram a perder seu papel central e crucial na sociedade para ficar em posições subordinadas. Em outro capítulo bem interessante, demonstrará que o advento do judaísmo, do cristianismo e do islamismo foi em grande parte produzido pelos mitos vigentes entre as camadas oprimidas e pelas suas aspirações. A globalização triunfa de novo no livro do arqueólogo com a descrição dos esplendores dos impérios Bizantino, Islâmico, Indiano e Chinês, enquanto a Europa sofria a invasão dos bárbaros e permanecia em isolamento atrasado até o início das grandes navegações e até começar a se consolidar o capitalismo, a partir da exploração das colônias. Embora o autor não deixe de mencionar as civilizações da África, da Mesoamérica e dos Andes, aqui já estamos caminhando em terrenos mais familiares. Mas Faulkner inova mais uma vez no final: ele chega até 2012. Diz que a crise financeira de 2008 representa a passagem de “uma bolha para um buraco negro” e que, quatro anos depois, a elite neoliberal está emaranhada nas contradições que seu próprio domínio envolve. E adverte: a saída dessa situação não está de modo algum predeterminada pelas condições econômicas; depende da ação consciente de todos os seres humanos em relação às situações concretas em que nos encontramos. Trata-se de um apelo à luta em favor das maiorias oprimidas. REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

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om 41 anos, veterano e consagrado, um dos participantes fazia sua estreia em festivais naquele 1968. Além disso, havia apostado contra a própria música, por insistência de seu parceiro na composição, que inicialmente se chamava Gávea. O “calouro” se chamava Tom Jobim. Seu parceiro era Chico Buarque. A música, Sabiá. Era a decisão da fase nacional do Festival Internacional da Canção (FIC) promovido pela Rede Globo, em 29 de setembro de 1968, em um superlotado ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. O FIC de 1968 rendeu vaia inesquecível para Tom Jobim – Chico escapou, pois estava na Itália – e grande polêmica para a mais cantada música da noite: Pra não Dizer Que não Falei das Flores (Caminhando), de Geraldo Vandré. A vaia não era dirigida exatamente à música de Tom e Chico, mas à decisão do júri de desclassificar a canção de Vandré, que falava mais alto ao coração da plateia, um chamamento à ação naqueles tempos difíceis: “Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”. O júri reunia, entre outros, o pesquisador Ary Vasconcelos, a atriz Bibi Ferreira, o compositor Billy Blanco, o jovem maestro Isaac Karabtchevsky, o escritor Paulo Mendes Campos, o diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS) Ricardo Cravo Albin e o desenhista Ziraldo. À época na TV Tupi, Bibi deu nota maior para Caminhando. Mesmo assim, enfrentou a fúria do público. “Lembro que quando saí eu estava triste, acabrunhada. Mas fiquei muito mais quando ouvi os palavrões para cima de mim”, conta. “Eles gritavam ‘vaca, vaca’”, recorda Bibi, aos risos. Cravo Albin definiu a reação do público como “uma das coisas mais assustadoras da minha vida”. E sentiu de perto essa fúria. “Eu estava no meu pequeno Volkswagen vermelho, com Eneida (Costa Martins) ao lado e Paulo Mendes Campos, Alceu Bocchino e Ary Vasconcelos sentados atrás, quando veio aquela turba na nossa direção.” Albin se lembra de alguns gritando “é o júri, é a turma do júri”, e começaram a bater no carro. “Co-

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Uma noite em

Foi um festival com Tom Jobim vaiado e uma música que irritou os quartéis. E ficou para sempre no imaginário nacional Por Vitor Nuzzi


HISTÓRIA

Cynara e Cybele interpretaram Sabiá: a vaia não era dirigida exatamente à música de Tom e Chico, mas à decisão do júri de desclassificar a canção de Vandré

mentário da comunista Eneida: poderia imaginar tudo na vida, jamais que seria salva pela polícia”. O clima político já fervia, após episódios como a morte do estudante Edson Luís, a greve dos metalúrgicos de Osasco e a Marcha dos 100 Mil, no Rio. A situação piorou depois do festival, e não são poucos os que incluem Caminhando na conta do AI-5, que seria decretado em 13 de dezembro.

ARQUIVO/AE

Vetos e vaias

ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO

O próprio Vandré decidiu interceder, defendendo os vencedores

Na autobiografia escrita em 1991 com o auxílio do jornalista Gabriel Priolli, o ex-diretor da Globo Walter Clark conta que recebeu uma “ordem” para que Caminhando e América, América (de César Roldão Vieira) não vencessem. O recado, segundo ele, partiu do ajudante de ordens do general Sizeno Sarmento. Comandante do I Exército, Sizeno havia sido major da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial. No início do governo Castelo Branco, após a derrubada de João Goulart, fora chefe de gabinete do ministro da Guerra, Costa e Silva. A tal ordem nem sequer chegou ao conhecimento dos jurados. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, assegura que o júri não sofreu pressão. “Nenhuma interferência, nem a mais leve sugestão. O júri foi soberano”, diz o ex-diretor da Globo. Sobre o relato de Clark, ele conta que não foi informado. “O Walter, talvez para não me preocupar, nunca mencionou esse fato. Quando conversávamos sobre consequências, a gente pensava no endurecimento da censura com nossos telejornais, novelas e outros festivais, mas estávamos acostumados com isso e a só agir quando surgiam problemas.” Segundo Boni, não havia temor em relação às tais “consequências”, tampouco houve alívio com a decisão dos jurados, pois o recado de Vandré já estava dado. “Ganhar ou não o festival não faria diferença.” Para ele, na decisão do júri prevaleceu a qualidade musical. À pergunta sobre sua preferência, responde: “Como amante da música, eu ficaria com Sabiá, mas como homem de marketing eu preferiria Caminhando”. Seja como for, Boni conta que saiu frustrado do Maracanãzinho naqueREVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

la noite: ver Tom e Chico sendo vaiados era doloroso e Vandré ter perdido dava uma sensação de vazio. O público, estimado entre 20 mil e 30 mil pessoas, queria a vitória de Pra não Dizer Que não Falei das Flores. E se manifestou com veemência depois de conhecer a decisão. Os nomes foram sendo anunciados. Os Mutantes terminaram em sexto lugar, com Caminhante Noturno, e ganharam prêmio de melhor interpretação. Ao jornal Última Hora, Rita Lee daria sua definição de Caminhando: “Um drama encenado no palco, com duas­posições (acordes) e poesia chorada”. Em quinto, Dia de Vitória, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Em quarto, Passacalha, de Edino Krieger, com o Quarteto 004. Em terceiro, Andança, de Edmundo Souto, Danilo Caymmi e Paulinho Tapajós, cantada pela novata Beth Carvalho e pelos Golden Boys. “A música nos tocou de imediato”, conta Roberto Corrêa, dos Golden Boys.

Os Mutantes terminaram em sexto lugar, com Caminhante Noturno, e ganharam prêmio de melhor interpretação. Ao jornal Última Hora, Rita Lee daria sua definição de Caminhando: “Um drama encenado no palco, com duas­posições (acordes) e poesia chorada”

A tensão cresce

Quando o apresentador Hilton Gomes anuncia o segundo lugar para Pra não Dizer Que não Falei das Flores, as vaias não paravam. O próprio Vandré decidiu interceder, defendendo os vencedores, que ainda nem haviam sido anunciados. “Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem o nosso respeito. A nossa função é fazer canções. A função de julgar, neste instante, é do júri que ali está.” E vaias, muitas vaias, para o eclético júri. “Pra vocês que continuam pensando que me apoiam vaiando... Tem uma coisa só mais. A vida não se resume em festivais.” E começa a batida ao violão. A multidão agitava lenços brancos – “caloroso adeus ao artista cuja canção vai ser cantada por muito tempo”, descreveu o jornal O Globo na edição de 30 de setembro. Certo da derrota, Tom Jobim perdeu a aposta para Vinicius de Moraes (uma caixa de uísque) e ganhou o prêmio principal, que dava para comprar um Ford Galaxie ou dois Fuscas. E foi comemorar em casa, no Leblon. Seu parceiro em Sabiá, Chico Buarque, mandaria depois um telegrama, fazendo trocadilho: “Eu sabiah, eu sabiah, eu sabiah”. Cynara e Cybele es42

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tavam lá. Mas a festa mal chegou a começar. O cronista Paulo Mendes Campos telefona à procura de Fernando Sabino, e avisa que Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, havia morrido naquela noite. Ziraldo deu nota 10 para Caminhando e 5 para as outras músicas, inclusive Sabiá. “O que ninguém percebeu na época, nem eu, é que a letra de Sabiá era também inconformista, uma canção de protesto. ‘Me deitar à sombra de uma palmeira que já não há, colher a flor que já

não há... as noites que eu não queria... anunciar o dia!’ Estava tudo lá, de maneira velada”, recorda. Como muitos, ele viu algo de heroico na composição de Vandré. “Era uma emoção ver aquele cara sozinho naquele palco enorme enfrentando apenas com seu violão a fúria dos militares. Que era imensa naquela época”, observa Ziraldo. O desenhista atesta que os jurados não sofreram pressão. Também segundo Billy Blanco, não houve interferência. “Os ju-


HISTÓRIA

Carlos Lemos: “Não conheço ninguém do júri que tenha sofrido”. À época com 39 anos, chefe de reportagem do Jornal do Brasil, Lemos passava por sua segunda – e última – experiência como jurado. E cravou a música de Tom e Chico em primeiro. “Sabiá era uma música esplendorosa, de alta qualidade, enquanto Caminhando era um mito político.”

ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO

Julgamento justo

rados julgaram o que quiseram”, afirma o compositor e arquiteto, na época com 44 anos. Ele torcia por Vandré, mas deu 10 para as duas. “A música de Tom era perfeita”, explicou Billy Blanco, autor dos Estatutos da Gafieira, entre outras pérolas da MPB. Blanco morreu em 2011. Experiente em júris, o jornalista Eli Halfoun se assustou com a reação do público, “foi a maior vaia que ouvi na minha vida”, mas reitera a ausência de qualquer tipo de pressão, assim como seu colega

Bibi Ferreira não lembra que notas deu, mas sabe que a maior foi para Caminhando. “Não por uma questão política, até porque o Chico também era engajado”, afirma Bibi, que já gostava do trabalho de Vandré. “Ele era aquele sucesso, e um rapaz muito bonito.” Ela acredita que de fato houve pressões para que Caminhando não vencesse, mas isso nunca chegou ao júri. “Era um pessoal muito correto”, diz Bibi, para quem os festivais “eram realmente o canto do povo”. O maestro Alceu Ariosto Bocchino sustenta que teve como única preocupação observar as características de cada composição de um ponto de vista brasileiro – ele lembra que o júri integrava a parte nacional do FIC. “O aspecto brasileiro tinha de prevalecer”, comenta. “A inspiração de Vandré foi boa. Não discuto a letra, porque ele tinha uma maneira de pensar”, diz Alceu, professor de piano na Escola de Música e Belas-Artes do Paraná. “Agora, ele se acompanhou num ritmo que não era brasileiro. Ele pecou no acompanhamento”, analisa o maestro, para quem Sabiá era uma legítima modinha brasileira. Ricardo Cravo Albin declarou a O Globo que Caminhando já era uma canção consagrada, enquanto Sabiá conquistaria o público progressivamente. Vem dele a revelação de que o “grupo do Museu” – um núcleo formado por integrantes do MIS – conspirou, de certa forma, para que Sabiá fosse a vencedora. “Eu tramei junto com membros do júri”, afirma. Entre os “conspiradores”, segundo ele, estavam Eneida, secretária-geral do Conselho Superior de Música Popular, Ary Vasconcelos e o escritor Paulo Mendes Campos. “Eu era uma pessoa querida de boa parte do júri”, lembra. Albin deu no-

ta 10 para Sabiá e 8 para Caminhando. Presidente do júri, o jovem Isaac Karabtchevsky, então com 28 anos, diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira, conta que só daria nota – o chamado voto de Minerva – caso houvesse empate. “Houve, sim, um debate por parte do júri, por vezes até passional. A música causa esse tipo de discussão em todos os níveis”, diz. O inglês Patrick Campbell-Lyons, que com um parceiro grego representava a Jamaica na parte internacional do FIC, arriscava uma explicação: “Vandré é esquerdista? Por isso que ele não venceu”, afirmou a O Globo. Patrick e o grego Alex Spyropoulos concorreram com Waterfall. O intérprete ainda daria o que falar: Jimmy Cliff, este, sim, jamaicano, aos 20 anos. Vandré declarou que o mais importante era mostrar sua música. “A estrutura vigente inventou os festivais e coloca uma nota de dinheiro no alto de um pau de sebo, para os compositores ficarem se escoiceando. Eu não tenho nada a ver com isso, respeito meus companheiros e não entro em competição. Quero apenas mostrar minha canção.” O que ele disse, curiosamente, não difere muito do que pensava seu concorrente. “Nunca participei (de festivais) porque não gosto dessa história de Caim e Abel, de um comer o outro, de levantar mais peso do que o outro, ser mais malvado do que o outro. O raciocínio comparativo é falso. Não se pode comparar um sabiá com um bem-te-vi (…)”, disse Tom Jobim à revista Manchete. Com o AI-5, um jovem perdeu o emprego e largou o cursinho. Leon Cakoff (1948-2011), que era secretário de Vandré, em vez de físico virou jornalista, até se tornar o criador da mais importante mostra internacional de cinema no Brasil. Os FICs terminariam em 1972, já em decadência. Apenas duas canções brasileiras levaram o Galo de Ouro, prêmio dado aos vencedores: Sabiá, em 1968, e, no ano seguinte, Cantiga por Luciana (Edmundo Souto e Paulinho Tapajós), interpretada por Evinha. Texto adaptado de capítulo de livro (inédito) sobre Geraldo Vandré, de autoria do repórter REVISTA DO BRASIL

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A vida em volta das

águas

Histórias de pescador passam de avô para neto e preservam cultura e hábitos ribeirinhos na Lagoa Mirim – uma imensa bacia de água doce, de pé atrás com os arrozais, no sul do Rio Grande Texto e fotos: Ana Mendes

D

epois que o padre foi assassinado na porta da igreja, a vida nunca mais foi a mesma em Santa Isabel. “Fomos amaldiçoados”, dizem. O vilarejo de mais de 200 anos viveu tempos áureos, visíveis ainda em casarões e ruínas de arquitetura açoriana. Uma visita de dom Pedro II no século 19, quando as fachadas eram ornamentadas a ouro, denota a importância histórica do local. A vila que tem origens portuguesas fica no município de Arroio Grande, às margens da Lagoa Mirim, no Rio Grande do Sul, e foi uma das sedes econômicas da região, que vivia do charque. Hoje a maior parte 44

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da sua população, cerca de 900 habitantes, se ocupa da pesca artesanal na lagoa e banhados aos arredores. A equipe de pesquisa e restauração encontrou uma ossada no assoalho da igreja – supostamente pertencente ao padre. O achado marca o início do inventário encaminhado ao Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) para o tombamento da estrutura construída em 1861 com madeiras nobres e azulejos importados. A igreja chama atenção pelo seu tamanho. São quase 10 metros de altura, em contrastante imponência ao lado das casinhas de alvenaria dos pescadores.

O Rio Grande do Sul é o quarto estado mais importante na atividade da pesca artesanal no país. São cerca de 12 mil pescadores licenciados pelo Ministério da Pesca e Aquicultura. A maioria herdou a profissão dos pais e familiares, cresceu entre redes, barcos e histórias. Esses mitos e lendas contadas de avô para neto há centenas de anos é que garantem a existência da cultura ribeirinha. A maldição do padre explica, em alguma medida, a escassez de peixe e as alagações sofridas todos os anos na região. Os homens das águas têm fé. “Quem pesca sem convicção não tira peixe”, diz Gauchinho, com seu barco cheio de


VIAGEM

Gauchinho exibe traíra: “Sem convicção não se tira peixe”

A vila de Santa Isabel, que tem origens portuguesas, fica no município de Arroio Grande

traíras. Eles respeitam a lagoa ondulosa do mês de julho e não saem para pescar antes da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, no dia 2 de fevereiro. Na construção de uma relação entre seres humanos, divindades e natureza por vezes se fazem necessárias certas analogias. O pescador Chicão, ao lamentar a degradação ambiental, compara a lagoa a uma mãe: “Já pensou o dia em que as mulheres deixarem de ter filhos? Pois vai ter um dia que essa lagoa vai deixar de ter peixe”. A Mirim é a maior lagoa de água doce do país e a segunda maior da América Latina. Os pescadores mais antigos garantem que em algumas décadas foram

extintas pelo menos cinco espécies de peixe. Isso ocorre principalmente porque em 1977 foi criada a Barragem de São Gonçalo, entre a Lagoa dos Patos e a Lagoa Mirim, impedindo o escoamento de água salgada para ela. São as lavouras de arroz que se beneficiam com a dessalinização das águas, consumindo anualmente cerca de 12 milhões de litros por hectare plantado. “Quase todo mundo planta com a água da Mirim. Muito banhado foi reduzido a arroz. De 15 anos pra cá, terminaram os mananciais”, conta Gauchinho. Frente a essas transformações socioambientais, o que ainda contribui, então,

para manter as comunidades na atividade pesqueira? Além do sentimento de afeto ligado à profissão, o principal motivo é a autonomia para gerir horários e folgas. A maioria deles faz biscates ou já experimentou trabalhar como “granjeiro”, mas é na pesca que ganham melhor e vivem com maior liberdade. Porque se por um lado o trabalho na água é árduo, por outro a organização dos pescadores em cooperativas e os benefícios conquistados permitem que vislumbrem um futuro. A Lagoa Mirim é cercada por quatro municípios brasileiros – Rio Grande, Arroio Grande, Jaguarão e Santa Vitória do Palmar –, além de outros três em REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

A pescadora Liane e o filho, em Santa Vitória do Palmar

território uruguaio. Em Santa Vitória está Vila do Porto, a Colônia de Pescadores Z16, no extremo sul. Para chegar lá, saindo de Porto Alegre, atravessa-se a Estação Ecológica do Taim, onde de um lado e de outro da pista é possível ver capivaras e jacarés em eterno banho de sol. A unidade de conservação ganhou o título de Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e é conhecida como ponto de pouso e nidificação – formação de ninhos – de aves migratórias vindas da região ártica ou da Antártida. Localizada em uma estreita faixa de terra, entre o oceano Atlântico e a Lagoa Mirim, a estação é conhecida como viveiro natural de espécies animais e vegetais. As espécies mais comuns de peixe na Vila do Porto – e na lagoa como um todo – são o jundiá, o pintado, o trairão, 46

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A igreja chama atenção pelo seu tamanho. São quase 10 metros de altura


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A Mirim é a maior lagoa de água doce do país e a segunda maior da América Latina

Os pescadores mais antigos garantem que em algumas décadas foram extintas pelo menos cinco espécies de peixe

a viola, a corvina, o cascudo e o peixe-rei. Mas um peixe de aproximadamente 40 centímetros é o mais desejado pelos pescadores da região. “A traíra é o ouro da Mirim”, dizem. Dela tiram os miúdos, considerados caras iguarias. A bochecha é comercializada pela cooperativa de pescadores para as cidades ao redor, mas não chega ao interior do estado ou à capital. Um dos pratos típicos da culinária local é o estrogonofe de bochecha de traíra, feito com molho de tomate e creme de leite e servido quente com arroz e batatas. A pesca, base da subsistência dos ribeirinhos na fronteira do Brasil com o Uruguai, é também símbolo dessa identidade cultural singular que, em certa medida, confronta o estereótipo do gaúcho pampeano. Entre banhado, praias e dunas vivem essas pessoas que configuram a dimensão humana de um complexo sistema ecológico.

Atividade protegida, área nem tanto Durante a época do defeso, também conhecido como piracema ou desova de peixes, os pescadores devem suspender as atividades de pesca. Na Lagoa Mirim dura três meses, de 1º de novembro a 31 de janeiro. Como contrapartida, eles recebem o benefício do seguro-desemprego no valor de um salário mínimo em cada mês que deixam de pescar em respeito ao período reprodutivo. Para isso, devem se cadastrar no Ministério da Pesca e Aquicultura e se inscrever no INSS como contribuinte especial. Apesar da longa espera, no caso da Lagoa Mirim os pescadores adiam em três dias o retorno às atividades,

somente depois das festividades de Nossa Senhora dos Navegantes, no dia 2 de fevereiro. A categoria pode também recorrer ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e ter acesso a crédito para compra de artefatos de pesca, motores e embarcações. O alcance de algumas políticas públicas é um reconhecimento importante à cultura das comunidades ribeirinhas e retribui com uma proteção social mínima uma prática essencial para a proteção do bioma. O problema ambiental ali, portanto, não é a extensão do defeso, mas a extensão dos arrozais.

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curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

GERALDO DOMINGOS DA SILVA

O Circo da Serrinha

Muitas cores primárias, traços e perspectivas simples são os três elementos importantes da arte naïf, também conhecida como arte ingênua, popular ou primitiva moderna. O estilo reúne obras na exposição Arte Naïf no Acervo Sesc, que fica em cartaz até 1° de dezembro na unidade de Santo André (SP). Os quadros, originalmente expostos nas 22 edições de bienais naïfs que a instituição promoveu em Piracicaba, foram agrupados sob o tema manifestações populares, festividades tradicionais e regionais. De terça a sexta-feira, das 10h às 21h30. Rua Tamarutaca, 302, Vila Guiomar, tel. (11) 4469-1200. Grátis.

JACOB KOPEL RISSIN

Festas populares

Cavalo Marinho

O rapper Rashid acaba de lançar sua terceira mixtape, Confundindo Sábios. Com 15 músicas, o disco tem participação de Emicida na faixa-título, que critica a Rota, cita corintianos presos na Bolívia e fala sobre lutas de classe e moradia. O experiente Kamau divide o microfone em Um Sonho Só e Tássia Reis participa da sensual e sofisticada Vício. Virando a Mesa, que ganhou clipe no início do semestre, faz parte da mixtape, provavelmente a última antes de o rapper de 25 anos lançar seu primeiro álbum oficial. Mais informações em http://rashid.com.br. R$ 5. 48

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SABRINA LEITE/DIVULGAÇÃO

Rap nacional


Faroeste paraense

Cidade dos mortos Boris Pahor sobreviveu ao inferno dos campos de concentração nazistas. Para não morrer, comeu pão e usou cuecas de companheiros mortos, como Ivo. No livro Necrópole (Ed. Bertrand Brasil, 294 pág.), o escritor esloveno conta, em primeira pessoa, suas terríveis lembranças e as sensações que teve ao visitar o campo de Natzweiler-Struthof, onde ficou preso por ter colaborado com a resistência antifascista durante a Segunda Guerra. Sua descrição angustiante (e real) faz o leitor enxergar a tortura dos presos e o terror que vivia, a cada dia, ao calcular “instintivamente a distância entre o forno e a sua ressecada caixa torácica”. R$ 39.

Na década de 1980, os amigos Juliano (Juliano Cazarré) e Joaquim (Júlio Andrade) deixaram São Paulo para ir em busca de ouro em Serra Pelada. Além do metal, encontram ganância, violência e traição. O filme Serra Pelada, de Heitor Dahlia (diretor de À Deriva, Cheiro do Ralo e Nina), está previsto para chegar aos cinemas em 18 de outubro. O elenco conta com Sophie Charlotte e os “pesos pesados” Matheus Nachtergale e Wagner Moura (com uma careca irreconhecível). Dahlia e o diretor de fotografia Ricardo Della Rosa farão o espectador sair do cinema se sentindo empoeirado.

Direitos dos índios

Nove histórias que os irmãos Cláudio e Orlando Villas Bôas ouviram de índios em suas incursões xinguanas são contadas para as crianças no livro Histórias do Xingu (Cia. das Letrinhas, 53 pág.). Em 1943, eles deixaram a vida na cidade para participar da Expedição Roncador-Xingu, que tinha como objetivo desbravar a Amazônia, até então considerada desabitada. Ao deparar com várias tribos, decidiram se dedicar à demarcação de terras, assistência à saúde e preservação da cultura indígena. Formaram laços com mais de 20 povos, e os contos deste livro infantil relatam – tal como os irmãos ouviram – o imaginário, as crenças e costumes de alguns desses grupos. A introdução da antropóloga Betty Mindlin traz a história dos irmãos Villas Bôas. R$ 34,50. REVISTA DO BRASIL

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LEONARDO VALLE

Selvagens? Desde pequeno sempre torci pelos índios

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uando brincava de Forte Apache com um amigo rico (pelo menos para as minhas condições era um amigo rico, filho de médico), eu ficava com os índios. Quando via filmes de bangue-bangue, torcia pelos índios. Gostava dos tacapes, das flechas, dos cocares, das roupas com franjas e, principalmente, da bravura. Os soldados, sempre com fardas impecáveis e botas de cano longo, vinham com rifles. Os índios iam de flechas, lanças e tacapes. Alguns tinham rifles. Mas a maioria tinha armas de índio. E eu ficava intrigado com o olhar firme dos caciques. Dava a impressão de que eles sabiam algo que os generais não sabiam. Quando tinha uns 11 anos, ouvi no rádio uma leitura da famosa Carta do Cacique Seattle ao presidente dos Estados Unidos. Nunca esqueci. Havia uma sonoplastia que reforçava as palavras do cacique. Lembro do longo mugido do trem num trecho em que ele falava dos tiros que vinham das janelas do cavalo de ferro e abatiam os bisões nas pradarias. O cacique dizia que não podia entender por que os brancos atiravam nos bisões, se não era para comê-los. Por que atiravam nos bisões e os deixavam ali, abatidos, agonizantes? Lembro nitidamente do trecho em que o cacique Seattle dizia ao presidente dos Estados Unidos da América que não compreendia como o Grande Chefe Branco queria comprar as terras indígenas. Ele dizia que ia pensar na proposta do Grande Chefe Branco, porque não tinha outra alternativa: sabia que, se não as vendesse, os brancos viriam com suas armas e tomariam as terras dos índios – como haviam feito tantas e tantas vezes antes. Mas ele dizia que não compreendia como poderia vender as terras. Era o mesmo que vender o sol ou a lua ou o vento ou a chuva. As terras eram o lugar onde eles viviam, onde se alimentavam e onde enterravam seus mortos. As terras eram a casa deles, mas não pertenciam a eles. Nem a ninguém. Como poderiam vendê-las? Hoje eu sei: era isso que os caciques sabiam e os generais não sabiam. É isso que os brancos, ávidos por consumir tudo o que estiver ao alcance, até hoje não sabem. É isso que os Guarani-Kaiowá, acampados na margem do Rio Hovy, quase na fronteira entre Mato Grosso do Sul e o Paraguai, estão tentando dizer aos pistoleiros, aos fazendeiros, à senadora Kátia Abreu e até mesmo à Justiça, e parece que ninguém está conseguindo entender. É isso o que eles estão dizendo: “Quando faltar ar, onde é que vocês vão comprá-lo?”. 50

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Droga pesada

Esqueço a tevê ligada depois do futebol dominical. Súbito, acordo com uma indefectível voz em falsete cantando no Faustão: “Gatinha nacional, você tá querendo o quê? Eu quero mexê, eu quero mexê”. Como dizia minha avó: “Jesus amado! O horror! O horror!” Deixar a tevê ligada se tornou algo muito perigoso. Resolvo dar uma conferida na transmissão de um grande festival de rock (ao menos é isso o que a propaganda anuncia) pelo canal e dou de cara com Jota Quest no palco. Imediatamente, lembro do título do livro de Roberto Mugiatti, publicado pela editora L&PM, em 1984: Rock: do Sonho ao Pesadelo. Antes de desligar, ainda escuto a revelação bombástica do vocalista: “Vou dizer a vocês, em primeira mão, o nome do nosso novo disco: Funk Funk Boom Boom”. Definitivamente, manter a TV ligada aos domingos é o cúmulo da autodestruição!


93,3 FM

98,9 FM

102,7 FM

LITORAL PAULISTA

GRANDE SÃO PAULO

NOROESTE PAULISTA

A MELHOR HORA DO TRÂNSITO Das 7h às 9h, notícias que as outras não dão

www.redebrasilatual.com.br/radio

O Jornal Brasil Atual vai ao ar diariamente, das 7h às 9h, com reprise às 12h30. Ao longo do dia, a Rádio Brasil Atual toca música brasileira, com flashes de noticiários e prestação de serviços


Seja você a mudança no trânsito.

Faça um pacto pela vida. No Brasil, a cada ano, milhares de vidas acabam no trânsito. E, com elas, histórias, projetos e sonhos. Não podemos deixar isso continuar. É hora de nos unir em um grande pacto contra os acidentes. Um pacto pela vida. É simples: basta obedecer às leis e às regras de boa convivência no trânsito.

Junte-se ao Parada e seja a mudança no trânsito.

@paradapelavida

/pa r a da pe la vida

paradapelavida.com.br


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