PODER NEGRO A beleza da luta antirracista na Bahia em 40 anos do Ilê Ayê
nº 89
DEMOCRATIZAÇÃO Lei de Meios da Argentina vence novas batalhas contra a ‘Globo’ de lá
novembro/2013
Os repórteres Bruno Mascarenhas, Anelize Moreira e Marilu Cabañas
ESSA MÍDIA É SUA
Rádio Brasil Atual, TVT e RBA: jornalismo jovem e premiado que já está fazendo a diferença
www.redebrasilatual.com.br
ÍNDICE
EDITORIAL
4. Mauro Santayana Brics: seus netos vão crescer em um mundo regido pelo Tio Sam?
12. Lalo Leal
Mídia brasileira esconde avanço da democracia na Argentina
14. Trabalho
O impacto do Vale-Cultura na renda e nos hábitos
16. Economia
DAVID FERNÁNDEZ/EFE
2013 não bombou, mas não foi como os do contra queriam
18. Entrevista
Osvaldo Bezerra, o Pipoka, dos químicos: história em movimento
20. Capa
Clarín à venda: jovens argentinos comemoram o fim da batalha judicial contra a Lei de Meios
Jornalismo premiado da Rádio e da TVT. Uma rede que faz a diferença
26. Mundo
Nem só da corrupção no ninho tucano padece o nome da Siemens
28. Leitura
A obsessão pela macroeconomia é um pilar da crise do capitalismo
30. Esporte
Pacote anticartola e Bom Senso Futebol Clube. Enfim, novidades
34. História
(Des)Encontros inusitados, de Marilyn Monroe a Janis Joplin
38. Cultura
Ilê Ayê: 40 anos de ritmo, de força e de raça na Bahia
42. Perfil
Silvia Buarque segue seu rumo e faz cinema como nunca
44. Viagem
A transformação do barro em arte no interior de Pernambuco
Seções Notas que foram destaque
6
Curta essa dica
48
Crônica: Vinicius de Moraes
50
Prêmio à democracia
N
o dia em que esta edição era concluída, a Suprema Corte da Argentina encerrava mais uma batalha judicial do grupo Clarín contra a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, conhecida como Lei de Meios, vigente no país vizinho desde 2009. A Justiça não deu razão ao maior conglomerado de mídia, comparável ao que é a Globo por aqui, e assegurou mais uma vitória ao projeto do governo da presidenta Cristina Kirchner que está revolucionando o setor audiovisual. Quem soube da notícia pelos telejornais na Globo deve ter ficado estarrecido, preocupado com a presença do “demônio da censura e da perseguição à imprensa” tão próximo de nosso território. Mas quem ler o artigo do professor Laurindo Lalo Leal Filho à pagina 12 desta edição entenderá que não é bem assim. Mas existem tantos acontecimentos que não “são bem assim” na imprensa comercial no Brasil, como na Argentina, na Europa, nos Estados Unidos, que o único jeito de o público formar uma opinião que não seja a dos donos dos jornais, rádios e TVs é a diversidade. Diversidade de veículos, de coberturas, de regionalidades, de cultura, e até de opiniões. Mas em boa parte das democracias que se prezam já existem sistemas que regulam os meios de comunicação de modo a impedir ou dificultar o monopólio da opinião. No Brasil, existe projeto para isso, mas o governo ainda não tirou da gaveta. Quando tirar, aliás, prepare-se: os porta-vozes da Globo e afins vão cuspir veneno em seu monitor. Enquanto isso não acontece, vamos dando nossa contribuição para que o acesso à informação seja mais democrático e para que o público tenha contato com outras ideias e outros Brasis solenemente ignorados pela imprensa chamada de “grande” por alguns. Ao que parece, estamos indo bem. Como dizem alguns dos colegas em depoimentos à reportagem de capa, ganhar três importantes e concorridos prêmios da comunicação brasileira é uma comprovação da alta qualidade. É uma homenagem a quem consegue transformar a história esquecida em história contada. E nada mais justo do que receber o prêmio que leva o nome do jornalista Vladimir Herzog, símbolo da luta pela liberdade. Porque não existe democracia onde falta informação. REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
3
MAURO SANTAYANA
O mundo e os Brics
FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR
Se você pensa em um dia visitar Miami, mandar seu filho estudar nos Estados Unidos, ou acha que seus netos vão crescer em um mundo regido pelo Tio Sam, está na hora de rever seus conceitos
Salman Khurshid e Luiz Alberto Figueiredo: aumento do comércio Brasil-Índia de US$ 10 bilhões para US$ 15 bilhões até 2015
“A
civilização é um movimento, e não uma condição. Uma viagem, e não o porto de destino.” A frase, do historiador inglês Arnold J. Toynbee, define como poucas o curso da história. Raramente percebemos a história, enquanto ela 4
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
ainda está acontecendo, a cada segundo, à nossa volta. O mundo se transforma, profundamente, o tempo todo. Mas as maiores mudanças são as imperceptíveis. Aquelas que quase nunca aparecem na primeira página dos jornais, normalmente tomada por manchetes que interessam a seus donos, ou por chamadas
de polícia ou futebol. Esse é o caso das notícias sobre os Brics. Quem já ouviu Pink Floyd (Another Brick in the Wall) pode confundir o termo com brick, palavra inglesa que quer dizer tijolo. Se gostar de economia, vai lembrar que essa é uma sigla inventada em 2001 por um economista do grupo Goldman Sachs.
Mas poucas pessoas têm ideia de como o Bric vai mudar o mundo e sua própria vida nos próximos anos. Antes um termo econômico, o Brics, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, está caminhando – aceleradamente, em termos históricos – para se transformar na aliança estratégica de alcance global que vai mudar a história no século 21. O que juntou esses países? Para Jim O’Neill, criador do vocábulo, foi seu potencial econômico e de crescimento. Mas, para esses países, o que os aproxima é seu desejo de mudar o planeta. Dominados ou combatidos pelos Estados Unidos e pela Europa, no passado, eles pretendem desafiar a hegemonia anglo-saxônica e “ocidental”, e mostrar que outro mundo é possível, na diplomacia, na ciência, na economia, na política e na questão militar. Três deles, Rússia, Índia e China, já são potências atômicas e espaciais. O Brasil e a África do Sul, embora não o sejam, têm indiscutível influência em suas respectivas regiões, e trabalham com a mesma filosofia. A construção de uma nova ordem mundial, mais digna e multipolar, em que haja menor desigualdade entre os países mais ricos e os que estão em desenvolvimento. A união faz a força. O Brics sabe disso, e seus concorrentes, também. Por isso, os meios de comunicação “ocidentais” e seus servidores locais movem forte campanha contra o grupo, ressaltando pontos negativos e ocultando e desencorajando as perspectivas de unidade. Mesmo assim, eles estão cada vez mais próximos. A cada ano, seus presidentes se reúnem. Na ONU, votam sempre juntos contra ataques ocidentais a países do Terceiro Mundo, como aconteceu no caso da Síria, há poucas semanas. Controlam 25% do território, 40% da população, 25% do PIB e mais de 50% das reservas internacionais do mundo. China e Brasil são, respectivamente, o primeiro e o terceiro maiores credores dos Estados Unidos. Por crescerem mais que a Europa e os Estados Unidos, e terem mais reservas internacionais, os Brics querem maior poder no Banco Mundial e no FMI. Como
isso lhes tem sido negado, estão criando, no próximo ano, o próprio banco, com capital inicial de US$ 100 bilhões. No final de outubro, o Brasil – que já compra helicópteros militares russos, tem um programa conjunto de satélites de monitoramento com a China, vende aviões radares para a Índia e desenvolve mísseis com a Denel Sul-africana – foi convidado a juntar-se a russos e indianos no desenvolvimento e fabricação de um dos aviões mais avançados do mundo, o Sukhoi T-50, caça-bombardeiro invisível a radares, capaz de monitorar e atingir alvos múltiplos, no ar e em terra, a 400 quilômetros de distância. Também em outubro, Brasília recebeu a visita do chanceler indiano Salman Khurshid, que, em conjunto com o ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, estabeleceu como meta aumentar o comércio Brasil-Índia em 50%, de US$ 10 bilhões para US$ 15 bilhões, até 2015. Na área de internet, Rússia e Índia já declararam apoio ao novo marco regulatório defendido pelo Brasil para a rede mundial. E planeja-se o Brics Cable, um cabo óptico submarino de 34 mil quilômetros que, sem passar pelos Estados Unidos ou pela Europa, ligará o Brasil à África do Sul, Índia, China e Rússia, em Vladivostok. No comércio, na cooperação para a ciência e o ensino, na transferência de tecnologia para fins pacíficos não existem limites para os Brics. Se você pensa um dia em visitar Miami, mandar seu filho estudar nos Estados Unidos, ou acha que seus netos vão crescer em um mundo regido pelo Tio Sam, está na hora de rever seus conceitos. Há grande chance de que a segunda língua deles seja o mandarim. De que viajem, a passeio, para Xangai, e não para a Flórida. De que usem uma moeda Brics, e não dólar. E vivam em uma era em que não existirá mais uma única grande potência, mas seis ou sete, entre elas o Brasil. Em um mundo em que a competição geopolítica se dará, principalmente, entre os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e os que comporão outro organismo internacional, liderado pelo Brics.
www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Revisão: Márcia Melo Capa Foto de Jailton Garcia e Raul Golinelli/GovBA (Ilê) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
5
Situação de risco: longe da solução
Missão criança Especialistas, líderes de diversos governos e ativistas de direitos humanos já admitem que será impossível cumprir a meta da ONU de erradicar as piores formas de trabalho infantil no mundo até 2016, segundo avaliação da 3ª Conferência Global do Trabalho Infantil. No encontro, realizado no início de outubro, representantes de 140 países discutiram a eficácia e a fiscalização do que está sendo
Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
executado pelas nações. Um documento final, intitulado “Carta de Brasília”, traz propostas de políticas públicas para resolver o problema nos próximos sete anos. A constatação das entidades e de governos é de que não há mais tempo para que sejam cumpridas as diretrizes da conferência anterior, em 2010, em Haia (Holanda). http://bit.ly/rba_meta_dificil
LUCIO BERNARDO JR/AG. CÂMARA
Teatro parlamentar
Grupo Técnico da Reforma Política: atores não se entendem
6
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
O clima é de frustração no Grupo Técnico da Reforma Política, na reta final de chegar a uma conclusão. Os que pretendiam um projeto de reforma mais ousado questionam a utilidade de muitos itens debatidos, a falta de comprometimento do Congresso com o tema, o descaso de integrantes da equipe com as reuniões e o fato de serem apresentados recursos de última hora na tentativa de modificar pontos já acordados. O grupo se aproximava de propor financiamento público e privado, não acatando a demanda de dezenas de entidades da sociedade civil que querem o fim das doações de empresas, tidas como raiz da corrupção e da internalização dos lobbies das grandes corporações na gestão pública e no Parlamento. http://bit.ly/rba_sem-reforma
KEINY ANDRADE/AE
redebrasilatual.com.br
NELSON JR./SCO/STF (19/03/2009)
FELLIPE SAMPAIO/SCO/STF (23/10/2013)
Índios da Raposa Serra do Sol acompanham sessão do STF
Barroso estuda, antes de decidir O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou no último dia 23 embargos declaratórios que questionavam as 19 condicionantes elaboradas pelos ministros da mais alta corte do país quando, em 2009, referendaram a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A reserva se localiza em Roraima, na região fronteiriça entre Brasil, Venezuela e Guiana. Todos os envolvidos na questão – Ministério Público, fazendeiros, índios e o estado de Roraima – haviam movido recursos de contestação ou pedido de esclarecimentos sobre as condicionantes. O julgamento dos embargos da
Raposa Serra do Sol provocou expectativa, pois havia a possibilidade de que o Supremo pudesse transformar a decisão em uma espécie de jurisprudência para novas demarcações. Se fosse assim, a definição de novos territórios deveria obrigatoriamente obedecer às 19 salvaguardas. “As decisões do STF não possuem sempre e em todos os casos caráter vinculante. A presente ação tem por objeto tão somente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, defendeu o ministro Luís Roberto Barroso, cujo voto foi acompanhado pela maioria dos colegas. http://bit.ly/rba_barroso
É a volta do cipó
ANDERSON RIEDEL/PR
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, manifestou haver possibilidade jurídica de punir agentes do Estado que cometeram crimes durante a ditadura. Em parecer encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, Janot muda o entendimento do antecessor, Roberto Gurgel. Em 2010, Gurgel encampou a visão do STF de que a Lei de Anistia, redigida em 1979, ainda sob a ditadura, “resultou de um longo debate nacional”. O Ministério Público Federal vem movendo nos últimos anos ações pela punição dos torturadores, mas até agora o ocupante do cargo mais alto da instituição não havia se manifestado de forma tão categórica a favor da existência de um caminho jurídico para garantir condenações. Janot externou sua posição em parecer sobre a extradição de um policial argentino que atuou durante o último regime autoritário daquele país. É também a primeira vez que o procurador-geral se posiciona em favor do acolhimento de sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 2010 condenou o Brasil por não investigar os fatos do passado e determinou que a Lei de Anistia não fosse utilizada como pretexto para deixar de apurar e sancionar violações. http://bit.ly/rba_janot_ditadura
Rodrigo Janot: punição dos torturadores pode acontecer
REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
7
REDEBRASILATUAL.COM.BR
Ócios do ofício
Barbas de molho
Os próximos 12 meses são de observação e cautela por parte dos representantes dos trabalhadores no Legislativo. Será necessária forte articulação entre partidos e entidades diversas (como os sindicatos), com apoio aos parlamentares que representam os trabalhadores, para que o tamanho dessa bancada não fique cada vez menor na Câmara dos Deputados e no Senado. As bancadas dos evangélicos e do empresariado se preparam para voltar renovadas e em número bem maior no pleito de 2014. De acordo com estudo do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a Câmara pode passar por uma renovação de 61% dos seus componentes. http://bit.ly/rba_bancadas
O Congresso, por representação Empresários têm três vezes mais representantes que sindicalistas Educação
Empresarial
160
Ruralista
91
213
15
Ambientalista Fonte: Diap
NOVEMBRO 2013
79
Saúde
69
Comunicação
273 66
8
Sindical
REVISTA DO BRASIL
Evangélica
55 Feminina
Foro privilegiado O ex-prefeito de Unaí (MG) Antério Mânica, confirmou que sairá candidato a deputado estadual no ano que vem. Mânica é um dos acusados de mandante da chacina de Unaí, região noroeste de Minas, em janeiro de 2004, quando três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego foram mortos a tiros. Para o ex-prefeito, o julgamento do caso não terá reflexo na campanha. “Acredito que vai ser julgado muito antes do período eleitoral. O julgamento já era para ter ocorrido. Quem impediu foi a acusação.” Na realidade, dois dos acusados, um deles Norberto Mânica, irmão de Antério, entraram com pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal para que o julgamento não seja realizado em Belo Horizonte. Mânica prefere que seja em Unaí. O exprefeito saiu do PSDB, tentou se filiar ao PMDB e acabou no PR. http://bit.ly/rba_manica2
JOSÉ CRUZ/ABR
SUZANNE T/SXC.HU
Muito sério, Alckmin criou o dia do ovo
Todos os anos, centenas de projetos inúteis tramitam nas casas legislativas do país. A maioria com a função de promover quem os apresenta e garantir alguns instantes de notoriedade a um político desconhecido. O ex-vereador e atual vice-prefeito de Itapetininga (SP), Hiram Ayres Monteiro Junior (DEM), conseguiu, por exemplo, que sua cidade comemore, desde 2005, o Dia do Bolinho de Frango. No mês passado, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), sancionou projeto do deputado estadual Vitor Sapienza (PPS) para a criação do Dia Estadual do Ovo, a ser comemorado anualmente, na segunda sexta-feira de outubro. Ele explica: “A data é para destacar e celebrar o alimento como um dos mais nutritivos e versáteis à dieta humana, além de integrar pessoas de todas as partes do mundo para um intercâmbio de informações nutricionais e receitas com ovo”. http://bit.ly/rba_dia_do_ovo
MARCELLO CASAL JR./ABR
Bolsa Família: redução de 28% do número de pessoas miseráveis
Não é caridade, é economia, estúpido O Programa Bolsa Família contribuiu para a melhoria na distribuição de renda no Brasil nos últimos anos, mas o que explica a redução das desigualdades por conta dos benefícios do programa é o fato de que, atualmente, o número de pessoas que vivem com renda mensal menor que R$ 70 (as que são consideradas em situação de miséria ou extrema pobreza) é de 3,6% do total da população. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), houve uma redução de 28% do número de pessoas
miseráveis nos estados brasileiros desde a implementação do programa. Além disso, quando comparados os efeitos multiplicadores de sete programas sociais no país, concluise que o Bolsa Família é o que mais traz retorno sobre o PIB. Cada R$ 1 investido pelo governo acrescenta R$ 1,78 ao PIB – uma vez que o valor investido eleva em 1,78% a atividade econômica das famílias beneficiadas e em 2,4% o consumo dessas pessoas. http://bit.ly/rba_retorno_bolsa
A menor taxa de desemprego registrada para um mês de setembro, segundo divulgou o IBGE, no último dia 24, decorre não do aumento do número de ocupados, mas principalmente da diminuição da procura. O diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, afirmou que tanto os pesquisados mais jovens quanto os mais velhos são responsáveis por essa diminuição. De acordo com o economista, esse fenômeno pode ser explicado pelo incremento do poder aquisitivo das famílias, o que permite aos mais jovens passar mais tempo estudando e retardar o ingresso no mercado de trabalho. O aumento da renda, segundo Ganz Lúcio, leva ainda as pessoas acima de 60 anos a descartar a necessidade de procurar trabalho. A Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE apurou um índice de desocupação de 5,4%, um baixo patamar não verificado desde o início da série, em 2002. A taxa média de 5,6% entre janeiro e setembro é igualmente a menor – está em menos da metade da registrada há dez anos (12,5%). http://bit.ly/rba_pme
DANIEL TEIXEIRA/AE
Emprego e renda
Desemprego: menos da metade da taxa de dez anos atrás REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
9
REDEBRASILATUAL.COM.BR
ROBERTO STUCKERT FILHO/PR
Dilma e a xenofobia
Dilma: “Ingenuidade tem cura, xenofobia, não”
A presidenta Dilma Rousseff disse que os ataques às duas estatais chinesas que integram o consórcio ganhador do leilão de Libra são “xenofobia burra”. Após o leilão, analistas da imprensa tradicional passaram a questionar a eficiência das empresas: “Só uma xenofobia, e toda xenofobia é burra, para ignorar o que significa uma empresa chinesa de petróleo”, afirmou. “Uma das empresas é a segunda do mundo, a outra é a quarta. Pensar diferente é de uma ingenuidade absurda. Eu prefiro ingenuidade a xenofobia, porque ingenuidade tem cura, xenofobia, não.” A declaração foi feita no último dia 25, durante cerimônia de liberação, pelo governo federal, de R$ 5,4 bilhões para a expansão de linhas de metrô e de trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo. Sobre o assunto do dia, o investimento em transporte, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o prefeito Fernando Haddad (PT) ressaltaram a importância da parceria. Dilma fez elogios ao governador, mas condenou a falta de política de mobilidade em governos anteriores. http://bit.ly/rba_dilma_sp
Até mim, Obama?
A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, criticou os Estados Unidos pela denúncia de espionagem de comunicação pessoal dela. “Desde que (em junho) falamos sobre a Agência Nacional de Segurança americana (NSA), deixei claro ao presidente Obama: espionar os amigos é totalmente inaceitável”, declarou Merkel, no dia 24, em sua chegada à Cúpula da União Europeia (UE), em Bruxelas. “Eu disse a ele em junho, quando esteve em Berlim, em julho e também ontem em uma ligação telefônica”, ressaltou Merkel. O governo dela tem informações que indicam que os serviços secretos norte-americanos espionaram o telefone celular da chanceler. “EUA e Europa enfrentam desafios comuns; somos aliados, mas tal aliança só pode basear-se na confiança.” http://bit.ly/rba_espia_merkel
JULIEN WARNAND/EFE
Merkel: só vale espionar os inimigos
10
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
FERNANDO FRAZÃO/ABR
Black Blocs... tem sido a repressão à tática em outros lugares do mundo. “Os conflitos políticos se polarizam e o Estado age de maneira burra, através da repressão policial e da detenção dos dissidentes.” O cientista é autor de dois livros sobre a atuação dos mascarados e tem olhado com atenção para as recentes movimentações dos BB no Brasil e no Egito. E não parece surpreso com a multiplicação da tática ao redor do mundo. “O Black Bloc é facilmente reproduzível”, diz, ressaltando um dos problemas do grupo: a infiltração. “Na Alemanha, neonazistas organizam Black Blocs dentro de suas próprias manifestações.” http://bit.ly/rba_black
“É preciso perturbar e reagir quando a polícia ataca o povo.” Essa é uma das explicações que o cientista político Francis Dupuis-Déri elaborou sobre os Black Blocs durante os mais de dez anos que estuda a tática dos jovens mascarados que se infiltram nas manifestações populares para atacar símbolos do capitalismo. “Apenas uma ínfima parcela da elite controla os negócios globais. Existe um sério déficit democrático no mundo. As pessoas estão revoltadas e consideram que já não basta se manifestar pacificamente.” Em entrevista à RBA, Dupuis-Déri lembrou a origem histórica dos Black Blocs, na Alemanha Ocidental, nos anos 1980, e sobre como
O Brasil não foge às tendências mundiais. Vejam o caso agora dos Black Blocs, que ganharam fotos, vídeos e manchetes, inclusive na cena internacional. Custou a chegar ao Brasil, mas chegou. Em Berlim, relata o correspondente Flávio Aguiar, há o estilo semelhante e copiado pelos Black Blocs brasucas: vestimentas pretas, máscaras, enfrentamentos programados pela internet. Ali, presentes há décadas, se autointitulam Autonomen ou Spontibewegung (“movimento espontâneo”, numa tradução livre). E vão às manifestações para roubar a cena: ganham as manchetes e esvaziam seu conteúdo político. Daqui a 10, 20 anos, a maioria estará atrás de uma escrivaninha, arrotando lembranças dos tempos de incendiários juvenis. Na Alemanha como no Brasil, são jovens predominantemente de classe média, se apresentam como anticapitalistas, antissistema, antitudo. Para eles, a grande ocasião vai ser a Copa do Mundo, ano que vem. E, se a atenção da mídia internacional é seu objetivo, eles a terão. Há um frenesi em toda a mídia para “desconstruir” o Brasil. E preparem-se, porque, nesta reedição do filme Juventude Transviada (no original, Rebels Without a Cause, ou “Rebeldes sem Causa”, com James Dean, de 1955), os jovens de preto terão vindo para ficar. http://bit.ly/rba-blacksurdos
CHRIS LOW/ WWW.VICE.COM
…ou blacksurdos
Mascarado na Europa: mesma tática REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
11
LALO LEAL
Ganhos da liberdade de expressão
Mídia brasileira ainda silencia sobre o avanço da democracia nas comunicações, quatro anos depois da Lei de Meios argentina. Assunto deveria ser tema obrigatório em nossas faculdades de Comunicação
E
stá no ar na Argentina o primeiro canal de televisão indígena do país. É o Wall Kintun (“olhar em volta”, no idioma mapuche), dirigido e operado por comunidades da região de Bariloche. Dezenas de prefeituras, universidades e escolas também receberam autorização para utilizar frequências de rádio e TV. Há mais de 500 solicitações para a instalação de rádios de baixa potência em zonas de grande vulnerabilidade social. Essa nova realidade deve-se à implantação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, conhecida como Lei de Meios, vigente desde 2009, que vem revolucionando o setor audiovisual. Quatro artigos foram contestados na Justiça, durante quatro anos, pelo grupo Clarín, maior conglomerado de mídia do país. No último dia 29 de outubro a Suprema Corte julgou-os constitucionais. Será o fim do domínio do setor exercido pela empresa – que possui 240 licenças para TV a cabo, nove para rádios AM, uma para FM e quatro para TV aberta. Com toda a lei em vigor, um mesmo empresário não poderá mais controlar canais de TVs abertas e fechadas ao mesmo tempo e o sinal de uma empresa de TV por assinatura não poderá chegar a mais de 24 localidades nem atender mais de 35% do total de assinantes do país. A lei obriga as empresas que superam esses limites a devolver as licenças excedentes no prazo de um ano. A maioria já se adequou a essas normas, mas não o grupo Clarín, que vinha usando de todas as armas para não abrir mão dos seus privilégios. 12
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
O princípio mais geral da lei é que o total de frequências de rádio e TV esteja dividido em três partes iguais: para as emissoras privadas, para as públicas e para as que operam sem fins lucrativos. Trata-se de uma política destinada a ampliar a liberdade de expressão, dando voz aos setores da sociedade emudecidos pela força dos monopólios.
Em quatro anos, a aplicação dos outros 162 artigos não contestados na Justiça mostra a importância da lei para a da democracia. Os números são impressionantes e, claro, desconhecidos no Brasil. A Lei de Meios argentina é quase invisível na grande mídia brasileira. Quando aparece é para ser demonizada, confundida ardilosamente com uma forma de
de rádio FM destinaram-se a universidades e 152 a emissoras de rádio instaladas em escolas primárias e secundárias. Enquanto aqui o número de operadoras de TV a cabo é reduzido, dominado por conglomerados internacionais, na Argentina esses serviços são oferecidos por 45 cooperativas, com 2.800 horas diárias de programação própria. Para tanto, foram realizados 50 cursos de capacitação e criados, segundo o órgão que regula o serviço audiovisual, cerca de 100 mil postos de trabalho. A TV digital aberta cobre 82,5% do país, com 31 canais. Foram doados ao público 1,2 milhão de decodificadores. Criou-se um banco de conteúdos audiovisuais, com cerca de 5 mil horas de produções destinadas aos canais não comerciais. O silêncio da mídia brasileira sobre esses dados reflete-se também no meio acadêmico, no qual o caso argentino é ignorado. A Ley de Medios deveria ser texto de estudo obrigatório em nossas faculdades de Comunicação. Sem esquecer a ação política dos docentes argentinos, que em 2009 saíram às ruas para apoiar a aprovação da lei. Agora buscam adaptar seus cursos à nova realidade audiovisual. Na Universidade de Quilmes, por exemplo, foi
criado um programa transversal sobre tecnologia digital e instituído o “Premio Nuevas Miradas” para “reconhecer os conteúdos da nova televisão federal e antimonopolista”, segundo o reitor Mario Lozano. A inserção da academia nos projetos de democratização da comunicação acaba de ganhar uma importante referência simbólica. A Faculdade de Jornalismo da Universidade de La Plata outorgou ao presidente da Bolívia, Evo Morales, título de professor honorário da nova cátedra livre denominada “Por uma comunicação social pela emancipação da América Latina”. Na homenagem, Morales lembrou o papel da rádio Soberania, criada pelos trabalhadores da região em que ele vivia quando era sindicalista para se contrapor à única emissora então existente, controlada pelos Estados Unidos. Hoje, a Soberania integra uma das várias redes comunitárias que cobrem a Bolívia. Vozes antes caladas, como a dos Mapuche, de Bariloche, essas emissoras bolivianas agora “educam e informam, mas também dizem a verdade e contribuem para a liberação dos povos”, frisou Morales ao se tornar professor honorário na Argentina.
COODINADORA DE COMUNICACIÓN AUDIOVISUAL INDÍGENA ARGENTINA
VÍCTOR SANTA MARIA/FLICKR/CC
censura. Isso porque ocorre exatamente o contrário. Com a lei em vigor, houve uma explosão criativa no país, ampliando as vozes com acesso aos meios de comunicação eletrônicos. Os números revelam o aumento da diversidade de ideias circulando, e também uma grande expansão no mercado de trabalho, além de avanços nas conquistas tecnológicas. Foram concedidas 814 licenças para operação de emissoras de rádio, TV aberta e TV paga. Dessas, 53 de TV e 53
A LEI DE MEIOS DÁ FRUTOS Entrega do Premio Nuevas Miradas, da TV da Univesidade de Quilmes, e a inauguração da FM Pachacuti 89.9, a primeira rádio indígena argentina
REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
13
TRABALHO
Vale-cultura, no hábito e no orçamento R$ 50 por mês podem fazer diferença para uma população cuja renda tem outras prioridades Por Vitor Nuzzi
D
ono de uma empresa de publicidade e tecnologia em Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais, Diego César Noronha fez cadastro no Vale-Cultura assim que as inscrições foram abertas, em 23 de setembro. Ele tem apenas um funcionário e acredita que o programa pode ser um começo para estimular o acesso da população a eventos e produtos culturais. “Às vezes a pessoa deixa de fazer alguma coisa por não ter condição”, afirma Diego, que também é músico e tem uma banda de forró universitário. Ele está certo. Os gastos com moradia, alimentação e transporte consomem a maior parte da renda dos brasileiros. Segundo o IBGE, de cada R$ 100 gastos por mês, R$ 34 vão para habitação, R$ 20 para alimentação e R$ 20 para transporte – ou seja, mais de 70%. A cultura fica com R$ 5. A composição de despesas muda drasticamente conforme o ganho das famílias. No caso da habitação, por exemplo, o gasto sobe para R$ 38 entre as famílias de menor renda. Para alimentação, vão R$ 30. Na faixa de maior poder aquisitivo, esses gastos são de R$ 31 e R$ 14, respectivamente. Assim, as famílias de menor renda consomem 3,6% em cultura por mês e as de faixa maior, 6,3%. Os dados são do Sistema de Informações e Indicadores Culturais e referem-se ao período 2008-2009. Mesmo os governos não gastam muito com cultura. De acordo com o IBGE, de 2007 a 2010 as despesas da administração pública nessa área, em níveis municipal, estadual e federal, somam apenas 0,3% por ano. “Noventa por cento dos brasileiros nunca assistiram a um espetáculo de dança, 70% têm como principal diversão a TV e, por incrível que pareça, 80% nunca entraram no cinema”, diz o secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, Henilton Menezes, que em 18 de outubro esteve em São Paulo para participar da assinatura da convenção coletiva de trabalho entre os bancários e a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) – a primeira a incluir o Vale-Cultura. Com isso, o programa – aprovado em dezembro e regulamen14
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
tado em agosto – ganha impulso. Até o final de outubro, havia 570 empresas cadastradas, com um total de 40 mil trabalhadores. Apenas o setor bancário tem 500 mil empregados, 60% deles potenciais adeptos do programa. Os sindicalistas calculam que a adesão ao Vale-Cultura fará circular aproximadamente R$ 9,4 milhões por mês. O benefício começará a ser pago em janeiro, por meio de cartão magnético, com crédito cumulativo – ou seja, não precisa usar os R$ 50 no mesmo mês. O governo estima o potencial do programa em R$ 25 bilhões por ano. “Isso é mais ou menos 15 Leis Rouanet”, diz o secretário. Conforme o Decreto nº 8.084, que regulamentou a Lei nº 12.761, o vale deverá ser oferecido ao trabalhador com vínculo empregatício e remuneração de até cinco salários mínimos mensais (R$ 3.390, em valores atuais). Depois disso, pode ser estendido a funcionários com salário maior. A fiscalização caberá ao Ministério do Trabalho e Emprego. A lei determina que o trabalhador com remuneração de até cinco mínimos poderá ter descontados, conforme a faixa, 2%, 4%, 6%, 8% ou 10% sobre a quantia que receber a título de vale. Para quem ganha acima disso, o desconto será de 20% (acima de cinco e até seis mínimos) a 90% (acima de 12 mínimos). As empresas podem abater 1% do imposto de renda devido.
Estímulo
“Quando eu escutei anunciado na Voz do Brasil, procurei saber como funcionava”, conta Anderson Roberto Martins, que tem uma empresa de manutenção de computadores em Neves
JR PANELA/RBA
TRABALHO
PARA SEMPRE Nelson quer frequentar teatro: “Quando você adquire conhecimento, ninguém tira de você”
Paulista, cidade de 9 mil habitantes na região de São José do Rio Preto, no interior paulista. Ele também foi um dos primeiros a se cadastrar no programa. “Pessoas que ganham um salário mínimo, dois, geralmente não têm essa opção. O preço do teatro é alto para quem tem família para sustentar, contas para pagar. Livro tem um valor elevado. Acho que é uma forma de estimular.” Microempreendedor individual, Daniel Ferreira Martins, de Recanto das Emas (DF), ainda não contratou, mas já se cadastrou no programa para incluir o Vale-Cultura entre benefícios oferecidos ao futuro funcionário. “Se uma pessoa compra um livro ou um CD, vai ao cinema, ao teatro, já é um começo”, diz o brasiliense Daniel, de 44 anos, que trabalhou durante dez em uma rede de supermercados, até formar o próprio negócio, prestando serviços de som e iluminação em eventos. O exemplo vem de casa. “Meu filho, de 8 anos, adora ler. Eu incentivo desde que ele era pequeno.” Há 12 anos em Fortaleza, o técnico bancário Nelson Faria chegou a trabalhar como ator em grupo teatral em São Paulo e como iluminador em outro grupo no Espírito Santo. Prestes a se aposentar – está há 29 anos na Caixa Econômica Federal –, sonha em voltar ao meio artístico. Passou essa paixão para a filha, que entrou na faculdade de teatro. É fácil imaginar o que Nelson pretende fazer quando começar a receber o vale: “Por exemplo, frequentar teatro”. Ele concorda que cultura nem sempre pode ser prioridade para o brasileiro, mas pondera: “Não deveria ser assim. Quando você adquire conhecimento, ninguém tira de você”.
A ministra da Cultura, Marta Suplicy, comemorou a primeira adesão “no atacado” ao programa Vale-Cultura, por meio do convenção coletiva nacional dos bancários. Empolgada com a possibilidade de o item vir a se tornar rotina em futuras negociações coletivas, a ministra se reuniu com dirigente da CUT no último dia 22, na sede do Sindicato dos Bancários de São Paulo. “Após a aprovação do programa no Congresso e a sanção da presidenta Dilma, esse foi o momento mais importante para o benefício”, afirmou Marta, em entrevista à Rádio Brasil Atual. Isso significa, segundo ela, entre 250 mil e 300 mil trabalhadores que vão poder ter R$ 50 por mês para ir ao cinema, ir ao teatro, ao museu, comprar aparelho de som, revistas, jornais ou livros. “Vai
mudar a vida do trabalhador. É uma injeção muito grande na área cultural e para o trabalhador. A partir de agora, todas as negociações coletivas deverão incluir o benefício”, prevê a ministra. Ela observa que esse ganho cultural não representará grandes investimentos, já que as empresas terão compensações fiscais. “Então, é inexplicável uma empresa não se dispor a conceder esse benefício, porque o ganho do funcionário em alegria, cultura, educação e qualidade de vida é muito grande. Isso dá retorno também em termos profissionais, porque o ganho cultural representa um efeito muito grande em como a pessoa se dedica, em como ela vê o mundo, em como analisa as questões. Isso tudo acaba reverberando no trabalho”, avalia. A ministra acredita que até
MAURICIO MORAIS/SIND.BANCÁRIOS S.PAULO
‘É inexplicável uma empresa não aderir’
Marta: “Adesão no atacado”
mesmo para empresas de baixo faturamento, enquadradas como microempresa ou que declarem imposto por lucro presumido – que, portanto, não terão isenção fiscal –, o Vale-Cultura pode vir a se tornar uma referência de mercado. “Em tempos de nível elevado de emprego, as pessoas
que se candidatam a uma vaga vão perguntar: ‘Tem Vale-Cultura?’ Na medida em que isso pesa numa decisão, pode passar a ser interessante para a empresa ter o benefício como atrativo.” Ouça a entrevista completa: http://bit.ly/rba_vale-cultura
REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
15
ECONOMIA
O ano em que pisaram no tomate Se 2013 não “bombou”, como esperava o governo, também não foi a catástrofe anunciada pelos analistas de plantão Por Vitor Nuzzi
D
uas revistas semanais (Veja, da Editora Abril, e Época, da Editora Globo), supostamente concorrentes, expuseram capas semelhantes em abril deste ano, elegendo o fruto do tomateiro como exemplo de uma inflação descontrolada e de um governo perdido. Nos primeiros meses do ano o fruto vermelho subia cerca de 20% e acumulava perto de 100% em 12 meses. O tempo passou, e o tomatinho, de estrela de noticiário, voltou ao ostracismo. Afinal, o preço começou a cair e em setembro já recuava quase 40%, também em 12 meses. O exemplo é sin-
16
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
gelo, mas serve para demonstrar que, se o ano não foi a maravilha que o governo esperava, ou anunciava, também esteve longe de ser uma catástrofe, como alardeou a oposição, com ressonância na mídia. “Não foi fácil pra ninguém”, disse em outubro o ministro da Fazenda, Guido Mantega, durante balanço do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ao falar sobre 2013. Mas ele visualiza sinais de recuperação na economia mundial. Isso também já estaria ocorrendo com o mercado consumidor brasileiro, após certo “sofrimento” com a inflação. O IPCA, índice oficial, que chegou a so-
mar 6,7% no meio do ano (em 12 meses), fechou setembro em 5,86%. Para o economista José Silvestre, do Dieese, 2013 foi um ano que “patinou”, com incertezas sobre o desempenho da economia, e isso se refletiu nas negociações salariais, aumentando as dificuldades na mesa. No primeiro semestre, de 328 convenções e acordos coletivos analisados pelo instituto, a maioria (84,5%) superou a inflação, mas em proporção menor do que em 2012 (96,3%). O índice de ganhos reais apurado entre janeiro e junho também diminuiu. Quando se fechar o balanço de 2013, ele acredita que os resultados de não deverão ser muito di ferentes. “O mercado de trabalho, apesar das taxas de desemprego estáveis, tem uma perda de dinamismo. A renda continua crescendo, mas em patamar menor”, observa Silvestre. Ele aposta em um desempenho melhor da economia no próximo ano, embora os sinais ainda estejam “difusos”: a crise da Europa não será resolvida, mas não deverá se aprofundar, e a expansão da economia norte-americana foi maior do que se esperava, no segundo trimestre. No Brasil, 2014 será ano de eleição e Copa do Mundo. Há de se acompanhar o comportamento da taxa de juros, que em outubro teve o quinto aumento seguido e foi a 9,5% na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) – e a aposta é que chegue a 10% na última reunião de 2013. Um aperto agora para certa folga no ano que vem? Também segundo o coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo, o mercado de trabalho está em situação de estabilidade. Ocupação e rendimento seguem crescendo, mas em ritmo menor, por exemplo, na comparação com o período 2011-2012. “Você tem um mercado que, embora contrate, é muito parecido com o de 2012”, analisa. Já o Ministério do Trabalho e Emprego fala em “reação” do mercado formal, com os resultados de setembro, quando o saldo de contratações com carteira assinada somou 211 mil. No ano, são 985 mil vagas a mais.
ECONOMIA
Produtividade
DESCONTROLE EDITORIAL O efeito das manchetes das semanais não dura sete dias
para o próximo período. “No segundo trimestre, o PIB cresceu 1,5% e no ano que vem há perspectiva de mais investimento, a inadimplência está caindo. Os indicadores são bons.” Os sindicalistas sustentam ainda que os acordos salariais proporcionam estímulos à economia. Segundo estimativa do Dieese, o acordo alcançado pelos bancários resultará em mais R$ 8,7 bilhões em circulação nos próximos 12 meses. Esse impacto econômico, que inclui a participação nos lucros ou resultados (PLR), é 14,5% maior que o verificado em 2012. No caso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, a campanha salarial deste ano deverá injetar R$ 462 milhões na região, nos cálculos da subseção do Dieese na entidade. “É bom para a economia regional, para o comércio, para o consumo, para quitar dívidas e para a poupança. É um mecanismo importante de redução das desigualdades e de distribuição de renda”, diz o presidente do sindicato, Rafael Marques
O professor Claudio Dedecca, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vê o Brasil em um momento de “clivagem”, de definições, para o crescimento. “Para dar o salto, é fundamental que o investimento se acelere. Temos de transitar de um padrão de crescimento sustentado pelo consumo para uma dinâmica amparada no investimento. Ou encontramos brechas para enfrentar essa possibilidade, ou viveremos com uma taxa de crescimento relativamente baixa.” Há também uma disputa ideológica no caminho, na opinião do economista. “Eu diria que tem muita espuma sendo feita. A visão mais conservadora está muito ativa, enquanto a visão desenvolvimentista tem dificuldade de exibir seu discurso de forma mais contundente.” No primeiro caso, está a pressão para que o Estado reduza gastos. “Com isso, em vez de gerar crescimento, corremos o risco de perder o pouco de crescimento que temos.” Ele também vê exagero no cenário negativo desenhado neste ano. “A partir da pressão dos interesses financeiros, da banca, criou-se um quadro de expectativas pessimistas impressionante. Parecia que estávamos indo para o cadafalso.” Dedecca conta que, durante um evento, chegou a ser questionado por um colega inglês quanto à diferença do debate sobre a economia feito no meio acadêmico e na imprensa – esta última, para o professor, acompanha a visão do chamado mercado. “A grande mídia ‘compra’ de peito aberto essa situação.”
VANDER FORNAZIERI/RBA
EDMILSON MAGALHÃES/SMABC
Entre algumas das principais campanhas salariais concluídas no segundo semestre, metalúrgicos da CUT em São Paulo e bancários (negociação nacional) fecharam acordos com reajuste de 8% a 8,5%. Enquanto no primeiro caso fábricas de vários setores pararam conforme o andamento (ou impasse) nas negociações, no segundo o acerto só saiu após 23 dias de greve e de um intervalo de um mês entre a primeira (6,1%) e a segunda proposta (7,1%), e mais alguns dias para que fosse apresentado o índice final, de 8% a 8,5%. Para o diretor de Relações do Tra balho da Federação Nacional dos Bancos (Fena ban), Magnus Apostólico, isso aconteceu em parte não só pela pers pectiva deste ano, “mas pela falta de visão clara para 2014”, especialmente no primeiro semestre. “A economia está girando lentamente”, afirma o representante da Fenaban. E acrescenta: “Não estamos falando em sair do zero, mas de uma convenção coletiva muito pesada”. Para ele, o país ainda tem “um sério problema” a resolver, porque os ganhos reais vêm crescendo acima da produtividade. “Isso é insustentável no médio prazo”, diz Magnus. A presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira, contesta. “Os bancos não queriam dar aumento real. Não tem nada que justifique economicamente, não há nada que sinalize que os bancos não vão continuar crescendo.” Ela também aponta expectativas mais otimistas
INJEÇÃO Campanhas salariais de bancários e metalúrgicos: mais de R$ 9 bilhões na praça alavancam vendas no comércio e poupança REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
17
ENTREVISTA
Do feudalismo ao assédio
N
os anos 1980, tornou-se comum uma tática de paralisação irritante para as fábricas. O chefe sai, a seção para, ele volta, para-se outra. Nunca param todas ao mesmo tempo, mas havia sempre um cruzar de braços pipocando de seção em seção. Por ser um ativista da “greve pipoca”, Osvaldo Bezerra da Silva, então funcionário da Oxigênio, em São Paulo, facilitou para o inventor de apelidos que todo chão de fábrica tem. Desde então, é o Pipoka. Ele entrou na diretoria do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo em 1988 e hoje é coordenador-geral da entidade, fundada em 1933. Pipoka fala dessa história, sobretudo das últimas três décadas, após a “retomada” contra a tutela do Ministério do Trabalho, analisa mudanças vividas pelo país no período e os desafios que o movimento sindical tem pela frente. A íntegra da entrevista pode ser lida no site da Rede Brasil Atual. Um sindicato de trabalhadores completar 80 anos signi fica uma relação íntima com a história do país, não?
É, começa com a história dos gasistas, início dos anos 1930, um pequeno embrião, que dura uns dois, três anos. Não era ainda um Brasil industrial. A partir da década de 40 é que ele se configura, quando a indústria química começa a surgir com um pouco mais de força. Mas a parte mais importante nessa trajetória a gente constata a partir da década de 80, porque, quando o país estava começando a desenvolver sua indústria, veio o golpe de 1964, e passou a ficar muito difícil fazer sindicalismo. Na década de 80, na esteira da reconstrução do movimento, começa a surgir um embrião da oposição que viria a retomar o sindicato, em 1982. Era o momento em que se davam, também, as condições para o fim da ditadura. 18
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
GERARDO LAZZARI/RBA
O coordenador do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo, Osvaldo da Silva Bezerra, o Pipoka, reflete sobre mudanças no mundo do trabalho nos 80 anos da entidade A influência do Ministério do Trabalho da ditadura era grande. Como foi possível construir oposição?
Uma parte da chapa de oposição saiu de dentro da diretoria comandada por um interventor. O Domingos Galante (que se tornaria presidente do sindicato) chegou a militar aqui dentro, acompanhando os passos do interventor, Waldomiro Macedo. E conquistou espaço, tinha uma sala aqui, participava das negociações na Fiesp. O cara achava que o Domingos nunca iria ficar contra eles. Quando ele montou e fez o registro da chapa, com várias pessoas daquela diretoria, o Waldomiro Macedo quase morreu do coração: “Essa é a minha chapa! Como você me faz uma coisa dessas?” Foi decisivo ter gente lá dentro para conseguir fazer o enfrentamento na eleição de 82. A década de 80 foi muito marcante. O sindicalismo perdeu protagonismo nos anos 1990?
No final da década de 80, com novas tecnologias, novos processos de produção, os empregos diminuíram, mas a produção continuou igual ou maior. O faturamento melhorou. A influência empresarial teve grande peso sobre as decisões governamentais no mundo todo, com aquelas teses de desregulamentar, globalizar, e deixar o resto com o mercado. O trabalhador fica na defensiva. Hoje, com a retomada com crescimento as condições estão melhores, o trabalhador está mais forte e mais consciente. Mas na maioria das empresas você não tem democracia ainda. Manda o empresário, e você não consegue ter o direito de organização, de uma comissão de fábrica, até das próprias Cipas, que são dominadas pelo empresário. Quando se abre a possibilidade de você ter uma organização mais efetiva, ajuda a politizar o trabalhador. De um outro lado, a empresa precisa ser mais flexível. Uma negociação não é algo em que um tem de ganhar e outro perder.
ENTREVISTA
No setor químico as questões relacionadas a saúde no trabalho têm muito peso, não?
Temos um ambiente de trabalho muito nocivo em quatro grandes setores: químico, farmacêutico, de embalagens plásticas e de cosméticos. A década de 80 foi muito emblemática no enfrentamento dessas condições. As empresas priorizavam as campanhas pelo uso de equipamento de proteção individual. Mas não basta usar esse equipamento sem estabelecer um ambiente de proteção coletiva. No setor de embalagens plásticas, a maioria das empresas tinha uma máquina campeã de amputação de membros superiores – dedos e mãos. Em 1992, arrolamos ação no Ministério Público. Isso obrigou os patrões a montar um grupo de trabalho, começamos a desenvolver mecanismos de proteção, o que resultou na Convenção Preventora de Acidentes com Máquinas Injetoras de Plástico. Levou quase três anos. Houve redução drástica do número de acidentes. Que tipos de risco ainda têm de ser superado?
Os principais problemas são as chamadas doenças modernas. Ainda estão muito presentes nas linhas de produção as lesões por esforço repetitivo. Além das LER, aumentou o sofrimento por assédio moral. Esse fenômeno começou a ser apurado a partir da pesquisa de um grupo de médicos da Santa Casa, que em dois anos identificou quase 2 mil pessoas com problemas de ordem psíquica, emocional. No setor de cosméticos, o primeiro a acelerar o processo produtivo, foram comuns relatos de humilhação do chefe sobre o empregado que eventualmente tinha rendimento inferior. E a perseguição era clara. Eram chamados de incompetentes, e isso vai se alojando na psique dos indivíduos. A ponto de incapacitar a pessoa. E quando as operações da fábrica afetam não só os funcionários, mas as condições ambientais na comunidade onde ela está instalada?
Ainda hoje há um bom embate sobre isso. Na estrutura do sindicato tem uma Secretaria de Saúde, não só discutindo saúde nos ambientes de trabalho, mas levando em conta a importância do ambiente saudável também fora dele. Em 1992, ano da conferência da ONU no Rio de Janeiro (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Eco 92), já era forte esse entendimento no sindicato. Já tivemos enfrentamento com uma indústria que tinha aqui em Santo Amaro (bairro da zona sul paulistana) chamada Nuclemon. Trabalhava com beneficiamento de terras raras para a extração e enriquecimento do urânio. Havia vários trabalhadores contaminados e o resíduo produzido oferecia risco às comunidades. Fechar a empresa significava fechar postos de trabalho,
e isso é sempre um dilema para um sindicato, mas o bom senso prevaleceu. Defendemos fechar. A atividade de uma fábrica não pode oferecer risco às gerações atuais nem às gerações futuras. Como vocês conseguiram unificar categorias que estavam em sindicatos separados?
Nós fizemos a unificação em 1994. Antes, havia o sindicato dos plásticos e o dos químicos. Na época em que fizemos a fusão, cada base tinha em torno de 70 mil. Então, pode-se dizer que havia uma base de 140 mil. Rapidamente, em menos de três anos, a categoria se reduziu à metade. E o emprego continuou caindo. Foram muitas fusões, empresas fecharam. Houve recuperação nos últimos dez anos. Hoje, contabilizamos uns 90 mil trabalhadores, e o emprego está em expansão. Esse perfil da categoria vem mudando também. A qualificação está melhorando. Mas também é um fato que quem chega hoje depara com relações de trabalho mais avançadas do que há 30 anos. Os acordos são melhores, as condições individuais também. Isso, por outro lado, reduz o nível de engajamento. O sindicalismo acompanha essa evolução?
Existe muita preocupação e há algumas iniciativas. Talvez não as ideais ainda, mas ações estão sendo experimentadas. Falta um pouco de ousadia. A gente vive numa rotina que não permite parar muito para pensar, elaborar mais. Em vez de fazer uma ação fraca, é melhor você não fazer e se preparar para uma ação mais rigorosa. A tendência é aprofundar mais, desenvolver estratégias com esse objetivo. Hoje você tem setores de juventude, mulheres, negros, quem milita nesses grupos é gente mais jovem, e é maioria na diretoria. Essas pessoas estão em formação. De uma boa leitura dessa nova classe trabalhadora depende o sindicato do futuro?
Isso é o que mais nos preocupa. Eu ainda vejo iniciativas tímidas no movimento sindical como um todo. A gente ora está defendendo o governo – quando dialoga e atende a demandas dos trabalhadores, o que não ocorria antes –, ora está travando lutas, porque parte do poder econômico também defende seus interesses dentro do governo de coalizão. Antes, o inimigo tinha lado e forma claramente definidos. Hoje, não. Hoje parecemos caminhar na multidão com uma bandeja de copos de cristal na mão. Mas algo muito interessante é que nós conseguimos saber o que pode ou não acontecer conosco, olhando para o que já acontece na Europa. Onde a esquerda vacilou na defesa do Estado de Bem-Estar Social, a direita neoliberal ocupou espaços para pôr conquistas históricas a perder.
É um fato que quem chega hoje ao mercado de trabalho depara com relações mais avançadas do que há 30 anos. Os acordos são melhores, as condições individuais também. Isso, por outro lado, reduz o nível de engajamento
REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
19
CAPA
Nasceu grande
20
NOVEMBRO 2013
Sérgio Gomes, Oboré Esse é um prêmio jornalístico que não envolve dinheiro. É um reconhecimento do jornalismo do mais alto nível que tem sido praticado pela Rádio Brasil Atual, pela Marilu e pela Anelize e toda a equipe
REVISTA DO BRASIL
Roberto Cabrini, SBT Existe uma revolução acontecendo no rádio brasileiro que precisa ser reconhecida. Essa revolução tem nome: Rádio Brasil Atual. Jornalismo investigativo, profundo, ousado e com responsabilidade
Luis Nassif, portal GGN O prêmio é a comprovação da alta qualidade da Rede Brasil Atual. Não basta ter um site, não basta ter um blog. Tem de saber fazer jornalismo, e vocês sabem
CLAUDIA SINATRA/INTERNAZIONALE
MARILU, EM GUARANI Koa ko mandu’a porã Vladimir Herzog teko repyhá mbareté ha’e Ava Guarani-Kaiowá rehe hape. Onhe mandu’a mi hanguã Ava kuera reko asy re. Ava GuaraniKaiowá reko mbarete gui inhe’e ayvu ndopa moãí, oiko asy ete ramo jepe Mato Grosso do Sul pe. Heta ma mburuvicha GuaraniKaiowá pe karai ojuka, omõ kanhy hete kue há ojuka veta he’i
ELZA FIÚZA/ABR
BRUNA OLIVEIRA ESTIVALET/CC
LEANDRO MELITO
JAIR BERTOLUCCI/TV CULTURA
Antero Grecco, Estadão e ESPN Brasil O prêmio é um dos mais respeitados e disputados do jornalismo. Que a premiação dê maior incentivo aos colegas da RBA a continuar nessa linha de trabalho, que é a construção de um Brasil melhor e mais justo
um ano. Thielly sentiu-se uma marionete nas mãos da equipe médica. “Foi um parto rápido, que eles encaixaram no tempo que era melhor para eles, e não pensando em mim.” Escolada, decidiu ter o segundo filho em casa. Marcos nasceu ao lado dela e da família, e de uma enfermeira e uma obstetriz, aptas para o acompanhamento do parto natural. Logo ao saber da gravidez, a mãe decidiu que não iria para o hospital passar, de novo, por todos os protocolos e pela violência a que foi submetida da primeira vez. Em casa, teve até o filho mais
SILVIO TANAKA/TV CULTURA
T
hielly Manias tem 29 anos e dois filhos. Miguel está para completar 4 anos e Marcos, 2. Quando engravidou de Miguel, ela assinou um plano de parto em que explicitava, entre outras condições: não queria a episiotomia, um corte feito para “ajudar” na passagem do bebê e evitar lacerações graves na região do períneo. Miguel estava com a cabeça quase inteira para fora do corpo de Thielly quando a enfermeira obstétrica fez o corte. Os pontos causaram dor e uma hipersensibilidade que durou quase
FERNANDA FREIXOSA/INSTITUTO VLADIMIR HERZOG
Rádio Brasil Atual e TVT, da plataforma Rede Brasil Atual, conquistam dois prêmios Vladimir Herzog, um dos mais importantes da imprensa brasileira, e um prêmio Petrobras de Jornalismo Por Júlia Rabahie
Heródoto Barbeiro, Record News É um prêmio que todo jornalista gostaria de ganhar, uma vez que as questões relacionadas aos direitos humanos, infelizmente, não têm na mídia a projeção e o espaço que merecem
Eliane Brum, escritora e jornalista O prêmio é inspirado no jornalista que teve o direito de viver roubado pela ditadura. Um repórter é homenageado quando consegue transformar a história esquecida em história contada
CAPA
FERNANDA FREIXOSA/INSTITUTO VLADIMIR HERZOG
A VIDA EM PRIMEIRO LUGAR Desde 1978, o Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo homenageia profissionais que se destacam na abordagem temática dos direitos humanos e promoção da cidadania
Eugênio Bucci, ECA/USP São muitas as pessoas que ainda não perceberam seus próprios direitos. A Rádio Brasil Atual está num caminho fecundo que a sociedade brasileira saberá valorizar REVISTA DO BRASIL
JF DIORIO/AE
DAMIÃO FRANCISCO/CPFL CULTURA
CLÉO, EM PORTUGUÊS Este prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos é dos Guarani-Kaiowá . A vitória é deles. Um povo forte que conseguiu manter até hoje sua língua, o guarani, apesar de todo o massacre que sofreram e continuam sofrendo no Mato Grosso do Sul
Marilena Chaui, FFLCH/USP Não existe democracia sem o direito à informação. Nada mais justo do que receber o prêmio que leva o nome do jornalista que é símbolo da luta pela liberdade NOVEMBRO 2013
21
CAPA
velho participando do processo do parto, e pôde conduzir o nascimento do bebê. “Eu me senti mais livre, foi um alívio. Eu podia comer, beber o que quisesse, podia me movimentar, não tinha de ficar deitada que nem me fizeram ficar no hospital, e tive meu bebê no meu colo assim que nasceu. A lembrança que eu tenho é do cheiro do parto, do meu filho me olhando, tudo do jeito que eu queria. Aí, sim, foi o meu parto, sem o esgotamento que foi o primeiro. Foi um parto, não uma série de acontecimentos médicos.” Histórias como a de Thielly – que se tornou doula, dedicada a assistir mulheres em trabalho de parto – acontecem com uma entre quatro mulheres que dão à luz, como mostra a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, feita pela Fundação Perseu Abramo. Thielly é uma das personagens que deram vida à serie de reportagens “Dores do parto”, de Anelize Moreira, da Rádio Brasil Atual. A série mostra a realidade de mulheres que sofreram violência obstétrica, e também das que optaram pelo parto humanizado. “São muitas as parturientes que passam por isso sem saber. Ouvem frases como ‘cala a boca, mãezinha’, ‘para o berreiro’ e são submetidas a episiotomia ou mesmo uma cesariana sem necessidade. Essas mulheres ficam muito marcadas fisicamente e emocionalmente, e isso me estimulou”, conta Anelize, que acaba de receber por esse trabalho menção honrosa do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. A categoria Rádio é uma das nove do Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo, que desde 1978 homenageia profissionais que se destacam na abordagem temática dos direitos humanos e promoção da cidadania. Neste ano, ambas as premiações da categoria – a menção honrosa e o prêmio principal – foram para a Rádio Brasil Atual. A repórter Marilu Cabañas foi premiada pela série de reportagens “Voz Guarani-Kaiowá”, que retrata a luta da etnia por suas terras, os tekohas – territórios sagrados na cultura indígena – em municípios de Mato Grosso do Sul. Marilu ouviu familiares de índios mortos por causa da luta, lideranças ameaçadas, 22
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
professores indígenas, políticos e representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Visitou acampamentos em beira de estrada e aldeias, foi aonde só é possível ir com escolta da Polícia Federal e da Força Nacional, já que muitas das áreas são rodeadas por pistoleiros a serviço de latifundiários da região. “Como entrávamos com escolta nos lugares, tinha de ser tudo muito rápido. Eu colhia os depoimentos rapidamente, inclusive onde houve o assassinato de um líder indígena”, conta a repórter. Ela espera que o prêmio dê visibilidade à luta dos Guarani-Kaiowá e de outros povos indígenas que têm seus direitos constitucionais pela terra ameaçados por ruralistas. “Espero realmente que a presidenta Dilma tenha pulso firme para fazer com que índios sejam respeitados e vete a PEC 215 (Proposta de Emenda Constitucional que transfere do governo federal
para o Congresso a competência de aprovar demarcações de terras indígenas). Se esse prêmio puder ajudar um pouco os Guarani-Kaiowá, eu já fico muito feliz.” A PEC 215 é, na prática, uma tentativa da bancada ruralista de barrar processos de demarcação. No evento de premiação, em 22 de outubro, no Memorial da América Latina, Marilu recebeu o troféu ao lado da índia Cléo, da etnia Guarani-Kaiowá. Juntas, elas leram um texto em guarani, que lembrava a situação ameaçadora em que vivem os povos indígenas do país. “Este prêmio é dos Guarani-Kaiowá. Um povo forte que conseguiu manter até hoje sua língua, o guarani, apesar de todo o massacre que sofreu e continua sofrendo em Mato Grosso do Sul”, disse Marilu, mencionando sua própria origem: “Tenho muito orgulho de ter em minhas veias o sangue guarani, herdado de minha mãe, Ambrosia
CAPA
Sintonize 93,3 FM Litoral paulista 98,9 FM Grande São Paulo 102,7 FM Noroeste paulista Na internet www.redebrasilatual.com.br/radio
GERARDO LAZZARI/RBA
O Jornal Brasil Atual vai ao ar diariamente, das 7h às 9h, com reprise às 12h30. Ao longo do dia, a Rádio Brasil Atual toca música brasileira, com noticias e prestação de serviço.
FERNANDA FREIXOSA/INSTITUTO VLADIMIR HERZOG
NASCIMENTO HUMANIZADO Thielly, Marcos e Miguel: histórias de vida e de luta narradas por Anelize na série de reportagens “Dores do parto”
Cabañas, de 81 anos, que ainda tem mãe, minha avó Sixta Cabañas, que completou 100 anos, ambas paraguaias que falam o guarani fluentemente”.
Caminho certo
Ao obter três concessões para operar em FM – na Grande São Paulo (98,9), no litoral paulista (102,7) e na região de Catanduva (93,3) –, a Rádio Brasil Atual conseguiu realizar o “sonho da casa própria”, depois de nove anos de projetos tocados em horários alugados em outras emissoras. A rádio está no ar em caráter experimental desde agosto de 2012, tem o jornalismo diário, das 7h às 9h, como carro-chefe e prepara a expansão da grade de programação.
As histórias das repórteres premiadas têm em comum, além da emissora, o jornalismo humanizado, matéria-prima dos profissionais reunidos nesse coletivo que mantém, além da rádio, jornais impressos, a Revista do Brasil e o portal Rede Brasil Atual. De acordo com o editor do site, João Peres, o objetivo da pauta da RBA é dar ao leitor o direito de formar sua própria opinião sobre os principais assuntos em debate no país. “Existe uma preocupação, em todas as reportagens, de garantir que diferentes pontos de vista estejam contemplados, embora nosso ponto de partida nas pautas seja sempre o tema que interfere no dia a dia dos trabalhadores”, afirma Peres, também ele jornalista premiado. Em 2011, uma série de reportagens sobre a vida do cardeal Paulo Evaristo Arns – de sua autoria e de Virgínia Toledo, no site e na Revista do Brasil de setembro daquele ano – recebeu menção honrosa no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB-RS). “O reconhecimento da nossa política editorial premia o caráter humanista e a qualidade profissional que movem o trabalho e os objetivos de todo esse coletivo, que é produzir informação em sintonia com o novo Brasil que queremos construir”, diz o diretor-geral da Rede Brasil Atual, Paulo Salvador. “Estamos nessa batalha há nove anos, primeiro com programa de rádio, depois veio a criação da revista, em 2006, o site em 2009, a concessão da TVT em 2010 e dos canais FM para a Rádio Brasil Atual no ano passado”, lembra Salvador, listando as iniciativas de comunicação capitaneadas pelos sindicatos dos Bancários de São Paulo e Metalúrgicos do ABC, com apoio de dezenas de outras entidades, como químicos, professores, do setor elétrico, profissionais de saúde, de editoras de várias regiões do país. “É uma sucessão de etapas vitoriosas que nos estimula a continuar batalhando para expandir as parcerias, disputar a audiência e fazer a diferença no jornalismo brasileiro.” A preocupação com a expansão da rede de apoiadores para manter esse projeto de comunicação está na ordem REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
23
CAPA
do dia. “Acho que faltam liderança e segurança no movimento sindical para canalizar recursos, hoje pulverizados em muitas iniciativas nessa área, e construir um grande instrumento de comunicação”, diz o coordenador-geral do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo, Osvaldo Bezerra da Silva, o Pipoka. “A Revista do Brasil é uma grande iniciativa, mas tem apenas trinta e pouco sindicatos contribuintes, apesar de, no campo da CUT, existirem 3.800. Talvez esse seja o salto que precisa ser dado. Você precisa convencer, porque nós temos condições de potencializar esse instrumento.”
Entender o conceito
O jornalista e historiador Heródoto Barbeiro destaca o forte simbolismo dessa premiação na área. “É um prêmio que todo jornalista gostaria de ganhar, uma vez que as questões relacionadas aos direitos humanos, infelizmente, não têm na mídia a projeção e o espaço que merecem”, diz Barbeiro. A escritora e jornalista Eliane Brum concorda e assinala que os repórteres são reconhecidos pela premiação ao registrar histórias que ficariam esquecidas na história do país. “O prêmio é inspirado no jornalista que teve o maior dos direitos humanos, o de viver, rou-
bado pela ditadura. E um repórter homenageado sabe que conseguiu incluir uma narrativa invisível no grande painel humano do Brasil, transformando a história esquecida em história contada, silêncio em memória.” A psicóloga Raquel Moreno, especialista em sexualidade e gênero, observa que os temas abordados nas reportagens merecem destaque por serem pouco explorados e ainda tratados como tabu pela mídia e por alguns setores da sociedade. “Falar em parto humanizado no país campeão do mundo em realização de cesáreas é um desafio. Fiquei contente com o prêmio, merecido, para a Rádio Bra-
A TVT e os talentos invisíveis da periferia No mesmo 22 de outubro em que as repórteres da Rádio Brasil Atual recebiam o Prêmio Vladimir Herzog, o jornalista Bruno Mascarenhas participava no Rio de Janeiro da entrega do Prêmio Petrobras de Jornalismo em nome da equipe da TVT responsável pela reportagem especial “Literatura na periferia – as vozes das quebradas”. Exibida no programa ABCD em Revista, que vai ao ar todas as sextas-feiras, às 19h30, foi vencedora na categoria Reportagem Cultural Regional São Paulo e Sul. É a primeira edição do prêmio criado pela estatal, que teve inscritos 1.179 trabalhos de jornalistas de todas as regiões do Brasil. Somente 34 foram premiados. Os temas se dividiram em cultura, responsabilidade socioambiental, esporte, fotojornalismo e reportagens sobre petróleo, gás e energia. O trabalho vencedor da TVT foi ao ar no primeiro semestre. “O que causou uma grande surpresa foi a ousadia dos jurados, que valorizaram, além do conteúdo, a forma, a criatividade dos jornalistas”, diz Mascarenhas, diretor do programa. “Uma TV educativa como a TVT deve ter compromisso com a experimentação, com a
Ademiro Alves de Sousa, o Sacolinha
24
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
criatividade, e ABCD em Revista tem a linguagem bem fora do padrão.” A reportagem especial apresenta quatro escritores da periferia de São Paulo, com seus trabalhos, seu cotidiano e sua contribuição para transformar a realidade da região onde moram através da literatura. “E essas pessoas tiveram a oportunidade de demonstrar o quanto são talentosas no nosso programa, que é produzido com o objetivo de mostrar algo que a grande mídia normalmente não mostra”, completa o diretor. Participaram ainda da equipe premiada, Adriana Veríssimo (pauta), Rikardy Tooge (assistente de pauta), Crystal Ferrari (produtora), Eduardo Donato (editor de texto), Marlon Marinho (editor de ima-
Sintonize Canal 13 NET Digital: Grande S. Paulo Canal UHF 46: Mogi das Cruzes No site: tvt.org.br
Toni C.
gens), Weslley Mendes (animação), Rafael Borges e Willians Campos (operadores de câmera), Rafael Carvalho e Felipe Cabello (assistentes de câmera). As entrevistas com os escritores foram feitas nos locais onde criaram suas obras. Ademiro Alves de Sousa, o Sacolinha, por exemplo, que escreveu o livro Graduado em Marginalidade quando estava no trem, apertado, indo para a zona leste de São Paulo, foi entrevistado no trem. Já Toni C., que escreveu sobre o hip-hop, teve entrevista gravada na Rua 24 de Maio, berço do movimento. Foi uma forma de construir uma narrativa. Depoimentos de Sergio Vaz, da Cooperifa, e do escritor Allan da Rosa (autor de reportagem à página 38) também estão lá. Todos produzem literatura que muitas vezes as pessoas não conhecem porque eles não têm espaço, com a imprensa tradicional mais preocupada em divulgar apenas o que as grandes editoras distribuem. Para Valter Sanches, presidente da Fundação Sociedade Comunicação Cultura e Trabalho, mantenedora da TVT, o prêmio para “Literatura da periferia” é um reconhecimento para esse projeto de comuni-
Allan da Rosa
CAPA
sil Atual”, afirma. Para Cléber Buzzato, secretário-geral do Cimi, o jornalismo atuante é de suma importância para as causas dos direitos humanos. “Enaltecemos o trabalho da rádio pelo jornalismo em defesa dos direitos humanos praticado por ela, que precisa ser efetivamente valorizado.” Além de a imprensa tradicional não ajudar o público a entender o conceito de direitos humanos, muitas vezes atrapalha, como se fosse um tema que não estivesse intimamente ligado às condições elementares para uma vida digna em sociedade – tais como acesso a saúde, educação, segurança, mobilidade, cultura, igualdade de oportunidades, informação. “Temos pouca consciência do papel
fundamental que a consciência sobre direitos humanos pode exercer para uma vida melhor. Reclamam, dizendo que direitos humanos é obviedade, que está em todo lugar e se tornou cansativo, mas percebemos com facilidade que são muitas as pessoas que ainda não perceberam seus próprios direitos”, afirma o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. Por esse motivo, o prêmio Herzog desempenha função essencial nos dias de hoje. “A Rádio Brasil Atual está num caminho fecundo que a sociedade brasileira saberá valorizar”, avalia. Para a filósofa Marilena Chaui, o compromisso da Rádio Brasil Atual com a cidadania e os direitos humanos é um
cação, que envolve, além da TVT, a Rede e a Rádio Brasil Atual, o jornal ABCD Maior e a Revista do Brasil. “A própria pauta já mostra a diferença, mostra a missão que a gente desempenha, ao dar valor à qualidade da arte da periferia. Nós damos visibilidade às pessoas que parecem invisíveis”, afirma Sanches. Na TVT, como ele assinala, os movimentos sociais em geral estão nas pautas principais dos programas. “E eles reconhecem aqui um lugar onde podem falar também.” No evento de entrega do prêmio de jornalismo, a presidenta da Petrobras, Maria das Graças Silva Foster, destacou a importância de uma imprensa livre. “A primeira coisa que faço no meu dia é procurar informação. Eu não consigo trabalhar sem ler o clipping, sem pegar um ou dois jornais e ver como caminha a economia, saber se preciso modificar algo que não foi bem compreendido ou se a informação não estava de fato correta. É muito importante que a imprensa seja livre, que critique e ajude a Petrobras em suas decisões”, disse. Graça enalteceu todos os trabalhos inscritos e confessou que esperava no máximo 350 inscrições e acabou se
surpreendendo com as mais de mil reportagens concorrentes. O prêmio principal foi para uma reportagem especial, “Filho da rua”, da jornalista Letícia Duarte, do jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul. Ela acompanhou a vida de um garoto viciado em crack durante três anos. “Foi um projeto muito difícil e costumo dizer que é como um filho para mim também. Num tempo em que se discute sobre o fim do jornalismo de papel, a minha reportagem foi publicada em 16 páginas. Então, ter um trabalho desse reconhecido também mostra a valorização das grandes reportagens, do papel do jornalismo de provocar essas discussões sociais, sobre temas como esse da criança de rua”, disse Letícia. O ABCD em Revista, com “Literatura na periferia”, foi também finalista do Prêmio Jornalista Abdias Nascimento – que valoriza trabalhos que discutem temas raciais e a promoção da igualdade – na Categoria Mídia Alternativa ou Comunitária.
exercício inerente a qualquer democracia. “Não existe democracia sem o direito à informação. Nada mais justo do que receber o prêmio que leva o nome do jornalista que é símbolo da luta pela liberdade, pensamento e verdadeira comunicação, que foi Vladimir Herzog”, diz a professora da USP. E a ampliação da democracia passa, ainda, por um marco regulatório das comunicações, que garanta uma mídia plural e livre, como acrescenta o presidente da CUT, Vagner Freitas. “Estou orgulhoso do prêmio, que representa nossa luta por uma mídia independente, que expresse a opinião de toda a sociedade, e não apenas de meia dúzia de famílias, como acontece hoje”, diz o sindicalista.
AGÊNCIA PETROBRAS
Bruno e os personagens de sua reportagem: literatura da periferia
Sarau Cooperifa
Sérgio Vaz REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
25
MUNDO
Um escândalo chamado Siemens A empresa tem estado presente no noticiário brasileiro, e também no alemão, embora por motivos diferentes Por Flávio Aguiar, de Berlim
N
o Brasil, pesam sobre a empresa acusações de formação de cartel (com outras mais) para fornecimento de material para construção de meios de transporte, como o metrô de São Paulo, além de, ultimamente, distribuição de propinas. Segundo o noticiário brasileiro e internacional, as relações entre o governo do estado de São Paulo e fornecedores de equipamentos, especialmente para o sistema de transporte por trens e metrô, são permeadas de contratos superfaturados e pagamentos de gordas propinas. Enfim, corruptores privados encheram os bolsos de agentes públicos corruptos, entre eles pessoas íntimas dos governadores tucanos, desde a gestão Maior Covas, em 1998, até os dias atuais, com Geraldo Alckmin – passando por José Serra. Se estiverem certas as denúncias, as despesas com sobrepreço e “gorjetas” fizeram contratos que somaram R$ 30 bilhões em década e meia engordar 30%, o que representaria um prejuízo de R$ 9 bilhões, ou dezenas de quilômetros de trilhos jogados no bolso de alguéns. Como grande parte das denúncias partiu de dentro de uma das empresas que integram o suposto cartel, a Siemens, é impro26
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
vável que não haja fogo na base dessa fumaça. O gesto parece ser parte de um esforço da multinacional alemã em tentar recuperar o prestígio da marca, que não anda bem no noticiário internacional. Na Alemanha, a Siemens tem sido notícia devido a uma crise de administração em consequência de uma série de contratempos, como perda de prazos e de espaço para concorrentes e um desconforto financeiro. Essas dificuldades levaram a uma troca de comando na empresa. O novo presidente é Joe Kaeser, ex-chefe do Escritório Financeiro Central, órgão encarregado de avaliar riscos financeiros e perdas decorrentes, e como evitá-los ou enfrentá-los. Kaeser substituiu Peter Löscher, aus tríaco de nascimento, que assumiu a presidência da empresa em julho de 2007, depois de um período conturbado em que executivos caíram e outros subiram em meio a acusações e acordos judiciais envoltos no tema da corrupção, por meio do pagamento de propinas em diferentes países, inclusive nos Estados Unidos.
Não houve acusações de corrupção contra Löscher. Aparentemente, a “acusação” contra ele foi de má gestão, decisões erradas que levaram, por exemplo, a Siemens a atrasar a entrega de trens encomendados à “sagrada” Deutsche Bahn, a ferroviária estatal alemã, um dos ícones do país, ao lado da sua indústria automobilística. Nesse recente sobe e desce de CEOs (de Chief Executive Officer, no jargão internacional), a mídia alemã noticiou uma luta interna entre dois pesos pesados: Gehrard Chrome, presidente do Conselho Supervisor, e Josef Ackermann, um dos vice-presidentes. Pelo noticiário subsequente, Ackermann, que já foi CEO do Deutsche Bank, perdeu e renunciou a seu posto no Conselho da Siemens, sem que ficassem claras as razões da disputa.
Longo passivo
O fato é que o passivo de acusações contra a Siemens é muito longo e variado. Até ter fornecido, por exemplo, material
KEYSTONE/GETTY IMAGES
MUNDO
1933, HITLER NA SIEMENS Empresa tem história de parcerias desabonadoras, entre elas com os governos tucanos de São Paulo
elétrico para os campos de concentração nazistas, além de haver fotos de carros seus sendo usados para fazer propaganda do partido. Em 2006, a empresa foi objeto de uma devassa por parte da promotoria pública alemã. Em 15 de novembro daquele ano, procuradores e agentes policiais invadiram 30 escritórios da empresa, além de várias casas de seus top executivos. O objetivo da operação era investigar o que foi descrito como um grande esquema de pagamento de propinas para obtenção de favores em escala mundial. Nessa ocasião caíram executivos como Heinrich von Pierer e Klaus Kleinfeld. As acusações levantaram detalhes bizarros, como o de que até 1998 a empresa abatia do imposto de renda alemão propinas pagas no estrangeiro, descritas como “despesas correntes”. A nova direção da Siemens negociou laboriosamente, por exemplo, com o fisco norte-americano, chegando a um acordo em 2008 para o pagamento de US$ 800 milhões em indenizações. Não se sabe o montante das indenizações pagas pela empresa. Há avaliações de que passava de US$ 1,5 bilhão antes de vir à luz o caso brasileiro. Chegou ao noticiá rio que o contador que operava secre-
tamente as contas das propinas – e um dos poucos a serem condenados judicialmente, Richard Sieksczek – lidava anualmente com valores entre US$ 50 milhões e US$ 60 milhões. Mas o caso mais espetacular ocorreu na China, onde em junho de 2011 o empresário Shi Wanzhong foi condenado à morte por ter recebido da Siemens US$ 5,1 milhões em “por foras” para favorecer compras de materiais. A execução da sentença foi suspensa, mas não se sabe exatamente o que aconteceu com o condenado. A empresa sempre se recusou a comentar o assunto. A Siemens emprega cerca de 370 mil trabalhadores em 200 países – e se orgulha de ter em seus quadros 18 mil engenheiros de informática, mais do que a Microsoft– e está passando por um processo dramá tico de ajustes. Seu novo presidente anunciou a extinção de 15 mil postos de trabalho na Alemanha, o que, nesta época de criseeuropeia, pode significar uma “pequena” catástrofe social. Ao mesmo tempo, embora a empresa não comente nada, a disposição de agora colaborar com as autoridades brasileiras mostra que há um empenho em recuperar a aura há muito tempo perdida.
Werner von Siemens Fundou a empresa em 1847, voltada para a expansão do telégrafo. Passou desde logo a operar em nível internacional, na Índia, na Rússia e no continente europeu. Construiu uma linha telegráfica da Índia a Londres, por exemplo. Peter Löscher, 56 anos Foi o diretor-presidente de 2007 a julho de 2013. Não há acusações de corrupção contra ele. Gehrard Chrome, 70 anos Proeminente empresário, assumiu a presidência do Conselho Diretor em 2007, substituindo Klaus Kleinfield. É considerado o homem forte da empresa. Josef Ackermann, 65 anos Nascido na Suíça, um dos mais importantes CEOs da Europa,
amigo de Angela Merkel, e x-diretor-presidente do Deutsche Bank, já foi até objeto de documentário da uma rede de TV (ARD). Não há acusações de corrupção contra ele. Klaus Kleinfeld, 56 anos Foi presidente do Conselho Diretor de 2005 a 2007. Quando surgiram as acusações contra a empresa, foi acusado de negligência por não ter agido. Negou. Ainda assim, deixou o cargo e a empresa, segundo algumas fontes pagando uma indenização simbólica de € 2 milhões. Desde 2008 é o CEO da Alcoa norte-americana. Heinrich von Pierer, 72 anos Presidente do Conselho Diretor de 1992 a 2005, quando foi substituído por Klaus Kleinfeld, passando a presidente do
Conselho Fiscal, onde ficou até a maré de escândalos de 2006-2007. Demitiuse, alegando inocência. Permanecem acusações de negligência, mas não houve processo contra ele. Em 15 de maio de 2010, o jornal Süddeutschen Zeitung noticiou que ele teria pago uma indenização de € 5 milhões à empresa. Hoje é membro do conselho da empresa mista turca Koç Holding. Shi Wanzhong De acordo com as poucas informações disponíveis, esse executivo chinês era diretor da China Mobile, uma companhia estatal no ramo da telefonia móvel, quando recebeu a propina da Siemens. Entretanto, não houve processo contra a empresa.
LUKAS BARTH/EFE
Os homens da corporação
Joe Kaeser, 56 anos Atual diretor-presidente. Em 2007 foi acusado de participação nos esquemas de propinas (Schmiergeld, em alemão), mas foi absolvido de todas as acusações.
REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
27
LEITURA
O capitalismo e suas crises Pode o atual modelo de economia global, comandada pelo setor financeiro, sobreviver à atual crise? Se essa sobrevivência não ocorrer, quais são as alternativas? Por Renato Pompeu
A
atual crise do capitalismo só será resolvida quando se reformularem as alianças políticas entre os diversos setores sociais envolvidos. É o que dizem no livro Contemporary Capitalism and Its Crises – Social Structureof Accumulation Theory for the 21st Century vários estudiosos, coordenados pelos professores de Economia Terrence McDonough, da Universidade Nacional da Irlanda, Michael Reich, da Universidade da Califórnia em Berkeley, e David W. Kotz, da Universidade de Massachusetts em Amherst. O título em português seria “O capitalismo contemporâneo e suas crises – A teoria da estrutura social da acumulação para o século 21”. A obra foi publicada em inglês pela editora da Universidade de Cambridge. Esses autores põem em xeque a chamada “macroeconomia”, cultuada pela esmagadora maioria de seus colegas, que, com a ascensão do neoliberalismo, julgavam que nunca mais o capitalismo entraria em grandes crises. Na verdade, a equipe que compôs o livro fez parte de um pequeno grupo que há décadas sustentava que o capitalismo estava longe de ter superado os seus desequilíbrios funcionais. Agora, eles discutem dois problemas principais: pode o atual modelo de economia global integrada segundo os ditames do neoliberalismo, comandada pelo setor financeiro, sobreviver à atual crise? Se essa sobrevivência não ocorrer, quais são as 28
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
alternativas para esse modelo? Os críticos do atual modelo de gestão das principais economias do mundo tentam mostrar a inutilidade da macroeconomia neoliberal, baseada apenas no estudo isolado, e quase que plenamente matemático, segundo a ótica de uma suposta racionalidade econômica. Pois os autores levam em conta também fatores políticos e sociais que influenciam e modificam a economia. Pouco conhecida do grande público, a teoria da estrutura social da acumulação começou a ser desenvolvida em meados dos anos 1970, quando os governos começaram a abandonar as teses de John Maynard Keynes de regulamentações dos mercados e passaram a aceitar as desregulamentações neoliberais, aquelas em que vale o que o “mercado” pensa que vale. Segundo um dos organizadores do livro, Michael Reich, essa teoria postula que uma estrutura social de acumulação é o quadro institucional em que o capitalismo se desenvolve em épocas e lugares específicos. Cada estrutura social de acumulação passaria por um longo período, de 20 a 25 anos, de estabilidade e alto crescimento, seguido de outro igualmente longo de instabilidade e baixo crescimento. Desse modo, o capitalismo passa por crises periódicas, chamadas crises sistêmicas, que exigem reestruturações intensivas e extensivas das instituições que moldam o sistema. Uma nova estrutura social de acumulação – e um novo período de estabilidade e de alto crescimento – só emer-
ge quando ocorre um realinhamento das coalizões políticas. Diz Reich: “É necessário realizar numerosos experimentos com novas instituições e com contestações políticas, antes que surja uma coalizão que ao mesmo tempo seja politicamente dominante e tenha desenvolvido novas instituições que possam ser economicamente bem-sucedidas”. O pesquisador considera que, para ter êxito econômico, a “nova coalizão dominante” precisa criar um conjunto de instituições que sejam coerentes, que possam recriar a estabilidade e possam garantir melhoras econômicas para pelo menos alguns dos grupos incluídos na coalizão. “Uma vez instalado, um conjunto parti cular de instituições se torna bem-sucedido por um longo período. Mas os comprometimentos a longo prazo e os interesses criados impedem as mudanças graduais para um novo modelo. A estrutura social de acumulação fica assim estressada por problemas econômicos e políticos que se acumulam, levando a uma nova crise sistêmica.”
OLI SCARFF/GETTY IMAGES
LEITURA
Desde 2007 estamos numa nova crise sistêmica. Quanto ao futuro, parecem concorrer dois modelos: um corporativo de livre-mercado, outro social-democrata em que os ganhos dos salários e benefícios sociais acompanham os ganhos da produtividade
Bifurcação
Exemplos de crises sistêmicas nos Estados Unidos seriam: a crise dos anos 1890, resolvida politicamente pela eleição de 1896, pela onda de fusões entre 18931897, pela fundação da Reserva Federal em 1913 e pela derrota das greves operárias por volta da Primeira Guerra Mundial; a Grande Depressão de 1929-1941, resolvida politicamente em 1932 e economicamente pelo New Deal, pelas medidas keynesianas durante a Segunda Guerra Mundial e, depois, por um acordo limitado entre o capital e o trabalho e pelo Estado do Bem-Estar Social; e a estagflação (termo que define um cenário em que há elevados índices de inflação e de desemprego e baixo ou nenhum crescimento) dos anos 1970, resolvida politicamente em 1980 e economicamente pela ofensiva contra as classes trabalhadoras, pelo corte dos impostos e pelas desregulamentações, especialmente no setor financeiro.
Desde 2007 estamos numa nova crise sistêmica. Notemos que a cada crise sistêmica no passado se sucederam longos períodos de complicados reajustamentos até que uma nova estrutura social de acumulação se consolidasse. O mesmo deverá ocorrer. Os principais componentes de uma estrutura social de acumulação são: as relações entre o capital e o trabalho, as relações entre os diferentes capitais, as instituições financeiras, o papel do governo, as relações e instituições internacionais, a coalizão política dominante. Na atual estrutura social de acumu lação temos, por exemplo, nas relações entre o capital e o trabalho: o declínio dos sindicatos de trabalhadores do setor privado, crescimento da produtividade sem aumento dos salários, introdução da informática e flexibilização do trabalho, expansão do segmento de baixos salários no setor de serviços, baixos salários mínimos, empregos temporários e imigração.
Quanto ao futuro, parecem concorrer dois modelos: um corporativo de livremercado, em que as classes trabalhadoras continuam fracas e os grandes negócios, particularmente os setores financeiros, controlam as reformas; um novo modelo social-democrata, em que os ganhos dos salários (e também dos benefícios sociais) acompanham os ganhos da produtividade. Enquanto o modelo corporativo não parece capaz de impedir o surgimento de novas bolhas e de novos estouros de bolhas, o social-democrata impõe restrições aos ganhos dos altos executivos, o renascimento das classes trabalhadoras como fator político de peso e um salário mínimo indexado e uma estrita regu lação financeira – inclusive em termos internacionais. Teria de envolver uma forte tendência para a aplicação de grandes verbas sociais em saúde, educação, meio ambiente e infraestrutura. Esse modelo, para se instituir, teria de envolver muito mais tempo e muito mais confrontos do que o modelo corporativo. Em compensação, parece mais coerente. Vemos assim que o livro proporciona não só um claro entendimento da crise atual – e torçamos para que seja logo traduzido para ser consumido aqui. Proporciona armas para as classes trabalhadoras, sobretudo nos países desenvolvidos mais atingidos, intervirem no cenário político e econômico. Especialmente são necessárias duas condições: a eleição de governos progressistas e a movimentação organizada das grandes massas. Essas condições, no entanto, não se estãocombinando no tempo e no espaço. Nos Estados Unidos, foi eleito um governo progressista, mas falta a movimentação organizada das grandes massas, pois o Occupy Wall Street só envolveu setores intelectualizados empobrecidos. Na Europa se sucedem greves gerais sem maiores efeitos, pois não foram eleitos governos progressistas, a não ser na França, onde, porém, não têm ocorrido maiores movimentações das classes menos privilegiadas, parte das quais inclusive se tem deixado iludir pelo xenofobismo da extrema direita. REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
29
ESPORTE
Pacote anticartola O ambiente tradicionalmente conservador e pouco transparente do esporte sofreu abalos. Atletas tentam ganhar espaços Por Vitor Nuzzi
A
costumados a vitórias políticas fora de campo, os dirigentes esportivos brasileiros foram driblados duplamente nos últimos meses, com medidas que limitam os hoje ilimitados mandatos dos cartolas. Em 15 de outubro, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.868 (originária da Medida Provisória 620), que incluiu entre seus vários itens o direito a um mandato de quatro anos e a uma reeleição, além da obrigação de prestação de contas sobre dados econômicos e financeiros. No Congresso, avançou um projeto de lei com o mesmo teor, surpreendendo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), entidades que, entre outras, consignaram a longevidade no poder, mostrando fôlego de atleta para permanecer no comando. No campo da política esportiva, mandatos de duas décadas são prática comum. Na Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), por exemplo, Coaracy Nunes Filho é presidente desde 1988. Reeleito por unanimidade, iniciou em março o seu sétimo – e último, garante – mandato. À frente da CBAt (atletismo) durante 25 anos, Roberto Gesta de Mello saiu em 2012. Carlos Arthur Nuzman está desde 1995 na presidência do COB, depois de 20 anos na CBV (vôlei), e se reelegeu no ano passado. No handebol, Manoel Luiz Oliveira foi reconduzido em fevereiro e iniciou o oitavo mandato – vai ultrapassar os 25 anos. E ao longo de quatro décadas só duas pessoas comandaram o futebol na pátria de chuteiras: João Havelange (17 anos) e o ex-genro Ricardo Teixeira, que ficou 23 anos na CBF. Com o crescimento do financiamento público, a partir da criação do Ministério do Esporte, em 2003, e a posterior Lei de Incentivo, sancionada em 2006, apareceu uma situação curiosa, conforme observa o jornalista José Cruz, que dedica um blog a informações sobre a organização do esporte: entidades privadas na gestão, mas “estatizadas” na economia. “O espor30
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
JOSÉ CRUZ/ABR
João Havelange, 17 anos na CBF
Carlos Arthur Nuzman, 20 anos na CBV e 18 de COB
MARCELLO CASAL JR/ABR
te de alto rendimento é pesadamente financiado pelo dinheiro público. A economia do esporte está estatizada”, afirma. “Cresceu em recursos financeiros, mas não em gestão. Movimenta muitos recursos, sem nenhuma transparência. O Estado é só repassador, não gestor.” Não é pouco dinheiro. Ele lembra que de 2008 a 2012 o poder público pôs R$ 6 bilhões no esporte, incluindo orçamento do ministério, Lei de Incentivo, Lei Piva e Timemania (loterias), Bolsa Atleta e patrocínio. Os dados foram colhidos no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) e no Portal da Transparência da Controladoria-Geral da União (CGU), além de consultas às estatais que patrocinam atividades esportivas (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Casa da Moeda, Correios, Eletrobras, Infraero e Petrobras). Cruz observa ainda que a Lei Pelé (nº 9.615, de 1998), alterada agora, não fixa prazo aos mandatos, que ficava a critério de cada confederação. E os recursos recebidos não passam por fiscalização. “Sabendo disso, as confederações fazem o que bem querem com o dinheiro público. O Ministério do Esporte tem três funcionários para fazer análise de contas”, diz o jornalista. Os clubes de futebol também não costumam ser um modelo de gestão. Segundo balanço da Pluri Consultoria, os 23 de maior faturamento no país tiveram prejuízo somado de R$ 1,8 bilhão de 2007 a 2012, valor equivalente a 15% do faturamento bruto no período. Só cinco tiveram lucro.
JOSÉ CRUZ/ABR
ESPORTE
PEQUENO PRÍNCIPE Depois de comandar a CBF por 23 anos, Ricardo Teixeira abandonou o cargo, herdado do sogro, sob acusação de desvio de dinheiro da entidade
SEBASTIÃO MOREIRA/EFE
Reeleição
REVISTA DO BRASIL
Manoel Luiz Oliveira, oitavo mandato no comando do handebol
WANDER ROBERTO/CBAT
A lei sancionada em outubro, para valer a partir de abril de 2014, determina que só poderão receber recursos da administração pública federal as entidades sem fins lucrativos que fazem parte do Sistema Nacional do Desporto caso “seu presidente ou dirigente máximo” tenha mandato máximo de quatro anos, com direito a uma reeleição. Devem também ser “transparentes na gestão, inclusive quanto aos dados econômicos e financeiros, contratos, patrocinadores, direitos de imagem, propriedade intelectual e quaisquer outros aspectos de gestão” e garantir a representação dos atletas em órgãos e conselhos técnicos responsáveis pelo regulamento das competições. Em setembro, rumou para a Câmara o Projeto de Lei nº 253, de 2012, aprovado pelo Senado, que reforçou a limitação de mandatos. “Eles vacilaram”, acredita o analista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), referindo-se à chamada “bancada da bola” no Congresso. “É uma bancada pequena, uma dezena de parlamentares, mas geralmente muito atenta.” Para ele, a conhecida longevidade dos cartolas no poder foi um fator que jogou a favor da aprovação das propostas. “Pode ter sido isso que motivou a ausência de uma reação mais ostensiva.” Talvez tenha havido algum vacilo, mas para o ex-jogador de futebol Mauro Silva, que fez carreira no La Coruña (Espanha), foi campeão mundial pelo Brasil em 1994 e hoje tem uma empresa de consultoria esportiva, a sanção da lei foi resultado de “um trabalho árduo”, durante anos, na tentativa de modernizar e dar maior transparência à gestão de entidades esportivas
Roberto Gesta de Mello, 25 anos na CBAt
NOVEMBRO 2013
31
que recebem dinheiro público e contam com isenção de impostos. Representante da organização não governamental Atletas pelo Brasil, ele observa que chefes do Executivo – prefeitos, governadores, presidente – têm direito a apenas uma reeleição, e é justo que isso se estenda ao esporte. “A alternância no poder é uma conquista”, afirma. “Está devagar, mas estamos vendo mudanças. Aqui as coisas acontecem de forma lenta.” Mauro Silva também considera positiva a possibilidade de participação de atletas nos colegiados de direção e na eleição para cargos das entidades, conforme prevê a lei, mas é cauteloso. “É um avanço. O atleta tem muita experiência, mas é importante que esteja qualificado, não é estar por estar. A nossa posição nesse aspecto é bastante prudente.” E destaca a obrigatoriedade,
INSTITUTO ESPORTE E EDUCAÇÃO/ DIVULGAÇÃO
ESPORTE
FALTA BASE Ana Moser: “Para ter campeonato de alto rendimento, precisa ter campeonato amador, regional, escolar. E a gente só está investindo quando chega em cima”
Questão de bom senso Na 30ª rodada do campeonato brasileiro de futebol, em 20 de outubro, um fato inusitado surpreendeu as torcidas antes de os árbitros darem início às partidas. Atletas de todos os times, inclusive os arquirrivais gaúchos, Grêmio e Internacional, se abraçaram para simbolizar a união em torno das propostas do Bom Senso – movimento que surgiu, como anuncia, “da mobilização espontânea dos jogadores profissionais, que não concordam com a forma como vêm sendo conduzidas as decisões do futebol brasileiro”. A iniciativa começou com manifesto assinado por 75 jogadores, sob a liderança de alguns veteranos, casos de Alex (Coritiba), Juan (Internacional), Seedorf (Botafogo), Juninho Pernambucano (Vasco) e Rogério Ceni (São Paulo), e outros mais jovens, como Paulo André (Corinthians). Agora já são 860 em torno do Bom Senso, que conseguiu ser recebido pela direção da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Um feito para um setor historicamente conservador. Entre as principais reivindicações, estão o respeito ao período de 30 32
NOVEMBRO 2013
dias de férias e o aumento da pré-temporada – as reações começaram justamente quando a CBF anunciou que, devido à Copa e ao consequente calendário mais estreito, em 2014 haveria apenas uma semana de intervalo entre a volta das férias e o início dos campeonatos estaduais. “Os caras (atletas) estão se conscientizando de que sem eles não há competição”, comenta José Cruz. O recente movimento dos jogadores surpreende até certo ponto, considerando que se trata de categoria pouco organizada. “Nesse ponto, eles (europeus) estão na nossa frente”, diz o ex-jogador Mauro Silva. “Quando há um problema de falta de pagamento, por exemplo, você vê na primeira fila os atletas do Real Madri e do Barcelona participando ativamente. Obviamente, eles não estão com esse problema, mas defendem os interesses de todos.” Os representantes do Bom Senso lembram que o movimento não é apenas pelo calendário nem se limita aos atletas dos grandes clubes. A maioria das equipes passa boa parte do ano sem atuar, e isso
REVISTA DO BRASIL
resulta em contratos curtos para os jogadores, que ganham bem menos do que os famosos e às vezes ficam sem receber. Também está em discussão o chamado “fair play” financeiro, com punições aos clubes em caso de atraso no pagamento de salários e contas. “Eu acho o futebol brasileiro um produto mal aproveitado que pode ainda melhorar bastante. É o que todo mundo quer, é o que a Globo quer, o que os jogadores e treinadores querem, o torcedor quer e o que vocês da imprensa querem também. Essa discussão toda é salutar nesse sentido”, disse à Agência Pública o jogador Alex, um dos líderes do movimento. A CBF recebeu representantes dos atletas, mas tem se esquivado de responder à pauta de forma objetiva. Nessas negociações, há uma parte que não pode ser esquecida, como lembrou recentemente o comentarista e ex-jogador Tostão: “O bem-vindo Bom Senso F.C. precisa conversar com quem manda no calendário, a TV Globo”. Alex tem consciênciadisso: “A Globo comanda porque paga a conta”.
ESPORTE
Mas o programa às vezes tropeça em velhos problemas brasileiros, como a burocracia. Em outubro, os 5.691 competidores mantidos pelo Bolsa Atleta sofreram atraso no pagamento, que deveria ter sido feito até o quinto dia útil do mês passado. Segundo o Ministério do Esporte, isso ocorreu devido à renovação do contrato com a Caixa Econômica Federal, que gerencia uma conta específica. A situação deveria ter sido normalizada até a primeira quinzena de novembro. “Não há prejuízo monetário aos atletas”, diz o ministério, que anunciou o pagamento de três parcelas de uma só vez, porque a intenção é quitar até o final do ano todas as parcelas referentes a 2013. O orçamento do programa neste ano soma R$ 183 milhões. O valor da bolsa vai de R$ 370 (estudantil e categorias de base) a R$ 3.100 (olímpica/ paraolímpica). A ex-jogadora de vôlei Ana Moser, pre-
Rivais se abraçam pelo esporte
CARLOS EDUARDO DE QUADROS/FOTOARENA
pelos dirigentes, de dar transparência a suas gestões, publicando dados na internet. “O nosso sistema é muito ditatorial”, observa José Cruz. “O elemento mais importante do esporte, que é o atleta, não tinha e não tem voz nem voto. Ainda são poucos os atletas em atividade que se manifestam. Você não vê atleta, técnico, se manifestando. Ainda existe o medo.” No início de outubro, Arthur Zanetti foi festejado pela conquista do título de campeão mundial nas argolas, disputado na Bélgica. No início do ano, havia reclamado em entrevista ao canal ESPN que o Brasil não proporciona condições adequadas para o treinamento dos atletas. “Falta tudo”, criticou Zanetti, que ainda pode ser visto como caso de profissional com melhores condições de trabalho. “A Bolsa Atleta dá uma certa independência. Nesse sentido, estamos vivendo um novo tempo”, afirma José Cruz.
sidente da Atletas pelo Brasil, destaca o tripé limitação de mandatos, transparência na prestação de contas e participação dos atletas como os avanços mais importantes. “Isso coloca outros atores na gestão do esporte”, afirma. “É hora de os atletas estarem organizados para participar.” Ela lembra que isso já acontece em outras áreas. “A F-1 tem uma comissão de pilotos, e eles atuam fortemente. A liga profissional de surfe também. No início do ano, no vôlei, os atletas formaram uma comissão com técnicos para participar da superliga. Todo esse processo faz bem para o esporte. É preciso ter novas ideias, visões diferentes. As federações e confederações são representativas de suas modalidades, e nunca têm oposição. Só tem uma visão naquela entidade?” Para Ana Moser, que participou de três Olimpíadas (1988, 1992 e 1996), não se pode falar em esporte de alto rendimento sem formação na base. “Para ter campeonato de alto rendimento, precisa ter campeonato amador, regional, escolar. E a gente só está investindo quando chega em cima. No vôlei, você tem alguns clubes e patrocinadores que se mantêm há décadas, outros que entram e saem. Mas tem poucos times.” Da mesma forma, falta estrutura na rede pública de ensino. “São quase 50 milhões de alunos nas escolas públicas”, observa. “Não tem quadra, nem professor, nem visão. É questão de foco. É preciso investir recursos não apenas financeiros, mas em tempo.” Uma questão de cultura também, segundo ela, que começou a jogar ainda pequena em Blumenau (SC) e se mudou aos 16 anos para São Paulo – o esporte fazia parte da sua formação. “A minha vida no esporte tem outra raiz, não comecei para virar atleta profissional. O futebol é a única cultura esportiva que o Brasil tem. Imagine se isso acontecer nos outros esportes.” Em julho, a ONG divulgou um documento ainda sob o impacto das manifestações de rua que se referia à necessidade de um legado efetivo depois da realização da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. Mas a entidade lembra que defende essa bandeira já faz alguns anos. “Esse ambiente das manifestações botou um combustível no movimento.” REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
33
MICHIEL HENDRYCKX/CC
HISTÓRIA
Opostos se atraem Grandes encontros e desencontros que poderiam terminar em drama, tragédia ou comédia
Allen Ginsberg, homossexual assumido, tomou Patti Smith por um garoto e pagou-lhe um sanduíche
N
os últimos tempos, parece que a diplomacia e a conversação como forma de resolver impasses andam meio que pela bola sete. De estadistas a cônjuges, de black blocs a pagodeiros, parece que o pessoal anda preferindo a espionagem informática, o barraco ou simplesmente ficar de mal, em vez do bom e velho olhos nos olhos. Ora, talvez a chegada do ano a sua última curva antes da reta final seja ocasião ideal para resgatar o 34
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
KLAUS HILTSCHER/CC
Por Paulo Nogueira
HISTÓRIA
OLLIE ATKINS/ RICHARD NIXON PRESIDENTIAL LIBRARY AND MUSEUM
papo em carne e osso como solução de saias-justas. Encontros exclamou, mortificada: “Tarde demais! Já acabou!” Pelo contráem vez de encontrões. Do centenário de Vinicius de Moraes, rio: foi a primeira e última vez em sua vida que Marilyn chegou no mês passado, fiquemos com lição de quem passou 77 anos cedo. A protagonista de Quanto Mais Quente Melhor (1959) se em lua de mel com a existência e escreveu: “A vida é a arte do sentou a uma mesa com Henry Fonda (com um fone de ouvido para não perder a final do campeonato de beisebol) de um lado encontro/ Embora haja tanto desencontro pela vida”. Para dar exemplo construtivo, eis alguns dos encontros mais e do outro Debbie Reynolds (com cara de tacho, pois na mesa assombrosos e desconcertantes que a história registrou, entre mais próxima arrulhavam seu ex-marido Eddie Fischer com a personalidades aparentemente tão antagônicas quanto Tom e nova mulher dele, Elizabeth Taylor, até ontem a melhor amiJerry. Por exemplo, entre o então homem forte da então União ga de Debbie). Quando a loura voltou para casa, Arthur Miller Soviética, Nikita Kruschev, e a então diva Marilyn Monroe. Em perguntou o que achara do convidado de honra. A divindade agosto de 1959, tentando debelar a escalada da crise sobre o fez aquele biquinho radioativo e murmurou: “Ah, acho que na destino de Berlim, o presidente norte-americano Eisenhower Rússia eles não fazem muito sexo...” convidou o premiê Kruschev para uma visita aos Estados Unidos. Era o auge da Guerra Fria, e nunca um dirigente da URSS Drummond e Didi Mocó? Thomas Stearns Eliot, talvez o maior poeta moderno, por fohavia posto os pés ali. O programa incluía uma passadinha pelos estúdios da 20th ra parecia mais insípido do que o governador conhecido como Century Fox, para um banquete com uma constelação: Judy Picolé de Chuchu. Nunca (bem, exceto num feriado) foi fotoGarland, Gary Cooper, Kim Novak, Ginger Rogers, K irk grafado sem gravata e brilhantina (provavelmente, considerou Douglas, Frank Sinatra e Tony Curtis, entre centenas de astros. aquela exceção um nu artístico). Trajava sempre terno de três Os homens de terno escuro e as mulheres de vestido de gala peças, e pode-se apostar o pescoço como foi o último gênio do e joias cintilantes. Uma plêiade tão galática que Henry Fonda Ocidente a usar polainas (morreu em 1965!) – muitos intelecironizou: “Esta é a coisa mais próxima do maior funeral de tuais ocidentais hoje nem sabem o que são. Hollywood que já compareci na minha vida”. Logo que chegou, o líder comunista foi apresentado a Marilyn. A deusa usava um tomara que caia tão justo que parecia pintado no corpo. Marilyn começou por proferir uma frase que sua amiga N atalie Wood – fluente em russo – a tinha ensinado: “Nós, trabalhadores da 20th Century Fox, nos congratulamos por sua visita ao nosso estúdio e ao nosso país”. Se Kruchev ficou embasbacado, a atriz não se mostrou impressionada: “Ele me olhou da maneira que os homens olham para uma mulher”. O soviético pegou a mão dela e ronronou: “Você é uma jovem adorável”. Mais tarde, Marilyn contou à sua empregada: “Ele era gordo, feio e com verrugas. Apertou minha mão com tanta força e por tanto tempo que achei que fosse quebrá-la. Bom, antes isso do que ser obrigada a beijá-lo”. O então marido de MM, o dramaturgo Arthur Miller, foi “encorajado” a ficar em casa, pois era um esquerdista de carteirinha (investigado pelo Senado, dentro da paranoica campanha do senador republicano Joseph McCarthy). Mas com sua mulher eram outros quinhentos. No começo, Marilyn, que nunca lia jornais nem ouvia noticiários, teve de ser instruída sobre quem era aquele Elvis Presley russo baixinho e gordinho. Mas o estúdio insistiu. desembarcou na Casa Branca de Na Rússia, a América significava duas coisas: CocaNixon em busca -Cola e Marilyn Monroe. Ela adorou ouvir isso. de um crachá O presidente da Fox, Spyros Skouras, foi buscar pessoalmente a atriz, cujos atrasos eram lendários. Quando entraram antecipadamente no estacionamento ainda vazio, ela REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
35
ABC PHOTO
HISTÓRIA
ENCICLOPÉDIA BRITÂNNICA
Professava-se classicista em literatura, monárquico em política e anglicano em religião. Criado por uma mãe dominatrix e por quatro irmãs solteiras, estava destinado ao homoerotismo, segundo o mantra psicanalítico. No entanto, a libido de T.S. Eliot era hétero – só que sublimada e platônica. Há quem diga que tirou o atraso e matou as lombrigas com a segunda mulher, Valerie. Mas só casou com esta perto dos 60, emocionalmente dilacerado pela primeira, Vivien – de quem os eliotmaníacos gostam tanto como os beatlemaníacos de Yoko. Certo, mas foi esse cara careta, esse poeta prosaico que moldou liricamente a alma do século 20 – um século que pode ser acusado de tudo, menos de mala. E adivinhem quem foi seu correspondente mais fascinante? O bufão Groucho Marx. Superficialmente, é como aventar uma correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Renato Aragão. Mas só para quem desconhece que os melhores amigos de Groucho pertenciam ao mundo da escrita, não do espetáculo. O que dizer de um gênio desse naipe? Que o proverbial bigode de Julius Henry (seu verdadeiro nome) era postiço (ele o tirava quando queria se esconder dos fãs)? Que nada: o melhor é saborear os textos de Groucho com aquelas forquilhas de descascar lagosta. Um aperitivo: “Sou da opinião de que a maior parte das críticas literárias são demasiado longas. A última crítica que escrevi tinha 112 páginas a mais do que o respectivo livro. Na verdade, andei tão atarefado escrevendo a crítica que nunca arrumei tempo para lê-lo”. Tudo começou em 1961, quando Groucho recebeu pelo correio uma cartinha do poeta, rasgando seda e lhe pedindo uma foto autografada. Todo pimpão, o humorista atendeu ao pedido e logo veio o agradecimento radiante do Nobel da Literatura. No início, transparecendo na correspondência a ignorância mútua. “Os meus cumprimentos à sua adorável esposa, quem quer que ela seja”. Em breve, ficaram à vontade: “Eu estaria muito interessado em ler suas opiniões sobre sexo. Não hesite. Confie em mim”, responde Groucho. Groucho e a mulher acabaram por jantar na casa de Eliot. O humorista escreveu ao seu irmão Gummo: “Na semana anterior, li Murder in the Cathedral (peça de Eliot) duas vezes; The Waste Land (poema de Eliot), três vezes; e, para o caso de a conversa encalhar, dei uma olhada no Rei Lear, de Shakespeare. Aliás, como era bobo esse rei”. Só que o anfitrião preferiu papear sobre os filmes do convidado.
Desencontros previsíveis
Mas o estranho mundo dos encontros improváveis reserva muitas formas de contraste. No final dos anos 1960, Elvis Presley iniciou um hobby que raiou a obsessão: colecionar distintivos policiais. Em 21 de dezembro de 1970, o Rei do Rock manobrou para obter seu Santo Graal: um crachá da 36
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
Groucho Marx fez uma preparação cerebral para seu jantar na casa de T.S. Eliot, que preferiu conversar sobre os filmes do convidado
Agência Federal de Narcóticos e Drogas Perigosas (BNDD, na sigla em inglês). De terno roxo berrante, baixou de mala e cuia no Salão Oval da Casa Branca, onde estava o presidente Richard Nixon. Bajulando o presidente, Elvis (que já tomava e injetava todas) proclamou seu desejo de “ajudar a América a combater a cultura da droga e o elemento hippie”. E chegou a ponto de acusar os Beatles de “promoverem um espírito antiamericano”. Nixon ficou meio perplexo, mas considerou que uma associação com um astro tão popular compensava pagar aquele mico. E tome fotografias de apertos de mãos e tapinhas nas costas. No fim, o presidente deu ao cantor o cobiçado distintivo, que indicava o posto de Elvis como “assistente especial”. Já na despedida, Nixon deu uma pisadinha na bola: “Você se veste de maneira meio esquisita, não?” Presley respondeu na lata: “O senhor tem o seu show, e eu tenho o meu”. Não tardaria para o presidente vir a deparar com desencontros comprometedores. Houve também encontros míticos que não resistiram a uma análise. Em 1938, o octogenário judeu Sigmund Freud se exilou em Londres, deixando sua adorada Viena. Era um titã cultural, por isso os nazistas o deixaram sair da Áustria – mas não sem antes assinar um papel de que estava OK. Ele foi sarcástico: “Recomendo vivamente a cortesia da Gestapo”. Na capital inglesa também vivia o pintor surrealista Salvador Dalí, tiete do pai da psicanálise. O escritor Stefan Zweig (que viria a se suicidar no Brasil, que recebera dele a alcunha de país do futuro) arrumou um encontro entre ambos. Freud padecia de um câncer no maxilar, depois de uma vida inteira fumando 20 charutos por dia. A primeira coisa que
ALLAN BLACKHAM/ LAC
O espertinho Leonard Cohen se passou por Kris Kristofferson e enganou Janis Joplin
BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK
Freud teve uma forte impressão de Salvador Dalí: “Um jovem fanático”
FERDINAND SCHMUTZER/CC
Janis Joplin e “Kris Kristofferson”
O Hotel Chelsea, em Nova York, é um dos mais badalados poleiros de artistas da história. Foi lá que Arthur C. Clarke escreveu 2001, uma Odisseia no Espaço, romance que deu no filme de Stanley Kubrick (outro que morou no Chelsea). Em outro aposento, Jack Kerouac alinhavou o livro On the Road (Na Estrada), lançado no ano passado por Walter Salles. O hotel serviu de toca ao poeta irlandês Dylan Thomas (de quem Bob Dylan, que também viveu no Chelsea, tirou seu nome artístico), que lá bateu a caçoleta, depois de tomar todas. No quarto número 100, Sid Vicious, baterista da banda punk Sex Pistols, esfaqueou mortalmente sua namorada Nancy Spungen. Madonna morou no hotel nos anos 1980, e lá voltou em 1992, para as fotos de seu livro Sex, tiradas no quarto 822. A lista tem um mundaréu de ilustres – Jean-Paul Sartre, Frida Khalo, Edith Piaf, Gore Vidal, Jane Fonda – e até sobreviventes do Titanic, devido à proximidade do cais 54, onde o navio deveria atracar. O hotel rendeu inclusive uma obra-prima musical, a canção precisamente intitulada Chelsea Hotel #2, de Leonard Cohen, o relato de
ALBERT B. GROSSMAN MANAGEMENT
disse ao pintor foi: “Devo estar com o pé na cova. Os médicos pararam de me dizer que os charutos vão me matar”. Dalí, que pintou vários retratos de Freud, recordou depois: “Apesar de eu não falar nem alemão, nem inglês, nós nos devorávamos com olhos”. Devia ser um certo exagero, pois no dia seguinte o próprio Freud foi bem menos entusiástico: “Aquele moço parecia um fanático. Se forem todos assim, não me admira que na Espanha estejam se estapeando numa guerra civil”.
HISTÓRIA
seu chamego com Janis Joplin. A letra entrega o ouro: “Você era famosa/ Seu coração era uma lenda/ E preferia homens bonitos/ Mas para mim abriu uma exceção./ E me fez sexo oral numa cama desarrumada/ Enquanto limusines esperavam na rua.” Num show de 1998 (Janis morrera em 1970) em Nova York, Cohen contou tintim por tintim: “Naquela época eu morava no Hotel Chelsea e vivia andando de elevador, para baixo e para cima. Um dia, encontrei uma moça lá dentro e perguntei: ‘Você está procurando alguém?’ Ela respondeu: ‘É, estou procurando Kris Kristofferson’. E eu: ‘Mocinha, hoje é seu dia de sorte: eu sou Kris Kristofferson!’ Embora eu fosse bem mais baixo do que ela, ela não levou a mal”. Outro mito da cultura pop, a cantora e compositora Patti Smith, também poderia ter tido um encontro inusitado com o poeta Allen Ginsberg, um trovador da geração beat, numa época em que ambos se hospedaram no Chelsea. Mas foi numa biboca nova-iorquina que ambos se toparam. Patti entrara para comer um sanduíche. Magrela e de cabelo à escovinha, parecia um moleque. Quando percebeu que lhe faltavam uns tostões, Ginsberg se aproximou no maior xaveco, completou a quantia e ainda lhe descolou um café. Os dois jogaram conversa fora, até que, de repente, o poeta (gay assumidíssimo) se inclinou e perguntou ao ouvido dela: “Peraí, você é uma garota?” Ela respondeu com outra pergunta: “Isso é um problema?” Ginsberg balançou a cabeça: “Desculpe, pensei que você fosse um garoto bonito”. Patti ficou alarmada: “Vou ter de devolver o sanduba?” E Allen caiu na risada: “De jeito nenhum, o mico foi meu!” Texto inspirado em histórias reunidas pelo crítico britânico Craig Brown no livro Hello Goodbye Hello; A Circle of 101 Remarkable Meetings (algo como “Olá Adeus Olá. Um passeio por 101 encontros notáveis”) REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
37
CULTURA
Criado há 40 anos, em plena ditadura, o grupo expõe a dignidade e a beleza da luta antirracista, inspirando de ritmos libertários ao ensino da história afro-brasileira
y Ilê ai Por Allan da Rosa
O poder negro do
A
paisagem sonora faz dançar, entoar versos, beijar. O cortejo acaricia a noite e as cicatrizes cotidianas que há séculos arranham a pele preta. Imperam congas, surdos, repiques, timbaus. Milhares de pessoas sobem o Curuzu, no bairro da Liberdade, em Sal-
38
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
vador. “É hoje a saída do Ilê, você vai?” O asfalto e as paredes trepidam. “É na frente do terreiro, os percussionistas vestidos com a roupa do cortejo esperam as pombas, as cornetas e a pipoca sagrada, que é a bênção da Iyá. Eu chego cedo pra ver esse rio negro enchendo, inundando os becos, as ruelas e as ladeiras”, diz Daniela Luciana,
associada do Ilê Aiyê há dez anos. Orgulhosa, a abertura do carnaval do Ilê traz grandeza ao povo do bairro e de Pero Vaz, Boa Vista de São Caetano, Fazenda Grande do Retiro, Paripe e de tantas quebradas, vielas e escadarias de Salvador, há séculos violentadas. As vestes esbanjam elegância e cor, o cortejo é fino.
yê
“O mais belo dos belos” vem cantando reinos antigos, guerreiros contemporâneos, ciências milenares. Daniela ressalta: “Eu vou sentindo, cantando e sorrindo, vendo o trabalho de um ano ganhar corpo na rua. São médicos, motoristas, professoras, garis, baianas de acarajé, com suas fantasias esplêndidas de heran-
CASSIMANO
CULTURA
ça africana na saída do Ilê Aiyê, e aqui se misturam aos universitários, turistas e moradores. Sem cordas. O Curuzu não comporta amarras. Cada passo é lento e ritmado, cada movimento é denso. E é tanta gente aqui em volta que o espaço precisa ser bem usado para dançar”. Em quatro décadas de percussão tesa, o Ilê almeja, sim, a divisão de poder. Na capital da Bahia, segue escancarada a divisão entre a podridão e o luxo, a marca de cor entre quem é esbofeteado, encarcerado ou assassinado e a leva de “gente bonita”, como Claudia Leitte definiu seus pares e seu público pagante no circuito carnavalesco da Barra-Ondina. A história dos africanos não começa com o cativeiro, mas em calendários antigos, repletos de conhecimento geográfico, arquitetônico, matemático, astronômico, estético. Assim o Ilê Aiyê organiza um revide civilizatório, um reinado de autopreservação e resistência. E promove inspiração. Como conta Beth Belli, diretora do Bloco Ilú Obá de Min, que há anos abre o carnaval paulistano com sua bateria composta apenas por mulheres: “O que me inspirou foi ter ido à Bahia em 1990, ver o bloco do Ilê. Isso tem de ter em São Paulo, me ficou esse pensamento fixo, e depois fizemos o Oriaxé e o Ilú Obá de Min”. A atriz Vera Lopes, da companhia Caixa Preta, em Porto Alegre, e ativista desde os anos 1970, também lembra a inspiração do Ilê: “Nos anos 80, Oliveira Silveira (poeta gaúcho que teve a ideia do 20 de novembro como feriado) e o grupo Semba divulgavam as músicas do Ilê em espetáculos aqui no sul do Brasil. Era lindo. Todas nós queríamos ir à Bahia conhecer o Ilê e desfilar no bloco”, conta Vera, para quem as músicas do grupo baiano são uma trilha sonora da vida. “Na colação de grau de minha filha Camila em Jornalismo, a música foi Coisa de Negro, do Ilê. Na minha colação em Direito, escolhi Minha Origem (‘Se me perguntar/ de que origem eu sou,/ sou de origem africana,/ com muito orgulho, sou’). E minha filha Quênia escolheu para encerrar a cerimônia de seu casamento a Que Bloco É Esse? (‘Eu quero saber./ É o mundo negro/ que viemos mostrar pra você’).”
Nos ensaios e concursos de beleza, as mulheres então são Candaces, as rainhas guerreiras núbias. No cortejo do Ilê Aiyê, o perfume das quilombelas exala por onde no dia a dia flui também o cheiro do abandono, do lixo não recolhido. No bairro da Liberdade se devolve a dignidade a uma comunidade acostumada à casca-grossa e ao descaso. O Elevador do Plano Inclinado, que liga as cidades alta e baixa, que transporta o povo da Liberdade à Calçada e dali às paragens ferroviárias suburbanas, está quebrado há tempos. Já é chacota internacional, e a piada teria graça não fosse desesperadora a subida com varizes, crianças de colo, marmitas e sacolas. O pessoal então desce traquejado o escadão íngreme ou inventa caminho pelas frestas e matagais do morro, que só quem é de lá conhece. Ou para subir encara as horas de espera pela perua que a prefeitura arranjou. A cidade se entope num colapso e cada vez menos ilude quem chega a Salvador com a cabeça na Itapuã de Dorival Caymmi.
A efervescência é negra
Pesquisas atestam o fluxo de objetos e ideias durante toda a história da diáspora africana pelas Américas. Nos anos 1970, os jovens baianos, antenados com a efervescência que vinha da descolonização dos países africanos desde os anos 1950 e com a força artística e política dos movimentos negros dos Estados Unidos, como o Black Power e o Soul Funk, e a luta por direitos civis, também se nutriam das bandeiras esparramadas pelo mundo com o sucesso e a filosofia rastafári do reggae jamaicano. Em plena ditadura, com data de fundação registrada em novembro de 1974, o Ilê Aiyê se batizaria com o nome Poder Negro, mas foi advertido do perigo de afrontar o controle nacional dos generais. O escritor baiano Landê Onawale registra: “Era uma época pré-abertura política. Tudo que parecesse interferir na tal ordem não era visto com bons olhos”. Salvador é uma das cidades mais importantes da diáspora africana, com cerca de 80% da sua população composta por afrodescentes. Marcas coloniais da antiga capital do país estão na sua arquitetura REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
39
residencial ou nos fortes que pintam o litoral. E também na nítida divisão de classes e cores marcada pela desigualdade no acesso ao dinheiro e aos equipamentos públicos de qualidade. A frase “Não me peça pra te dar a única coisa que tenho para vender” se impôs na entrada do Ilê por anos, rastro aceso da história da gente que, segundo as leis da Colônia ou do Império, eram peças, e não pessoas. Gente que saía para vender ofícios ou alimentos na cidade, escravos de ganho que voltavam depois com as m oedas para o dono, mas também juntando cobres para comprar a própria alforria, a da família ou ajudar na coleta e na organização de grupos e levantes negros, grande temor dos senhores no século 19. Nessa época, pelo Atlântico, imensa parcela de chegados ao porto da Bahia vinha do oeste africano, onde hoje estão países como Nigéria, Senegal, Mali. Das quebradas soteropolitanas também surgiram grandes revoltas urbanas de escravizados. A mais célebre foi o Levante dos Malês, em 1835, que culminou numa série de outras revoltas que pipocavam desde os rumores da independência do Haiti, em 1792. O Levante dos Malês, que condenou seus líderes ao degredo, evidenciou como a efervescência social em qualquer ponto da África se ligava ao chão de cá, no caso a presença islâmica nos conflitos por reinos, divisas e rotas do tráfico de minérios e de pessoas.
ANTIGONA BR, DIREÇÃO JESSE OLIVEIRA/FOTO BRUNO GOMES
CULTURA
INSPIRAÇÃO Caixa Preta, de Porto Alegre: “Nós queríamos ir à Bahia conhecer e desfilar no Ilê”
“Penso que a relação mais íntima que temos com a história da cidade é a do inconformismo. Nunca aceitamos plenamente a ideia de que somos uma subcategoria de cidadão, e nos insurgimos pelos meios mais diversos – alguns até travestidos de submissão”, diz Landê Onawale. Por exemplo, como explica o escritor, a relação ambígua entre vários blocos, mestres, artistas e terreiros e o governante de plantão, sobretudo Antonio Carlos Magalhães. “A relação de várias organizações negras com a chamada direita era de troca, como são as relações políticas em geral. Poderia dizer que uma troca muito desigual, mas uma troca. A turma que-
ria botar o bloco na rua e via no governo um óbvio aliado. Para o carlismo, era a possibilidade de evidenciar uma suposta aliança com o povo – o povo negro, no caso da Bahia...”
Educação com autonomia
Em 2003, a Lei nº 10.639 instituiu o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas. Enquanto ainda se batalha em muitos cantos do país para que currículos, didáticas, formação de professores e espaços físicos das escolas estejam aptos à concretização da lei, o Ilê já há décadas cristaliza seu propósito com a Escola Mãe Hilda.
Do mocambo ao show De janeiro em diante, nas esquinas se debate o fervor do carnaval. Os hits fabricados para a estação dominam o volume máximo e trazem um leque de novas celebridades ao palco dos já miliardários agitadores da folia. É tempo também de turismo voraz, de gente de todo canto pagando alto por abadás que a proteja da porrada que sobra aos pipocas – os que acompanham os trios elétricos na beirada das cordas que os dividem dos pagantes. O mote “sorria, você está na Bahia” é contestado o ano todo por vários movimentos sociais, mas no carnaval a onda é sair da frente. Estatísticas de 2010 dizem que apenas 22% da população de Salvador participa do carnaval. Decresce assim como o percentual de paulistanos ou cariocas que integram os carnavais oficiais em suas cidades. Há algo muito sintomático quando escolas como a Unidos de Vila Isabel chegam a anunciar em jornais, em 2011, que buscam negros para compor suas alas... E quando boa parte dos que desfilaram na Portela em 2011 eram não moradores do Rio que compravam a fantasia na véspera, decorando apressadamente o samba-enredo. 40
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
Em Salvador, desde os anos 1980, músicas de sucesso das quadras dos blocos afro eram compradas por atentos emissários das bandas de trio. Os compositores recebiam trocados pelos direitos autorais, e o mercado fonográfico e as produtoras de shows de trios elétricos arrecadavam fortunas com os refrões dos discos de platina, alimentados por participações em programas de auditório, as repetições nas FMs e os carnavais “fora de época” em várias cidades do país. A relação entre bandas de trio elétrico e blocos afro a partir dos anos 1980, tanto no uso de direitos das músicas geradas pelos blocos negros como na distribuição de verba municipal e de publicidade em Salvador, extremamente desigual, proporcionou, porém, novas musicalidades e ocupações do espaço cênico ou comunitário. Ações de raiz comercial eram respondidas aqui e ali com reações de raiz cultural. Nesse tom, blocos como o Ilê Aiyê, Muzenza e Malê Debalê mantiveram suas características primeiras, com a percussão acústica da vasta bateria mais a rainha do bloco e seus cantores sobre a caminhonete que puxa o cortejo.
CULTURA
CASSIMANO
RITMO E ATITUDE O bloco Ilú Obá de Min há anos abre o carnaval paulistano com sua bateria composta apenas por mulheres
“As ações da escola e todo o nosso projeto pedagógico antecedem as dis cussões da lei”, diz Edmílson Alves, um dos responsáveis pelo Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê. “Todos os temas que o Ilê, ao longo destes anos, t rabalha de forma interdisciplinar sempre trazem importantes conteúdos históricos e pedagógicos sobre a população negra, sejam temas que já descansam no berço da história, sejam ações contemporâneas.” Povos Ashanti, heróis Mandinka, civilizações Bantu, façanhas da história da Guiné, de Minas Gerais e do Equador. Esses temas já cantados pelo Ilê frequentaram também os Cadernos de Educação, livros desde 1995 editados com uma plástica que destaca a estética africana.
“Não estamos falando do aprendizado estático, estamos falando de vivência educacional de identidade cultural e social cotidiana. Ela flui a cada cidadão do bairro da Liberdade e seu entorno. E o princípio referencial de tudo é o Ilê Axé Jitolú, um templo de candomblé, uma casa matriarcal por excelência”, completa Edmílson. Crianças com baixo aproveitamento passaram a apresentar níveis qualitativos acima dos 80% de aprovação, a partir de metodologias e materiais que dialogavam positivamente com suas histórias e corpos. Visitas a museus, terreiros de candomblé e bibliotecas, pautadas no respeito e no conhecimento da história e da cultura afro-brasileira, foram fundamentais. “A
escola foi idealizada por uma matriarca, aguerrida, comprometida com os direitos civis. No mês de setembro temos a Semana da Mãe Preta, com seminários, palestras, oficinas, em que mulheres reconhecidas e anônimas são homenageadas. A escola é laica e a orientação religiosa das crianças é diversificada, respeitando a pluralidade e o multiculturalismo”, afirma a coordenadora pedagógica Jô Guimarães. É uma resposta aos impactos do racismo que atinge a saúde mental e física. Prevalece uma razão antiga, irmanada aos dilemas de seu povo, mantendo a sede e a fonte limpas, já que o que vem de longe nenhum racismo, nenhum colonialismo pode aniquilar: a alma dos povos ancestrais em suas expressões vitais. REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
41
PERFIL
A boa fase de Silvia
Atriz grava em um ano três filmes de sucesso, vive grande momento e se vira com brilho próprio Por Carlos Minuano
S
ilvia Buarque afirma que sua praia é o teatro. Apesar disso, admite estar flertando como nunca com o cinema. Durante um ano gravou três longas de sucesso. Gonzaga, de Pai para Filho, que lhe rendeu o prêmio Fiesp/Sesi de atriz coadjuvante; Vendo ou Alugo, que amealhou 12 prêmios no festival de Recife, e o mais recente, Os Pobres Diabos, apresentado em setembro no Festival de Brasília, onde faturou dois Candangos. O filme, do diretor cearense Rosemberg Cariry, venceu a categoria Júri Popular e o Prêmio TV Brasil – no total, R$ 80 mil e a garantia de exibição na programação da emissora pública. Nada mau, ainda mais considerando os problemas que enfrentou durante o evento. Falhas na projeção cancelaram uma exibição desastrosa na primeira noite da mostra competitiva. A sessão terminou na metade do filme, sob as vaias do público que lotava a sala recentemente reformada do Cine Brasília. “Foi uma frustração imensa, muito triste”, lamentou a atriz, que pouco antes da exibição rasgou elogios ao festival, o primeiro 42
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
do país e um dos mais importantes espaços do cinema brasileiro. O longa só pôde ser visto do começo ao fim em uma sessão improvisada que teve início quase à meia-noite, com menos da metade da sala ocupada. Uma exibição “afetiva” já havia sido feita no Festival do Ceará. Os Pobres Diabos ainda não tem data de estreia no Brasil, mas está sendo legendado em inglês, francês e espanhol, para viajar por festivais internacionais em 2014. Problemas à parte, a atriz Silvia Buarque comemora o papel principal. “Nunca tive um papel desse tamanho. Minha carreira de modo geral, e particularmente no cinema, é de formiguinha. Não sou cigarra, sou formiga mesmo.” Apesar do berço esplêndido – filha de Chico Buarque e Marieta Severo, e ainda teve Vinicius de Moraes como padrinho de batismo –, ela diz que não nasceu brilhando nem com talento extraordinário. Aos 44 anos, afirma estar colhendo os frutos de ter começado com 16. O momento especial se traduz no filme de Rosemberg, como conta Silvia. Ela compara com outro papel, a Dina, participação bem-sucedida no longa Gonzaga, em que interpretou a mulher
PERFIL
CLAUDIO LIMA/DIVULGAÇÃO
filmes. Entre eles, Veja essa Canção, de Cacá Diegues, Outras Histórias, de Pedro Bial, São Jerônimo, de Júlio Bressane, e Em teu Nome, de Paulo Nascimento. No teatro, alguns destaques são Epifanias, de Moacyr G oes, Ventania, de Gabriel Vilella, O Homem Sem Qualidade, de Bia Lessa, e Quem Tem Medo de Virginia Wolf, ao lado da mãe, Marieta Severo, de Marco Nanini e Fábio Assumção, dirigida por João Falcão. Recentemente esteve nos palcos cariocas, dirigida pela atriz Bianca Byington, com Um Dia Como Os Outros e Cozinha e Dependências, que pretende levar a São Paulo em breve. Na TV, a atuação foi maior. Começou com uma breve – e tensa – participação em Dona Beija, aos 17 anos, na extinta TV Manchete, mas a carreira logo decolou na TV Globo, em novelas como Bebê a Bordo, Sexo dos Anjos e América. O papel mais recente foi em Caminho das Índias, em 2009.
De Chico e Marieta
RADIANTE Silvia se diz atriz de teatro, mas este ano está brilhando na telona. Em Os Pobres Diabos (ao lado) faz par romântico com o próprio marido, o ator Chico Diaz
que cuidou de Gonzaguinha no Rio de Janeiro. “Apesar de ser um bom personagem que curti muito fazer, foi uma atuação pequena, e não tem como dizer que o tamanho do papel não tem importância, estar como protagonista em um filme do Rosemberg Cariry, e estreando em Brasília, é uma coisa de peso, já estou no lucro. Em Os Pobres Diabos, Silvia dá vida à Creuza, uma cantora arretada e vulgar de uma trupe decadente de circo que perambula pelos cafundós dos sertões até se instalar na pequena Aracati, cidade do litoral leste do Ceará a que pertence a turística Canoa Quebrada. “É o filme mais importante que eu já fiz”, declara. No set, a atriz teve ao seu lado o marido, Chico Díaz, e a filha do casal, a pequena Irene, 8, que aparece em algumas cenas. Também compõem o elenco principal Gero Camilo e Everaldo Pontes. Ela atribui a boa fase também a uma resposta ao amor que sente pelo cinema. “Sou do tipo que vai ao cinema, sozinha e à tarde.” Entretanto, admite que os melhores convites chegam com maior frequência do teatro. Os números comprovam isso. Apesar do tempo de estrada, tem no currículo cerca de dez
Mesmo sem ser questionada pela reportagem sobre uma possível mãozinha dos pais em sua carreira, ela se antecipa: “Minha mãe ou meu pai nunca me indicaram para nenhum trabalho. É problemático ser filha do Chico Buarque. Pesado no sentido profissional, mas pessoalmente é uma delicia”. E como é ser filha de Chico e Marieta? “Minha relação com a família é excelente”, diz a irmã mais velha de Helena e Luiza. “Fui criada num ambiente muito feliz e saudável, minhas primeiras lembranças de problemas são da fase adulta, depois dos 20.” Ela ressalta o talento da mãe para a maternidade. “Tem uma sabedoria humana invejável, é também uma ótima vó, grande amiga,ouve o problema de todo mundo.” Os elogios arrefecem um pouco ao falar de Chico. “Ele é ótimo, mas não nasceu para ser pai de criança”, diz. “É daquela geração em que a mãe é que cuida”, explica. “E meio sem noção quanto a limites. Seria bem capaz de dar R$ 100 para eu comprar um chiclete”, brinca. Mas reconhece o arsenal de qualidades do pai. “Foi sempre muito amoroso e presente.” E diz que é um ótimo pai de adulto.“É coruja de nossos trabalhos, cúmplice, não tenho do que reclamar.” Feitos os devidos elogios, Silvia fala de outro lado, não tão legal, dessa história de ser filha de Chico e Marieta. Segundo ela, o primeiro olhar de todos está sempre relacionado aos seus pais. “Alguém achar que você é legal por causa de seu pai ou de sua mãe não vale nada, tenho minha própria identidade, já levei porrada em rede social de pessoas que não me conhecem, xingada de esquerdista por coisas políticas que escrevi, e percebi que as críticas não eram pra mim, eram pro meu pai.” Ela garante ainda ter uma ambição bem equalizada: “Meu lugar pode ser pequenininho, não quero ser a protagonista, a grande estrela”. Silvia lembra uma ocasião em que a situação extrapolou os limites. Aos 20 anos, estudando em Paris, começou a ser abordada na rua, sendo chamada repetidas vezes de “filha do Chico Buarque”. “Chegou o ponto de eu ter de sair correndo.” A atriz diz que a mãe também passou por situação semelhante. “Era chamada de mulher do Chico.” Ao menos no seu caso, Silvia se diz absolutamente resignada. “Não tenho nenhuma esperança de que isso vá mudar.” REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
43
VIAGEM
Panela de Formiga Dos pés às mãos, a transformação do barro em peças utilitárias no interior do Nordeste Por Arthur Maciel. Fotos Jesus Carlos/Imagemglobal
T
udo pode parecer uma tremenda bagunça aos olhos desavisados, uma situação desgovernada em que ninguém se entende, tal o vaivém de enlameados. Mas cada um sabe bem a tarefa que exerce. As funções são sabiamente decididas, e do trabalho de cada um depende o sucesso da coletividade. Panela de Formiga é a tradução da palavra tupi-guarani tracunhaém – que também dá nome a uma cidade da zona da mata norte de Pernambuco, a 65 quilômetros de Recife. As formigas podem ser uma representação do papel dos trabalhadores de uma olaria; a panela, onde são produzidos filtros, moringas, jarras, quartinhas, panelas, mealheiros e outros artigos de barro, em diversos tamanhos e formas. O trabalho é todo feito em conjunto, passando de uma mão a outra até chegar ao ponto em que as peças são distribuídas 44
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
para os revendedores. Um processo em que, se uma engrenagem humana falha, toda a linha de produção é comprometida. As mãos que puxam o barro do chão encontram outras que o passam numa máquina semelhante a uma moenda, a produzir uma liga homogênea. Outros pares de mãos a conduzem a um galpão, onde aguardam criativas mãos e pés de oleiros. Antes, entretanto, há dedos que catam do barro as impurezas, pequenos e inconvenientes grãos de pedra, e palmas que modelam bolas, no tamanho exato de cada peça que se quer fazer. Torneadas, as bolas são carregadas por braços e pernas para outros galpões, onde precisam de dois processos de secagem. Primeiro descansam por cerca de seis horas. Decorrido esse tempo, são levadas às mãos dos brunidores, talentosas para o trabalho de polimento. Quem as traz sem brunir, as leva polidas
VIAGEM
Os salários, pagos geralmente por semana, vão de R$ 150 a R$ 360, sendo o mais baixo o de servente e o maior o de oleiro de volta ao mesmo lugar. Por outras 12 a 24 horas – dependendo da peça confeccionada e da programação da olaria – serão deitadas ao chão, à sombra, até novas e velhas mãos e pés e pernas e braços as conduzirem aos fornos, onde o barro conhece o fogo. E a cerâmica nasce para tomar lugar no cotidiano nordestino. Para a queima das peças, primeiro é preciso empilhá-las nos fornos. Uma a uma, são postas como quem monta um quebra-cabeça, obedecendo às necessidades de colocar o máximo de objetos com a melhor disposição, de modo que o calor circule uniforme entre elas. Conseguido isso, é iniciado o processo de cozimento, que consumirá cerca de oito horas e muitos metros cúbicos de lenha. A queima, ou cozimento, da cerâmica é feita pelas altas temperaturas obtidas com a brasa que vai sendo produzida dentro dos fornos, um processo lento e gradual, de
cerca de seis horas, chamado de esquenta. Ao fim desse processo, o forno está vermelho de brasas e as temperaturas já atingem entre 600 e 800 graus centígrados. Agora é hora do cardeio, adicionando toras de madeira em grande quantidade, de forma a elevar o calor sobre as peças. O fogo se alteia em labaredas que tocam as peças como se estivessem lambendo uma a uma. O cardeio perdura de uma a duas horas. Esperam-se pelo menos outras 12 horas para retirar as peças dos fornos. As que precisam de um toque final o recebem pelas mãos dos pintores, outras vão direto para os embaladores e depois passadas aos carregadores, que abastecem os caminhões que vão e vêm, levando e buscando a tradição que é espalhada por todos os cantos e cidades do Nordeste. Os irmãos Pedro e Sebastião do Prado trabalham juntos na REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
45
VIAGEM
Para a queima das peças, primeiro é preciso empilhá-las nos fornos. Uma a uma são postas como quem monta um quebra-cabeça, obedecendo às necessidades de colocar o máximo de objetos com a melhor disposição, de modo que o calor circule uniforme entre elas olaria que mantêm em Tracunhaém, empregando cerca de 60 trabalhadores. As funções são divididas em catador (limpa o barro de impurezas), pisador (mistura o barro antes de ir para a maromba, a máquina que dá a liga certa do barro), brunidor (faz o polimento das peças antes de serem levadas ao forno), queimador de forno (responsável pelo cozimento das peças), oleiro (que modela as peças no torno) e serventes (fazem serviços gerais). Os salários, pagos geralmente por semana, vão de R$ 150 a R$ 360, sendo o mais baixo o de servente e o maior o de oleiro. “Eu praticamente nasci dentro do barro”, avalia o oleiro Edvaldo Pereira da Silva, 49 anos. “Meu pai me ensinou a trabalhar com o torno quando eu tinha 9 anos.” Uma vida inteira tirada do ofício. Em uma semana cada oleiro chega a moldar 200 filtros, peça que é o carro-chefe da produção. Um programa do governo estadual destina milhares deles a famílias que sofrem os efeitos da seca. Um incentivo para que as pessoas filtrem a água antes de consumi-la. Além dos filtros, as moringas são objetos comuns nas casas do interior do Nordeste. Trata-se de vasos bojudos e de gargalos estreitos, usados para acondicionar e conservar fresca a água. “Enterradas, gelam a água melhor que uma geladeira, ela fica mais gostosa”, ensina Pedro Ismael do Prado. A técnica foi comprovada pela reportagem. A água fica refrescante e numa temperatura prazerosa de consumir. Assim como comer o feijão e o peixe com maxixe cozidos nas caçarolas e panelas de barro é muito mais gostoso. 46
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
As quartinhas são pequenos recipientes para água potável, com ou sem tampa, utilizadas pelos sertanejos nas incursões pela caatinga. Mealheiros são pequenos cofres com uma fenda por onde se enfiam moedas para economia, uma espécie de poupança popular também comum na região. Há diversas variações para a palavra no Nordeste, como miaeiro, milhaeiro ou minhaeiro. E, para cada economia consumida, um novo mealheiro é posto em ação para manter a tradição e sustentar a produção.
ATITUDE
Literatura da pacificação
ROGÉRIO SANTANA/SECOM-RIO DE JANEIRO
Festa Literária Internacional das UPPs, de 20 a 24 de novembro, no Rio de Janeiro, discute inclusão e negritude Por Xandra Stefanel
Hugo Germano, do Cantagalo, e Lindacy Menezes, da Rocinha: formação de leitores e autores
E
xatamente cinco anos depois da criação da primeira Unidade de Polícia Pacificadora, na Favela Santa Marta, o Rio de Janeiro recebe, de 20 a 24 de novembro, a segunda edição da Festa Literária Internacional das UPPs, a Flupp, em Vigário Geral. Um dos temas que norteiam o evento é “Inclusão e exclusão” e neste ano, mais especificamente, negritude. “Uma questão central do Brasil e, fundamentalmente das comunidades populares, é a racial. Você tem claramente ‘o lugar para o negro dentro da sociedade’. Quanto mais trabalharmos essa questão, mais combateremos o racismo não declarado do brasileiro. E a gente está falando do livro, que é o instrumento, por excelência, das elites brasileiras”, afirma o escritor Julio Ludemir, um dos idealizadores e produtores da Flupp, ao lado de Ecio Salles. Entre os convidados do evento está a professora da Universidade de Brasília Regina Dalcastagnè. Seu livro Literatura Brasileira Contemporânea: um Terri-
tório Contestado mostra que a literatura brasileira ainda é restrita em termos de etnia, gênero, localização e perfil de narrador. Ou seja, em pleno século 21 e 80 anos depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, os livros continuam sendo escritos por e sobre brancos, como aponta Regina, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os preparativos da festa começaram em maio, com a realização da Flupp Pensa, um processo de formação de leitores e autores da periferia do Rio de Janeiro que deve resultar na publicação de três livros. De lá para cá, a cada sábado são realizadas oficinas em diferentes comunidades cariocas, em tese, pacificadas. “Quando se pensa em um evento literário na periferia, você sempre produz um estranhamento. A gente aposta nessa ideia de democracia ao escolher o lugar e o próprio público. Mas também em trazer um público de fora, porque não é um evento dentro da favela para a favela. É um evento
que procura a circulação e o pertencimento da cidade a todos”, diz Ludemir. A Flupp será realizada em uma comunidade que não está oficialmente pacificada. “A gente não quer reduzir a discussão da pacificação às ações da polícia, não quer e não pode querer que o processo de pacificação exclua a sociedade civil, porque eu tenho muito mais interesse na pacificação do que a polícia”, diz o organizador. “Desde maio estamos indo todo fim de semana a uma favela pacificada do Rio, mas vamos terminar o projeto em Vigário Geral, cuja pacificação não está se dando por meio da ação da polícia. Para a pacificação acontecer, você precisa da cultura, da educação, da saúde, e assim por diante.” No ano passado, a festa, que homena geava o escritor Lima Barreto, reuniu 10 milpessoas. Nesta edição, é a vez do poeta Waly Salomão, morto em 2003, pouco antes de completar 60 anos. São esperados grandes nomes da literatura nacional e internacional, músicos, humoristas e artistas de diversos gêneros. Do Afeganistão vêm a rapper Paradise Sorouri, que canta as dificuldades das mulheres afegãs, e o escritor Suhrab Sirat, que em 2009 ganhou um prêmio ONU de literatura voltado para o direito das mulheres; da Palestina virá o poeta Tamim al-Barghouti; do Iraque, Hassan Blasim, cuja obra foi proibida em alguns países árabes. A ideia é que esses artistas façam um contraponto à realidade brasileira no que diz respeito à produção de cultura em comunidades. O evento conta ainda com Zuenir Ventura, Nélida Piñon, Heloísa Buarque de Hollanda, Reynaldo Moraes, Pablo Capilé e Ricardo Aleixo, entre outros brasileiros. Mais do que um festival literário, a Flupppretende fazer parte de uma agenda cultural que inclua a periferia do Rio de Janeiro. “Mas que traga o centro para a periferia e a periferia para o centro”, completa Ludemir. As atividades serão realizadas no Centro Cultural Waly Salomão, na sede do AfroReggae (Rua Santo Antônio, 11, Vigário Geral). A entrada é gratuita e por ordem de chegada, com lotação máxima de 300 pessoas. A programação completa está disponível em www.flupp.net.br. REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
47
curtaessadica
Por Xandra Stefanel
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Ser mulher no Paquistão
Cores da Amazônia
Os encantos da floresta amazônica, rituais de proteção, sabores regionais e o poder da natureza. A Floresta de Jonathas, filme de estreia de Sergio Andrade, é inspirado numa história real e conta a história de Jonathas, que vive com os pais e o irmão em um sítio na área rural do Amazonas. Mesmo sem a permissão do pai, ele vai acampar com o irmão e seus novos amigos, a turista ucraniana Milly e o índio Kedassere. Para impressionar a moça, ele embarca nas entranhas da floresta em busca do maracujá-do-mato, que, segundo sua mãe, deixa as mulheres mais corajosas. O filme, que chega aos cinemas no dia 29 de novembro, mostra, com boa dose de realismo fantástico, uma visão contemporânea da Amazônia, bem além dos estereótipos. Praticamente toda a equipe e os atores são locais, com exceção de Chico Díaz, que faz uma rápida participação especial.
Sabor de leitura
A pequena Manuela é uma devoradora de livros. Literalmente. Seus preferidos são os de suspense e fantasia, azedinhos com sabor de torta de limão. Dos românticos, com gosto de batata-doce, não gosta, não. Seu avô, que teve a biblioteca toda devorada pela menina, até que tentou trocar livros por chocolate. “Mas, vovô” – a menina dizia – “nenhum chocolate é melhor que um livro de poesia! Nem os amargos!” As Mil e Uma Histórias de Manuela (Autêntica Editora, 32 pág.), do escritor e professor de criação literária Marcelo Maluf, com ilustrações de Weberson Santiago, é uma deliciosa metáfora sobre a leitura: não importa a idade, ela alimenta, inspira, dá prazer e mais sabor à vida. Para crianças a partir de 7 anos. R$ 29. 48
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
Quando o Talibã tomou o controle do Vale do Swat, no norte do Paquistão, Malala Yousafzai ousou levantar a voz pelo seu direito à educação. Ao voltar da escola, em 9 de outubro de 2012, levou um tiro à queima-roupa e quase pagou com a própria vida pelo “pecado” de querer ter o mesmo direito de aprender que seus amigos meninos. Milagrosamente, ela sobreviveu para relatar seu drama numa sala das Nações Unidas e, aos 16 anos, foi indicada para o Prêmio Nobel da Paz e ganhou o prêmio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, do Parlamento europeu. No livro Eu Sou Malala (Cia. das Letras, 360 pág.), ela e a jornalista britânica Christina Lamb contam essa história desde a infância, passando pelos aspectos sociais e religiosos e pela trajetória dessa família que, como muitas outras, foi exilada pelo terrorismo. R$ 34,50 e R$ 24 (e-book).
ILUSTRAÇÕES MIGUEL FALCÃO
(A saga de Severino em 3D)
A história de Severino, retirante que deixa o sertão pernambucano e vai até as margens do Rio Capibaribe, em Recife, saiu das páginas do livro de João Cabral de Melo Neto, passou para os traços do cartunista Miguel Falcão e migrou para a tela em uma animação em 3D produzida pela TV Escola, do Ministério da Educação. Dirigida por Afonso
Serpa, a animação tem traços fortes que lembram xilogravura e é fiel à atmosfera árida do célebre texto de Morte e Vida Severina, do Auto de Natal lançado por João Cabral em 1956. Tanto o vídeo (http://bit.ly/morteevida_rdb) como os quadrinhos (http://bit.ly/hq_morteevida_rdb) podem ser vistos gratuitamente no site da TV Escola.
Mais de Pernambuco
O selo Passa Disco, que também é uma tradicional loja aglutinadora de artistas nordestinos, lança “&” o terceiro volume da coletânea De Pernambuco para o Mundo. O álbum duplo traz 30 faixas e faz uma retrospectiva da música do estado, do forró, passando pelo frevo, rock e pop. As músicas são interpretadas sempre em duplas: Geraldo Azevedo e Elba Ramalho em São João Barroco; Ivan Santos e Lenine em Foguete Suburbano; Arreio de Prata, com Tito Lívio e Alceu Valença; Meu Esquema, com a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério e Fred Zeroquatro; entre outras dobradinhas. Preço sob consulta. À venda em www.passadisco.com.br REVISTA DO BRASIL
NOVEMBRO 2013
49
CRÔNICA
OLHE AQUI, MR. BUSTER Este poema é dedicado a um americano simpático, extrovertido e podre de rico, em cuja casa estive poucos dias antes de minha volta ao Brasil, depois de cinco anos de Los Angeles, EUA. Mr. Buster não podia compreender como é que eu, tendo ainda o direito de permanecer mais um ano na Califórnia, preferia, com grande prejuízo financeiro, voltar para a “Latin America”, como dizia ele. Eis aqui a explicação, que Mr. Buster certamente não receberá, a não ser que esteja morto e esse negócio de espiritismo funcione. Vinicius de Moraes (1913-1980) Rio de Janeiro, 1962 www.viniciusdemoraes.com.br Olhe aqui, Mr. Buster: está muito certo Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills. Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue O Sr. tenha um caco de friso do Partenon, e no quintal de sua casa em Hollywood Um poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insônia Está muito certo que em ambas as residências O Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu preconceito racial Por muitos anos a vir, e vacuum-cleaners com mais chupo Que um beijo de Marilyn Monroe, e máquinas de lavar Capazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto tanto dinheiro em vão na guerra da Coreia. Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente de torradeiras automáticas E suas portas se abram com célula fotelétrica. Está muito certo Que o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem filmes de mocinho Isto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fi Com alto-falantes espalhados por todos os andares, inclusive nos banheiros. Está muito certo que a Sra. Buster seja citada uma vez por mês por Elsa Maxwell E tenha dois psiquiatras: um em Nova York, outro em Los Angeles, para as duas “estações” do ano. Está tudo muito certo, Mr. Buster - o Sr. ainda acabará governador do seu estado E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo, aço e consciências enlatadas. Mas me diga uma coisa, Mr. Buster Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster: O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha? O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal? O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo? 50
NOVEMBRO 2013
REVISTA DO BRASIL
Sintonize no FM
98.9 93.3 102.7
São Paulo, ABCD, Guarulhos, Osasco
Litoral paulista
Noroeste paulista
As notícias que os outros não dão + cidadania + cultura + esporte + música brasileira
www.redebrasilatual.com.br
UM PACTO PELA VIDA
UM PACTO PELA VIDA
SE VOCÊ NÃO PERCEBEU O CAMINHÃO AQUI, IMAGINE NO TRÂNSITO. Trânsito sem celular. Atenda a esse chamado. Seja você a mudança no trânsito. /paradapelavida @paradapelavida
paradapelavida.com.br