CONTESTADO Meio jurídico não engole os abusos de Joaquim Barbosa
AS MÃOS DE PORTINARI O resgate das polêmicas obras sacras do pintor comunista
nº 90
dezembro/2013
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Para publicar seu livro, Estela fez vaquinha pela internet
COMO BANCAR SUA IDEIA
O financiamento coletivo democratiza a produção de cultura, de invenções e até de jornalismo
A Revista do Brasil integra uma nova plataforma de mídias, com portal de notícias, jornais de cidade, Rádio Brasil Atual e TVT. Um jornalismo que acompanha a nova realidade do Brasil e do mundo. Assinando a revista, você colabora com toda a plataforma.
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ÍNDICE
EDITORIAL
6. Na Rede
Notas que foram destaque na RBA no mês que passou
10. Política
Congresso empaca e reforma política fica por conta das ruas
14. Política
Para juristas, Barbosa põe em risco o STF e a democracia
18. Trabalho
PAULO PEPE/RBA
A evolução das tecnologias e das doenças da produção
24. Cidadania
Avanço da especulação empurra famílias pobres para periferias
28. Capa
Equipe da Agência Pública, que recorre também à vaquinha para bancar grandes pautas
A boa e velha vaquinha como meio de realizar bons projetos
A ousadia é coletiva
34. Mundo
A
Os imigrantes e o sotaque latino do sonho americano
38. Entrevista
REPRODUÇÃO DE LUCAS MAMEDE/RBA
Antropóloga estuda o potencial científico do saber indígena
A Sagrada Família
42. Cultura
Em Batatais (SP), obras de Portinari ganham restauração
Seções Cartas
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Mauro Santayana
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Destaques do mês
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Lalo Leal
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Curta essa dica
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Crônica
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presidenta Dilma Rousseff fechou o primeiro mês de seu mandato, janeiro de 2011, com a taxa básica de juros, a Selic, a 11,25% anuais. A diferença entre Selic e a inflação, uma taxa real de cinco pontos, era uma das mais elevadas do mundo. Ainda naquele ano, a Selic chegou a 12% e depois começou um movimento consistente de queda, até 7,25%, percentual mantido de novembro de 2012 a março deste 2013, quando a taxa real chegou em 0,75 ponto, recorde histórico. Bastou a água da inflação bater no joelho, o tal “teto” da meta de 6,5%, e a Selic voltou a subir. Isso num momento em que o governo travava batalha com o sistema financeiro, usando a força dos bancos públicos para estimular o crédito e a produção. Ao encerrar 2013 com a Selic a 10%, o BC levou a taxa real a cerca de quatro pontos acima da inflação, mais generosa com especuladores do que com contas públicas. E assim a presidenta entra em seu último ano de governo: com juros menores do que há três anos, mas recuando na briga com os bancos. Em 2014, essa oscilação entre ousadia e cautela comporá o xadrez político, e pode definir se o seu favoritismo se consolida ou recua. Aos movimentos que batalham por mais democracia e menos desigualdade, cabe continuar cobrando com ousadia o que ainda não foi alcançado. Mesmo porque nem tudo depende de governo ou Congresso para acontecer. Com greves e suados acordos coletivos, sindicatos alcançam melhores salários e condições de trabalho. Em cooperativas, trabalhadores conseguem uma produtividade que jamais alcançariam sozinhos. Até autores de livros, invenções e outros projetos inovadores recorrem ao financiamento coletivo para viabilizar ideias. Conceitos de vaquinha, consórcio, cooperativa e outras formas de ajuda mútua são antigos e funcionais. O mundo tecnológico modernizou a vaquinha, e alguns resultados estão na reportagem de capa. A prática é um meio de superar o modelo em que as corporações ditam que projeto vão comprar, que ideia vai pegar. E como não está com jeito de que o governo vai ajudar a mexer com o monopólio da liberdade de expressão, é o leitor, o espectador, o ouvinte, o consumidor de informação quem vai bancar as novas mídias. Elas estão aí – a Revista do Brasil e a RBA entre elas –, incomodando cada vez mais os os velhos modelos. Compreenda o valor de fazer parte dessa construção coletiva. REVISTA DO BRASIL
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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Paulo Soares, João Peres, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Capa Fotos de Jailton Garcia, Carlos Humberto/SCO/STF (J. Barbosa) e reprodução de Lucas Mamede (Portinari) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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O mundo e os Brics Como a maioria das nações dessas r egiões – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – está se desenvolvendo sob novo cenário e com viés mais progressista do que neoliberal, e isso já há uma década, começar a pensar em como será o cenário político e social tendo este bloco predominando e com novos valores é mais do que razoável (“O mundo e os Brics”, de Mauro Santayana, edição 89). Pensarmos nas possibilidades, como queremos, quais países se incorporarão, se o viés desse novo cenário será a priorização dos mercados internos ou a corrida sem regras da disputa por mercados externos. A China já sinalizou a opção pelo mercado interno e o Brasil se viu livre dos efeitos da última crise mundial graças a este mercado. Felipe Vargas Zilig Devagar com o andor Enquanto professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador do Brics Policy Center (BPC), acredito que devemos ser mais cautelosos e menos inocentes. Muito se pode esperar quanto à questão da reforma do sistema internacional. Afinal hoje vemos questões que nem sequer estiveram “na pauta” há alguns anos (meio ambiente, segurança alimentar e energética, direitos sociais e humanos etc.), mas não sejamos ingênuos quanto a qualquer proposta alternativa que surja. Não deixemos de conside-
rar que temos nos próprios Brics China e Índia com índices de desigualdade exorbitantes, com castas sociais, população rural elevada e sem muitos direitos; Rússia com problemas relativos aos direitos humanos e base energética focada no petróleo e seus derivados; e África do Sul e Brasil com diversos problemas relativos à desigualdade social (mesmo que haja iniciativas nesse sentido). Enfim, não é tão simples quanto parece. Thauan Santos
A TV esconde o Brasil Concordo plenamente com a necessidade da regionalização da programação das redes de televisão (“A TV esconde o Brasil”, por Lalo Leal, edição 88). Antes de tudo é necessário que os entes federativos proporcionem mecanismos de fomento à produção cultural e isso demanda disposição do poder público e, em sua ausência, do Judiciário. Sou do estado do Maranhão e lá, onde os poderes são tão conchavados, a proposta por enquanto é quase plenamente prejudicada. A mudança deve vir das bases regionais, para que enfim possamos falar no atendimento eficaz da ordem federal. Lorena Garrido Borges Muito a fazer Um país com esse tamanho e com tanta diversidade cultural não pode ficar à mercê de novelas que nunca acrescentaram nada em nossas vidas (“A TV esconde o Brasil”, por Lalo Leal, edição 88). Precisamos eleger deputados que tenham compromissos com a população e que não se vendam ao grande capital. Mas para isso, precisamos regulamentar a mídia e exigir que ela cumpra o que está na lei. Além disso, uma reforma política ampla e com o financiamento público das campanhas eleitorais poderiam balizar toda essa falta de sustentação e de apoio que se tornaram os nossos representantes políticos. Agnaldo F. Amorim
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
MAURO SANTAYANA
A juventude rebelde, do Chile e do Brasil Qué haré sin caminar con la bandera/ que de mano en mano en la fila/ de nuestra larga lucha/ llegó a las manos mías? Ay Patria, Patria,/ ay Patria, cuándo/ ay cuándo y cuándo/ cuándo/ me encontraré contigo?
E
sses versos, de esperança e amor do poeta Pablo Neruda, nos remetem à conturbada trajetória do povo chileno, na construção do destino de um país que foi palco de uma das mais sangrentas e impiedosas ditaduras do nosso continente no século passado. Uma das duas únicas nações que não possuem fronteiras com o Brasil na América do Sul – pátria de outros poetas e compositores que ajudaram a construir a mística da luta latino-americana, como Violeta Parra e Victor Jara –, o Chile se encontra, hoje, às vésperas de mais um momento político decisivo, com as eleições que acabaram tendo de ser definidas em segundo turno, no dia 15 de dezembro. Não se trata apenas da provável eleição de Michelle Bachelet, com a volta da esquerda, e da Concertação Popular, ao poder, naquele país. Essa eleição chilena é peculiar porque é a primeira a ser feita depois da implementação do voto facultativo. E também porque corresponde à estreia, no plano eleitoral, de uma série de jovens lideranças. A maioriasurgida no bojo das manifestações que tomaram conta das ruas, no governo neoliberal de Sebastián Piñera, que está deixando o poder. No Chile, os protestos estiveram, desde o início, voltados para um tema principal – o avanço do ensino público em um país no qual o ensino particular domina 75% do mercado. No Brasil, as passeatas que começaram com o Movimento
Passe Livre foram paulatinamente agregando outros temas, como o combate à corrupção e a Copa do Mundo. E por aqui não houve um único segmento na liderança do processo. Infiltraram-se, nos movimentos iniciais, grupos “apartidários” que se opõem não apenas ao governo Dilma, mas ao próprio sistema democrático. Com o fim da obrigatoriedade de voto, no Chile, menos de 50% dos eleitores compareceram às urnas, o que pode agravar a governabilidade. A partir do próximo governo a oposição poderá alegar – insidiosamente – que ele não estará representando a maioria da população. Um grupo de estudantes invadiu o escritório de campanha de Bachelet, depois das eleições, para afirmar que a questão política não estava nas urnas, mas nas ruas – lembrando as manifestações. E outros dirigentes do movimento estudantil que colocou o governo Piñera contra a parede conseguiram se eleger para a Câmara dos Deputados, nas eleições legislativas de 17 de novembro: Camila Vallejo e Karol Cariola, pelo Partido Comunista, Gabriel Boric, eleito pela Esquerda Autónoma, e Giorgio Jackson, pela Revolução Democrática, vão defender, no Parlamento, a bandeira da “educação de qualidade e gratuita”. No Chile, a juventude foi às ruas, a partir de maio de 2011, de cara limpa e com uma bandeira definida. No Brasil, lideranças autênticas, como as do Movimento Passe Livre, foram ofuscadas por grupos fascistas que impediram, na base da agressão, o direito de manifestação partidária. E muitos jovens preferiram esconder o rosto atrás das camisetas pretas dos black blocs, e das máscaras de Guy Fawkes, estas inspiradas no discurso direitista dos vídeos virais de grupos definidos como Anonymous e do movimento #ChangeBrazil!. Mesmo assim, cabem as perguntas: as jovens lideranças chilenas poderão influenciar, decisivamente, a história de seu país, para além do projeto da Concertação Democrática, de Michelle Bachelet ? Eles já provaram – apesar de terem protestado – que é possível levar a sua causa das ruas para ocupar o parlamento, e dar sequência às suas reivindicações. Quantas jovens lideranças, surgidas nas manifestações deste ano, no Brasil, poderão fazer o mesmo e se transformar em deputados, nas eleições de 2014? REVISTA DO BRASIL
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Pouco antes da abertura em São Paulo de uma exposição no Cemitério do Araçá – Penetrável Genet, do artista plástico Celso Sim e da arquiteta Anna Ferrari –, vândalos invadiram o ossário e danificaram parte da instalação. Gavetas foram violadas. O ataque ocorreu um dia depois de um ato do Dia de Finados em memória de mortos e desaparecidos políticos – ali estão mais de mil ossadas de vítimas da ditadura, encontradas no início dos anos 1990 em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus. “Não posso afirmar que foi crime político, mas não tem como ter sido crime co-
mum”, disse Celso Sim. bit.ly/rdb_desaparecidos No mesmo Araçá, uma exposição de fotografias dos protestos de junho foi depredada durante a madrugada do dia 19 de novembro. Das 26 fotos, 24 foram rasgadas ou pichadas com dizeres como “Viva a PM”, “Fora comunas” e “White block”. Para Keiny Andrade, membro do grupo Foto Protesto SP, que organizou a montagem, a ação é obra de grupos conservadores que temem as mudanças defendidas pelos manifestantes. “Para mim tem a ver com essa direita fascista e reacionária que não aceita o direito de manifestação.” bit.ly/rdb_pichacao
Trabalhadores da Nissan não têm direito a sindicalização
RH do século 21 Uma pesquisa de organização internacional afirma que os trabalhadores da
montadora japonesa Nissan, no Mississipi, Estados Unidos, recebem treinamento antissindical desde o primeiro dia de contratação, o que viola padrões internacionais de direitos trabalhistas. Segundo relatório realizado pelo professor Lance Compa, especialista em direito trabalhista internacional, e pela seção do Mississippi da Associação Nacional pelo Progresso da População Negra (NAACP), a empresa informa aos trabalhadores não possuir um sindicato de classe e, como parte do programa de treinamento, exibe no primeiro dia de trabalho um vídeo com argumentos de que os sindicatos destroem empregos, fecham fábricas ou enfraquecem as empresas, que seriam obrigadas a demitir os trabalhadores. bit.ly/rdb_nissan
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TUCA VIEIRA/10ª BIENAL DE ARQUITETURA
Instalação no ossário foi danificada
CHRIS TODD/PHOTOGRAPHY LLC
Vandalismo anti-memória
FELIPE RAU/ESTADÃO CONTEÚDO
Exposição de fotos no muro do Araçá foi pichada
MARCELLO CASAL JR./AGÊNCIA BRASIL
Reconstrução de Jango Dilma ampara Maria Thereza Goulart
A poucos meses dos 50 anos do golpe, o presidente João Goulart, morto em 1976, fez um retorno simbólico a Brasília: em 13 de novembro, seus restos mortais foram levados de São Borja (RS) para a capital federal, no início de um processo de exumação que pretende acabar com a dúvida sobre sua morte – natural ou por envenenamento? bit.ly/rdb_jango. Em meio ao conjunto de iniciativas tomadas no processo de reconstrução da “história oficial”, o Congresso Nacional
aprovou no dia 21 projeto dos senadores Pedro Simon (PMDB-RS) e Randolfe Rodrigues (Psol-AP), que anula a sessão do Congresso de 2 de abril de 1964 que declarou vaga a Presidência da República no mandato do presidente João Goulart. “Ele estava no comando de suas atribuições e em pleno território nacional e, por isso, o Congresso não poderia ter convocado arbitrariamente a sessão e muito menos ter declarado vaga a Presidência”, disse Randolfe. bit.ly/rba_jango_congresso
São demais os perigos...
...desta vida Em 2001, o governo Fernando Henrique Cardoso atuou com força para aprovar na Câmara um projeto do Executivo que permitiria aos acordos coletivos prevalecer sobre a legislação. Era uma forma de “flexibilizar” direitos consagrados na CLT. A proposta chegou a ser aprovada na Câmara, mas diante da pressão contrária parou no Senado. No início de seu governo, em janeiro de 2003, Lula mandou retirar a ideia da pauta do Congresso. Agora, sob novo formato, outro projeto foi apresentado, com as mesmas intenções. bit.ly/rdb_clt
GABRIELA KOROSSY/AG. CÂMARA
Eduardo Azeredo
ZECA RIBEIRO/AG. CÂMARA
Sem conseguir votar, na Câmara, o projeto de lei que regulamenta práticas hoje consideradas irregulares no emprego de mão de obra terceirizada (PL 4.330/2004, do empresário Sandro Mabel, deputado pelo PMDB-GO), o lobby empresarial no Congresso foi dar um pulinho no Senado. A Comissão de Comissão e Justiça (CCJ) da Casa quase pôs em votação outro projeto de igual teor, de autoria do ex-senador e atual deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB-MG), com relatoria do senador e empresário Armando Monteiro (PTB-PE), ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI). O texto é clone do PL 4.330, que parou na Câmara dos Deputados graças à mobilização e pressão das centrais sindicais permite a terceirização em todos os setores das empresas, incluindo a atividade principal (conhecida como atividade-fim), e as isenta de responsabilidade sobre irregularidades trabalhistas cometidas pela terceirizada. http://bit.ly/rba_clone_4330
Sandro Mabel
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Cientista política de formação, a argentina radicada no México Pilar Calveiro assume por vezes o papel de psicóloga ao analisar as relações entre sequestradores e sequestrados, entre sociedade e militares durante a última ditadura em seu país (1976-1983). No livro Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina (Boitempo), ela retira o véu que pesa nesse intrincado jogo e humaniza relações que, de longe, parecem sempre marcadas apenas por sentimentos únicos, de ódio, de vingança, de resignação. “Não há possibilidade de que o Estado concentracionário exista sem suporte social. Antes de 1976 houve um período de confusão, decomposição social e política. O golpe militar aproveitou, defendendo a ideia de que eles, sim, iam instalar a ordem. Isso teve eco em alguns setores da classe média, ainda que significasse perda de direitos”, diz a escritora. http://bit.ly/rba_pilar
Pilar Caveiro: não existem ditaduras sem suporte social
Botos ameaçados
ANSELMO D’AFFONSECA/INPA
Boto: isca para pescar a piracatinga
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A demanda por um peixe amazônico, no Brasil e países vizinhos, tem representado ameaça para os botos. Conhecidos como “golfinhos de água doce”, esses animais têm sido caçados para que sua carne e gordura sirvam de isca para a pesca de piracatinga, também chamada de douradinha. Os principais consumidores desse peixe são a Colômbia e o Peru – e, internamente, as regiões Nordeste e Centro-Sul. Geandro Pantoja, chefe da Divisão TécnicoAmbiental do Ibama no Amazonas, disse que o órgão recebe denúncias e informações que indicam a matança de botos e jacarés no Amazonas, mas que “fiscalizar é muito difícil”, já que a atividade criminosa ocorre “silenciosamente nas madrugadas em locais de difícil acesso”. bit.ly/rdb_botos
MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL
Campos de concentração
RÁDIOBRASILATUAL
93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio
A ruptura é dura
Como unir o bloco
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Com a conquista da democracia após os processos ditatoriais na América Latina, as forças progressistas que chegaram ao poder no contexto do neoliberalismo encontram até hoje limitações para implementar sua política de governo. A análise feita pelo jornalista Gustavo Codas, assessor de Gustavo Relações Internacionais Codas da CUT no Brasil e da presidência de Fernando Lugo no Paraguai, observa a posição conservadora adotada pelas democracias em vigor desde a década de 1990. Ele disse que governos progressistas de países como a Venezuela, Argentina e Brasil enfrentam dificuldades ao tentar implementar seus projetos políticos. “As democracias aceitam alternâncias dentro do mesmo projeto, mas não alternâncias de projetos”, disse em entrevista à Rádio Brasil Atual. http://bit.ly/radio_dificuldade
A crise econômica mundial revela uma das falhas do Mercosul, como bloco integrado no continente. Segundo o economista José Carlos de Assis, professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), a integração entre os países-membros não deveria ter sido realizada pelo processo comercial, porque se dois países produzem a mesma coisa não expandem o mercado. “Quando há a integração, se especializa a indústria, se integram cadeias produtivas e o comércio coroa esse processo, como aconteceu na Europa”, explica. A solução seria desenvolver uma espécie de união cambial, em que os países passem a agir como bloco para proteger seus mercados. A estratégia adotada pelos países industrializados para superar a crise, aumento das exportações e do superávit comercial, afeta as economias latino-americanas, que sem ação conjunta têm resultados deficitários. Assis reforça que a atual exportação de commodities não integra nem fortalece o comércio latino-americano. “É preciso industrializar esse produto, agregar valor a ele e construir uma infraestrutura de transportes integrada por meio de um tributo vinculado”, defende. http://bit.ly/radio_mercosul
MARCELO CAMARGO/ABR
A inconsciência é branca O escritor Frei Betto, colunista da Rádio Brasil Atual, diz que o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, deveria servir para que o país enfrente a “inconsciência branca” que, segundo ele, foi construída historicamente no Brasil, desde a colonização europeia na África e do tráfico de escravos para o país. “A data novembro deveria ser comemorada nas escolas com a exibição de estatísticas sobre o papel dos negros na sociedade brasileira”, disse. Segundo ele, foi a falta de conhecimento e de senso crítico que fez surgir o critério de separação por raças, no século 19. “De tal arrogância se nutria a inconsciência branca que se elevou à categoria de pretensa ciência. Não existe raça, essa palavra é equivocada.” http://bit.ly/radio_frei_betto REVISTA DO BRASIL
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E nada
DE NOVO O Congresso não leva adiante uma reforma política que tiraria poder dos financiadores de campanhas
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ais jovem ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso debutou em agosto no processo do mensalão, enfatizando que o caso não deve ser considerado o maior escândalo de corrupção de todos os tempos, “e sim o mais investigado” – o que não constitui fato isolado na política nacional. “Ao contrário, se insere em uma tradição lamentável, que vem de longe”, acentuou. Para Barroso, as manifestações deste ano são “reflexo da incapacidade da política institucional para vocalizar os anseios da sociedade”. “Não existe corrupção do PT, PSDB ou do PMDB, existe corrupção”, pontuou. “A corrupção não é ‘nossa’ ou ‘deles’, é um mal em si e não pode ser politizada.” O ministro citou algumas razões da “exaustão” da sociedade com a forma como se faz política: o papel central do dinheiro, como consequência do custo astronômico das campanhas; a irrelevância programática dos partidos, que no geral funcionam como “rótulos vazios” para candidaturas; e o sistema eleitoral e partidário que dificulta a formação de maiorias políticas estáveis, impondo negociações caso a caso a cada votação importante no Congresso. Além de diagnóstico, sugeriu receita: “A imensa energia jurisdicional dispendida no julgamento terá sido em vão se não forem 10
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tomadas providências urgentes de reforma do modelo político. Já tornaram a ocorrer incontáveis casos de criminalidade associada à maldição do financiamento eleitoral, à farra das legendas de aluguel e às negociações para formação de maiorias políticas que assegurem a governabilidade”. O entendimento do magistrado não é novo. A necessidade de reduzir o poder do dinheiro privado nas eleições e de impor a políticos e partidos fidelidade a programas são bandeiras antigas da sociedade. Assim como o fortalecimento da chamada democracia direta, que dê à população outras formas de interferir nos rumos de sua cidade, seu estado e do país – por meio de ferramentas como audiências e conferências públicas, plebiscitos e referendos. Ainda em 2010, o Instituto Ethos divulgou estudo – em parceria com a Transparency International – segundo o qual o setor privado gastou R$ 4,6 bilhões em financiamento de campanhas nas eleições de 2006 e 2008. “Quem paga as campanhas têm um poder enorme sobre os políticos. Esse é o nó do quadro político brasileiro”, declarou na época o presidente da entidade, Oded Grajew. O tema da reforma política com participação social também esteve presente nas manifestações deste ano e passou a fazer parte da “agenda positiva” proposta pela presidenta Dilma Rousseff . O Congresso, entretanto, pôs em prática um ve-
lho chavão do manual dos proteladores: formou uma comissão, e não chegou a uma proposta contundente. O ano legislativo está perto de acabar e o máximo que o grupo de trabalho da reforma política tem a apresentar é um texto que pouco muda na questão principal: o dinheiro para as campanhas. O desinteresse da maioria dos parlamentares ficou evidente quando o quesito financiamento só foi discutido no apagar das luzes, faltando duas sessões para o prazo de entrega do anteprojeto. A proposta de emenda à Constituição (PEC) que saiu do grupo foi entregue no início de novembro ao presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), que disse esperar votá-la até março. Diante disso, movimento formado por uma centena de entidades resolveu intensificar a coleta de assinaturas para um projeto de iniciativa popular sobre o tema. A ideia é alcançar 1,4 milhão de assinaturas – este ano já foram recolhidas 400 mil até novembro – e apresentar o projeto ao Congresso, como aconteceu com a lei da ficha limpa. Participam da empreitada organizações como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), União Nacional dos Estudantes (UNE), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Movimento Contra a Corrupção Eleitoral (MCCE). A CNBB encaminhou carta aos bispos pedindo às dioceses espalhadas pelo país
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POLÍTICA
que peçam adesões ao projeto. Também a OAB promete usar suas seccionais para ampliar a conscientização entre a população. “A partir de agora, embora contemos com o apoio de vários parlamentares, o Congresso é o último local que procuraremos. O apoio que queremos é o das ruas e das assinaturas populares”, disse o coordenador da mobilização, chamada de Coalizão pelas Eleições Limpas, o juiz Márlon Reis.
Representação distorcida
O financiamento privado de campanha é tido como ponto-chave porque, conforme ficou claro na movimentação do Congresso nos últimos meses, a influência do poder econômico passa pelo período eleitoral e vai se estender ao longo dos quatro anos de cada legislatura. O lobby vai dos corredores do Parlamento aos gabinetes de órgãos públicos sob influência dos mandatários. Estão
aí para comprovar isso a movimentação de empresários do meio urbano e rural, do ramo industrial, financeiro e das telecomunicações, atuando fortemente para aprovar artigos de seus interesses em projetos sobre a regulamentação da terceirização, o combate ao trabalho escravo, a demarcação de terras indígenas e o Marco Civil da Internet. Além do poder de pressão de fora para dentro, esses segmentos investem para REVISTA DO BRASIL
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POLÍTICA
ça e objetivos para enfrentar as discussões sobre os temas e convicção em tudo o que defendemos.”
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Defesa e conservadorismo
constituir sua próprias bancadas como as empresariais, de ruralistas e de evangélicos, com poder de atrasar ou modificar matérias conforme suas conveniências. O poder de fogo é o dinheiro. Uma das principais denúncias do semestre está relacionada ao Projeto de Lei 4.330, de 2004, que regulamenta a terceirização de mão de obra. O PL é objeto de críticas por parte das centrais sindicais e de especialistas em relações de trabalho, inclusive, por magistrados do Tribunal Superior do Trabalho (TST). O corpo a corpo partiu de empresários que contratam e que vendem serviços terceirizados, depois que as tentativas de votação do PL, no plenário da Câmara, falharam. Críticos do lobby associam o assédio a possíveis financiamentos de campanhas em 2014. Para o cientista político Alexandre Ramalho, da Universidade de Brasília (UnB), relações entre empresas financiadoras de campanha e matérias legislativas de seu interesse já viraram rotina. Ele cita como exemplos a batalha do mercado financeiro, em 2007, durante a votação que extinguiu a CPMF – incômoda também por permitir o rastreamento de movimentações bancárias. Destaca ain12
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da os lobbies das indústrias das armas, em projetos que tramitam na Comissão de Segurança Pública da Câmara; os das empresas que atuam no ramo de agrotóxicos – cujo foco principal são as votações da Comissão de Agricultura da Câmara e de Meio Ambiente do Senado; e o das indústrias de cigarros e bebidas alcoólicas. O ex-gerente de toxicologia da Anvisa Cláudio Meirelles, exonerado no final do ano passado, havia denunciado um esquema de corrupção para aprovar, de forma mais célere, princípios ativos desses produtos. E criticou a pressão sofrida no Executivo por parte de alguns deputados e senadores. “Muitos parlamentares têm campanhas financiadas por esse segmento e estão todos os dias na Anvisa questionando o trabalho dos técnicos, procurando saber porque determinado produto foi proibido. Eles nos procuram para falar sobre os assuntos abertamente e argumentam que atrasos prejudicam a produção”, enfatizou. O deputado Moreira Mendes (PPS-RO), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, evitou falar sobre a relação entre o financiamento dessas a campanhas e a atuação dos parlamentares, mas não negou a ligação. “Temos for-
Ainda que a passos lentos, o financiamento privado de campanha, antes intocável dentro do Congresso, passou a ser discutido abertamente. “Não há como, num país como o Brasil, da forma como as coisas têm acontecido, não haver financiamento de campanha pela iniciativa privada. Basta dar uma olhada no plenário da Câmara. São vários os segmentos representados pelos parlamentares presentes”, ressaltou, apontando para os colegas, o deputado Júlio Campos (DEM-MT), que defende o financiamento privado, mas admite um modelo de financiamento misto (público e privado) como opção. “Todos os sinais que o Parlamento tem dado são de enorme conservadorismo e comodismo em relação ao sistema político. Como os deputados que cobram alterações nas regras são eleitos por essas regras, preferem não reformá-las”, reclamou o senador Jorge Viana (PT-AC). Um dos principais articuladores do Congresso e nome citado por trás da maioria das reuniões entre parlamentares e empresários, o líder do PMDB na Câmara, deputado Eduardo Cunha (RJ), se diz contrário ao financiamento privado, mas tem postura controversa. Diz não ver como passar a matéria, que o problema é “questão cultural” – e afirma aceitar o financiamento privado até que as normas sejam mudadas. Ou seja, concordará, segundo ele mesmo, para sempre, já que não acredita em mudanças das “regras do jogo político”. Cunha tem grande influência sobre a bancada do PMDB e de partidos menores, principalmente onde estão parlamentares evangélicos. É conhecido por sua habilidade em obter recursos para campanhas eleitorais e tem trânsito em diversos setores econômicos. “Não acho que está correto o entendimento de que quem tem suas campanhas financiadas por empresas estará preso a essas empresas ao longo do mandato. Seria coisa de deputado inexperiente, e quem é bobo ou inexperiente não consegue passar mais do que dois anos aqui dentro.”
TVT
Canal 13 NET Digital: Grande S. Paulo. Canal UHF 46: Mogi das Cruzes No site: tvt.org.br
As polícias em xeque “Por que o senhor atirou em mim?” “Onde está Amarildo?” Perguntas emblemáticas de um cotidiano sombrio vivido nas periferias
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unca os agentes públicos que deveriam trabalhar para garantir a segurança da população foram tão questionados. Dados recém divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, no Brasil, os policiais estão matando e morrendo numa proporção muito superior a qualquer padrão internacional. A cada dia, pelo menos cinco pessoas morrem vítimas de intervenção policial. Uma dor que atinge principalmente os corações da periferia, destrói famílias e leva dor e medo aos jovens, sobretudo negros. Essa violência, no entanto, conta com o apoio de parte da sociedade, como aponta Angela Mendes de Almeida, coordenadora do Observatório de Violências Policiais da PUC-SP, e integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e do Coletivo Merlino: “Hoje, o inimigo interno da Polícia Militar, da mentalidade da Polícia Militar, são os pobres, pretos na sua grande maioria. Na verdade, eu acho que não é a mentalidade só da Polícia Militar, é a mentalidade da sociedade brasileira. Porque uma parte imensa da sociedade aceita esse absurdo da tortura do outro. E o outro é o pobre”. De todos os debates que se formam sobre o tema e que muitas vezes ressurgem nos momentos de comoção social, tem se destacado a questão da desmilitarização da polícia. Mas o que isso significa? Policiais sem armas ou mesmo sem farda? A resposta é não. Desmilitarizar significa romper com a doutrina imposta nos anos de chumbo da ditadura. E com a ideia de que o cidadão Adilson Paes de Souza
é um inimigo em potencial. Para o advogado e professor de Direito Penal José Nabuco, “a condição de militar da polícia leva a uma série de abusos, a uma tradição de subcultura da violência inaceitável no Estado democrático de direito”. O debate começa a ecoar dentro da própria corporação militar. Segundo o coronel da reserva da Polícia Militar do estado de São Paulo Adilson Paes de Souza, desmilitarizar é desarmar essa doutrina de segurança nacional e formar policiais mais comprometidos com os direitos humanos. “Há um descompasso entre o ensino curricular dos Direitos Humanos na corporação. Muitos temas relevantes não constam nesse currículo. A carga horária é baixa. São apenas 90 horas.” Para a população periférica, a polícia que previne é a mesma que agride e mata. Por quê? Afinal, quem são esses homens? Como atuam e a partir de quais princípios? Como são treinados e supervisionados? Quais motivos levam alguns policiais a encarar cidadãos, principalmente os jovens negros, como inimigos em potencial? As respostas para estas e outras questões podem ser conferidas no programa Melhor e Mais Justo, que vai ao ar todas as quintas-feiras, às 19h30 na TVT. Angela Mendes de Almeida
José Nabuco
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POLÍTICA CARLOS HUMBERTO/SCO/STF
A justiça eo homem mau Seja lá o que move o presidente do STF, sua conduta é reprovada inclusive por gente séria do meio jurídico
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o longo de todo o julgamento da Ação Penal 470, não faltaram decisões espetaculares por parte de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), sobretudo de seu presidente, Joaquim Barbosa. Na mais recente, ao determinar a prisão de 12 dos 25 réus do processo em pleno feriado da República, o presidente da Corte Suprema provocou vários tipos de reação: a dos deslumbrados com o espetáculo, estimulados pela cobertura recorrente em meios tradicionais de comunicação, a dos que acreditam na Justiça e a dos indignados com procedimentos adotados pelo magistrado. Nesse caso, chama a atenção 14
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o incômodo no próprio meio jurídico com algumas decisões. Personalidades do Judiciário, preocupadas com possíveis abusos de poder por parte do presidente do STF, expressaram sua posição, em manifesto público distribuído no dia 19 de novembro. O texto foi assinado por dezenas de acadêmicos, intelectuais, advogados e juristas com o nome historicamente associado à defesa da democracia, entre eles Dalmo Dallari e Celso Bandeira de Mello – este último disse considerar Barbosa “uma pessoa má”. “Ele é um homem mau, com pouco sentimento humano”, comentou Bandeira de Mello. “Falo isso sem nenhum preconceito com a pessoa dele, pois já o convidei para jantar na minha casa. Mas
o que ele faz é simplesmente maldade”, reiterou. O ex-governador de São Paulo Claudio Lembo chegou a considerar num programa de TV que o “linchamento” praticado por Joaquim Barbosa e as ilegalidades das prisões poderiam levar ao seu impeachment. “Nunca houve impea chment de um presidente do STF. Mas pode haver, está na Constituição. O poder Judiciário não pode ser instrumento de vendeta (termo originalmente italiano para ‘vingança’)”, afirmou. No manifesto, os signatários afirmam que a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal de mandar prender os réus da AP 470 no dia da proclamação da República expõe “claro açodamento” e falam em ilegalidade. “Sem qualquer
POLÍTICA
razão meramente defensável, organizou-se um desfile aéreo, custeado com dinheiro público e com forte apelo midiático, para levar todos os réus a Brasília. Não faz sentido transferir para o regime fechado, no presídio da Papuda, réus que deveriam iniciar o cumprimento das penas já no semiaberto em seus estados de origem”, diz o documento. “Só o desejo pelo espetáculo justifica. Não escrevemos em nome dos réus, mas de uma significativa parcela da sociedade que está perplexa com a exploração midiática das prisões e temem não só pelo destino dos réus, mas também pelo futuro do Estado Democrático de Direito no Brasil.” O texto alerta que o procedimento relativo à execução da pena constituiu “erro inadmissível que compromete a imagem e a reputação do Supremo Tribunal Federal e já provoca reações da sociedade e meio jurídico”. Para Bandeira de Mello, o plenário do STF poderia inclusive fazer uma censura pública a Barbosa. Entidades representativas da magistratura também expressaram críticas ao comportamento de Barbosa. Casos da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), da Associação dos Juízes Federais do Bra-
sil (Ajufe), da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O presidente da AMB, João Ricardo dos Santos Costa, considerou um “canetaço” a decisão do presidente do STF de fazer pressão para substituir o juiz da Vara de Execuções Penais responsável pelos presos em Brasília. Em outra nota, a presidenta da AJD, K enarik Boujikian, afirma que “o povo não aceita mais o coronelismo no Judiciário”.
Precipitação
As confusões começaram quando Barbosa obrigou réus a tomar um avião e seguir para o Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal, quando vários deles esperavam ficar em penitenciárias nos seus estados. O local não estava preparado para recebê-los e, num primeiro momento, mesmo os condenados ao regime semiaberto – caso dos ex-dirigentes do PT – tiveram de ficar numa ala específica para detentos do regime prisional fechado. Além da forma como a prisão foi feita, do desconforto observado entre ministros do STF com a decisão tomada de forma monocrática pelo presidente, a situação passou a piorar com o agravamento do esta-
do de saúde do deputado José Genoino. Operado em julho e vítima de um acidente vascular cerebral em agosto, Genoino já tinha sua situação clínica publicamente conhecida, antes mesmo do término do julgamento. Ainda assim, somente depois que o deputado foi levado às pressas para o Instituto Cardiológico do Distrito Federal com suspeita de infarto, foi concedida – ainda de maneira provisória – autorização para que ficasse num hospital ou na casa de algum parente. Genoino precisa tomar anticoagulantes, tem picos elevados de pressão e seu estado requer cuidados. No dia 24, ao sair do Incor, foi para a casa da filha Mariana, que vive em Brasília. “Quando recebeu o mandado de prisão ele tinha recebido alta hospitalar, não alta médica. Precisa tomar vários remédios por dia e fazer uma rotina de exercícios de respiração e fonoaudiológicos”, disse a outra filha, Miruna. Celso Bandeira de Mello assinalou ainda dois fatos que considerou graves e que, por contrariar a legislação, poderiam motivar o afastamento de Barbosa: o encaminhamento para o regime fechado de pessoas que haviam sido condenadas ao semiaber-
SÉRGIO CASTRO/AE
Não escrevemos em nome dos réus, mas de uma significativa parcela da sociedade que está perplexa com a exploração midiática das prisões e teme também pelo futuro do Estado Democrático de Direito no Brasil
Dalmo Dallari
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JF DIORIO/AE
POLÍTICA
ARGUMENTOS CONTRA O MINISTRO Celso Bandeira de Mello assinala dois fatos que poderiam motivar o afastamento de Barbosa: o encaminhamento para o regime fechado de pessoas condenadas ao semiaberto e a expedição de mandados de prisão em pleno feriado da Proclamação da República sem as respectivas cartas de sentença
to e a expedição de mandados de prisão em pleno feriado da Proclamação da República sem as respectivas cartas de sentença (emitidas 48 horas depois). No Congresso, alguns senadores chegaram a discutir em reservado a possibilidade de iniciar um movimento para, eles próprios, pedirem o impeachment de Barbosa. Foram, porém, desestimulados pelo governo. O Palácio do Planalto não se pronuncia oficialmente, mas teme uma crise institucional, o choque entre poderes, e não descarta que, em meio a tantas reações, Barbosa seja transformado em “vítima” pelos meios de comunicação que lhe dão guarida. O ministro já foi, de fato, acusado pelos colegas de tentar se vitimizar quando seus atos não saem conforme o planejado. “Ele sempre gostou de usar recursos para se fazer de vítima. Fez isso com sua doença na coluna, tempos atrás, e agora segue no mesmo estilo”, comentou um ministro aposentado. Até mesmo dentro de casa o clima era de desconforto. “Foi uma atitude açodada. Não havia motivo (para a decretação das prisões em pleno feriado)”, afirmou o ministro Marco Aurélio de Mello. 16
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Contatos e planos
Outra trapalhada de Barbosa diz respeito à substituição do juiz da Vara de Execuções Penais (VEP) do Distrito Federal. Apesar do titular da Vara ser Ademar Silva de Vasconcelos, Barbosa pediu para que fosse designado, para o caso dos réus da AP 470, o juiz substituto Bruno André da Silva Ribeiro. Ribeiro é tido como um magistrado preparado e elogiado por muitos. Leciona Direito Penal e Direito ProcessualPenal no Instituto Brasileiro de Direito Público (IBDP), que tem como um dos sócios o ministro Gilmar Mendes. Bruno é filho de um ex-deputado do Distrito Federal, Raimundo Ribeiro, que ocupou cargos no governo Fernando Henrique Cardoso e tem participação atuante no PSDB local. Além disso, é ligado ao ex governador José Roberto Arruda – preso e cassado em 2009. Sua mãe, a servidora pública Luci Rosane Ribeiro, constantemente posta nas redes sociais mensagens com críticas ao PT, e chegou a publicar uma foto de Joaquim Barbosa, elogiando a condução do ministro no julgamento. “A indicação do
nome do meu filho não tem qualquer conotação de ordem político-partidária”, sustentou o ex-deputado. Os contatos do presidente do STF com o juiz Bruno Ribeiro foram mantidos desde antes da decretação da prisão dos condenados. Foi para ele que Barbosa encaminhou documentos referentes ao processo quando decretou a prisão. Como ele estava entrando em férias, a incumbência ficou com o titular da Vara, Ademar Vasconcelos. O presidente do STF chegou a afirmar que as informações que vinha recebendo do juiz titular eram diferentes das que lhe foram repassadas depois sobre a situação clínica de Genoino. A interpretação de alguns ministros e juízes que defendem a postura do titular da Vara é de que Barbosa poderia, assim, usar Vasconcelos como bode expiatório caso Genoino viesse a ter um fim trágico por causa da sua prisão intempestiva. Em meio a essa trama, correm no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) especulações de que Barbosa pedirá aposentadoria do cargo até abril do próximo ano, um sinal de que seu “açodamento” seria calculado. Embora ele negue, comenta-se que poderá disputar uma vaga ao Senado Federal pelo Rio de Janeiro – a legenda provável seria o PSB de Eduardo Campos. Outra possibilidade, noticiada recentemente pelo jornalista Wilson Lima, do portal IG em Brasília, é a aproximação com o senador mineiro Aécio Neves, postulante do PSDB à Presidência da República. Poderia ser seu vice, ou anunciado com provável ministro. “O tucanato, oficialmente, nega qualquer tentativa de aproximação. Mas nos últimos dois meses, conforme os próprios tucanos, os encontros entre Aécio e Barbosa têm sido cada vez mais frequentes em jantares e eventos sociais em Brasília”, anota o jornalista. Ele lembra que em abril o presidente do STF, mineiro de Paracatu, foi homenageado com a Medalha da Inconfidência pelo governo de Minas Gerais. Com apuração de Hylda Cavalcanti, Paulo Donizetti e Vitor Nuzzi
LALO LEAL
Direitos humanos na TV, nada a comemorar
Enquanto o mundo celebra os 65 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a televisão brasileira segue a desprezá-la solenemente
“K
ing Kong, um macaco que, depois que vai para a cidade e fica famoso, pega uma loira. Quem ele acha que é? Jogador de futebol?”, afirmou Danilo Gentili na TV. A um telespectador, que contestou o caráter racista da frase pela rede social, respondeu de forma a deixar ainda mais claro o seu preconceito: “Quantas bananas você quer para deixar essa história pra lá?” O moço é reincidente. Sobre a polêmica da futura estação do metrô paulistano no bairro de Higienópolis, habitado por muitos judeus, disse: “Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. Desculpou-se depois, mas o estrago já estava feito. O que esse e tantos outros apresentadores na TV brasileira fazem é violar os direitos humanos, lembrados anualmente no dia 10 de dezembro – data da publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e que não é apenas comemorativa. É um momento importante para lembrar direitos ainda violados pelo mundo, entre eles o do respeito à dignidade humana e a não discriminação. A TV, que poderia ser um instrumento na defesa desses direitos, tornou-se, no Brasil, o seu oposto. Basta assistir aos programas policialescos em rede nacional incentivando a violência ou àqueles regionais que, na hora do almoço, tripudiam sobre a desgraça alheia. Sem falar no desprezo com a dignidade da mulher, transformada em objeto nos auditórios, novelas e propagandas, e as recorrentes piadas em torno da homossexualidade.
Correndo solta, sem qualquer regulação, a TV se vê livre para atacar direitos humanos impunemente. Não existem, como na Europa, órgãos reguladores com poder para impor limites às emissoras. Não se trata de censura. Eles agem sempre a posteriori, a partir de demandas do público. A pesquisadora Bia Barbosa realizou um importante trabalho sobre as violações de direitos humanos e a regulação de conteúdo da TV no Brasil, comparando com o que ocorre na França e no Reino Unido. Analisou casos de preconceito e ofensa contra grupos minoritários, violação dos direitos das mulheres, discriminação religiosa, banalização da violência e linguagem depreciativa. As conclusões são desoladoras. No Brasil, cabe ao governo de turno aplicar as poucas regras que existem, dispersas por vários ministérios e ultrapassadas historicamente, como é o caso do Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Mesmo assim, as normas são pouco aplicadas, à medida que os governos evitam, por interesses políticos, atritos com os proprietários das empresas de TV. Na França e no Reino Unido os mecanismos de regulação são ágeis e as violações, punidas com rigor. As multas são calculadas em função do faturamento dos canais. No Reino Unido, há um teto de 250 mil libras ou 5% da receita do canal. Na França, podem chegar a 3% da renda de uma operadora, e a 5% em casos de reincidência. Bia Barbosa colheu exemplos interessantes: a Belive TV, um canal pago inglês dedicado a mostrar soluções de problemas financeiros e de saúde por meio da fé, com pastores receitando sabonetes milagrosos, foi multado em 25 mil libras e obrigado a parar com o charlatanismo. Em 2012, outro canal religioso recebeu multa de 75 mil libras por realizar campanha dizendo que em troca de doações de mil libras, oferecia um “presente especial” e uma oração para a saúde, a prosperidade e o sucesso. Em meados deste ano, o inglês Channel 4 exibiu uma série de programas em que a apresentadora Daisy Donovan percorre vários países do mundo revelando como é a televisão local. Um dos episódios tratou do Brasil. Daisy mostrou os programas Miss Bumbum, veiculado pelo canal pago Multishow – do sistema Globosat; Pânico, pela RedeTV!; e o policial Na Mira, da TV Aratu, filiada do SBT na Bahia. Depois de se surpreender com o concurso de beleza, ela perguntou: “Se a TV brasileira é capaz de tratar uma mulher dessa forma, haveria alguma barreira que ela não ultrapassaria?” Não há. É assim que a barreira dos direitos humanos é ultrapassada todos os dias. REVISTA DO BRASIL
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TRABALHO A aceleração do ritmo de trabalho aumentou os casos de LER/Dort
ONDE A MODERNIZAÇÃO NÃO CHEGA O mundo do trabalho passou por grande evolução tecnológica e produtiva nas últimas décadas. Mas ainda provoca velhos acidentes, além de novas doenças ligadas ao estresse e à aceleração da produção Por Sarah Fernandes e Vitor Nuzzi
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TRABALHO
FOTOS: PETER DAZELEY/GETTY IMAGES E CAVAN IMAGES/GETTY IMAGES
Se o período comparado for o dos últimos 25 anos, o número de acidentes cai quase 30%. Mas o total de doenças relacionadas ao trabalho sobe 200%
O
A depressão virou doença recorrente em várias categorias
Ministério da Previdência divulgou em outubro os dados mais recentes sobre saúde e segurança no trabalho. O número de acidentes em 2012 caiu um pouco, mas superou a casa dos 700 mil pelo quinto ano seguido – eram 400 mil dez anos atrás. As mortes no trabalho somaram 2.700. Esses são os números oficiais, que indicam apenas os registros feitos pelas empresas, e certamente ficam abaixo dos reais, uma vez que parte das ocorrências não é notificada. O cenário mostra que as mudanças ainda tardam a chegar no
campo da saúde e da segurança, embora sejam identificados progressos em alguns setores, com acordos tripartites visando à prevenção. Mas o “novo” mercado de trabalho intensificou o aparecimento de doenças, ligadas principalmente ao estresse e à aceleração do processo produtivo. Se o período comparado for o dos últimos 25 anos, o número de acidentes cai quase 30%: de 992 mil, em 1988, para 705 mil em 2012. Mas o total de doenças relacionadas ao trabalho sobe 200%: de 5 mil para 15 mil. Esse crescimento pode estar relacionado à expansão da mão de
obra. O país registrou 47,5 milhões de trabalhadores formais no ano passado, ante 29,5 milhões uma década atrás. Nos anos 1990, esse número oscilava entre 23 milhões e 25 milhões. A expansão do mercado de trabalho é acompanhada também pela do sistema previdenciário, que hoje alcança mais de 60 milhões de contribuintes. “Nos períodos de crise econômica (entre meados dos anos 1980 e o início dos anos 2000) o número de ocorrências até diminuiu, mas porque o número de trabalhadores se reduziu”, observa o médico do trabalho Ildeberto Muniz, que pesREVISTA DO BRASIL
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TRABALHO
quisa o tema pela Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) de Botucatu. “As inovações tecnológicas contribuíram também para diminuir o número de trabalhadores, mas criam novas possibilidades de acidentes. Por exemplo, uma colheitadeira de cana reduz o número de trabalhadores e, por consequência, de acidentes com as ferramentas, mas quando acontece um acidente é muito mais grave”, acrescenta. Das 705 mil ocorrências registradas em 2012, quase metade vem do setor de serviços: 345 mil. Foram 221 mil na indústria de transformação e 63 mil na construção civil. Os casos mais comuns são os relativos a ferimentos, fraturas e traumatismos em punho e mão. Mas as estatísticas da Previdência já incluem casos como “reações ao estresse e transtornos de adaptação” e “episódios depressivos”. Nos últimos anos, o total de afastamentos do trabalho em consequência de transtornos mentais e comportamentais manteve-se entre 12 mil e 13 mil.
“A concessão dos benefícios pagos pela Previdência tem muitos vieses. Há um grande número de pessoas que teriam direito a eles, mas não conseguem acessá-los. Então, uma diminuição não significa que os acidentes se reduziram, e sim que a concessão de benefícios caiu”, observa a pesquisadora Maria Maeno, da Fundacentro, autarquia especializada em pesquisas relacionadas a saúde ocupacional ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Para ela, as doenças, na verdade, têm aumentado. “E algumas ainda mais, mas não conseguimos mensurar, como as cardiovasculares e as de saúde mental, devido principalmente a novas tecnologias, que aceleraram a vida.”
Violência organizacional
A bancária E.L., que prefere não se identificar, adquiriu lesões crônicas nos braços e mãos ocasionadas pelos esforços repetitivos da rotina acelerada. Há oito anos convive com um dos problemas classificados como LER/Dort (Lesão por
Acidentes de trabalho no Brasil Ano
Acidentes
1990 1995
Doenças
Mortes
693.572
5.217
5.355
424.137
20.646
3.967
2000
363.868
19.605
3.094
2005
499.680
33.096
2.766
2010
709.474
17.177
2.753
2011
720.629
16.839
2.938
2012
705.239
14.955
2.731
Fonte: Ministério da Previdência Social
esforços repetitivos/Doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho) e, para para controlar as dores, usa morfina diariamente. Apesar disso, foi demitida em maio, depois de uma cirurgia e uma série de internações. “É um tratamento pesado, com intervenções para o bloqueio da dor, mas continuo sofrendo com ela.
Participação pode reduzir acidentes Incluir os trabalhadores das empresas na elaboração das políticas de redução de acidentes pode ser eficiente para que elas mostrem resultados efetivos, e não apenas cumpram normas exigidas pela legislação, segundo a especialista em segurança do Trabalho Maria Maeno, da Fundacentro. “Os profissionais que fazem os planos são contratados pelas empresas, que muitas vezes os utilizam para legitimar seus interesses. Tendo participação dos trabalhadores, há a possibilidade de esses documentos refletirem mais os reaisriscos, perigos e acidentes dentro das empresas”, afirma. Ela avalia que o INSS também tem papel importante para ajudar a reduzir os acidentes. “Digamos que haja aumento na demanda de benefícios por acidentes de trabalho. Uma seguradora pública deveria se questionar: por que estamos tendo mais acidentes? O 20
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INSS não mexe na prevenção, não se articula com outros órgãos para prevenir acidentes, mas muda os critérios para concessão de benefícios.” É possível dizer que o número de acidentes de trabalho no Brasil se estabilizou? Para fazer essa avaliação seriam necessários números e pesquisas, mas isso não existe. Os números disponíveis são os de benefícios do INSS por incapacidade, e eles não refletem a realidade das empresas. Por quê? Porque se tem muitos vieses na concessão desses benefícios e há um grande número de pessoas que teriam direito, mas não conseguem acessá-los. Então, se você tem uma diminuição não significa que os acidentes se reduziram, e sim que a concessão de benefícios caiu.
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O INSS se comporta como uma seguradora privada e avalia apenas se está concedendo muito ou pouco, sem levar em conta a demanda. Na Constituição Federal há um inciso que diz que a previdência social, junto com saúde e assistência social, forma o tripé da seguridade social. Digamos que haja aumento na demanda de benefícios por acidentes de trabalho. O que uma seguradora privada faria? Mudaria o critério de concessão. Mas uma seguradora pública deveria questionar: por que estamos tendo mais acidentes? O nível de atuação do INSS é diferente. Ele não mexe na prevenção, não se articula com outros órgãos para prevenir acidentes e doenças, mas, por outro lado, muda os critérios para concessão de benéficos. Nesse contexto, em que setores o Brasil precisa avançar?
Em todos. Porque nossa avaliação qualitativa diz que a situação está muito difícil. E que as questões de saúde do trabalhador são cada vez mais burocratizadas e postas em segundo plano. Como as empresas podem contribuir para reduzir os acidentes de trabalho? É preciso ter participação dos trabalhadores. Tudo o que se faz em uma empresa para reduzir acidentes depende de uma concepção básica: acontecem muitos acidentes porque meu sistema é inseguro ou porque os trabalhadores são distraídos e pouco capacitados? A maioria das empresas acha que é porque os trabalhadores são distraídos e não têm capacitação. Isso é inócuo, porque as pessoas se distraem várias vezes por dia, é da natureza humana. E não adianta dizer que uma coisa é perigosa se não se criam con-
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dições para ele evitar o perigo. É preciso, então, trabalhar de outra maneira, tendo em vista que o sistema tem de oferecer o máximo de segurança, e isso custa dinheiro. As empresas defendem que os trabalhadores são responsáveis pelos acidentes, mas é o sistema que não oferece a segurança necessária. E quanto às doenças do trabalho, se mantêm estáveis? Algumas doenças devem ter aumentado, mas não conseguimos mensurar, como as cardiovasculares, devido principalmente às novas tecnologias, que provocaram um aceleramento da vida. Aquilo que deveria diminuir a carga de trabalho aumentou, porque as empresas estão querendo cada vez mais lucros, e por isso aceleram o ritmo e reduzem o número de trabalhadores. Hoje se trabalha muito mais e
sivas e o assédio moral como graves problemas a serem superados. “As metas são abusivas e mudam no meio do processo. Se hoje um bancário vendeu 30 cartões, mês que vem vai ter de vender 70. Além disso, as metas são as mesmas em uma agência de um grande centro e de uma região periférica, mesmo sendo o contexto socioeconômico diferente”, observa a diretora. Em decorrência disso, 84% dos bancários declararam ao sindicato que têm problemas de saúde com frequência acima do normal – o estresse é citado por 65% dos entrevistados. “Sensação de tensão permanente, contato direto com o público, baixa tolerância e exposição do erro ocasionam o estresse, que por sua vez causa dores de cabeça, dores de estômago, mal-estar... Tudo isso causa transtorno mental”, relata Marta. “A pessoa se sente mal, achando que o problema é dela. Isso é uma violência organizacional.” Resultado da campanha salarial deste ano, foi criado um grupo de trabalho para discutir as causas do adoecimento no setor. Os estragos emocionais com origem no
de forma mais intensa que há 20 anos. Estamos acelerando cada vez mais, e isso custa para as pessoas: causa falta de sono, estresse, ansiedade... E isso causa problemas de saúde mental, doenças cardiovasculares e hipertensão. Que categorias se destacariam por esses problemas? Os bancários são um exemplo. A reestruturação do sistema financeiro foi brutal, uma das mais radicais. Os trabalhadores de teleatendimento também. Eles sofrem, mas são mais jovens que os bancários e ficam menos tempo na função, então as doenças acabam não acontecendo durante o período na empresa. No comércio também, pois se tem muitas metas e medições de produtividade. As metas, então, acabam sendo fonte de doenças?
trabalho também são um problema marcante do segmento da educação. Estudo feito em 2010 pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) com quase mil profissionais mostrou que 27% tiveram de se afastar do trabalho. Para 57%, o principal motivo foi a depressão.
Responsabilidade coletiva
Reduzir acidentes e adoecimento no trabalho exige esforços conjuntos, de diferentes setores da sociedade. Para Maria Maeno, da Fundacentro, as empresas têm papel importante nesse processo. “A maioria acha que os acidentes acontecem porque os trabalhadores são distraídos e não têm capacitação, e não porque seu sistema é inseguro.” Na tentativa de reverter o problema, uma série de normas regulamentadoras exige que no Brasil as empresas elaborem planos de segurança do trabalho. “Para atender a uma necessidade cartorial, as empresas contratam pessoas para elaborar os documentos, mas ninguém que é contratado pela empresa vai dizer
Sim. Elas são inalcançáveis. As pessoas são cobradas e sabem que não conseguem dar conta. Isso acaba sendo um pretexto para as empresas mandarem embora ou discriminarem quem não lhes interessa. Os programas de prevenção de acidentes de trabalho elaborados pelas empresas funcionam? Por lei, existe um órgão dentro das empresas responsável pela segurança e saúde do trabalhador. Só que os profissionais que fazem os planos são contratados pelas empresas, que muitas vezes utilizam esses profissionais para legitimar seus interesses. Só é possível ter uma melhoria nas condições de trabalho se houver um contraponto. Tendo participação dos trabalhadores há a possibilidade de esses documentos refletirem mais os reais riscos, perigos e acidentes dentro das empresas.
DORIVAL ELZE/CUT-SP
Sempre estou com dor”, conta. “Depois dos afastamentos acabei sendo transferida para um cargo em que não tinha o que fazer e ficava só esperando o tempo passar. Isso deu origem à minha depressão. É frustrante. Sinto que estou completamente sem saída.” De acordo com a secretária de Saúde e Condições de Trabalho do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Marta Soares, a situação de E.L. não é uma exceção: os casos de LER/Dort e a depressão são transtornos de saúde recorrentes entre os trabalhadores. “A partir do momento em a você adquire a LER/ Dort, não produz da mesma forma que quem está em uma situação de saúde melhor. Seu ritmo já não é o mesmo e você adoece psicologicamente por não aceitar essa situação”, diz. Os motivos principais para o aparecimento das doenças entre os bancários são a aceleração do ritmo de trabalho, a cobrança excessiva pelo cumprimento das metas e o assédio moral. Segundo um levantamento do sindicato, sete em cada dez profissionais apontam as metas abu-
Maeno: “O INSS se comporta como uma seguradora privada”
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TRABALHO
GEYSON MAGNO/SAMBAPHOTO
De 1988 a 2012, morreram 85 mil trabalhadores em decorrência de acidentes
que existem riscos dentro dela. Só é possível ter melhorias nas condições de trabalho se tiver um contraponto”, diz a especialista. O coordenador da Secretaria de Saúde, Condições de Trabalho e Meio Ambiente do Sindicato dos Químicos do ABC, José Freire da Silva, confirma a situação. “Temos encontrado programas de segurança que são um copia-e-cola. Já chegamos ao absurdo de encontrar em uma empresa o programa com o nome de outra. A preocupação é apenas ter o que a lei exige”, avalia. “Nas fábricas, o trabalhador continua, por exemplo, deixando a máscara pendurada dentro do galpão enquanto o turno da noite trabalha, exposto a sujeira tóxica.” Para Silva, não é possível dizer que o número de acidentes na indústria se reduziu. As principais ocorrências, segundo ele, são quedas, torções e cortes. 22
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Quando o assunto são as doenças “modernas”, as mais comuns são tendinite, bursite e síndrome do túnel do carpo (todas LER/Dort). Na sequência, vêm problemas de coluna, também causados pelos movimentos repetitivos. “No passado fomos muito pautados pela questão das contaminações. Intensificamos o trabalho para resolver a situação, a ponto de hoje não termos praticamente nenhum caso de câncer ocupacional. Os problemas têm migrado de tipologia”, conta Silva. “Com a automação, o trabalhador tem de produzir mais e mais rápido. Esse processo faz muita gente adoecer.” Os governos municipais, estaduais e federal também têm responsabilidade pela segurança do trabalhador, e não apenas na aprovação de normas e na fiscalização do seu cumprimento. O médico Ildeberto Muniz lembra que a concessão de subsídios públicos para atrair empresas para
determinada localidade também precisa levar em conta os acidentes de trabalho. “É preciso pensar qual o modelo de desenvolvimento que eu vou escolher para o meu território.” Em abril do ano passado, os Ministérios da Previdência Social, da Saúde e do Trabalho e Emprego lançaram o Plano Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho (Plansat), composto por oito objetivos e dividido em tarefas de curto, médio e longo prazo, além das de caráter permanente. Prevê, por exemplo, a adoção de medidas especiais para atividades com alto risco de acidentes e doenças e a inclusão de conhecimentos básicos sobre prevenção no currículo do ensino fundamental e médio. A elaboração do plano era prevista desde 2004, na Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador. Ela, por sua vez, traz uma série de diretrizes para combater o problema,
TRABALHO
entre as quais estruturação de uma rede de informação sobre o tema, incentivo a educação continuada dos trabalhadores e realização de estudos e pesquisas. “O plano e a política podem contribuir, principalmente se forem abrangentes, levando em conta medidas de prevenção e proteção”, avalia Muniz. “Do ponto de vista do conhecimento técnico, a percepção do que deveria ser feito está bem definida. O problema é na aplicação.”
Em novembro do ano que vem, será realizada em Brasília a 4ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador – a anterior foi em 2005. “A conferência não tem uma periodicidade definida em lei”, lembra o secretário de Saúde da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT, Geordeci Menezes de Souza, que integra a Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador, vinculada ao Conselho Nacional de Saúde.
Ele aponta como avanço a criação das comissões tripartite, que resultaram em normas regulamentadoras. Mas afirma que a uma parte do empresariado ainda não interessa “se o trabalhador morre ou fica com sequelas”. Com isso, acrescenta, a sociedade assume a responsabilidade pelo acidente. “A nossa legislação é muito branda. Quando o trabalhador se acidenta, é simplesmente substituído.”
O Ministério do Trabalho aprovou, em abril, a Norma Regulamentadora 36, conhecida como NR dos Frigoríficos, que exige uma série de adaptações em segurança do trabalho. As doenças por esforço repetitivo são epidêmicas no setor. A NR determina prazo de seis meses a dois anos para as medidas serem implementadas – o prazo é quando a situação requer mudanças estruturais e de instalações. Na ocasião, o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação (Contac-CUT), Siderlei de Oliveira, disse que a norma era um passo importante na “guerra das doenças ocupacionais”. O setor registrou 19 mil acidentes em 2011, com 32 mortes. Pouco mais de seis meses depois, Siderlei avaliou que a implementação era feita aos poucos, com alguma resistência no setor bovino. “Aprovamos uma norma para funcionar”, afirma. Além dos sindicatos, ele acredita que as próprias empresas devem participar da fiscalização, à medida que as indústrias que não adotarem as medidas da NR poderão incorrer em concorrência desleal. Fiscalização é uma deficiência central no Brasil. “O Ministério do Trabalho está sucateado. E o valor das multas não mete medo nas indústrias”, avalia o dirigente. Ele destaca, entre outros itens da NR, o descanso obrigatório
ALF RIBEIRO/OLHAR IMAGEM
Boas práticas
As doenças por esforço repetitivo são epidêmicas em frigoríficos: normas devem ser implementadas
de 10 minutos a cada 50 trabalhados. “Onde não for implementado, as doenças vão aumentar. Acidente vem do esforço repetitivo e rápido.” Um dos acordos mais conhecidos foi fechado em 1995, com renovações a cada dois anos, no setor de máquinas injetoras de plástico do estado de São Paulo. “Tinha um número muito grande de acidentes, perda de mãos, dedos, braços. As máquinas saíam da fabricação e iam para o mercado sem nenhum dispositivo de segurança”, lembra o diretor do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo Lourival Batista Pereira. Hoje, segundo ele,
a máquina “não pode nem participar de uma feira” se não estiver de acordo com as normas de proteção. Dos aproximadamente 348 mil trabalhadores no setor em todo o país (dados de 2011), 152 mil estão em São Paulo. “Depois desse acordo, o número de acidentes foi caindo. Cai em São Paulo e cresce onde não tem acordo”, diz Lourival. Ele também destaca itens como a função das Cipas, que têm poder de interromper o funcionamento de uma máquina com problema, e o treinamento dado aos funcionários. Foi formada uma comissão permanente, que faz reuniões mensais. “A gente vai corri-
gindo os erros que aparecem. Cada vez que renova a convenção, muda para melhor. Foi criada uma nova cultura.” O secretário de Saúde da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM) da CUT, Geordeci Menezes de Souza, destaca a NR 12, sobre segurança no trabalho no setor de máquinas e equipamentos. “A partir da experiência de São Paulo, se aperfeiçoou a fórmula, que é elogiada fora do Brasil. Hoje, a máquina, para ser vendida no Brasil, tem de atender às exigências.” A comissão permanente agora discute com grupos de trabalho para máquinas de marcenaria e padarias e açougues.
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CIDADANIA Trinta mil famílias do terceiro maior conjunto de favelas de São Paulo já foram removidas para os cafundós, enquanto a especulação desfruta de até 1.000% de valorização Por Rodrigo Gomes
O progresso e suas
GANÂNCIAS
O
entorno do córrego Água Espraiada, que nasce no bairro do Jabaquara e deságua no Rio Pinheiros, na região sul da capital paulista, vem passando por intensas transformações. Cinquenta anos atrás, era um fundo de vale que limitava áreas de chácaras e pequenas casas com o riacho, de águas ainda limpas. Há 45 anos, se iniciou um processo de ocupação que culminou no terceiro maior complexo de favelas da cidade. Há 20 anos, pelo menos 68 núcleos de favelas, abrigando cerca de 80 mil pessoas, estavam instalados ao longo do riacho. Em 1996, a região ganhou uma movimentada avenida, que levava o nome do córrego. Suas obras começaram na gestão Jânio Quadros (1985-1988), pararam na 24
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administração de Luiza Erundina (19891992) e foram retomadas e concluídas na gestão de Paulo Maluf (1993-1996), depois de alcançar o título de avenida mais cara do mundo e acrescentar alguns processos por superfaturamento no currículo do ex-prefeito. Em dezembro de 2003, foi rebatizada Avenida Jornalista Roberto Marinho pela prefeita Marta Suplicy. Desde a instalação da via, a região, onde ainda corre o riacho hoje canalizado, passou por um dos mais vigorosos processos de valorização da cidade. Já não se acha mais metro quadrado próximo de R$ 1.000, como em 1996. Hoje, os negócios imobiliários são fechados entre R$ 8.500 e R$ 11 mil o metro quadrado construído. O último passo do processo de elitização, os leilões de terrenos do Departamento de Estradas de Roda-
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gem (DER), onde ainda estavam cerca de 400 famílias, colocam a cereja no bolo do
Para quem vivia ali, a região representava melhor acesso a infraestrutura de transporte, mais oportunidade de trabalho, serviços públicos de melhor qualidade, como escolas e unidades de saúde, enfim, direito à cidade. “Eu vim da Paraíba em 1972, com minha esposa e quatro filhos, todos pequenos. Fomos morar em uma pensão, mas naquele tempo já era muito difícil pagar aluguel com o salário que eu recebia. Uns amigos que trabalhavam comigo disseram para eu vir para cá. Aqui, nós criamos nossos filhos e construímos a vida: tinha emprego e a gente ia a pé trabalhar”, conta o aposentado Francisco de Assis Batista, de 72 anos, morador do prédio Edite 1, onde ficava uma favela. A maior parte das famílias que viviam no Jardim Edite teve destino menos feliz. Muitos receberam R$ 1.500 como indenização e foram viver em áreas de mananciais no extremo sul da cidade. Outros aceitaram ofertas de moradias da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) e foram viver em Cidade Tiradentes, no extremo leste, em
PAULO LIEBERT/AE/2004
DANILO RAMOS/RBA
Operação urbana
RAONI MADDALENA/RBA
LEI DO MAIS FORTE Moradora da Favela do Buraco Quente caminha entre o entulho que dará lugar a habitação de melhor qualidade para população de renda maior
processo iniciado pela remoção de favelas nos anos 1990. No total, cerca de 30 mil famílias já foram removidas, e outras 10 mil terão o mesmo destino em breve. O nascimento dessas comunidades remonta ao ano de 1964, quando o então prefeito Prestes Maia sancionou lei determinando a construção da avenida que ligasse a marginal do Rio Pinheiros ao Jabaquara, nas margens do córrego Água Espraiada. Com isso, muitos terrenos de sítios na região foram desapropriados e tiveram sua titularidade entregue ao DER. No entanto, a avenida não foi construída e as terras “sem dono” tornaram-se atrativo para a ocupação de famílias pobres e de imigrantes vindos do interior paulista, de cidades mineiras e da região Nordeste. Algumas novas, outras que consolidavam situações já iniciadas. Vistas pelo lado de quem lucrou com a valorização, as intervenções são parte da dinâmica social de uma grande cidade. “O que aconteceu na região é o resultado claro do investimento em infraestrutura por parte do Estado, que possibilita à iniciativa privada realizar empreendimentos melhores e maiores, valorizando a região. Não é exclusividade daquele local. É o que ocorre quando há condições para a iniciativa privada investir”, avalia
o presidente do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis de São Paulo (Secovi), Claudio Bernardes.
“GENTRIFICAÇÃO” Removida de Água Espraiada (ao lado), Celina foi morar em Parelheiros REVISTA DO BRASIL
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locais construídos a toque de caixa, em uma região com poucas linhas de ônibus, sem asfalto, creche ou unidade de saúde. Houve ainda os que aceitaram passagem de volta para a terra natal. No período entre 1991 e 1995, tempo que engloba a construção da avenida, a região do centro expandido da capital perdeu 312 mil moradores, de acordo com estudo realizado pela professora titular do Departamento de Sociologia da PUC de São Paulo Lúcia Maria Bógus e por Laura Cristina Ribeiro Pessoa, especialista em Estruturas Ambientais Urbanas pela USP. Enquanto isso, as regiões periféricas – norte, sul e leste – ganharam 504 mil. Segundo elas, o movimento demonstra o processo de “gentrificação”, com a população de uma região substituída por outra de condição econômica mais elevada. O setor privado transformou a região em um local de concentração de prédios de 20 a 40 andares, ao lado das moradias remanescentes de comunidades agora separadas pela avenida. Em dezembro de 2001, na gestão Marta Suplicy, foi aprovada a Operação Urbana Água Espraiada. As principais diretrizes eram a revitalização da região, com propostas que incluíam a melhoria do sistema viário, com o prolongamento da avenida até a Rodovia dos Imigrantes por meio de um túnel e a construção de viadutos sobre cruzamentos importantes e um ligando a via com a marginal do Rio Pinheiros. Só o último foi realizado. Em termos gerais, a lei também previa a prioridade ao transporte coletivo, construção de habitação social e criação de espaços públicos de lazer e esportes. Para o lazer, o único espaço criado após a construção da avenida, com um centro comunitário, quatro quadras poliesportivas e uma pista de skate, foi cedido pelo município ao estado para construção de um pátio de operações do monotrilho. Outra área será o parque linear previsto para as margens do córrego Água Espraiada, de onde serão removidas 8 mil famílias, que prometem não sair sem garantia de receber novas moradias prontas. As ações de habitação são as que estão mais distantes. Foram definidas 26 Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), 26
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FOTOS LUCAS BONOLO/RBA
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mas somente duas áreas foram efetivadas: Jardim Edite, com a construção de cinco torres que formam o conjunto habitacional de mesmo nome, totalizando 252 apartamentos, e Corruíras, que abriga 244 famílias removidas da favela Nova Minas Gerais, ao lado do pátio de trens da estação Jabaquara do Metrô – e que dois meses após a entrega para os moradores
já apresentava problemas estruturais. Outras 11 favelas têm destino incerto. Estão em obras os conjuntos habitacionais Estevão Baião, Iguaçu e Gutemberg, que devem receber moradores dessas comunidades, mas não há definição de em quais ou quando isso vai acontecer. Celina Lira Rêgo, 56 anos, chegou de Campina Grande (PB) em 1981. Morou
CIDADANIA
FICAR É POSSÍVEL Francisco de Assis Batista veio da Paraíba em 1972 e criou seus filhos no Jardim Edite. Bateu o pé com outros moradores e hoje mora num dos edifícios construídos onde existia a favela
31 anos na favela Comando. No final de 2012, soube que teria de sair. Agora está na região de Parelheiros, distante 25 quilômetros. “Minha casa era tão linda... Não precisavam ter tirado a gente de lá. O monotrilho não passa em cima de onde vivíamos. Foi só para sumir com os pobres mesmo.” A linha segue todo o trajeto da Avenida
Jornalista Roberto Marinho sobre o córrego. No cruzamento com a Washington Luís, um ramal faz uma curva, no sentido ao aeroporto. Foram removidas 400 famílias das favelas Buraco Quente e Comando. O restante do trajeto para o Jabaquara vai por cima de 11 comunidades na região, em que vivem 8 mil famílias, onde será construído o parque linear. Ali o Metrô, a avenida e a Operação Urbana dão as mãos. E o governador Geraldo Alckmin repete Maluf. O resultado das remoções indenizadas para a construção da Linha 17-Ouro é um grande contingente de pessoas indo viver nas periferias sul e leste e em outros municípios da região metropolitana. Famílias divididas pela política de desmembramento, que não tiveram condições de viver no mesmo lugar. Os que optaram pelas moradias da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) estão recebendo auxílio-aluguel e vivem em bairros distantes, sem saber ainda onde as casas serão construídas. Para a pesquisadora Dulce Maria Tourinho Baptista, do Observatório das Metrópoles do Departamento de Sociologia da PUC de São Paulo, houve um desvio na política que deveria ser implementada a partir das diretrizes do Estatuto das Cidades. “A operação se resumiu à construção da avenida e a incentivos a empreendimentos imobiliários privados. Pouco se fez pela população mais pobre, excluída da região”, avalia. Dulce considera que a operação urbana tem uma boa concepção, mas sua execução tem servido de subsídio ao mercado imobiliário. “Basta observar o número irrisório de moradias construídas em relação ao número de favelas existentes na região.”
Túnel em xeque
Uma das intervenções da Operação Urbana que foi posta em xeque é a construção do túnel para ligar a Avenida Jornalista Roberto Marinho à rodovia dos Imigrantes, que afeta não só as comunidades que vivem em assentamentos precários, mas a população residente fora das favelas, já que o traçado mais recente do túnel não passa somente por baixo
do parque linear. A obra, que tem um traçado previsto de menos de três quilômetros e um orçamento de R$ 3,7 bilhões, é questionada pelo promotor Maurício Ribeiro Lopes, de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo, por não contemplar o transporte público. Em julho, com a nova administração, o prefeito Fernando Haddad concordou em não pôr dinheiro no projeto dos antecessores pelas mesmas razões. Haddad afirmou ainda que pretende utilizar uma verba de R$ 2,3 bilhões, que está no caixa da Operação Urbana, na construção de unidades habitacionais. Segundo o líder comunitário da favela Vietnã, João das Virgens da Silva, 39 anos, o fórum tem mantido diálogo com a atual gestão. “Foram anos enfrentando enchentes, falta de infraestrutura, de equipamentos públicos. Agora teremos a intervenção e o povo pobre tem de sair? Não, os moradores têm o direito de permanecer aqui e ser reassentados na área da operação”, defende. O aposentado Flordísio Cursino de Castro, de 102 anos, foi um dos primeiros moradores da comunidade. Em 1980, construiu uma pequena casa de madeira onde viveu com a mulher e os 12 filhos. Vieram juntos tentar a sorte de sair do aluguel e ter uma casa própria. “Ninguém veio morar aqui por safadeza”, afirma. Ele mudou da Bahia para São Paulo nos anos 1960, e ajudou a construir boa parte das casas do Vietnã. “Mas a melhor de todas é a minha.”
Série A Rede Brasil Atual foi atrás das histórias de algumas dessas famílias e publicou em novembro uma série de reportagens, mostrando a trajetória dos moradores, a construção das comunidades, as intervenções do poder público, o destino dos removidos e a situação daqueles que devem ser os próximos. Nas comunidades, os traços comuns são o ressentimento de quem foi removido e o temor de quem se vê próximo do despejo. A série pode ser lida na íntegra no portal: bit.ly/rba_espraiada.
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POUCO PODE SER MUITO
Financiamento coletivo promove a democratização da produção, a distribuição de bens culturais e o fortalecimento do jornalismo independente Por Xandra Stefanel
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C
aio Cílnio Mecenas foi um influente conselheiro do imperador romano Augusto, nos anos 60 – antes de Cristo. Rico e integrante de um círculo de amizades composto de muitos artistas e intelectuais, ele começou a financiar poetas e pintores. O gesto rende ao termo “mecenato” uma
JAILTON GARCIA/RBA
Estela conseguiu publicar seu primeiro livro, de histórias e confissões anônimas de mulheres, com recursos arrecadados por meio do Catarse
longevidade de mais de 2 mil anos sem perder o sentido de designar atividade de incentivo, financiamento ou patrocínio de artistas. Claro que, hoje em dia, muitos endinheirados preferem empregar recursos em troca de incentivos fiscais, o que tem feito escassear os bons padrinhos, em detrimento de chover grandes ideias. De uns anos para cá, os próprios portadores dessas grandes ideias, na falta dos tradicionais mecenas, têm recorrido a plataformas de financiamento coletivo, formadas por pessoas que se reúnem e doam pequenas quantias para pôr projetos de pé. Trata-se da boa e velha vaquinha, que levou à criação de firmas especializadas em organizá-las pela internet. O boom desse tipo de financiamento coletivo, conhecido como crowdfunding, se deu nos Estados Unidos, com o Kickstarter, em 2009. Um dos maiores sites do gênero até hoje, a empresa recebe projetos de todas as áreas, inclusive voltados apenas ao consumo. Até meados de outubro passado, 5 milhões de pessoas já tinham doado US$ 825 milhões para cerca de 50 mil projetos. No Brasil, alguns sites movimentam um volume crescente de dinheiro e começam a colecionar “apoiadores de carteirinha”. O maior deles, o Catarse, lançado em 2011, atingiu R$ 10 milhões em doações no início deste segundo semestre. No primeiro ano, 14.992 pessoas apoiaram pelo menos um projeto no Catarse com doações de, em média, R$ 105. Em 2012, esses números saltaram para 37.264 pessoas com contribuição per capita de R$ 107. Este ano, quase 40 mil participaram, com uma quantia média de R$ 113 por doação. A regra é simples: o realizador formata um projeto plausível, manda para o site de financiamento coletivo de sua escolha, a equipe do site faz uma seleção das propostas realizáveis e dá dicas para aumentar as chances de sucesso. Com o projeto no ar, é hora de executar o planejamento da campanha e espalhar na rede para engajar o máximo de pessoas. Geralmente, o realizador precisa explicar tintim por tintim para que quer o dinheiro, como vai usá-lo e os prêmios que os colaboradores vão ganhar caso a iniciativa seja financiada (ingressos, adesivos, livros etc.). Se
isso não acontecer, todo o dinheiro volta para os doadores. Em geral, os sites dão prazo para que os projetos fiquem no ar e não costumam cobrar nada para publicá-lo. O que fazem é ficar com um percentual (que varia de um site para outro) do valor arrecadado quando a ação é bem-sucedida. O Catarse cobra uma taxa fixa de 13% do total arrecadado. O site Benfeitoria não cobra taxa; recebe ele próprio doações dos usuários e promove outras ações que garantem a sustentabilidade da empresa.
Democracia e liberdade
Apesar de o Catarse não ser uma plataforma de financiamento coletivo apenas de projetos culturais, as três maiores categorias em números de projetos e dinheiro arrecadado são música, cinema e vídeo e comunidade. Segundo o coordenador de comunicação, Felipe Caruso, dos 1.200 projetos culturais que passaram pelo Catarse, 650 foram contemplados com financiamento. “Os meios tradicionais ficaram muito viciados nas grandes empreitadas, voltados aos grandes artistas, no caso da cultura, porque para as grandes empresas eles trazem um melhor retorno. No financiamento coletivo não há essa questão do retorno”, afirma. Esse modelo de arrecadação também prioriza a liberdade do idealizador para desenvolver seu projeto. “Às vezes ele opta por ter maior independência, e por isso financia o projeto diretamente com os fãs, porque assim recebe chancela para fazer o que quiser, independentemente de gravadora, editora etc.” A origem dos recursos também é bem distribuída: o Catarse catalogou apoios vindos de cerca de 2 mil municípios. “Já chegamos a todos os estados brasileiros. É legal porque independe de onde você está para financiar sua ideia. Você pode estar em Quixeramobim e receber apoio de pessoas que estão no Oiapoque ou fora do Brasil”, completa Caruso. A Agência Pública, de jornalismo investigativo, acaba de distribuir bolsas para a produção de reportagens independentes com parte dos recursos obtidos por meio do Catarse. REVISTA DO BRASIL
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Fazer parte
Uma das 808 pessoas que doaram para o projeto Reportagem Pública, Vanessa Aguiar, de Florianópolis, contribui com ideias bancadas dessa forma há mais de três anos. Também jornalista, ela sentiu-se estimulada pela seriedade. “Doei, compartilhei e incentivei pessoas que eu conhecia a doar também. Esse tipo de financiamento é o mais genuíno para o jornalismo continuar existindo. É independente na forma mais pura”, avalia Vanessa, que também doou para o projeto sobre mobilidade urbana Cidade para as Pessoas, que teve duas edições, ambas financiadas com sucesso no Catarse. Em ambas, a jornalista e ciclista Natália Garcia viajou por um ano para vários países em busca de boas práticas e ideias que tenham melhorado a vida de seus mora30
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dores. O resultado virou reportagens e foi tema de palestras que a realizadora fez pelo Brasil. Natália acionou a rede de cicloativistas, ambientalistas, arquitetos e viabilizou seus projetos. Essa é uma das regras importantes do jogo: é preciso que haja entre o doador e o projeto uma identificação, seja com a causa, seja com o realizador. Vale tudo: convidar família, amigos, apresentar a ideia em grupos temáticos na rede social. O que importa é espalhar o projeto. No início de 2013, a publicitária Renata Zanotto, de 33 anos, soube que estava no ar um projeto de financiamento do evento Baixo Centro, uma festa colaborativa e autogestionada cuja proposta é ocupar o centro da capital paulista com arte. Dos R$ 72.750 arrecadados, R$ 20 eram de Renata. “Colaborei porque acreditei na ideia de um festival democrático e divertido. É gratificante você comparecer depois e achar que, mesmo sendo com um pouquinho, você fez parte e ajudou a fazer aquilo acontecer.” Também foi por meio do Catarse que a artista plástica paulistana Estela Miazzi realizou o sonho de lançar seu primeiro livro, com histórias e confissões anônimas de mulheres de 16 a 70 anos. Recorreu ao site em busca de R$ 15 mil. Seu livro Maria foi publicado pela Prólogo Editorial há pouco mais de um ano. “Eu tinha dinheiro guardado, só que não ia dar para fazer tudo. Para a gráfica, que é o mais caro, eu já tinha quitado a parcela principal. O projeto como um todo não se pagou, mas o importante é que coloquei no mundo um projeto querido do qual sou realizadora. Acho que é disso que o mundo precisa. A gente vai lá e pede ajuda. E, da mesma forma que pedi, eu já investi em outros projetos,” afirma Estela. A Benfeitoria, site lançado em 2011, é “uma fábrica de experimentos colaborativos”, segundo Dorly Neto, relações-públicas da empresa. O foco da página são ações que causem impactos positivos na sociedade. “Encontramos a possibilidade de ajudar pessoas que querem fazer cultura principalmente em territórios nos quais conseguir orçamento é muito difícil, como em periferias e favelas. É legal ver que os artistas estão se apoderando da liberdade de cria-
Vanessa (abaixo) e a equipe da Pública: “Esse tipo de financiamento é o mais genuíno para o jornalismo continuar existindo. É independente na forma mais pura”
GUILHERME ANTUNES/RBA
A campanha começou em 9 de agosto em busca de R$ 47.500. Em menos de dois meses arrecadou R$ 59 mil. Entre 7 e 20 de outubro, 48 propostas de reportagens foram submetidas aos participantes da vaquinha, que elegeram 12 para receber a bolsa. Parte dos doadores poderia, ainda, integrar o conselho editorial. A cada real arrecadado no Catarse, a empresa de investimento filantrópico Omidyar Network doaria outro real, numa ação conhecida como match funding. Para a jornalista Marina Amaral, diretora da agência, o sucesso da campanha mostra que o público está mudando a maneira de enxergar o jornalismo. “Fiquei surpresa de ver que as pessoas passaram da fase de só ficar falando mal da imprensa e da mídia tradicional. Perceberam as inconsistências da comunicação na internet e valorizaram uma agência profissional de jornalistas desvinculada de interesse político-econômico.” O financiamento, segundo ela, serve para medir o interesse: “Nós acrescentamos a isso tudo a participação do público, que poderia financiar dizendo ‘eu quero este projeto de jornalismo’. Uma coisa é ‘curtir’, a outra é depositar R$ 20 e preencher um formulário. O público escolhe as pautas, decide o que é mais importante investigar. E o quesito independência é contemplado”.
PAULO PEPE/RBA
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ção através do financiamento coletivo.” A Benfeitoria tem um acervo de 95 projetos, dos quais 60 foram financiados por 10 mil doadores e angariaram R$ 1 milhão. O documentário O Renascimento do Parto, sobre a realidade obstétrica no Brasil, foi um dos projetos financiados coletivamente na Benfeitoria. Os recursos dos realizadores, o diretor Eduardo Chauvet e sua mulher, a produtora Érica de Paula Cavalcante, não seriam suficientes para a distribuição nos cinemas. A primeira meta do casal, R$ 65 mil, pagaria distribuição, divulgação, eventos de lançamento e algumas adaptações técnicas. A segunda, de R$ 110 mil, caso fosse atingida, arcaria com gastos durante a produção, como passagens de avião, alimentação da equipe, tratamento de som. “Tiramos R$ 45 mil do bolso e pensamos que se esse dinheiro voltasse seria incrível”, diz Chauvet. E não é que voltou? Em três dias eles atingiram a primeira meta e em sete bateram os R$ 110 mil. Segundo Dorly Neto, o documentário foi um recorde. “Nenhum projeto no Brasil tinha arrecadado R$ 65 mil em três dias. Eles conseguiram isso porque a rede que essa temática de parto humanizado agrupa é muito engajada.”
Interesse do público Com a ausência de regulamentação do sistema de comunicação brasileiro – a esperada Lei de Meios –, falta também uma política de Estado que regule as verbas da publicidade oficial. Assim, governos de plantão definem para onde vão recursos da propaganda pública e das estatais – em cidades, estados e na União. Atualmente, essa publicidade – a exemplo dos grandes anunciantes privados – continua concentrada nos maiores veículos comerciais, privilegiando a TV. E o potencial da internet é negligenciado, sobretudo o jornalismo independente. Assim, uma parte da blogosfera que se tornou referência na produção de contrapontos à indústria tradicional da infor-
mação também passou a convocar o público para ajudar a bancar a reportagem alternativa. Tem desde um tradicional “Contribua para uma blogosfera livre, ajude a manter o Maria Frô”, da jornalista Conceição Oliveira, até a abertura de 20% do capital social do blog de análise política O Cafezinho. Seu gestor, o jornalista Miguel do Rosário, dividiu esses 20% em 1 milhão de títulos, que os leitores podem comprar a R$ 10. O repórter Rodrigo Vianna também pôs um pedido em seu site: “Mantenha o Escrevinhador no ar. Clique no botão abaixo para fazer sua doação”. O Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé convida o leitor a se associar à entidade para contribuir com a luta pela democratização dos
Financiamento do leitor
meios de comunicação. O Jornal Pessoal, que Lúcio Flávio Pinto faz sozinho desde 1987, não aceita publicidade privada nem pública. Ele também aderiu à “vaquinha” ao lançar o JP na internet, pedindo aos leitores doações para mantê-lo no ar “com a mesma
independência da versão impressa”. Idem para o Viomundo: “Não aceitamos recursos de governos. Não queremos depender de corporações”. Assim como o projeto Reportagem Pública no Catarse, o site de Luiz Carlos Azenha faz uma campanha de autofinanciamento. Os visitantes são convidados a se tornar assinantes, com R$ 9,90 ao mês para o site – que continua com conteúdo aberto – ou doar a partir de R$ 25 para financiar projetos de reportagem. O conceito é similar ao do crowdfunding: desenvolver no público o hábito de apoiar a execução de boas ideias. Um modelo de consumo consciente e solidário de um bem imaterial da sociedade: a informação.
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TÉRCIO TEIXEIRA/FUTURA PRESS
Eduardo conta que até tentaram buscar patrocínio da iniciativa privada. “Eles declinavam porque é um filme que denuncia um esquema, uma indústria, que vai contra corporações, o corporativismo médico, a máfia da indústria do nascimento... Quem vai querer se associar a um filme desse?” Graças ao financiamento coletivo, O Renascimento do Parto foi exibido em cerca de 40 cidades brasileiras sem interferência externa. “A grande vantagem do cinema independente é você poder entregar a obra sem corte, sem ninguém estar ali para dar uma manipulada. O que a gente quis colocar, colocou. Agora o filme está no mundo”, comemora o diretor. “Essa é a tendência do futuro, um modelo subversivo, porque a gente reverte a situação de ter de depender dos sistemas patronais de financiamento”, afirma Alex Cecci, produtor de eventos, diretor artístico e um dos criadores do Ativa Aí!, site que tem o objetivo de facilitar a realização de shows, peças e outras produções culturais.
ARQUIVO PESSOAL
Possível e saudável
Renata Zanotto colaborou com as atividades do Baixo Centro: “É gratificante você comparecer depois e achar que, mesmo sendo com um pouquinho, você fez parte e ajudou a fazer aquilo acontecer”
Para dar uma mãozinha
www.catarse.me Primeira plataforma de crowdfunding no Brasil. Aceita projetos de várias áreas
www.benfeitoria.com.br Projetos colaborativos de impacto positivo. Não cobra taxa
www.ativaai.com.br Voltado a entretenimento, shows e eventos
www.garupa.juntos.com.vc Financiamento de projetos de turismo sustentável
www.itsnoon.net Rede social que conecta pessoas, ideias e dinheiro
www.opote.com.br Hospeda projetos de várias áreas
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ALÉM D’OLHAR/DIVULGAÇÃO
CAPA
REDE ENGAJADA O financiamento do documentário O Renascimento do Parto foi um recorde de arrecadação: R$ 65 mil em três dias
“Não é mais preciso depender das grandes instituições. É um modelo que muda o jeito de consumir um monte de coisas, não só arte. É anárquico e dá o poder para o povo”. A plataforma, segundo ele, possibilitou a realização de nove espetáculos em dois anos. Para Cecci, os números relativos ao crowdfunding no Brasil ainda são tímidos, mas sites como Ativa Aí!, Benfeitoria, Catarse, Queremos!, entre outros, estão promovendo a pedagogia do financiamento coletivo. “Estamos vivendo um momento de aculturamento do crowdfunding porque pouca gente sabe o que ele significa. Partimos do princípio de que a pessoa tem de saber o que é, tem de estar habituada com as redes sociais, conhecer o modelo, se familiarizar”, observa o produtor, lembrando que o apoiador ainda precisa se sentir à vontade para participar de uma ação de crowdfunding, para comprar com cartão de crédito na internet e ainda acreditar
que, se o evento não acontecer, vai receber o dinheiro de volta. “Ainda vivemos um momento em que o financiamento coletivo é uma incógnita, mas daqui a cinco anos vai se tornar o modelo alternativo que vai tomar conta do mercado”, aposta. A consultora Marina Miranda, especialista em crowdsourcing – modalidade de criação com participação voluntária, a partir do compartilhamento de conhecimento e experiências coletivas –, concorda. “Existe toda uma mudança por trás disso que não é apenas a ponta do financiamento por meio da multidão. Existe o contexto da mudança do trabalho, do anseio das pessoas de fazer, cada vez mais, as coisas que querem, a questão do empreendedorismo é cada vez mais forte no mundo inteiro... Tudo isso fomenta as pessoas a criar projetos”, diz. Para ela, a partir do momento em que o brasileiro perceber que é capaz, o número de projetos e o volume de dinheiro movimentado
dessa forma no país vão crescer. “O brasileiro tem baixa autoconfiança. A partir do momento em que alguém vê que o vizinho fez um projeto no Catarse, por exemplo, ele também vai começar a fazer”, acredita. A mudança já está acontecendo e vem promovendo uma gradativa descentralização na produção e distribuição de bens culturais. Dorly, da Benfeitoria, aposta nessa evolução. “Eu acho que nos próximos anos isso será uma possibilidade real e plausível, a ponto de incomodar quem continuar a fazer as coisas de forma tradicional. Hoje ainda não incomoda.” O que está em jogo nesse tipo de financiamento é o poder de escolha do público. “É um novo tipo de mecenato, não aquele tradicional. É muito mais simples e distribuído. Quando você dilui o conceito de mecenas entre várias pessoas e o coloca no âmbito colaborativo, é muito mais poderoso”, diz. REVISTA DO BRASIL
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A saudade que
arde Sonhos, realizações, frustrações e tormentas. O que faz com que os migrantes se arrisquem em busca de alguma vida nos Estados Unidos diz mais da América Central do que as estatísticas sobre o continente Por Allan da Rosa
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uzmán tem 22 anos e está há dois invernos em Nova York. É Dia das Mães e caminha pelo Harlem latino. Alguns pagam gostosuras para suas coroas ou comem sozinhos, com suas famílias distantes na cabeça. Nas calçadas predomina o verde, vermelho e branco da bandeira mexicana e 34
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tendas vendem tacos, chicharrón e quesadillas. A pimenta é a de sempre, mas o que arde é saudade. Guzmán compara com as senhoras que passam e diz que sua mãe é mais bonita. Simpático, pede para não tirar fotos. Ele é mais um jovem entre os milhões de sem-documento nos Estados Unidos e mostra sua felicidade clandestina pela tela do celular.
São assim os personagens do êxodo mexicano. O telefone de Guzmán conecta Puebla, sua província deixada para trás. A facilidade é espantosa para quem até os anos 1990 gastava muita plata por alguns minutos de conversa. Hoje, até as comunidades rurais mais minguadas do México já têm cabinas de internet lotadas, rodea dasde centros comerciais e de câmbio.
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NORMA JEAN GARGASZ/ALAMY/GLOW IMAGES
VIGILÂNCIA 24 HORAS Cerca divide o México dos Estados Unidos na cidade de Nogales, Arizona
O ciberespaço já foi meio também para organizar passeatas, cursos e festas, ali se traduzem de rezas a hinos de futebol, se ensinam receitas de cozinha e se pressionam autoridades locais: 10% da população mexicana está nos Estados Unidos, 15% da força de trabalho deixou o país e o envio de remessas corresponde a 10% da renda nacional.
Guzmán mostra pelo celular a família cantando em seu aniversário, as fotos dos brinquedos comprados com o dinheiro enviado. Depois do festejo, restam a gravação e ainda uma velinha virtual que nunca apaga. Quando seleciona as imagens da criançada com as máscaras dos ídolos dos ringues e as caveirinhas do Dia dos Mortos, data insubstituível da cultura mexicana, seu sorriso baixa melancólico. Assim terminam as conversas por Skype, um torneio de lágrimas lá e cá. O clima muda, é hora de arejar. Uma loja de artigos de futebol, rara em Nova York, exibe chuteiras e camisas de times e de seleções da América Central. O dono destranca o cadeado para responder sobre o jogo do Puebla e volta ao telejornal com a avalanche de cadáveres degolados e a epidemia de escândalos de corrupção. Mexican Grocery e Mojitos Bar Grill têm seus toldos pomposos e suas calçadas repletas de barracas. Uma igreja tem também sua placa bilíngue: Capilla Evangélica American Spanish Gospel Chapel. As esquinas são coalhadas de escritórios para envios de divisas, compra de passagens e recarga de telefones. O La Nacional brilha seu cartaz neon: “más cerca de ti”. A Rua 123 é a principal do East Harlem. Alonga-se até o Harlem negro, onde a Lenox Avenue vai se chamar Malcolm X Boulevard e a Rua 125 tem suas placas com o nome de Martin Luther King. Mexicanos estão em todos os quadrantes, mas aqui é seu centro maior, onde o vocabulário é em spanglish (espanhol com inglês). Políticos, publicitários e comerciantes sabem que daqui a dez anos o espanhol será a língua mais falada da cidade. Uma viatura passa lentamente e na calçada uma rapaziada fuma seu porro. Ali ninguém trafica, só consome, e todos ficam atentos. A abordagem que pode exigir os malditos papéis que quase ninguém tem. “Se me pegam, me jogam no presídio”, diz o jovem Andrés, de 22 anos, chapeiro e carregador em um restaurante coreano no Bronx. Desde 2002 o notório stop and frisk (pare e confira) instituiu o “enquadro” (um termo para abordagem policial) a qualquer um que pareça suspeito, e negros e hispânicos somam 86% dos abordados em Nova York.
Guzmán me acolheu porque fui apresentado por Karla Quiñonez-Ruggiero, presidenta da Adelante Alliance, organização que atua em alfabetização, assistência jurídica e prevenção médica a senhoras com mais de 50 anos. É uma das muitas entidades autônomas dos imigrantes m exicanos, entre clubes, comitês, igrejas, associações profissionais e ONGs, que patrocinam festas, abrigam despejados, organizam casórios, passeatas e batalham no campo jurídico por bolsas de estudo. O Movimento Justiça Comunitária atua contra ordens de despejo e o crescimento ilegal do preço dos aluguéis. “Os indocumentados não têm cobertura nos hospitais. Passam anos e anos e não veem um doutor, não sabem se têm uma infecção, uma DST. Faltam educação e assistência mínimas. E sobram discriminação nas consultas e exigências nos hospitais, “onde mal te atendem se você falar em espanhol”, diz Karla, que viveu até a adolescência no Distrito Federal, a capital mexicana. Em 1994, ela trabalhou nas bases indígenas de Chiapas. O célebre espírito de solidariedade da região a marcou e a acompanhou quando migrou. Nos últimos anos, puxou também várias campanhas pelo voto nas eleições presidenciais de seu país. “Quase ninguém de nós pode votar porque não tem o bilhete especial que credencia o eleitor, feito apenas no México.”
Emprego é favor
Magdalena Gutiérrez saiu de Tlaxcala, na região central do país, ainda nos anos 1990. Desejava regressar o quanto antes e diz que penou tanto de saudade quanto de fome, mas casou e criou nova família. “Trabalhei em limpeza doméstica e em cozinhas de restaurantes. Era menor de idade e recebia quase nada, sempre esperando pelo aumento prometido nas casas e lanchonetes de Manhattan. Trabalhava 12 horas por dia com duas refeições, sete dias por semana”, diz Magdalena, hoje mãe de Adriana Gutiérrez Flores, pequena comerciante e palestrante em eventos culturais. “Quem não tem os papéis sente medo de ser denunciado ou demitido sem levar nada. Estar trabalhando era como um favor e reclamar era como apunhalar os patrões.” REVISTA DO BRASIL
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GARY WILLIAMS/EFE
PERIGOS CONSTANTES Sequestro e tráfico de imigrantes ilegais são rotina na fronteira
Nos últimos anos o Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos deteve, encarcerou e deportou os teimosos ou apenas recolheu seus cadáveres pela areia do deserto O imigrante mexicano médio não tem sequer nove anos de estudo, não domina a escrita em espanhol, muito menos em inglês. “De outros países latino-americanos, como Venezuela e Colômbia, as pessoas vêm com mais anos de estudo”, diz Karla. “A educação poderia dar um pouco mais de força às comunidades, principalmente às mulheres que nem terminaram o ensino primário. Mas é difícil se dedicar 16 horas por dia a um trabalho e estudar.” A porção maciça de semianalfabetos entre mexicanos migrantes destoa de outro fenômeno, o da saída dos diplomados, na chamada fuga de cérebros – porém, o acesso à educação superior no México também é quase um luxo. Apenas 2% da população frequentou uma pós-graduação e, destes, apenas 3% obtiveram doutorado. Nos últimos 15 anos, fugindo de condições precárias de trabalho, seguiram para os Estados Unidos quatro doutores por dia. 36
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Travessia
A pecha de “ilegal” será uma tatuagem, para quem consegue passar pela vigilância da fronteira. Pode ser pelas braçadas no Rio Bravo, que serve de fronteira entre os dois países ao longo do Texas e onde já boiaram tantos cadáveres. Ou após as peregrinações pelos desertos do Arizona ou de Sonora. Se forem hondurenhos ou guatemaltecos, tiveram ainda outras duas ou três fronteiras para atravessar. Ser sequestrado, recrutado ou vendido como escravo pelas gangues do caminho, extorquido ou roubado pelos agentes públicos ou ser violada sexualmente são perigos constantes. Tudo irá compor o acordo prévio com os “coiotes”, guias muito procurados. “Eles são empresários e aventureiros. Só que a realidade deles tem mudado. Os Zetas, grupo criminoso mais brutal do país,controlam a rota do sul ao norte do México. Todo coiote que viaja no trem tem de pagar pedágio. Senão, morre.
Espiões sobem nos trens em todo o percurso, vigiando e contando quem está com quem”, diz Alejandro Reyes, escritor que já percorreu os caminhos migrantes. Em 2009, pelos dados da Pesquisa sobre Migração na Fronteira Sul, 600 mil guatemaltecos conseguiram ingressar nos Estados Unidos e outros 20 mil foram sequestrados. De 2010 a 2012, 15 mil pessoas pediram abrigo nos albergues cristãos mexicanos, segundo a Casa Sagrada Família, sediada em Apizaco, no estado de Tlaxcala. É considerável o número de crianças e de gays e lésbicas expulsos de suas casas que se arrisca. Chegam com diarreia, desidratados ou vomitando água contaminada, cheios de bolhas nos pés, febris por infecções do caminho. “Na Mesoamérica, de onde vem a maioria dos migrantes, há uma tradição camponesa muito forte. Os tratados de livre comércio, a inundação dos mercados com produtos da agroindústria
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CARLOS PRADO/FLICKR/CC
SPIRIT OF EAST HARLEM O mural, na Rua 104, é símbolo da diáspora latina em Nova York
orte-americana, a espoliação da terra n pelas indústrias extrativistas... Isso tudo destrói formas de vida e empurra os camponeses para as cidades. Mas tem outros motivos, o principal deles a separação das famílias, rasgadas... São muitos os casos de crianças viajando sós à procura de pais que migraram”, conta Alejandro. A migração é uma resposta dos pobres, dos espirrados; uma espora de esperança que muitas vezes acaba no esgoto ou na cadeia. Mas é a essência também de lucrativas e complexas redes de transporte e de armazenamento de mercadorias, de tramas financeiras e logísticas refinadas, o que não escapa à atenção das organizações de migrantes, dos albergues e da vigilância militar. Nos últimos anos a Operação Streamline, puxada pelo Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos, deteve, encarcerou e deportou os teimosos ou apenas recolheu seus cadáveres pela areia do deserto.
Mas, seja um caso de pena mínima de dois meses de cadeia ou de alguém mofando esquecido e endividado nas penitenciárias privadas, seja na deportação para a região mexicana de Nogales, onde são jogados à poeira, ou na chegada em farrapos de volta à cidade original, a memória do horror se encavala à audácia de quem não se abate e de novo tentará voltar aos subempregos das capitais do norte, jurando sobreviver à travessia de novo, mesmo se candidatando a uma nova pena de 20 anos nas prisões de lá. As histórias do cárcere são repetitivas: pouca ou nenhuma comunicação com a família que fica para trás e as dívidas na conta do presídio para a aquisição de papel higiênico ou de créditos telefônicos. Para acionar familiares, vendem-se travesseiros ou sapatos para os assassinos e estupradores com quem dividem celas. Com muita sorte, consegue-se o dinheiro para a volta à comunidade de origem.
Há companhias que cobram apenas metade do preço a presos deportados, solidariedade que lembra momentos de generosidade no caminho de ida: entre as pedras e a mira infravermelha que recebiam na cabeça, também vinham água e pães jogados aos trens. Alejandro ressalta marcas da viagem: “No trem há algo extraordinário. O vento, o som das rodas de ferro nos trilhos, os galhos batendo na gente, os sons da floresta, o burburinho das cidades e povoados. Contam-se histórias. A palavra que une o passado doloroso e saudoso a um incerto futuro. E há ainda o mais medonho, o silêncio quando o trem para num descampado sem razão aparente. A ansiedade da espera e a possibilidade de que, a qualquer momento, esse silêncio seja quebrado pelos tiros, gritos, prantos de um ataque do crime ou um por um enquadro dos agentes da migração”.
A Rua 123 é a principal do East Harlem. Alonga-se até o Harlem negro. Mexicanos estão em todos os quadrantes da cidade, mas aqui é seu centro maior, onde o vocabulário é o spanglish REVISTA DO BRASIL
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Pesquisadora constata que, mesmo distante dos meios tradicionais de informação, comunidades indígenas reagem ao aquecimento global, antecipam catástrofes e catalogam tipos diferentes de sol e de chuva Por Ana Mendes
A CIÊNCIA DA IN 38
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ENTREVISTA
SÉRGIO VALE/SECOM/AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DO ACRE
PEDRO FRANÇA/MINISTÉRIO DA CULTURA
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rupos étnicos enfronhados em sua civilização tradicional, primitiva, já adequam suas práticas às mudanças climáticas sem nunca ter ouvido falar do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU). A informação chega-lhes de forma antes cósmica do que geofísica. Um nativo das Filipinas tentou avisar a população local sobre o tsunami que estava por vir. Sua tribo protegeu-se nas altitudes; as autoridades urbanas não lhe deram ouvidos... A antropóloga Érika Mesquita, professora de Agroecologia do Instituto Federal do Acre, na cidade de Cruzeiro do Sul, há muito tempo leva a sério as práticas das comunidades tradicionais e sua relação com as investigações da ciência. Doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é a primeira brasileira a pesquisar sobre antropologia do clima. Ela realizou durante quase cinco anos um estudo pioneiro que trata da percepção das mudanças climáticas por grupos indígenas e comunidades extrativistas na região do Alto Juruá, no estado do Acre. Érika debruçou-se sobre a análise de dois grupos étnicos, os Ashaninka e os Kaxinawá, e três comunidades extrativistas, situadas na Reserva Extrativista Alto Juruá. A linha de pesquisa, denominada também etnoclimatologia, traz informações importantes para entender a cosmovisão indígena sobre o tema e notar, com exemplos concretos, qual é a contribuição dessas populações para a manutenção da floresta e da vida. A pesquisadora está lançando um livro com o resultado de sua tese de doutorado pela editora Mercado das Letras, em Campinas.
Pagé da aldeia Ashaninka Ipiwtxa, nas margens do Rio Amônia, no Acre
NTUIÇÃO NATIVA REVISTA DO BRASIL
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ENTREVISTA
O que a inspirou a fazer esse trabalho?
Eu me motivei a pensar sobre o clima aqui na região porque, hoje em dia, os paradigmas sobre esse assunto estão completamente modificados. Queria entender até que ponto os indígenas têm conhecimento disso e o que têm a acrescentar nessa temática. A verdade é que as ciências sociais não estão trabalhando a questão das mudanças climáticas. E ela tem de se voltar pra isso, principalmente a antropologia. Os geógrafos e os engenheiros ambientais falam muito sobre o clima. Mas nós, antropólogos, sabemos que nessas análises falta o olhar do cotidiano. Daí a ideia de trabalhar essa produção de conhecimento com os indígenas e com as populações tradicionais. Onde eu trabalhei a maioria das pessoas não tem acesso a informação da mídia. Então eu pude compartilhar como eles enxergam isso realmente. A antropologia do clima é um conceito que está nascendo agora. É um olhar dentro da antropologia que busca analisar as mudanças climáticas. Existem poucas pessoas trabalhando com isso, uma delas é uma colega do México, Esther Katz, que pesquisa populações originárias lá, e eu, aqui. O meu desejo é que muito mais gente faça isso, para que possamos montar um mapa dos conhecimentos tradicionais indígenas em todo o Brasil. Mas, claro, há que se tomar muito cuidado porque se trata de uma etnografia somada a uma nova forma de olhar que a antropologia está pegando emprestado das ciências naturais, da geografia física. Em resumo, estamos buscando saber como isso, as mudanças climáticas, está sendo sentido no dia a dia, ou seja, não só nas situações de catástrofe, mas no cotidiano. Segundo seu trabalho, os índios do grupo dos Ashaninka precisam fazer o reflorestamento de certas espécies, o que antes acontecia naturalmente, quando a época dos ventos coincidia com a floração. Há outras iniciativas nesse sentido?
Justamente, eles já fazem essas coisas a sua maneira. Há também a agroflorestal, que os índios já praticam, mas isso não é fomentado por nenhuma política. Então, a questão é mostrar ao poder público que se pode fazer mais. O conhecimento que eles produzem pode resultar em políticas públicas. Não basta só olharem o painel do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), da ONU. E eu não estou criticando, mas esses dados devem ser somados a outros olhares. Os governos têm de saber que essas populações podem contribuir, e contribuir na prática. Lá nas Filipinas, perto de onde aconteceu essa grande catástrofe recentemente, um xamã percebeu que vinha um tsunami. Aquele de 2004. Ele avisou a todos da aldeia, e as pessoas foram se refugiar nas montanhas mais altas. Mas na cidade o poder local não acreditou nele quando tentou alertá-los sobre a onda gigante. É justamente para fazer com que esse tipo de coisa não passe batido que se deve trazer à tona o conhecimento tradicional. Os poderes locais e globais têm de acreditar que esse conhecimento não é mito. É uma categoria que tem prática, sim. Ainda há um precipício entre o conheci40
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NAYANNA MARQUES
O que é antropologia do clima?
É inacreditável pensar que as populações tradicionais enxergam seis tipos de sol. Eu achava que qualquer água que caía do céu era chuva. Mas tem chuva feminina, masculina, tem chuva que é “feita acontecer” mento tradicional e o conhecimento institucionalizado. E essa história está aos poucos sendo fecundada. Porque em relação às políticas públicas para povos indígenas o tratamento ainda é de cima pra baixo, infelizmente. Este ano a Unesco vai lançar uma coletânea de artigos sobre o viés das ciências sociais a respeito das mudanças climáticas, incluindo o meu trabalho. Você acha que a academia está conseguindo absorver esse conhecimento?
Nos grandes polos de conhecimento do Brasil, sim. Ainda não atingiu a grande mídia, mas a gente já vê que o movimento é para que isso aconteça. Muitos antropólogos estão trabalhando nessa mesma linha. Eu bebi muito nestas fontes: Manuela Carneiro da Cunha, Gilles Deleuze, Marcel Mauss, Eduardo Viveiros de Castro. A começar por Marcel Mauss, que na década de 1920 fez uma classificação do pensamento nativo. Ele foi visto como um grande etnógrafo, mas nunca foi posto em prática. Então, muita coisa escrita por grandes antropólogos estavam
ENTREVISTA
Crianças da aldeia Ashaninka Ipiwtxa, no Acre
engavetadas, e parece que agora estão vindo à tona. Hoje em dia vivemos um novo paradigma da ciência tradicional. Muitos cientistas estão com os olhos mais abertos para a ciência nativa. Já temos graduações indígenas, médicos indígenas e daqui a pouco os primeiros doutores indígenas.
É inacreditável pensar que as populações tradicionais enxergam seis tipos de sol. Quando fui morar em uma aldeia na cidade de Marechal Taumaturgo, por exemplo, eu achava que qualquer água que caía do céu era chuva. Mas tem chuva feminina, masculina, tem chuva que é “feita acontecer”. Os Ashaninka mascam batata e sopram, aí a chuva vem. Foi surpreendente quando comecei a perceber que essa noção para eles não é tão genérica como para nós. Quando eu disse a primeira vez “está chovendo”, eles me corrigiram: “Isso não é chuva, é ‘puagem’. Chuva é quando molha a terra”. Quem não vive na floresta tem um olhar mecânico, os índios são cheios de pormenores. Eles têm um conhecimento muito grande que até então, há mais ou menos cinco anos, não era valorizado, mas agora a coisa está mudando. Como dizem nas manifestações Brasil afora, “o gigante acordou”, e acordou para muita coisa mesmo. Não só tardiamente em manifestações, mas também na ciência, com relação ao conhecimento indígena. Só está faltando virar política pública.
FOTOS PEDRO FRANCA/MINISTÉRIO DA CULTURA
Sobre as tabelas que você elaborou com os tipos de chuva, de sol e de lua, por que fazer essa organização?
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A via-sacra de
Portinari Obras do mais conhecido pintor brasileiro em Batatais (SP) começam a ser restauradas. Telas sacras causaram reação da igreja por ter sido pintadas por um comunista Por Vitor Nuzzi. Fotos e reproduções de Lucas Mamede
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m 2012 e 2013, as pessoas formaram filas para ver Guerra e Paz, de Candido Portinari. Era uma rara chance de admirar os painéis pintados de 1952 a 1956 para presentear a Organização das Nações Unidas. Os quadros de 14 metros de largura por 10 de altura saíram de Nova York para uma exposição por algumas cidades brasileiras. Passariam também por Paris antes de voltar à sede da ONU. Quando começou a planejar aquela que se tornaria a sua obra mais famosa, o artista plástico tinha outro projeto em execução, perto de sua cidade natal, Brodowski, no interior paulista. É um conjunto de obras sacras expostas na Igreja Matriz de Batatais (a quase 400 quilômetros de São Paulo), que a partir deste dezembro, após anos de indefinição e pendências legais, passará por um processo de restauração, até o final de 2014. Será um trabalho diferente do habitual, pois o ateliê é que terá de ir às obras, como observa a restauradora Florence Maria White de Vera, responsável pela recuperação das telas. “A nossa preocupação é que as obras estão em um espaço público. Elas nunca saíram e não podem sair da igreja, por exigência do termo de doação. É uma coleção importantíssima.” São 28 telas de Portinari, 14 destinadas à via-sacra de Jesus, tombadas em 1982 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat), que informa ter feito uma restauração em 1975. “Apresentação de Cristo a Pilatos,
60 ANOS A atual Igreja Matriz de Batatais começou a ser construída em 1928, com projeto do arquiteto italiano Julio Latini. Seus vitrais têm a marca da Casa Conrado
o impacto do peso da cruz, o ponto mais elevado do sofrimento, o fim da esperança, luz para a vida, luz para o mundo, vida material para a espiritual...”, enumera Antonio Otávio Squarisi, que há 35 anos trabalha como guia na igreja, por onde passam 3.500 visitantes por mês. Estão lá também obras como a Sagrada Família (“José olha para Maria, Maria olha para o infinito e o menino Jesus olha para todos”) e Fuga para o Egito, “obra pintada em um momento de angústia”. Sobre o altar principal fica a tela que mostra Jesus e os apóstolos. “À esquerda (de Cristo), os seis menos amigos, com cores mortas, fisionomias amedrontadas. À direita, os seis mais amigos, o colorido
é maior, há mais vida”, narra Squarisi, que era soldado da Polícia Militar antes de virar guia. “Comecei a ler todos os livros.” Na parte de baixo da tela, dois arcanjos, um com aparência masculina e outro, feminina. Acima, uma pomba e um arco-íris, representando o Espírito Santo.
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No plano terreno, as obras do mais conhecido artista plástico brasileiro foram objeto de uma contenda judicial. Com algumas telas mostrando sinais de desgaste, ficou clara a necessidade de um processo de restauração. Mas nem todas eram tombadas, o que retardou o projeto. O Ministério Público Federal em Ri-
IN LOCO As 28 telas de Portinari serão restauradas na própria igreja, de onde nunca saíram por exigência do termo de doação REVISTA DO BRASIL
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MARCAS DO TEMPO Por dentro e por fora a grandiosa igreja, por onde passam 3.500 visitantes por mês, também precisa de restauro
Tintas da vida e da morte Em 1953, quando foi inaugurada a Igreja Matriz de Batatais e as telas religiosas passaram a fazer parte da decoração – e depois do roteiro turístico –, Portinari já mostrava sintomas da doença que o mataria em menos de dez anos. Ele chegou a ser internado após uma hemorragia intestinal. A arte que lhe deu fama e eternidade também abreviou sua vida: Portinari foi sendo envenenado por substâncias contidas em determinadas tintas. Quando fez Guerra e Paz, por exemplo, estava proibido de pintar, mas se dedicou por quatro anos à obra. Seu primeiro desenho conhecido e documentado é de quando tinha 10 anos: Retrato de Carlos Gomes. Segundo o Projeto Portinari, que preserva e divulga a obra do artista, foi feito para homenagear a ban44
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da na qual o pai tocava tuba. “Serviram-lhe de inspiração a marca de cigarros com o mesmo nome, muito conhecida nessa época, e uma fotografia do compositor.” Em 1919, se muda para o Rio e vai estudar na Escola Nacional de Belas Artes. A tela Baile na Roça, de 1924, é tida como a primeira de temática brasileira, que se tornaria a marca do autor. Em 1928 ganha uma viagem à Europa e conhecerá a uruguaia Maria Victoria Martinelli, com quem ficará até o fim da vida. Em 1939, o casal teve um filho, João Candido, responsável pelo Projeto Portinari. Portinari integrou uma geração de artistas vindos do pós-guerra, com formação humanista e preocupação social. Pareceu natural a opção pelo PCB, a exemplo de Graciliano Ramos, Oduvaldo Vianna, Di
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Cavalcanti e Oscar Niemeyer, entre outros Autor de biografia sobre Graciliano, o professor Dênis de Moraes registra troca de correspondências entre o escritor e o pintor, além de depoimento de Maria, para quem Portinari via Graciliano como irmão mais velho: “Ambos eram do interior e muito sofridos, preocupavam-se com a miséria de nosso povo e estavam unidos pela mesma crença política”. Em 1945, o Partidão elege Luiz Carlos Prestes para o Senado e Jorge Amado deputado. Portinari foi candidato naquele ano e também em 1947, quando esteve perto de se tornar senador. Pouco depois, o partido voltaria à clandestinidade – e o artista parte para “exílio voluntário” no Uruguai. Chegou a ser proibido de entrar na França em 1961, só obtendo
um visto de 60 dias após um acordo para que não fizesse declarações políticas. Já estava doente, intoxicado pelas tintas. Morre em 6 de fevereiro de 1962, aos 58 anos, no Rio. Em seu velório estavam JK, comunistas já clandestinos como Prestes e Carlos Marighella, e o governador Carlos Lacerda, um anticomunista. O escritor Antonio Callado cita sua obra como “um protesto contra essa falta de intimidade que existe entre nós e aquilo que se chama realidade brasileira”. Carlos Drummond de Andrade dedica-lhe o poema A Mão: “Entre o cafezal e o sonho/ o garoto pinta uma estrela dourada/ na parede da capela, e nada mais resiste à mão pintora./ A mão cresce e pinta/o que não é para ser pintado mas sofrido”. Segundo o poeta, Portinari tinha “a mão-de-olhos-azuis”.
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INSTITUTO PORTINARI/DIVULGAÇÃO
OLHARES MÁGICOS Squarisi trabalha na igreja há 35 anos: “José olha para Maria, Maria olha para o infinito e o menino Jesus olha para todos” (sobre Fuga para o Egito)
HUMANISTA Artista com preocupações sociais, Portinari morreu aos 58 anos
beirão Preto impetrou uma ação civil pública, acolhida parcialmente pela Justiça, para que a União, o estado de São Paulo, a prefeitura de Batatais e a Igreja Senhor Bom Jesus da Cana Verde comprovassem a contratação de uma empresa especializada para fazer a restauração. “Estamos há mais de um ano fazendo reuniões, acionando o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Nunca houve uma restauração. A própria igreja tem de mudar sua estrutura. É uma pena ter de existir um caso como esse”, afirma o procurador da República Uendel Domingos Ugatti, que viu na situação um jogo de empurra. “Parece que houve uma omissão dos entes públicos”, diz. “O município tem toda a noção do que essas obras representam”, reage o secretário de Turismo de Batatais, Antonio Carlos Corrêa. “Tivemos de aguardar todo o trâmite”, acrescenta. Segundo ele, todas as providências vêm sendo tomadas desde 2009, quando era evidente a necessidade REVISTA DO BRASIL
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“SABIA QUE ERA UM GRANDE PINTOR” Nacime não conhecia o Rio de Janeiro e se ofereceu para buscar os quadros, que recebeu das mãos da irmã do pintor: “Compramos 50 quilos de farinha para diminuir a trepidação”, conta
de restauração das obras. O secretário diz que as principais dificuldades estavam relacionadas ao processo de tombamento e a condições impostas pelo Iphan, como a retirada de telas de outros artistas, também expostas na igreja. “Agora, já estamos com o dinheiro na conta.” A prefeitura informa que a Secretaria de Estado da Cultura liberou R$ 355 mil para o trabalho. Segundo o secretário, recursos do Fundo de Melhoria das Estâncias só poderiam ser usados para obras de infraestrutura. “É importante citar que as obras estão sob guarda e propriedade da Cúria, impossibilitando o repasse de recursos públicos. Para tanto, foi necessário que a Igreja solicitasse o tombamento das demais obras ao Condephaat.” Batatais é uma das 67 cidades-estância no estado – que recebem verbas do Departamento de Apoio ao Desenvolvimento das Estâncias (Da46
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de), vinculado à Secretaria de Turismo. Neto de um dos marmoristas que trabalharam na Matriz, o advogado Túlio Pires de Carvalho, representante da igreja, conta que com as suspeitas de danos nas telas o padre Pedro Bartolomeu, pároco local, notificou os órgãos públicos. “Na minha opinião, a Igreja é vítima. Vamos dar entrada no Condephaat para que a própria igreja seja tombada também.” Ele acredita que a restauração pode ser a primeira fase de um projeto mais amplo, que inclua um documentário para registro histórico e uma nova organização para receber os visitantes. Com 60 mil habitantes, Batatais fica a apenas 12 quilômetros de Brodowski (23 mil), onde nasceu Portinari, em dezembro de 1903. Ele foi batizado exatamente na Igreja Matriz do Bom Jesus da Cana Verde, que leva esse nome em referência a um momento narrado pelo Evan-
gelho em que soldados tentam ridicularizar Cristo, colocando um pedaço de cana em suas mãos, como se fosse um cetro. A atual igreja acaba de completar 60 anos (a original é do século 19). Começou a ser construída em 1928, com projeto do arquiteto italiano Julio Latini. Posteriormente, a obra ficou sob o comando do também italiano Carlos Zamboni, natural de Brescia – em cuja catedral se inspirou. Os vitrais têm a marca da Casa Conrado, pioneira nesse ramo no Brasil, fundada em 1889. A história do ateliê começa em 1874, com a chegada do alemão Conrado Sorgenicht, e continua com os descendentes. A casa também assina obras em marcos da cidade de São Paulo, como o Mercado Municipal, o Teatro Municipal, a Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, e a Casa das Rosas, na Avenida Paulista.
CULTURA
A inauguração da Igreja Matriz, em 14 de março de 1953, foi precedida de alguma polêmica – as autoridades religiosas resistiram à escolha de Candido Portinari, que era filiado ao Partido Comunista e havia sido candidato ao Senado em 1947, pouco antes da cassação da legenda.
Liberdade
“Como sempre, fiz o melhor que pude. Mas quem vai julgar é o público”, declarou o artista ao jornal Folha da Noite. “Não fiz concessões nem de ordem política, nem de ordem artística. Não houve, pois, como querem alguns críticos, recuo de nenhuma natureza. Trabalhei com absoluta liberdade na realização dos quadros. Aliás, devo assinalar que a Comissão das Obras da Matriz, que me havia convidado para decorar a igreja, resistiu bravamente a todas as tentativas de perturbar essa liberdade e garantiu o compromisso que assumira comigo nesse sentido.” O guia Squarisi conta que “as senhoras capitalistas” conseguiram vetar a instalação de algumas obras no local. Quem eram elas? As esposas dos fazendeiros do café, responde. Portinari nasceu em um cafezal. Seus pais, Baptista e Domin-
ga Torquato, trabalhavam na terra, e um de seus quadros mais conhecidos, pintado nos anos 1930, é justamente O Lavrador de Café. “Num pé de café nasci,/ O trenzinho passava/ Por entre a plantação”, diz um dos poemas do escritor bissexto. Ele também falou dos retirantes, tema de obra conhecida, “pedregulhos doloridos como fagulhas de carvão aceso”. Quase dez anos antes do trabalho em Batatais, entre 1944 e 1945, Portinari já havia pintado uma via-sacra, para a Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha, em Belo Horizonte, obra de Oscar Niemeyer com jardins do paisagista B urle Marx. Encomenda do então prefeito Juscelino Kubitschek. Ali também houve polêmica com a igreja, entre outros motivos pelas figuras deformadas e pela presença de um cachorro no lugar do lobo junto a São Francisco. O culto na igreja foi proibido durante mais de uma década. “Naquelas figuras, houve maior preocupação do desenho. Nas telas de Batatais, há mais pinturas. É a predominância da cor”, comparou o artista. A instalação das telas no altar principal e nas laterais da igreja de Batatais foi acompanhada pessoalmente por Portina-
ri, que doou nove das obras – as outras foram doadas por mecenas. Segundo o Condephaat, depois da morte do artista, em 1962, o altar foi reformado e as molduras originais, substituídas por um nicho em cimento e granito. Os novos chassis, bases das telas, deverão ser de alumínio, possivelmente a exemplo do que já foi feito em restauração de obras de Portinari no Banco Central, em 2007 e 2008. Aos 86 anos, o empresário batataense Nacime Mansur lembra de quando foi buscar as telas no Rio de Janeiro. Ele não conhecia Portinari – “sabia que era um grande pintor” –, mas, “abelhudo”, queria conhecer o Rio. Trabalhava no armazém de secos e molhados do pai, e hoje é dono de uma loja de materiais de construção. “O Candinho morava na Avenida Atlântica... A irmã dele entregou os quadros. Para diminuir a trepidação, compramos 50 quilos de farinha”, lembra Nacime, também escritor e contador de histórias. Naquela época, 1952, a viagem entre São Paulo e Rio levava aproximadamente 12 horas. “Candinho estava esperando (em Brodowski). Deixamos lá para ele fazer os últimos retoques. Ele me deu um moeda de mil réis.”
Ao entrar na Igreja Matriz de Batatais, chama a atenção a tela que mostra Jesus e os apóstolos, acima do altar principal. As obras de Portinari estão espalhadas pelas paredes. De perto, é possível notar danos em algumas. O caso mais evidente é A Sagrada Família (1,37 por 1,58 metro), que há alguns anos passou por processo de descupinização – ainda se veem pequenos furos no canto inferior direito. A restauração enfrentará desafios impostos pela policromia (várias cores em uma mesma superfície), perfurações de cupins e limpeza. O local não é o mais adequado para abrigar essas obras, por questões de luminosidade e climatização, o que mais adiante deverá exigir adaptações. Também
há o envelhecimento natural das obras. A restauradora Florence Maria White de Vera já atuou na recuperação de acervo de Portinari na sede do Banco Central, em Brasília – são 15 telas dos anos 1950, parte de uma série chamada Cenas Brasileiras. O conjunto foi encomendado por Assis Chateaubriand para decorar o saguão da revista O Cruzeiro. Mesmo destacando a importância da obra de Portinari, a restauradora observa que o trabalho é importante independentemente do autor. O ateliê será instalado em um espaço na parte superior da igreja. Durante 15 dias por mês, ao longo de quase um ano, quatro técnicos se dedicarão ao trabalho. “À medida do possível, a gente vai permitir visitações. É importante que o público acompanhe.”
REGINA DE GRAMMONT/RBA
O desafio da restauração
A restauradora Florence já trabalhou em obras de Portinari REVISTA DO BRASIL
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curtaessadica
Por Xandra Stefanel
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Uma grande aventura
Lançada pela ONG paulista Henfil – Educação e Sustentabilidade, em parceria com o Instituto Henfil, do Rio de Janeiro, a Coleção Fradim lembra uma década de tiras, histórias e cartuns publicados entre 1971 e 1980 que se incorporaram ao imaginário das gerações de então e posteriores. Henrique de Souza Filho, em plena ditadura, teve a coragem de dar voz aos seus fradins, os célebres e provocativos Cumprido e Baixim, além da Turma da Caatinga, a Graúna, o Bode Francisco Orelana e o Capitão Zeferino, personagens que contestavam, com humor e ironia, a situação social e política do país. Sob o selo “25 Anos sem Henfil - ‘Morro, mas meu desenho fica’”, a coletânea contará com 30 edições mais o número zero, um exemplar adicional que faz um apanhado geral do conjunto da obra. Até o final deste ano 18 edições devem estar disponíveis. A previsão é que a coleção, com 31 números, se complete no primeiro semestre de 2014. As edições podem ser compradas individualmente ou em pacotes pelo site http://bit.ly/ colecaofradim. Ivan Cosenza de Souza, filho do cartunista, considera o relançamento da Coleção Fradim uma oportunidade de apresentar a obra às novas gerações e de reencontro de antigos admiradores com os personagens inesquecíveis dos quadrinhos e do humor político brasileiro. “Tenho muito orgulho do interesse e do carinho que as pessoas têm pelo trabalho dele. Eu vejo a receptividade que a obra ainda tem, mesmo para o pessoal novo, que não conhece bem. Acho que os jovens se interessam porque ele tem uma linguagem muito forte de contestação e muito atual”, afirma Ivan, que é criador e administrador do Instituto Henfil, entidade carioca que, além de preservar a obra do cartunista, faz campanhas sociais e de conscientização. R$ 15 cada volume. 48
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A volta do Fradim
O quadrinista e ilustrador francês Blexbolex (pseudônimo para Bernard Granger) acaba de ter lançado no Brasil seu livro Cantiga (Cosac Naify, 288 pág.). Uma história com sete versões cumulativas, o livro infantil traz uma ilustração acompanhada de apenas uma palavra por página. A narrativa simples prende a atenção pela surpresa que causa a cada história. O que começa com o rotineiro trajeto de uma criança da escola para a casa, vai crescendo e vira uma grande aventura com direito a princesa, bruxas e feitiços cheios de cores fluorescentes. R$ 40.
Devoção verde, admiração geral
O que faz um goleiro virar santo? Ronaldo, Romário, Neymar, Cafu, Edmundo, Marcelinho Carioca, Rogério Ceni, Vanderlei Luxemburgo e outros grandes nomes do futebol brasileiro contam no documentário Santo Marcos por que o arqueiro aposentado do Palmeiras ganhou essa fama. “O Marcos cresceu, a trave diminuiu”, lembra Vampeta. “O povo brasileiro é devoto desse santo”, afirma Ronaldo. O filme, que estreou em novembro, traz defesas inesquecíveis, mostra a vibração da torcida e apresenta toda a trajetória de Marcos, desde seu início, em Oriente, no interior de São Paulo, até sua despedida, em dezembro de 2012, no Pacaembu. Seu maior feito, no entanto, é ter alcançado o raro respeito de múltiplas torcidas e até mesmo de quem não liga para futebol – obra mais do homem do que do santo.
OS “BALÕES DO BUTÃO”, DE JONATHAN HARRIS
Compartilhamento no Rio doria de M’Baraká Experiências, traz trabalhos do americano Jonathan Harris, do francês Sacha Goldberger e dos brasileiros Lucas Bambozzi e Alexandre Mury. De quarta a segunda-feira, das 9h às 21h, na sala A, no segundo andar do CCBB, Rua Primeiro de Março, 66, Centro, (21) 3808-2020. Grátis.
FOTOS CAUÊ DINIZ/DIVULGAÇÃO
A exposição Virei Viral, em cartaz até 6 de janeiro no Centro Cultural Banco do Brasi, no Rio de Janeiro, conta a história dos virais desde os tempos pré-digitais. São videoinstalações, obras digitais e suportes multiplataformas que apresentam a cultura do compartilhamento de conteúdos. A mostra, que tem cura-
Poesia de Cazuza Para celebrar a obra de Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, morto em 1990, o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, organiza a exposição Cazuza, Mostra Sua Cara, a primeira que a entidade paulista dedica a um artista que se destacou como compositor, e não como escritor. Cenográfica e interativa, a mostra ocupa oito salas do museu e revela como a poesia de Cazuza transcende da oralidade para a escrita sem abrandar o tom inquieto e inconformista de sua criação. Até 23 de fevereiro, no Museu da Língua Portuguesa. Terças, das 10h às 22h. Quarta a domingo, das 10h às 18h. Praça da Luz, s/n, (11) 3322-0080. R$ 3 e R$ 6.
Lado B
O selo Joia Moderna lançou o projeto Agenor, que traz releituras modernas e pegada eletrônica de 17 canções de Cazuza. China, Domenico Lancelotti, Botika, Letuce, Momo e outros novos nomes da música brasileira apresentam canções do início da carreira do artista, menos conhecidas. A banda Tono traz a faixa Amor, Amor, Wado interpreta Down em Mim, Mais Feliz fica a cargo de Silva, Catarina Dee Jah canta Largado no Mundo; e Mombojó leva Vem Comigo. Cada um apresenta, a seu modo, uma faceta de Cazuza: romântico, cruel, passional, provocador. A coletânea completa pode ser ouvida de graça em https://soundcloud. com/projetoagenor. Para saber onde comprar o CD, visite www.tratore.com.br. R$ 30. REVISTA DO BRASIL
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ANDREIA HERNANDES
Goiabices urgentes
É mesmo uma pena que o ICQ tenha sumido, idem o MSN. Todas estas partidas estão aí só pra nos mostrar como crescemos rápido demais
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ercebo que a tecnologia anda – ou corre – em ritmo tão acelerado que às vezes sinto como se tivesse perdido algo. A forma como algumas coisas são facilmente substituídas, confesso, por vezes assustam. Outro dia, uma colega me contou que bem naquele dia era extinto o MSN, bate-papo famoso de anos atrás. Achei um dó. Não que eu usasse. Não uso e não sinto falta. Mas fiquei com pena de que ele fosse mais uma coisa da minha geração a entrar em extinção. A verdade é que o MSN já chegou extinguindo o ICQ, que cresceu comigo e faz guardar boas histórias na memória. Em uma das madrugadas adolescentes, daquelas em que se dorme às 3 da manhã, pra acordar às 6 – o que garantia um belíssimo aprendizado nas aulas de Física, Química, entre outras facilidades da vida escolar –, bem na madrugada resolvi que tinha um assunto importantíssimo pra tratar com a Bia, prima, como eu, sempre de plantão quando o assunto era goiabice. Na época em que celular era coisa de gente de outra dimensão, eu, sabendo que ouvíamos a mesma rádio nas horas vagas, liguei o computador da família, que ficava no meu quarto, e me conectei ao meu ICQ. 50
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Mandei uma mensagem para o ICQ da rádio, e que dizia: – A Andréia, cidade tal, pede tal música, e aproveita para pedir à sua prima Bia, que com certeza está ouvindo a rádio também, entrar com urgência no ICQ. O radialista a leu, e na voz dele soou a maior das ousadias, cheia de graça. Tudo o que eu precisava, agora, era que a testemunha da ousadia a tivesse ouvido. Com a certeza de que daria resultado, aguardei até que a plaquinha de notificação me avisasse, acompanhada de um som fino do qual me lembro com clareza até hoje, que a Bia estava por lá. Em estado de graça, quando ela entrou, rimos, durante horas, testemunhas da engenhosidade e da proporção que tomou a arte. Ela precisou entrar no quarto dos pais, onde morava o computador. Era luz pra todo lado, som alto, e uma explicação nada convincente, para poder abrir o ICQ o quanto antes, e falar, com urgência sobre absolutamente nada. É mesmo uma pena que o ICQ tenha sumido, como o MSN. Todas essas partidas estão aí só pra nos mostrar como crescemos rápido demais. Bia e eu estamos hoje casadas, e agora mandamos mensagens via celular. Além disso, nos certificamos de enviá-las durante o dia, pois dormimos mais cedo, e – muito bem – acompanhadas. Quanto aos assuntos, o tempo, a idade, o casamento, o horário de dormir, mudaram muito pouco. Continuam as mesmas goiabices urgentes de sempre.