GRAZIANO E A FAO Orçamento de US$ 1 bilhão para combater a fome no mundo
nº 91
janeiro/2014
INDÚSTRIA DA GUERRA Despesas militares dos países são de US$ 1,7 trilhão em três anos
www.redebrasilatual.com.br
Paula: reajuste e PLR aliviam o orçamento
Na falta de investimentos, acordos salariais superam a inflação e a mão fechada dos empregadores e injetam recursos na economia do país
Exemplar de associado. Não pode ser vendido.
E S , H A E S S O F O Ã N A GENTE R$ 6,00
EstĂĄ todo mundo falando. VocĂŞ precisa ver. Canal 13 NET Digital: Grande S. Paulo. Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br
ÍNDICE
EDITORIAL
6. Na Rede
Notas que foram destaque na RBA no mês que passou
12. Economia
EXPOSIÇÃO “70 ANOS DA CLT”/RETRATOS DE ASSIS HORTA
Aumentos salariais ajudam país a manter crescimento
16. O fato na lente Algumas das imagens que marcaram o ano
22. Saúde
Uip: secretário também é chamado de Dr. Negócios
26. Entrevista
José Graziano, o mercado e os desafios da fome
30. Mundo
Registros históricos de Assis Horta: o mundo do trabalho e sua identidade com o país
36. Perfil
Os atores desta história
Dinheiro que vai para armas poderia alimentar o planeta Memórias e histórias do revolucionário Martinelli
O
38. Memória
SARAH FERNANDES
Trabalhador se identifica por meio da fotografia
44. América Latina Transformações na vida do “outro mundo” chamado Cuba
Seções Cartas 4 Mauro Santayana
10
Lalo Leal
25
Curta essa dica
48
Crônica 50
país convive nos últimos 20 anos com particularidades políticas, econômicas e sociais que parecem próximas de se esgotar. No campo político, as cinco disputas presidenciais desde 1994 tiveram como protagonistas PT e PSDB. Com o Plano Real, os tucanos elegeram duas vezes Fernando Henrique Cardoso. Em sua primeira gestão, a média anual de inflação foi 9,7% e o PIB cresceu, em média 2,4% ao ano. Nos quatro anos seguintes, 8,8% de inflação e 2,1% de PIB. A moeda era “estável”, mas um quinto da população não tinha emprego – e entre os que tinham a maioria era de informais. No primeiro mandato de Lula, a inflação anual esteve pouco acima de 6% e o crescimento do PIB, superior a 3,5%. No segundo, 5,1% de inflação e PIB a 4,6%. Daí vieram os detalhes sociais, com o desemprego descendo aos níveis mais baixos da história, rendimento em alta e programas sociais que impulsionaram a passagem de milhões de brasileiros para acima da linha de pobreza. Tais detalhes fizeram de Lula o presidente com maior taxa de aprovação da história, a ponto de virar, com Dilma, para 3x2 o placar dos confrontos presidenciais. A presidenta mantém relativo êxito – o que a faz favorita na disputa eleitoral, que pela primeira vez em 20 anos não tem, ainda, um tucano garantido na final. Os três primeiros anos de Dilma devem ter inflação média na casa dos 6% e PIB perto de 2% ao ano. O emprego formal ainda cresce e os índices de desemprego seguem baixos. Nesse aspecto, os trabalhadores têm sido protagonistas econômicos e sociais ao não abrir mão de seu direito de lutar por melhores salários e condições de trabalho e, com isso, firmar alicerces para que o pais se lance a nova fase de crescimento. Eles têm também protagonismo nesta primeira edição do ano. Numa reportagem, destaca-se a importância dos acordos salariais. Noutra, o antropológico papel da fotografia do pioneiro Assis Horta e seu retratos de operários tirados nos anos 1940, após o surgimento da CLT. E um perfil do ferroviário Raphael Martinelli que, quase aos 90 anos, acredita na força de sua classe como instrumento de transformação. A Revista do Brasil também também acredita. E são mais uma vez, aliás, os trabalhadores os protagonistas desta ferramenta de comunicação. Continuemos juntos em 2014. REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
3
CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, Hylda Cavalcanti, João Paulo Soares, João Peres, Rodrigo Gomes, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Capa Fotos de Roberto Parizotti e Phil Behan/ONU (fome) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
4
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
Joaquim Barbosa O senhor Joaquim Barbosa faz tudo o que um juiz não poderia (“A Justiça e o homem mau”, edição 90). É amigo de políticos, inimigo de outros, emprega seu filho numa emissora com processos sobre sonegação fiscal, é sócio de uma empresa-laranja nos EUA para a compra de um apartamento, além de outras coisas. Mas o pior, se isso não bastasse para que fosse afastado de vez do Judiciário, é derrogar a lei, é atropelar o devido processo legal, é pisotear sobre a Constituição Federal. É vergonhoso ver um juiz desse escalão usar da máquina judiciária para seus interesses mesquinhos, de um lado, e pretensões carreiristas, do outro. Jaime Iglesias Serral Parcialidade Eu, como grande parte da sociedade, discordo do conteúdo dessa matéria (“A Justiça e o homem mau”, edição 90); tanto é que o sr. Joaquim Barbosa é o terceiro colocado em intenção de voto à Presidência da República (segundo pesquisas) mesmo não sendo candidato. Em vez de condenar quem está cumprindo a lei vocês deveriam focar os que estão do lado dos réus. Como esta revista é gerada com recursos do sindicato (ao qual sou filiado), para o bem dos seus leitores, deveria ser imparcial. A corrupção é danosa ao país, qualquer que seja o partido que a cometa. Roberto Ricardo
Purificar as instituições Não há democracia nem nas ações dos mensaleiros, nem na forma redutora com que os meios de comunicação têm tratado o petismo, nem na urdidura e reiteração do caráter “heróico” do sr. Barbosa (“A Justiça e o homem mau”, edição 90). Há uma nuvem muito pesada de autoritarismo e antidemocracia em todas estas construções, cabendo à sociedade, pela recusa a representações generalizantes e polarizadas, o esforço no sentido de purificar nossas instituições de todas estas mazelas. Renato Romano Monteiro Caso Paulínia Parabéns a todos envolvidos no projeto (“O sabor de veneno da história”, edição 88). Que essa iniciativa – a produção de um filme sobre a contaminação por agrotóxicos por responsabilidade da Shell e Basf em Paulínia (SP) – ajude a mudar algo em relação ao descaso que é a fiscalização das condições de trabalho dos brasileiros. Thais Cabral Rio sem Perimetral Poucas vezes observei tamanho descaso com a população, sobretudo com o trabalhador, como no recente fechamento do elevado da Perimetral, na região portuária do Rio de Janeiro (“Demolição da Perimetral já tem data, mas faltou combinar com os cariocas”, na RBA, em bit.ly/rba_perimetral). Para quem conhece a cidade, uma tragédia mais do que esperada. Para piorar, imediatamente ao fechamento seguiu-se a criminosa demolição de um trecho da via. Sintomaticamente, os abutres apareceram. Dezenas de empreendimentos imobiliários surgem com vigor, derrubando antigos armazéns desocupados. Ao cidadão que depende do transporte urbano resta sofrer pelos próximos cinco anos. Washington Fazolato Barbosa
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
RÁDIOBRASILATUAL
93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio
Como nascem os preconceitos
E
m seu livro Doze Contos Peregrinos, o escritor colombiano Gabriel García Márquez conta a história de um cachorro que todos os dias era encontrado num cemitério de Barcelona junto ao túmulo de uma prostituta, Maria dos Prazeres. Com certeza se inspirou nas histórias reais de Bobby, um terrier de Edimburgo, Escócia, que durante 14 anos guardou o túmulo de seu dono. Ali ficou uma pequena escultura dele e uma lápide na qual gravaram: “Que sua lealdade e devoção sejam uma lição para todos nós”. Em Tóquio ergueram também uma estátua, na estação Shibuya, em homenagem a Hashiko, um cão da raça akita que todos os dias esperava seu dono retornar do trabalho. O homem morreu em 1925, e durante anos o cachorro foi aguardá-lo na mesma hora em que ele costumava regressar. Hashiko morreu em 1935 e a estação hoje tem seu nome – fizeram até um filme sobre esse episódio (Sempre a seu Lado, com Richard Gere).
LOGAN ABASSI/ONU
As discriminações não nascem na natureza. Brotam nas nossas cabeças e contaminam as nossas almas e atitudes Por Frei Betto
Cães e seres humanos são mamíferos, exigem cuidados permanentes, em especial na infância, na doença e na velhice. Manter vínculos de afeto é essencial à felicidade da espécie humana. A declaração de independência dos Estados Unidos teve a sabedoria de incluir o direito à felicidade. Pena que muitos estadunidenses considerem hoje a felicidade uma questão de posse. Daí a infelicidade geral da nação, traduzida no medo à liberdade, no espírito bélico, na indiferença para com a preservação ambiental e as regiões empobrecidas do mundo. É o chamado mito do macho, segundo o qual a natureza foi feita para ser explorada, a guerra é intrínseca à espécie humana e a liberdade individual é considerada acima do bem-estar da comunidade. O darwinismo social é uma ideologia cujos hipotéticos fundamentos já foram derrubados pela ciência, em especial a biologia e a antropologia. Essa ideologia foi introduzida na cultura ocidental pelo filósofo inglês Herbert Spencer, que no
século 19 deslocou supostas leis da natureza indevidamente atribuídas a Charles Darwin para o mundo dos negócios. John Rockefeller chegou ao ponto de atribuir à riqueza um caráter religioso, ao afirmar que a acumulação de uma grande fortuna “nada mais é que o resultado de uma lei da natureza e de uma lei de Deus”. O conceito de seleção natural de Darwin deriva de sua leitura de Thomas Malthus, que em 1798, em ensaio sobre crescimento populacional, afirmava que se crescer a uma velocidade maior que seu estoque de alimentos a população será inevitavelmente reduzida pela fome. Spencer agarrou-se a essa ideia para concluir que na sociedade os mais aptos progridem à custa dos menos aptos e, portanto, a competição entre os seres humanos é positiva e natural. E os que são cegos às verdadeiras causas da desigualdade social alegam que a miséria decorre do excesso de pessoas no planeta. Ora, se somos 7 bilhões de seres humanos no planeta e, segundo a FAO, produzimos alimentos para 12 bilhões de bocas, como justificar a desnutrição de 1,3 bilhão de pessoas? Não há excesso de bocas, mas falta de justiça. Quanto mais são derrubadas barreiras de classe, mais os privilegiados e seus ideólogos se empenham em buscar justificativas para provar que entre os humanos uns são naturalmente mais aptos do que outros. Outrora os nobres eram considerados espécie diferente, de sangue azul. Com a Revolução Industrial, gente comum se tornou rica, superando-os em fortuna. Foi preciso então criar uma nova ideologia: que o Estado e a Igreja cuidem dos pobres. E tão logo Estado e Igreja passaram a dar atenção aos pobres – sem deixar de cuidar dos ricos, que o digam o BNDES e a Cúria Romana –, os privilegiados puseram a boca no trombone, demonizando as políticas sociais, acusando-as de gastos excessivos. Preconceitos e discriminações não nascem na natureza. Brotam nas nossas cabeças e contaminam as nossas almas e atitudes. Vamos lutar contra eles. Frei Betto é colunista da Rádio Brasil Atual. Ouça em http://bit.ly/radio_frei-betto REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
5
redebrasilatual.com.br
Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
FELIPE TRUEBA/EFE
De volta ao La Moneda
A ex-presidenta (2006-2010) Michelle Bachelet volta ao poder no Chile, determinando o retorno dos socialistas ao poder, depois de um mandato do conservador Sebástian Piñera. Ela venceu a candidata governista, Evelyn Matthei, com 62% dos votos válidos. Na mensagem de saudação, a presidenta Dilma Rousseff chamou Bachelet de “amiga e parceira” do Brasil. É a primeira mulher eleita e reeleita no país vizinho. bit.ly/rdb91_bachelet1
A volta de Bachelet também joga uma balde de água fria nos que saudaram a vitória de Piñera, em 2010, como fim de um ciclo de esquerda na América Latina. Há quatro anos, houve uma espécie de comemoração de toda a mídia conservadora, que dizia que os chilenos estavam mostrando um novo caminho. Foi, porém, foi um caminho de pernas curtas. Piñera não conseguiu enfrentar os problemas que afetam a vida dos chilenos. bit.ly/rba_michele
FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/ABR
Brasil indígena
Brasil cigano
Espalhados pelo país, os ciganos somam mais de 500 mil, divididos em ramificações de três etnias. As famílias ainda enfrentam problemas de todo o tipo – dificuldade de acesso a programas sociais e escolas públicas, por exemplo –, além de sofrer discriminação. São 291 acampamentos registrados em 21 estados, principalmente em Minas Gerais, Bahia e Goiás. Desde 2007 eles estão incluídos na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. bit.ly/rdb91_cigano 6
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
Batizado de Nações Indígenas, um “bairro” está para completar três anos em Manaus. Em 19 de abril (Dia do Índio) de 2011, um grupo de 14 famílias se instalou em terreno baldio em um bairro da zona oeste da capital do Amazonas. Hoje, são quase 200 famílias e quase mil indígenas. Ainda com infraestrutura precária, a área já é vista como uma comunidade consolidada. As “ruas” foram divididas conforme a etnia. E o nome dado ao bairro não é casual: faz referência às pelo menos dez etnias de diferentes estados do Amazonas e de Roraima. bit.ly/rdb91_manaus
Mandela, Madiba
JON HRUSA/EFE
É possível que nenhuma outra personalidade política consiga repetir a proeza que Nelson Mandela obteve mesmo depois de morto. Em seu funeral, os presidentes dos Estados Unidos, Barack Obama, e de Cuba, Raúl Castro, trocaram um simbólico aperto de mãos, sob a vista da presidenta Dilma Rousseff. Esta, por sua vez, levou para a cerimônia quatro ex-presidentes brasileiros, de diferentes colorações partidárias: Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Fernando Collor (PTB) e José Sarney (PMDB). Mandela morreu em 5 de dezembro, aos 95 anos. Símbolo máximo da luta contra o apartheid, o regime de segregação racial na África do Sul, Madiba (seu apelido) foi o primeiro presidente negro do país (1994 a 1999), depois de passar 27 anos preso. Ganhou o Nobel da Paz em 1993. E inspirou movimentos mundo afora. “Mandela nos inspira a lutar, e a lutar por todos os meios”, diz Samoury Barbos, da Articulação Política de Juventudes Negras de São Paulo. “Outro ensinamento é que apenas conseguiremos nossos objetivos se agirmos coletivamente. Se o coletivo não está bem, tampouco estaremos como indivíduos.” bit.ly/rdb91_mandela1, bit.ly/rdb91_mandela2, bit.ly/rdb91_ mandela3, bit.ly/rdb91_mandela4, bit.ly/rdb91_mandela5
O Brasil avançou, mas ainda segue mal colocado no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), feito pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em um ranking com 65 países, o Brasil está em 58º em Matemática, 55º em leitura e 59º em Ciências. O percentual de estudantes de 15 anos matriculados aumentou de 65%, em 2003, para 78% no ano passado. E a taxa de repetência recuou de 40,1% (2009) para 37,4% (2012). bit.ly/rdb91_educa
GERARDO LAZZARI/RBA
Falta de educação
REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
7
REDEBRASILATUAL.COM.BR
MARCELO CAMARGO/ABR
Dias e Dallari encaram Calandra: cinismo
O torturado e o delegado “Gostaria que o senhor dissesse com toda sinceridade. Durante oito anos trabalhou no DOI-Codi. Nunca ouviu referência de que lá se torturava?”, pergunta o advogado José Carlos Dias, da Comissão Nacional da Verdade (CNV), ao delegado aposentado Aparecido Laertes Calandra. “Nunca ouvi referência disso”, responde Calandra. A tomada do depoimento foi um dos grandes momentos públicos de interrogatório promovidos pela CNV, criada em maio de 2012 pela presidenta Dilma Rousseff. Na audiência pública de 12 de dezembro, em São Paulo, o delegado teve de encarar ex-presos políticos
Que se mude a lei
ELZA FIÚZA/ABR
Maria do Rosário: “O Estado ainda não merece perdão”
8
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
torturados pela repressão. “É tão estranho a gente se encontrar assim, não?”, diz o jornalista Sérgio Gomes, preso em 1975. “Foi um depoimento cínico. Ele teve a desfaçatez de negar o óbvio. Que negasse as acusações que se fez contra ele, é crível, porque o réu tem o direito de negar. Ele aqui não é réu, mas de qualquer forma é acusado. Agora, dizer que durante oito anos trabalhou no DOI-Codi e nunca ouviu um grito, nunca ouviu uma alegação de que lá se torturava... São coisas absolutamente óbvias que ele negou”, constatou Dias. bit.ly/rdb91_calandra
No Fórum Mundial de Direitos Humanos, organizado em dezembro no Brasil, foram insistentes e recorrentes os pedidos pela revisão da Lei de Anistia, de 1979, no sentido de garantir efetiva punição a torturadores. A advogada Rosa Cardoso, da Comissão Nacional da Verdade, considerou um bom sinal a posição do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, de que crimes cometidos pela ditadura são imprescritíveis. “Criaram a ficção de que houve um pacto nacional para aprovar essa anistia, mas isso não existiu. Foi um suposto pacto que se deu num tempo em que vivíamos sob o paradigma da impunidade e do esquecimento. Hoje vivemos diante de um novo paradigma, o da reparação e da memória”, afirmou o ex-ministro Nilmário Miranda. “O Estado ainda não merece perdão”, disse a atual, Maria do Rosário. bit.ly/rdb91_anistia
REDEBRASILATUAL.COM.BR
Vim porque quis; se quiser, volto
DANILO RAMOS/RBA
Maricel examina criança em Embu (SP)
“Meu nome é Maricel Mejias, sou cubana e serei sua nova médica de família. Para mim será uma alegria e um grande prazer acompanhar a sua gestação até o parto.” Assim a médica recém-levada pelo Programa Mais Médicos ao município de Embu das Artes (SP) começou seu dia de trabalho. Era 6 de dezembro e a primeira consulta pré-natal de uma jovem de 17 anos. Maricel é médica há 27 anos. Foi direcionada para um bairro pobre, caracterizado por problemas sociais e sanitários. “Esporte e cultura também são saúde e eu não vi nenhum parque nessa região. Eu peço para as pessoas fazerem exercícios, mas onde?”, questionou. As vagas do Mais Médicos não preenchidas por profissionais
brasileiros foram oferecidas para estrangeiros. A maioria veio de Cuba, por meio de um convênio com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Parte do salário de R$ 10 mil é repassada para o governo cubano, para financiar o sistema de saúde, completamente público, e a formação de novos médicos. “Muitas pessoas dizem que estamos aqui obrigados. Não é verdade. O diretor da unidade de saúde em que trabalho em Cuba comunicou que o Brasil abriria vagas para missão e que os interessados poderiam se inscrever para um exame de competência. Eu vim porque quis e se quiser volto”, afirmou. bit.ly/rba_medica-cubana REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
9
MAURO SANTAYANA
O torturador é covarde por natureza O guerreiro luta por uma causa. O torturador se distingue pela ausência de riscos. O torturado sempre está desarmado. O torturador brinca com o medo do outro, porque não consegue enfrentar o seu
O
que é a tortura? Como um ser humano pode conceber usar o corpo de outro ser humano, que possui a mesma pele, a mesma boca, os mesmos dentes, os mesmos ossos, os mesmos cabelos, os mesmos bilhões de neurônios, para punir-lhe com dor, desespero e medo? A convenção das Nações Unidas, de 1984, contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação”. São muitos os que buscam atribuir a tortura à natureza humana, como fazem com a guerra e outros crimes. Mas existe um enorme abismo entre quem luta e o torturador. O guerreiro luta por uma causa. Está sujeito a morrer por uma fonte de água, a carcaça de uma presa recém-abatida, por sua mulher e seus filhos. O combatente atávico que existe em cada um de nós sabe dos riscos que corre, em defesa de suas circunstâncias, de suas ideias, de sua condição. Pode morrer ou ser ferido em batalha. 10
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
O torturador se distingue pela ausência de riscos, de coragem. O torturado sempre está desarmado, ou amarrado e indefeso, frente a ele. O torturador brinca com o medo do outro, porque, dentro de si mesmo, não consegue enfrentar e encarar o próprio medo. Ele é covarde por natureza, é movido pelo mal e o sadismo, e por sua fraca e abjeta personalidade. Ele não precisa de uma ideia, de uma razão. “A finalidade do terror é o terror. O objetivo da opressão, a opressão. A finalidade da tortura é a tortura. O objetivo da morte é a morte. A finalidade do poder é o poder. Você está começando a me entender?” explica, a um prisioneiro, um personagem de George Orwell, no livro 1984. Os torturadores são, antes de tudo, psicopatas. Dependendo do momento da história, irão torturar em nome de Deus, de uma bandeira, um uniforme, uma ideologia, uma religião. Use a roupa que usar, ocupe seja que cargo, o torturador não passa de criminoso vulgar. Uma sociedade que abomina assassinos, ladrões, corruptos, estupradores, não pode aceitar conviver, em seu seio, com torturadores. Até mesmo porque o torturador quase sempre é, também, assassino, ladrão, corrupto e estuprador. A diferença entre a tortura e a lei é a mesma que existe entre a barbárie e o progresso. Aceitar a tortura como inerente à condição humana é o mesmo que negar que um povo, um Estado, uma nação, a humanidade possam evoluir. Dostoiévski dizia que a melhor forma de medir o grau de civilização de um país era conhecer, por dentro, suas prisões.
Nesse aspecto, a situação no Brasil é vergonhosa. Não apenas com relação às condições e superlotação de nossas cadeias, mas pela forma como nossa sociedade convive com a tortura e o torturador. O brasileiro médio é falso, hipócrita e leniente com relação à tortura. As mesmas pessoas que se revoltam com o vídeo feito por uma vizinha, mostrando uma mulher espancando um cachorrinho na área de serviço, se regozijam quando veem um menino ou menina de 7, 8 anos – morador de rua e muitas vezes, já dominado pelo crack – ser agarrado pela orelha, e tomar uma surra de policiais ou seguranças. Param, a caminho do trabalho, para deleitar-se.
Corações e mentes
O agente do Estado, no Brasil, formado em uma longa tradição autoritária, que vem desde os capitães do mato, e dos diferentes hiatos ditatoriais de nossa história, acha que tem direito de vida ou morte sobre o suspeito. Isso está fartamente demonstrado não apenas nos milhares de casos de mortes por “auto de resistência”, mas também pelo que ocorre com os presos, muitos sem sequer terem passado por julgamento, no interior de nossas prisões. O mesmo vale para o outro lado da moeda. Da mesma forma que um policial corrupto espanca, humilha e ameaça matar a mãe ou a filha de um suspeito, para saber – em interesse próprio – onde está escondido o produto de um assalto ou a droga recém-chegada, a violência extrema tem sido praticada, também, pelas novas gerações de marginais, que torturam e matam
MARCELO CAMARGO/ABR
PASSANDO A LIMPO Manifestante carrega cartaz com fotos de vítimas da ditadura
famílias, crianças e idosos, para tentar saber onde está um punhado de reais. Como controlar essa corrente de estupidez? Um bom começo, do ponto de vista do Judiciário, seria perder o pudor de usar a lei e condenar alguém pelo crime de tortura. Raramente alguém que comete latrocínio com extrema violência tem a sua pena acrescida por tortura. É como se condenar alguém por esse crime fosse proibido, ou ela não existisse em nosso dicionário. Nos portais e redes sociais ela nunca é citada por quem a defende. Ninguém, referindo-se a um suspeito, escreve ou afirma “tem de torturar esse cara”. Para que fique tudo mais íntimo e corriqueiro, banalizado, usam-se expressões como “tá precisando é de couro”, “se fosse meu filho, dava uma de criar bicho”, “comida de preso é paulada”, “pendura que ele canta”, “tinha que cortar na borracha” e outras do gênero. A presidenta Dilma Roussef lançou, no último 12 de dezembro, o Sistema Nacional de Enfrentamento à Tortura, que prevê a instalação de um mecanismo autônomo
que, por meio de peritos, terá autorização prévia para entrar em penitenciárias, instalações militares, delegacias, instituições de longa permanência de idosos, instituições de tratamento de doenças psíquicas ou similares, para constatar a existência de possíveis violações de direitos humanos nesses locais. Trata-se de importante iniciativa, considerando-se que o Brasil é signatário da Convenção Internacional Contra a Tortura desde 1989, e que, em 500 anos de história, é a primeira vez que a Nação está encarando, de forma direta, essa abominável questão. Mas a verdadeira batalha não se dará apenas com a fiscalização do que está ocorrendo nas prisões, que poderia avançar com a instalação de delegacias de direitos humanos em todo o país. Ela será travada nos corações e mentes da população brasileira. Não podemos nos considerar civilizados enquanto milhares de brasileiros defenderem a execução ilegal e a tortura como método de punição e investigação. Não podemos nos considerar civilizados
enquanto juízes estabelecerem jurisprudência atribuindo à vítima de tortura o ônus de provar que foi torturada. Esse paradigma, estabelecido na ideologia escravocrata e repressora de parte considerável de nossa sociedade, só poderá ser alterado a partir do ensino, em todas as escolas, desde o primeiro grau, dos direitos e deveres consubstanciados na Constituição brasileira, atendo-se estritamente ao seu conteúdo, para não dar à direita fascista motivo para combater a iniciativa. Só quando ensinarmos nossos filhos e netos que o mero ato de um policial espancar um manifestante, em uma situação de protesto – ou manifestantes espancarem um policial desarmado – é ilegal; que extrair dor de outro homem, mulher, criança, indefeso, humilhando-os, transformando-os, pelo medo, em animais irracionais, que gritam, sangram e choram, segundo a vontade de seu torturador, é crime abjeto e condenável, poderemos começar a mudar, de fato, a mentalidade a propósito da tortura, sua imagem e paradigmas, em nosso país. REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
11
TRABALHO
GRANA NO BOLSO C O ano foi difícil, contas e despesas aumentaram e o país cresceu menos. Mas os acordos salariais dão fôlego ao trabalhador – sem tirar o do empregador – e à economia. E ainda há margem para crescer Por Vitor Nuzzi 12
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
J
aneiro não é mês agradável quando o assunto é orçamento doméstico. Ainda mais quando se vem de um ano difícil, com crescimento menor e inflação preocupante. Mas um fator tem ajudado a, pelo menos, manter o jogo equilibrado: mesmo que o salário do brasileiro esteja longe de ser
TRABALHO
cos, químicos, petroleiros e trabalhadores nos Correios, que negociaram no segundo semestre de 2013, representaram um acréscimo de R$ 11 bilhões na economia – os dados de metalúrgicos e químicos referem-se à base de sindicatos da CUT no estado de São Paulo, enquanto as demais categorias têm campanhas de abrangência nacional. Segundo o Dieese, 2012 foi o melhor ano para negociações salariais desde o início da pesquisa sobre o tema, em 1996. A tendência é de que 2013 mostre resultados parecidos, embora com aumentos reais (acima da inflação) menores. Evidentemente, nem tudo vai para o consumo. A operadora de produção Paula dos Santos Oliveira, 30 anos completados em dezembro, tem como prioridade pagar dívidas. “Sei que muita gente se programa para viajar, tirar férias, reformar casa, mas eu vou aproveitar a diferença que vem agora no final do ano para quitar as minhas dívidas”, conta Paula, que se mudou da Bahia para São Paulo em 2005. Mas pensa em voltar um dia – já comprou um “terreninho”, que precisa terminar de pagar. Funcionária da indústria de plásticos Voss Automotive, em Piraporinha, bairro de Diadema, no ABC paulista, Paula teve reajuste de 8% e participação nos lucros ou resultados (PLR) de R$ 930. “Foi pouco, porque o nosso piso é baixo, mas é melhor pingar do que faltar”, diz a ope-
exuberante, os reajustes obtidos nos últimos anos e o aumento da renda foram determinantes para sustentar a economia. Campanhas salariais com índices acima da inflação correspondem a bilhões a mais em circulação. Acordos de categorias profissionais numerosas, como bancários, metalúrgi-
Espaço para crescer
A renda do trabalho vem aumentando nos últimos anos. Pelos dados da pesquisa mensal da Fundação Seade e do Dieese em seis regiões metropolitanas e no Distrito Federal, por exemplo, a massa de rendimentos está próxima dos R$ 33 bilhões. Apenas três anos atrás, somava R$ 27 bilhões. Um acréscimo de R$ 6 bilhões, considerando o maior número de pessoas no mercado e o crescimento do salário. Um período mais abrangente reforça esse quadro. Segundo o IBGE, em outubro de 2002 a massa de rendimentos habitual dos ocupados em seis regiões metropolitanas atingia aproximadamente R$ 16 bilhões. Em outubro deste ano, chegou a R$ 45 bilhões. Mesmo os resultados recentes do Produto Interno Bruto (PIB), embora pouco animadores, mostram que o consumo das famílias continua sendo força determinante para a sustentação da economia. No terceiro trimestre de 2013, esse item teve crescimento de 2,3% sobre igual pe-
DINO SANTOS/AGÊNCIA ÀGAMA/SIND.QUÍMICOS ABC
CERTO
rária, contando com alguma sobrinha para compras. “Afinal, também sou filha de Deus”. Paula banca sozinha as despesas, incluindo as da filha de 11 anos. “O pai dela morreu, não recebo pensão, mas estou trabalhando, batalhando e estudando. Recebo bolsa para estudar Educação Física, e pelo menos esse gasto eu não tenho.”
ROBERTO PARIZOTTI/RBA
“AFINAL, TAMBÉM SOU FILHA DE DEUS” Paula e a filha: quitar dívidas e fazer compras
CAMPANHA DOS QUÍMICOS Salário e direitos
REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
13
TRABALHO
14
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
ESCLARECIDA Vaniza (de amarelo) investe tudo o que ganha na família
LUCIANA WHITAKER/RBA
ríodo do ano anterior – foi a 40ª variação positiva seguida. “Um dos fatores que contribuíram para este resultado foi o comportamento da massa salarial real, que teve elevação de 2,1% no terceiro trimestre de 2013”, informa o IBGE. Mesmo na comparação com o segundo bimestre, na qual o PIB recuou 0,5%, o consumo das famílias subiu 1%. O PIB no terceiro trimestre somou R$ 1,2 trilhão e o consumo das famílias, R$ 765 bilhões. “A dinâmica de desenvolvimento está relacionada ao mercado interno”, observa o presidente da Fundação Perseu Abramo, Marcio Pochmann. “Dentro dessa perspectiva, temos o consumo puxado pelos salários, em especial na base da dinâmica social”, acrescenta o economista, citando o aumento do salário mínimo e programas sociais. Ele lembra que a participação da renda do trabalho no total vem crescendo de 2003 para cá, e hoje está em torno de 45%. De 1995 a 2002, caiu de 48% para 42%. Já esteve acima de 50%. “Tem espaço para crescer.” “Dois terços da nossa atividade são sustentados pelo mercado interno”, acrescenta o diretor-técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio. Ele destaca a importância de manutenção desse processo, até para a criação de postos de trabalho de melhor qualidade. Hoje, grande parte dos empregos criados é de baixa renda e tem duração menor, “um dos motivos que explica em parte o aumento do gasto com seguro-desemprego”. A rotatividade é um problema ainda sem solução. “Estamos no limite do que a gente pode chamar de uma certa estabilidade no emprego”, diz o economista. Aí entra outro item importante do crescimento: o investimento. “Para que o investimento ocorra, é fundamental que se preserve o mercado interno. A demanda traz investimento para agregar valor, resultando em postos mais qualificados. Os serviços também poderão ser mais sofisticados. Essa é a dinâmica”, aponta Clemente. Em economês, investimentos são as aplicações necessárias para se melhorar a capacidade produtiva de um governo ou empresa. São, por exemplo, recursos empregados em melhoria e am-
Cada ponto percentual que a gente consegue numa campanha salarial, cada real a mais de PLR, é um recurso a mais apropriado por quem trabalha, que é quem carrega o piano. Tanto o reajuste como a participação poderiam ser maiores e mais justos, mas pelo menos já estamos numa lógica mais correta Vaniza Pinto pliação de estradas, portos, aeroportos, geracão de energia, em ciência e tecnologia, máquinas e equipamentos, qualificação de pessoal.
Falsa polêmica
Segundo o coordenador de análise da Fundação Seade (vinculada à Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Regional do Estado de São Paulo), Alexan-
dre Loloian, os rendimentos em 2013 devem fechar um pouco abaixo do nível do ano anterior, mas acima de 2010 e 2011, assim como a massa salarial. “Uma coisa importante foi não ter perdido o volume nesses anos de relativa estabilidade. Não é à toa que a economia tem se sustentado.” O rendimento médio dos ocupados em outubro nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE era
TRABALHO
de R$ 1.917. Dez anos antes, somava R$ 1.432. No mercado formal, medido pela Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, a remuneração média no final do ano passado era de R$ 2.080, ante R$ 1.356 em 2007. Loloian vê uma falsa polêmica na discussão sobre crescimento pelo consumo ou pelo investimento. “Ambos têm de crescer”, afirma. “Mal comparando, é a bobagem de falar que o investimento está baixo porque o nível de poupança também está. Se não há atrativo para investir, os empresários não investem. Quais são os estímulos que a economia está oferecendo para os donos do dinheiro?”, questiona. “Essa contradição entre consumo e investimento é para o pensamento conservador.” Para Loloian, ainda se consume pouco no Brasil devido ao juro “exorbitante”. Ele lamenta a interrupção do movimento do governo Dilma contra o sistema financeiro. “Quando o governo fez aquele movimento de redução da Selic, houve pequena redução para capital de giro e consumo. Reduziu muito pouco. E o jurou começou a voltar, naquela pressão rentista.”
Melhor distribuição
A analista de processos Vaniza Pinto, do Rio de Janeiro, tem mais tempo de trabalho no sistema financeiro do que a idade de sua filha mais velha, 36 anos a
30. Foi por nove anos bancária do extinto Nacional, trabalhou outros dois no extinto Banespa e está há 25 no Banco do Brasil – atualmente lotada na Previ, o fundo de previdência complementar dos funcionários. Esclarecida, acompanhou e sabe descrever em minúcias dificuldades enfrentadas em diferentes períodos da história do país e seus efeitos no mundo do trabalho, sobretudo em seu setor. Entre o final dos anos 1970 e meados da década seguinte, ela lembra que os trabalhadores, no geral, tinham muitas dificuldades para negociar seus acordos coletivos: “Sofríamos as restrições de um regime ditatorial que dificultava as reivindicações e, ao mesmo tempo, o ambiente era de crise e arrocho. Tudo era muito difícil”. Em seguida, recorda, veio uma temporada de pacotes e planos econômicos, a pretexto de tentar conter a inflação. “Planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor... cada vez que os governos baixavam um pacote mirabolante os salários sofriam perdas enormes. A corda sempre arrebentava para nosso lado”, conta Vaniza. “Depois veio o Plano Real, em 1994, que segurou a inflação, e nós que pagamos pela tal estabilização da moeda. Na época eu já estava no BB e ficamos oito anos sem reajuste. Começamos a usar a modesta PLR, que surgiu logo depois, para compensar parte do sufoco provocado pelo salário congelado.” Vaniza assinala que a partir de 2003 os acordos começaram a assumir um con-
ceito mais próximo do que considera adequado. “Passamos a conviver com pelo menos três aspectos que devem sempre compor o valor do nosso trabalho: a reposição da inflação, o aumento por produtividade e a remuneração baseada nos resultados e na lucratividade, a dita PLR”, defende. “Nós não empreendemos, não somos empresários, a gente vende a força do nosso trabalho. Então, cada ponto percentual que a gente consegue numa campanha salarial, cada real a mais de PLR, é um recurso a mais apropriado por quem trabalha, que é quem carrega o piano. Tanto o reajuste como a participação poderiam ser maiores e mais justos, mas pelo menos já estamos numa lógica mais correta.” A bancária, no entanto, garante que em todos esses anos de batente seu forte nunca foi acumular bens materiais. “Até hoje não comprei uma casa. Tudo o que ganho, invisto na educação e na formação das minhas filhas, uma de 30 anos e as gêmeas de 22, duas formadas e uma estudando, todas em universidade pública.” Em seu segundo casamento, Vaniza convive ainda com sete enteados, de 9 a 31 anos, e dois netos. “Para tudo, o raciocínio é o mesmo: investir em qualidade de vida, garantir boa educação e saúde, que aliás deveriam ser obrigação do Estado. Mas isso são outros quinhentos.” Colaboraram Paulo Donizetti de Souza e Viviane Claudino
Um entra, outro sai O emprego cresce de forma ininterrupta há dez anos, com menor vigor no período recente. No mercado formal, os mais de 47 milhões de trabalhadores no final de 2012 (conforme dados da Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho e Emprego) representam quase o dobro do contingente de meados dos anos 1990. Mas uma questão ainda desafia a formação de uma força de trabalho mais qualificada e bem remunerada: o entra-e-sai de pessoas, todos
os meses, no mercado. Os dados mensais colhidos para o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), também do ministério, dá uma ideia do tamanho da rotatividade de mão de obra no Brasil. De janeiro a outubro deste ano, 19,1 milhões de trabalhadores foram contratados sob o regime da CLT (com carteira assinada). No mesmo período, as empresas demitiram 17,4 milhões. A rotatividade tem um efeito “perverso” para o trabalhador,
aponta o Dieese. Estudo sobre o setor da construção civil, por exemplo, mostra crescimento do salário médio, mas lembra que o maior volume de contratações ocorre em faixas de menor rendimento. De 2011 para 2012, o emprego só cresce para remunerações de até dois salários mínimos. “A despeito da exigência de maior escolaridade, o rendimento no setor ainda permanece muito baixo”, observa o instituto. O salário médio de admissão, no ano passado, foi de R$
1.099,75, enquanto os demitidos ganhavam R$ 1.175,18. Isso é rotina também no setor financeiro. Segundo a Contraf-CUT, confederação nacional dos bancários, nos primeiros dez meses deste ano foram contratados 33.683 trabalhadores, com salário médio de R$ 2.943,95. No mesmo período, saíram 36.294 funcionários, que ganhavam R$ 4.655,70 – a diferença entre a remuneração dos que saíram e dos que entraram é de -36,8%. REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
15
FOTOGRAFIA
RETROVISOR
16
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
FOTOGRAFIA
R DO FUTURO Cenas da Revista do Brasil e da Rede Brasil Atual. Belas, não um caleidoscópio sem lógica, mas para se ver nos recados do ano que passou possibilidades para os que estão por vir. E lembrar que se a vida está incompleta, não tem de terminar assim. Cada gesto, solitário ou coletivo, é um traço de futuro
FOTOS DANILO RAMOS/RBA
A CIDADANIA TEM PRESSA O mundo político foi atordoado com os protestos de junho. Começaram com o Movimento Passe Livre e se expandiram contra todos os déficits de cidadania. A brutalidade policial estimulou, primeiro, a solidariedade em massa. Depois, manifestantes das boas causas passaram a dividir ruas com oportunistas sem causa. Noves fora, prevaleceu a convicção: o povo tem de ser ouvido REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
17
DANILO RAMOS/RBA
FOTOGRAFIA
SERGIO AMARAL/RBA
MAURICIO MORAIS/RBA
CAMINHO PARA IGUALDADE A Lei nº 10.639, que a partir do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira pretende combater o racismo e a discriminação, fará 11 anos e ainda patina para “pegar”. Acima, estudantes e educadores da Vila Curuçá, em São Paulo, em ação para virar essa página. Abaixo, (à esq.), a professora Jeidma e seus alunos em Samambaia (DF)
18
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
FICOU NA MÃO Depois de estudar por mais de dez anos, para realizar o sonho de aprender a ler e a escrever, dona Terezinha, 82 anos, viu fechar as turmas para adultos na escola em que estudava, em Ribeirão Preto (SP)
GILDO LIMA/RBA
FOTOGRAFIA
GERARDO LAZZARI/RBA
FÁBIO VICENTINI/ARCO/RBA
SANTO AMARO (BA) Fábrica instalada nos anos 1960 na cidade baiana deixou rastro de contaminação na vida do trabalhador
MELHOR QUE HOSPITAL Olinda participa de academia pública e ao ar livre, promovida pela prefeitura de Vitória (ES)
DANILO RAMOS/RBA
GERARDO LAZZARI/RBA
PONTAS SOLTAS EM CORUMBIARA (RO) Na cidade assombrada por um massacre de sem-terra há 18 anos, e ainda impune, famílias à espera de indenização ainda convivem com o medo e o abandono
SOMOS DO MOINHO Moradores da favela do centro da capital paulista lutam pelo direito ao seu lugar, cobiçado pela especulação REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
19
MARIA INES HIRIART/RBA
FOTOGRAFIA
20
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
BRUNO PERES/RBA
DANILO RAMOS/RBA
SEM MEDO DA POLÊMICA Impulsionado por uma base social que faz avançar a agenda pró-direitos civis, o Uruguai discute legalização da maconha, união homoafetiva e aborto. No Brasil, homossexual ainda luta para não ser “tratado”
BEM-VINDOS Doutores cubanos são hostilizados por corporações médicas não preocupadas com a ausência de profissionais nas periferias, mas prevalecem as boas-vindas
RAONI MADDALENA/RBA
FOTOGRAFIA
DANILO RAMOS/RBA
GERARDO LAZZARI/RBA
OPERAÇÃO ÁGUA ESPRAIADA Para construir monotrilho na região cada vez mais valorizada na zona sul paulistana, o governo de São Paulo promoveu grande remoção de pessoas para os extremos da cidade, comparável ao expurgo malufista dos anos 1990. Talita resiste à destruição
SUPERFATURADO E PROBLEMÁTICO Alvo de investigações por corrupção, Metrô paulistano sofre com panes, superlotação e falta de transparência
A ROÇA É AQUI Gente como seu Genival faz das hortas comunitárias urbanas um modelo de saúde e de economia a ser notado REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
21
SAÚDE
DOUTORES EM NEGÓ
Secretaria da Saúde do governo Alckmin é comandada por médicos que misturam serviço público com interesses privados Por Cida de Oliveira 22
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
A
o completar dez anos, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) cobre praticamente 80% da população do estado de São Paulo. Nos últimos três anos, para cada ambulância fornecida pelo governo estadual, a União cedeu quatro. No período, os recurso do orçamento para compra desses veículos foram reduzidos em 80%. Além disso, São Paulo é a única unidade da federação que não entra no
rateio do financiamento do serviço, no qual União entra com metade e estados e municípios dividem os outros 50%. No caso paulista, a parte do estado sobra para as prefeituras. A opção do governador Geraldo Alckmin (PSDB) é investir no próprio programa, o Grupo de Resgate e Atendimento às Urgências (Grau), em parceria com o Corpo de Bombeiros – corporação que também padece de falta de recursos. Em três anos, caíram também os repasses para
GÓCIOS
DIVULGAÇÃO
GRANDES JOGADAS Alckmin e Uip: processos e coleção de empresas
EDSON LOPES JR/A2 FOTOGRAFIA/GOVERNO DO ESTADO, SP
SAÚDE
aplicaçãona atenção básica, hospitalar e ambulatorial e na vigilância sanitária e epidemiológica nas cidades paulistas. O problema chega à distribuição de medicamentos: o programa Dose Certa ficou fora do orçamento nos dois últimos anos, e uma fábrica de genéricos da Fundação para o Remédio Popular (Furp), inaugurada em 2009, em Américo Brasiliense, produz menos de 5% de sua capacidade total. Há ainda o sucateamento de serviços públicos, em especial pronto atendimento, hospitais e outras unidades, mesmo as administradas pelas organizações sociais de saúde (OSs), propaladas como exemplo de gestão. Dos 23 hospitais estaduais, 12 estão hoje nas mãos dessas entidades, cujas contabilidades não andam bem – e fica difícil se saber o porquê, pois falta transparência na prestação de contas. Ano passado, o governo destinou a elas R$ 4,6 bilhões, enquanto a administração direta no setor recebeu R$ 5,1 bilhões. Entre 2008 e 2012, os recursos para as OSs aumentaram 268%, de R$ 917 milhões para R$ 3,3 bilhões. Com números ruins, em vez de ajustes na política o governo de São Paulo recorre a um esforço de melhorar a imagem como forma de “concorrer” com a boa avaliação do Programa Mais Médicos, do governo federal, que agora em 2014 deve levar o ministro Alexandre Padilha à disputa com Alckmin pelo Palácio dos Bandeirantes. A uma parte desse esforço os cidadãos podem assistir diariamente nas propagandas do governo veiculadas em horário nobre. Outra demonstração de empenho na melhora da imagem está na indicação de médicos renomados, com carreiras brilhantes em grandes hospitais e nas universidades e bom trânsito entre celebridades e lideranças políticas O PÚBLICO A SERVIÇO DO PRIVADO O secretário-adjunto de Saúde do Estado, Wilson Modesto Pollara, também cultiva participação em empresas da área
de todas as cores. Entretanto, essas indicações podem não significar necessariamente sintoma de preocupação com a saúde pública.
Conflitos de interesses
O secretário estadual de Saúde é David Everson Uip, professor de Medicina e infectologista conhecido internacionalmente. Iniciou carreira pública em 1986, como médico assistente no Instituto do Coração (Incor), que chegou a dirigir. Em 2009, tornou-se diretor do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Mas nunca se desligou da iniciativa privada. Que o digam amigos empresários de Uip que foram em peso prestigiar sua palestra em evento promovido no início de dezembro pela Lide, organização de lideranças empresariais presidida pelo jornalista e empreendedor João Doria Jr.. Amigos do secretário, dirigentes do Sírio-Libanês e Albert Einstein enalteceram suas fortes ligações com essas instituições. Aliás,seu nome continua vinculado ao Sírio por meio da Sociedade Beneficente de Senhoras, articuladora da OS que administra o Hospital Geral do Grajaú e o Serviço de Reabilitação Lucy Montoro, entre outras unidades. No mesmo evento, à vontade, agradeceu o ex-presidente local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) Luiz Flávio Borges D’Urso, por defendê-lo em um processo que acabou arquivado. Não especificou qual, e há mais de um em seu currículo. Uma das empresas do secretário, a Sociedade de Consultoria e Assistência Médica David Uip Ltda., já foi pivô de suspeitas de irregularidades. Em 2005, o vendedor Wilson Gandolfo Filho levou à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados denúncia de que o médico Rogério Zeigler, do quadro do Incor e sócio de Uip, o teria cobrado na Justiça por serviços prestados entre julho e agosto daquele ano, durante internação para tratamento de doença cardíaca. O caso foi investigado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que aceitou as explicações do ex-diretor. Mas os peritos viram outras irregularidades, como falta de cotação de preços para comREVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
23
SAÚDE
24
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
ele teria autonomia durante 35 anos, podendo até construir alas particulares e mudar o nome do hospital. Como lembra o jornal A Tribuna, de Santos, Uip – que havia assumido a direção do Emílio Ribas no começo daquele ano – “chegou a alinhavar com a Secretaria de Estado da Saúde uma parceria visando um auxílio financeiro para o Santo Amaro”. Seu sonho de ter um hospital em Guarujá acabou realizado, de maneira indireta, em junho passado, quando foi inaugurada filial do instituto de infectologia no distrito de Vicente de Carvalho, em prédio cedido pela prefeitura.
Iate Clube
Mais discreto, o secretário-adjunto, o cirurgião Wilson Modesto Pollara, já dirigiu o Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo e o São Camilo, da rede privada. Pollara parece avesso a badalações. Mas nem sempre é possível escapar de eventos sociais. Um deles, uma festa no Iate Clube do Guarujá, rendeu-lhe na coluna social de um jornal local uma foto ao lado de um velho amigo: o colega de profissão Mauro Hamilton Bignardi. Conforme legenda em reportagem do blogueiro e colunista social Welinton Andrade, am-
DIVULGAÇÃO
pra de bens e serviços e de comprovantes de despesas, movimentação em conta estranha à do convênio, além de pagamento de salários e encargos da Fundação Zerbini, que ele também presidiu, e do Incor, com recursos federais, entre outros. No relatório do TCU constam os nomes de José Eduardo Rangel de Alckmin e José Augusto Rangel de Alckmin, primos de Alckmin, entre os defensores constituídos nos autos. Outro processo que D’Urso pode ter arquivado seria o que decorreu de suspeitas numa campanha para angariar recursos para o Instituto Emílio Ribas. Em novembro de 2009, Uip avalizou, juntamente com o então prefeito paulistano, Gilberto Kassab, a campanha “A cara da vida”, criada pela apresentadora Adriane Galisteu em gratidão ao hospital que tratou seu irmão soropositivo. O empresário Alexandre Iódice, hoje marido de Galisteu, produziu inicialmente 5.200 camisetas para doar à campanha. Como lembra um colega da área, Uip autorizou o uso do nome da instituição para captar dinheiro, mas não se sabe quanto foi arrecadado nem quem fiscalizou a destinação. Em reuniões, Uip teria dito que depositou o dinheiro em sua conta por gozar de confiança dos envolvidos. Em Guarujá, onde tem casa de praia, pretensões políticas e proximidade com autoridades, o infectologista é chamado de Dr. Negócios. Segundo registros na Receita Federal e na Junta Comercial de São Paulo, Uip é sócio de diversas empresas, como a David Uip Prestserv, a Uip Indústria, Comércio e Prestação de Serviços em Construção Civil e Transportes Ltda., a Uip Patrimonial S/A e a Transuip Transportes, Logística e Serviços Ltda. Mas a alcunha deve-se a uma tentativa do secretário, em 2009, de adquirir o único hospital do município, o Santo Amaro – negócio barrado pela Câmara Municipal. A minuta do contrato que seria celebrado entre a mantenedora Associação Santamarense de Beneficência do Guarujá (ASBG) e a Sociedade de Consultoria e Assistência Médica David Uip Ltda., cuja cópia foi obtida no Legislativo local, rezava, entre outras coisas, que
bos estão na ASBG, a que quase vendeu o hospital Santo Amaro a Uip. Pollara e Bignardi são também sócios na BP Consultoria e Gestão Empresarial Ltda. A empresa aberta em 12 de julho de 2012, com sede em São Bernardo do Campo, na região do ABC, fornece “assessoria e consultoria na área da saúde, orientação e assistência operacional para gestão do negócio, em matéria de planejamento, organização, reengenharia, controle orçamentário”. Embora seu nome não apareça entre os diretores, Pollara é sócio também da empresa Intensimed Cuidados Médicos Intensivos, criada para prestar serviços de medicina intensiva, captação de recursos humanos, organizar rotinas assistenciais e assessorar áreas de desenvolvimento tecnológico. Bignardi tem ainda outras empresas. É sócio da Essencial Participações e Construções Ltda. e da Serra do Mar Mineradora Ltda.. Aparece também como sócio-diretor das empresas Cubatão Serviços Médicos, Guarujá Serviços Médicos, Praia Grande Serviços Médicos e São Vicente Serviços Médicos, que tiveram seus contratos com a prefeitura de Itapetininga investigados pelo Tribunal de Contas. Segundo o Correio de Itapetininga noticiou em dezembro de 2012, todas prestavam serviços praticamente exclusivos para a OS Serviço de Assistência Social e Saúde (SAS). Além do Hospital Regional de Itapetininga, a OS administrava unidades em Americana, Araçariguama, Vargem Grande Paulista, São Miguel Arcanjo e São Paulo. O esquema foi investigado pelo Ministério Público paulista, que no último 6 de dezembro encaminhou à Justiça o inquérito da chamada Operação Atenas. Até agora, o nome dos envolvidos não foi divulgado. São informações a se prestar atenção nas próximas semanas, para que se possa conferir em que medida a qualidade curricular das autoridades em saúde do Estado está a serviço do serviço público. Ou se há interesses privados a contaminá-las. A CARA DA VIDA Ninguém sabe quanto a campanha arrecadou em nome do Instituto Emílio Ribas
LALO LEAL
Seis autores à procura de um personagem
O espetáculo criado pelos grandes meios de comunicação em torno da prisão de parte do condenados na Ação Penal 470 é apenas o prenúncio do que será 2014 no Brasil
A
ssumida como principal partido de oposição, a mídia brasileira faz lembrar a peça de Pirandello Seis Personagens à Procura de um Autor. Aqui, são seis famílias à procura de um candidato à Presidência da República. Enquanto não descobrem (ou não decidem) quem será o seu líder, vão montando os quadros de apoio e os cenários para sustentá-lo. Quando se esperava que as cenas do avião da Polícia Federal levando os condenados para Brasília fosse o epílogo de uma campanha iniciada em 2005 com a criação do “mensalão”, eis que a mídia consegue estender ainda mais a história. Deixa tudo de lado (meia tonelada de cocaína num helicóptero de parlamentar mineiro, por exemplo) para acompanhar a vida dos presidiários, com o requinte – no caso da Globo – de enviar uma equipe de reportagem ao Panamá para descobrir um possível dono do hotel que havia oferecido emprego para José Dirceu. A Folha de S. Paulo acompanhou as visitas aos presos como se esta fosse a principal preocupação do país. O desejo de esticar ao máximo o assunto é visível. Novas prisões (escrevo antes delas), como a do deputado João Paulo Cunha (PT-SP), vão reavivar o noticiário. A recuperação da presidenta Dilma Rousseff nas pesquisas, depois da queda verificada no meio do ano passado, deixou a mídia ainda mais ouriçada. A Folha chegou a publicar carta de leitor lamentando que as manifestações de rua de junho de 2013, fator que teria abalado a liderança de Dilma, não tivessem sido re-
tardadas para as proximidades do pleito presidencial. Torcida e incentivo para que elas voltem não faltam. Se não voltarem, sobrarão as imagens e os sons daqueles atos repetidos à exaustão. O que aliás já ocorreu com as indefectíveis resenhas jornalísticas de final de ano. A rádio Estadão foi mais longe e fez uma série de programas só para lembrar “as jornadas de junho”. Para dar conta da campanha eleitoral de 2014, as empresas reforçam seus quadros com comentaristas vinculados à oposição. A TV Cultura de São Paulo traz para a apresentação do Roda Viva um jornalista que se especializou, na revista Veja, em assacar impropérios contra o presidente Lula. Nesse linha, ele não perde a oportunidade durante o programa de forçar o entrevistado a fazer criticas a presidenta e ao seu antecessor. Fez isso, por exemplo, com o historiador Ronaldo Costa Couto, que saiu da armadilha com elegância e com o cantor Lobão, que fez o contrário. Com cenário e personagens prontos, ainda que estes últimos tendam a crescer em 2014, resta conhecer o ator principal. O sonho dourado dessa mídia, escancarado pela revista Veja, é o presidente do STF, Joaquim Barbosa. As inúmeras capas e matérias laudatórias tornam o desejo evidente, sem nenhuma preocupação com o perigo que uma candidatura desse tipo representa para o país. Seria a combinação, numa pessoa só, do desequilíbrio político-emocional de figuras como Jânio Quadros e Fernando Collor. Se não der certo apostarão em Eduardo Campos e Aécio Neves, nessa ordem de preferência. Marina, com seus discursos tortuosos, é uma alternativa pouco confiável para a mídia que, em último caso, correrá para os braços de Serra e de sua obstinação pela presidência. A situação não seria tão trágica se tivéssemos por aqui veículos impressos de alcance nacional capazes de dar conta das várias tendências políticas existentes no pais. Que cada um então defendesse a sua. Mas não é assim, há um pensamento uniforme alinhado aos interesses do grande capital financeiro internacional e avesso às políticas de transferência de renda e de maior inclusão social. Vigora na mídia o pensamento único. No rádio, importante formador de opinião, e na TV a situação é ainda mais grave. Usam o espaço público das concessões recebidas para defender privilégios privados. Fazem desses veículos instrumentos de propaganda política afrontando as leis e a ética. 2014 promete. REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
25
ENTREVISTA
26
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
ENTREVISTA
RICK BAJORNAS/ONU
O mercado e a fome
EMERGÊNCIA Voluntários preparam mistura com farinhas de milho, soja e trigo, óleo e açúcar para alimentar crianças desnutridas no campo de refugiados no Sudão
ALBERT GONZALEZ FARRAN/ONU
D
O objetivo do agrônomo brasileiro José Graziano em sua gestão à frente da FAO é o enfrentamento da fome no mundo. Para ele, o problema tem solução, mas requer vontade política
iretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) há dois anos, completados em 1º de janeiro, o agrônomo brasileiro José Graziano tem um problemão para controlar: um orçamento pequeno, US$ 1 bilhão ao ano, para enfrentar um flagelo que aflige 840 milhões de seres humanos. E outro problema que está fora de seu controle: o vaivém nos preços de alimentos. “O mercado financeiro está entre os responsáveis pela subida dos preços dos alimentos. Não exatamente pela subida, mas pela volatilidade dos preços”, afirma, em declaração que merece atenção. A FAO teve dificuldade em comprovar, e mais ainda em debater publicamente, a relação entre os agentes do mercado financeiro e a oscilação que tanto prejudica o combate à fome e a pobreza. Entre 2002 e 2008, o índice mundial de preços de alimentos calculado pela agência da ONU subiu sem parar. Aumentou mais que o dobro do registrado seis anos antes. E continua oscilando, sempre em níveis elevados. Mas se antes a FAO relutava em falar abertamente sobre a influência da venda de commodities em bolsas de valores no custo da comida que vai diariamente para a mesa de bilhões de pessoas, Graziano agora abre o jogo a respeito: o uso de grãos, em especial o milho, para produção de combustíveis na Europa e nos Estados Unidos foi o grande fator utilizado pelos agentes especulativos para provocar uma alta que dura até hoje. Para solucionar o caso, adverte, será necessário que Estados e sociedade controlem seus bancos e seus mercados. Graziano põe a erradicação da fome como uma das cinco metas centrais de seu mandato, de janeiro de
2012 a julho de 2015. E é autoridade no assunto. Foi um dos idealizadores do programa Fome Zero e assumiu no início do governo Lula o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, que no ano seguinte seria transformado no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. O programa foi pontapé inicial de uma série de ações que, entre 2003 e 2013, retiraram 36 milhões de brasileiros da situação de extrema pobreza. “O maior ingrediente que falta no menu do combate à fome é a vontade política. Isso eu acho que o Brasil mostrou muito claramente.” Durante entrevista concedida em 10 de dezembro, Graziano abordou ainda o Ano Internacional da Agricultura Familiar, celebrado em 2014, e sua rotina à frente da FAO. Participaram da entrevista jornalistas da Revista do Brasil, Rádio e Rede Brasil Atual, TVT e jornal ABCD Maior. O senhor assumiu a direção-geral da FAO em 2012. Quais foram as prioridades estabelecidas e no que foi possível avançar até agora?
Temos mais ou menos US$ 1 bilhão ao ano de recursos regulares que os países contribuem e mais US$ 1,5 bilhão de recursos voluntários que basicamente são dedicados para emergências. Esse total de US$ 2,5 bilhões distribuímos entre os 197 países afiliados. Os mais pobres recebem mais atenção. Principalmente os da região do Sahel, do chifre da África. Quando eu cheguei a FAO tinha listado 10 mil atividades no biênio. Trabalhávamos quase como uma ONG, fazendo coisinhas aqui e coisinhas ali. Consegui aprovar na nossa última conferência, em julho, um plano de trabalho focado em cinco prioridades: a primeira é a erradicação da fome. É uma REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
27
ENTREVISTA
novidade, porque os países chegaram à conclusão que a fome não tem conversa, não tem meio termo, temos que erradicá-la. Nós podemos erradicar. O mundo hoje produz mais do que o suficiente para alimentar todo mundo e ainda joga fora um terço do que produz. Então não tem por que ter gente com fome. Segundo, ter uma produção mais sustentável. Aumentamos muito a produção e a produtividade agrícola. Basicamente desde os anos 1960, com a Revolução Verde, a FAO aumentou 40% da produtividade per capita de grãos. No entanto, o impacto sobre o meio ambiente é muito alto. Estamos hoje revendo esse modelo para um modelo socialmente mais justo, mas também ambientalmente mais protecionista. A terceira prioridade é reduzir a pobreza rural. O mundo concentra a pobreza hoje nos rincões rurais e é na zona rural que também estão os produtores de alimentos. No entanto, nós temos 70% da nossa gente que produz passando fome. Na África, 90% da população pobre está no meio rural. A quarta é ter sistemas alimentares mais inclusivos. Hoje as cadeias alimentares são muito concentradas em grandes monopólios, da produção de sementes à distribuição no varejo. A FAO está lutando por um modelo de produção e consumo mais local. Temos feito vários acordos, um deles, por exemplo, com o movimento Slow Food, que luta por o que eles chamam de transporte zero. A ideia de que cada localidade tem de buscar produzir o alimento de que necessita, valorizando produtos regionais, costumes e hábitos alimentares. E a última?
A quinta prioridade é a resiliência. Resiliência é a capacidade da população de resistir aos impactos das mudanças climáticas. Nós estamos cansados de trabalhar de inundação em inundação e de seca em seca. Às vezes nós temos, em um mesmo ano, em um país, uma seca e uma inundação, como ocorre na região do Sahel. É uma região desértica, mas na época das chuvas são três meses concentrados de muitas chuvas com inundação e depois são nove meses de seca absoluta. Isso tem solução. Podemos armazenar a água e evitar que a seca se transforme em fome. Nós conseguimos muita coisa nesses dois anos, mas temos muito o que fazer e lembrar que a FAO é só um organismo de assessoria técnica. Não somos agentes financeiros, não temos recursos. Mas temos conseguido parcerias, por exemplo, com o Banco Mundial. Hoje a FAO tem orgulho de dizer que, embora nós tenhamos ainda 840 milhões de pessoas famintas no mundo, dos 128 países que a gente monitora mês a mês, 62 já alcançaram a primeira meta do milênio, que é reduzir à metade a proporção de famintos. Continuam os 840 milhões, mas nós já conseguimos que praticamente metade dos países em desenvolvimento tenham um programa de combate à fome, de alimentação escolar, de segurança alimentar. Quais as grandes dificuldades para se alcançar essas cinco metas, além dos recursos financeiros?
O maior ingrediente que falta no menu do combate à fome é o compromisso político. Isso eu acho que o Brasil mostrou muito claramente. Quando o presidente Lula lançou o programa Fome 28
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
Parte dos bancos europeus tem proibições de investimento em fundos de commodities agropecuárias, o que limita a especulação. Esperamos que outros países e outros bancos adotem mecanismos de controle Zero, muita gente ironizou. Hoje o Brasil exibe números para dar inveja no mundo todo pela rapidez com que conseguimos reduzir a mortalidade infantil, os subnutridos, botar em prática um programa de segurança alimentar e transformar a fome em uma questão política. Hoje ninguém discute mais se há fome. A gente discute a melhor maneira de se alcançar essas pessoas que precisam da ajuda do Estado. Isso falta na grande maioria dos países que ainda não logrou cumprir com a primeira meta do milênio de reduzir à metade os famintos. Falta sobretudo em algumas regiões do mundo, particularmente na África que, em função de conflitos internos, não consegue ter uma prioridade nacional. Eu sempre digo que para erradicar a fome não basta vontade de um governo, tem de ser vontade de uma sociedade. É uma meta de uma sociedade, não de um governo. Já é possível verificar o impacto que esse recente acordo da OMC (Organização Mundial do Comércio) pode provocar no combate à fome?
É o primeiro grande acordo que nós conseguimos em termos de comércio mundial. Basicamente o acordo é dizer que a prioridade é a segurança alimentar. O país pode fazer o que for necessário para garantir a segurança alimentar dos seus cidadãos. Isso inclui comprar alimentos dos pequenos produtores. Por que a Índia estava brigando, por que o Brasil estava brigando, por que países menores, como o Níger, estavam brigando? Hoje, nós temos um problema de difícil solução: os que produzem os alimentos são
ENTREVISTA
CONTROLE Mãe pesa seu filho subnutrido no campo Abu Shouk, no Sudão
os que passam fome. A solução está em produzir mais. Por que eles não produzem mais? Porque não têm dinheiro, não têm assistência técnica. Mas há uma coisa que falta além disso: mercado. O que eles produzem eles não têm para quem vender. Ninguém compra meia dúzia de ovos de uma senhora no interior do Quênia. Só compra se tiver um programa da merenda escolar que vai lá e compra esses ovos para usar na merenda escolar. Essa é a saída. Esses programas estavam condenados ou não autorizados pela OMC. Agora estão reconhecidos como legítimos. Nessa questão da erradicação da fome, de que maneira a especulação, o mercado financeiro, podem acabar atrapalhando e retardando o cumprimento desse objetivo?
O mercado financeiro está entre os responsáveis pela subida dos preços dos alimentos. Não exatamente pela alta, mas pela volatilidade dos preços. Quando os preços estão em alta, o mercado financeiro faz a subida ser mais acelerada, e vice-versa. Quando os preços estão caindo, ele empurra mais para baixo, faz a queda ser mais demorada. Esse aumento dos extremos e da volatilidade tem a ver com as especulações financeiras de fundos de commodities que incluem os de alimentos. No pico de 2007 e 2008, hoje já há evidências suficientes para mostrar que a especulação financeira junto com o uso de grãos para combustíveis nos Estados Unidos e na Europa foram as duas grandes variáveis que empurraram os preços dos alimentos para esse patamar superior que temos hoje. O que tem sido feito até agora são mecanismos de controle voluntário. Muita gente desdenha esses mecanismos pedindo por intervenções mais rígidas. Praticamente os bancos alemães e boa parte dos bancos europeus, sobretudo os nórdicos, hoje têm proibições explícitas de investimento de fundos em commodities agropecuárias, o que limitou muito a especulação. Nós esperamos que outros países e outros bancos possam vir a adotar esses mecanismos de controle.
ALBERT GONZALEZ FARRAN/ONU
O que é mais efetivo no combate à fome: o agronegócio ou a agricultura familiar? Lembrando que 2014 será o Ano Internacional da Agricultura Familiar. No Brasil, apesar dos investimentos crescentes, ainda há queixas de que não se dá a atenção devida a essa modalidade, em comparação com o agronegócio.
Tivemos a oportunidade de lançar na Assembleia Geral das Nações Unidas o Ano Internacional da Agricultura Familiar. Esperamos mostrar as diferentes caras da agricultura familiar no mundo, porque ela é de uma diversidade incrível. Aí se incluem produtores de alimentos, de produtos de exportação, pescadores artesanais, pastores nômades. Há uma grande diversidade de caras da agricultura familiar. Esse talvez seja o maior papel do Ano da Agricultura Familiar: queremos mostrar as caras para que eles adquiram sua identidade, para que eles possam ter orgulho de ser o que são. Há uma gradação quando falamos de agricultura familiar. Temos desde aquele pequenininho, que tem só um quintal praticamente, até unidades familiares que chegam a 100 hectares, como no Canadá, Estados Unidos, França e Alemanha. Isso não tira a noção de que são pequenos negócios, pequenas atividades geridas pela família. Hoje, 80% dos alimentos do mundo vêm de segmentos distintos da agricultura familiar. Queremos que o mundo reconheça que eles são fundamentais na conservação do meio ambiente, porque têm uma atividade mais diversificada, não são monocultores, então ajudam a conservar a diversidade ambiental. Reconhecer que eles têm um papel fundamental na luta contra a pobreza. Se nós conseguirmos que cada um deles seja produtor local para mercados locais, erradicaremos a pobreza no mundo. Nós queremos também reconhecer neles uma sociedade mais democrática, no sentido de ter uma renda mais bem distribuída, ter uma propriedade distribuída melhor. Eu não vejo uma contradição fundamental entre agricultura familiar e agronegócio. Sempre disse isso, é minha posição e tenho livros sobre isso. O agronegócio e a agricultura familiar concorrem por recursos do governo. Se o governo é capaz de fazer um menu de políticas para um e um menu diferente de políticas para o outro, e ter crédito para o agricultor familiar na medida em que ele precisa, e ter crédito para o agronegócio na medida que ele precisa, os dois têm papéis complementares importantes. No caso brasileiro, de um conflito evidente nos anos 2000, nós temos hoje uma convivência, uma cooperação entre agricultura familiar e agronegócio, porque a agricultura familiar também faz parte das cadeias produtivas. Não há uma cadeia produtiva no Brasil hoje, do milho, da soja, do arroz, do feijão, da cana-de-açúcar, que não tenha um componente majoritário de agricultores familiares. É um erro pensar que são cadeias exclusivas do agronegócio a soja, por exemplo, a produção de ovos, frangos, carnes, leite e tantos outros alimentos que, em geral, são identificados como agricultura familiar. Participaram da entrevista os jornalistas João Peres (Rede Brasil Atual), Vitor Nuzzi (Revista do Brasil), Terlânia Bruno (Rádio Brasil Atual), Márcia Telles (TVT), Walter Venturini (ABCD Maior) e Gabriella Gualberto (Instituto Lula) REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
29
MUNDO
30
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
MUNDO
TOM WEBER/ MILPICTURES/GETTY IMAGES
H
á pelo menos 70 mil anos o Homo sapiens já era dotado da capacidade de produzir armas. Junto com a capacidade de desenvolver a linguagem e dominar o fogo, a construção de instrumentos acompanhou a espécie humana nas tarefas de conquistar e se consolidar por diversas regiões do planeta. Transformações posteriores, em especial após os períodos Paleolítico e Neolítico, abririam uma nova etapa da evolução do homem, culminando com a formação de pioneiras organizações sociais e o surgimento da escrita, colocando fim à Pré-história. Homens e armas evoluiram pela Antiguidade até os dias atuais, em uma história de mais de 5 mil anos que vai do uso de metal derretido para fazer espadas, flechas e lanças, até o domínio biológico, químico e nuclear para construir armas de destruição em massa capazes de aniquilar o planeta em poucos minutos e por várias vezes. Depois da Revolução Industrial surgiu o que se conhece hoje como setor aeroespacial, defesa e segurança, um dos mais lucrativos e poderosos do mundo. Envolve empresários, políticos, militares, agentes de inteligência e negociantes de armas – e não é raro uma mesma pessoa se mo-
ver entre essas funções; a indústria bélica é repleta de poder e segredo, difícil de ser estudada e fiscalizada. Estimativas sobre o setor normalmente são imprecisas e incompletas, especialmente porque países e empresas não revelam detalhes sobre o negócio, por sigilo militar ou pelo caráter das transações. As poucas informações divulgadas dão uma ideia da força da indústria de defesa. O comércio internacional de armas convencionais movimenta cerca de US$ 80 bilhões por ano – embora essa cifra deva ser bem maior, uma vez que alguns dos principais exportadores, como a China e o Reino Unido, não dão informação precisa sobre suas exportações. Essa estimativa diz respeito a apenas uma parte dos negócios. Não estão incluídas vendas para o mercado doméstico. “O comércio mundial de armas representa apenas uma minoria do total da produção da indústria de armamento no planeta. Embora empresas de países menores sejam mais dependentes das exportações, a realidade é que a maioria das vendas feitas por grandes fabricantes dos Estados Unidos e demais potências é para dentro do país”, explica Samuel Perlo-Freeman, do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo, Suécia (Si-
Num mundo de 840 milhões de famintos, as despesas militares dos países superam US$ 1,7 trilhão em três anos, o equivalente a US$ 260 dólares por habitante do planeta
, S O C RI PODEROSOS E SEM LIMITES Por Renato Brandão
REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
31
MUNDO
Maiores exportadores Quem mais ganha com o comércio de armas são os ricos; países pobres, em conflito e violadores de direitos humanos estão entre os destinos 1º EUA
Maiores exportadores de equipamentos e serviços de defesa. Têm negócios com mais de 170 países e respondem por cerca de um terço das vendas globais anuais, principalmente para Ásia e Oceania (45%), Oriente Médio (27%) e Europa (18%). Segundo a Anistia Internacional, os Estados Unidos forneceram ajuda militar e treinamento a países violadores de direitos humanos, como Bahrain, Colômbia, Egito, Iêmen, Israel, Sri Lanka. 2º RÚSSIA
Segundo maior exportador mundial, com destino principal a Ásia/Oceania (65%), África (17%) e Oriente Médio (9%). A Anistia Internacional denuncia exportações a países com graves conflitos civis (Síria, Sudão) e forte repressão interna (Argélia, Mianmar). 3º ALEMANHA
Forneceu armas para Europa (35%), Ásia/Oceania (31%), América (17%) e Oriente Médio (14%). A Anistia Internacional acusa vendas militares para Bahrein, Egito, Iêmen, Líbia (sob Muammar Gaddafi), países sacudidos pela Primavera Árabe.
4º FRANÇA
A indústria militar do país tem encomendas de alto valor pendentes, incluindo submarinos para o Brasil e Índia, além de outros pedidos no sudeste da Ásia, Oriente Médio e norte da África. Entre 2005 e 2009, o governo francês autorizou vendas a Chade, Egito (sob Hosni Mubarak), Líbia (sob Gaddafi) e Síria (de Bashar al-Assad). 5º CHINA
Parcela de armas leves de fabricação chinesa foi desviada de países importadores e reexportadas para zonas sob embargo militar da ONU, caindo em posse de grupos rebeldes ou terroristas. Suspeita-se que as armas encontradas na guerra civil do Sri Lanka foram transferidas pelos importadores Camboja, Mianmar e Paquistão. 6º REINO UNIDO A indústria britânica perdeu a posição para a chinesa, mas mantém sólida clientela em países da Otan (especialmente os EUA), na África do Sul, na Arábia Saudita e na Índia. Organizações pacifistas criticam o governo por autorizar vendas a regimes repressivos (Bahrein, Iêmen, Líbia e Sri Lanka).
Fonte: Sipri
pri, na sigla em inglês). Segundo Perlo-Freeman, esses grandes contratos locais entre indústria e Estado englobam não apenas venda de equipamentos, mas também prestação de serviços militares. “Por isso, os valores de vendas totais de equipamentos e serviços das empresas são muito mais elevados do que quaisquer estimativas para o comércio mundial de armas”, completa. De acordo com um ranqueamento do Sipri, a soma das vendas e serviços militares das 100 maiores empresas de armamen32
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
to e equipamento bélico foi de US$ 465,7 bilhões em 2011 – só as vendas das dez maiores corporações globais chegaram a cerca de US$ 220 bilhões. O Sipri estima que as despesas militares de todos os países ultrapassaram US$ 1,7 trilhão, em média, nos últimos três anos – cerca de US$ 260 dólares para cada habitante do planeta. Em vez de empregarem mais investimento em saúde, educação, ciência e bem-estar, o contribuinte está financiando gastos armamentistas atualmente superiores à era final da Guer-
ra Fria, encerrada há mais de duas décadas. “Mesmo com a crise econômica internacional, os gastos estão em níveis historicamente elevados, porque os governos prepararam pacotes de estímulo e muitas empresas ainda estão trabalhando em encomendas anteriores”, diz Perlo-Freeman. De acordo com o instituto sueco, sete das dez maiores corporações do setor de defesa ficam nos Estados Unidos – onde se beneficiam também do comércio doméstico devido a uma legislação pouco
MUNDO S MENINOS GUERRA DO ra lutar recrutado pa e Adolescent do Congo a ic bl pú Re em milícia na
rigorosa e à falta de políticas de controle de armas. A forte pressão política exercida por entidades de extrema-direita, como a Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), contamina as poucas iniciativas de se debater o assunto. Mais influente instituição pró-armas estadunidense, a NRA gasta fortunas em lobby sobre políticos e com uma propaganda paranoica contra o desarmamento.
TUGELA RIDLEY/EFE
Influência perversa
Além de serem grandes clientes, os governos também concedem grandes benefícios à indústria bélica – muitas vezes maiores do que a outros setores produtivos. “Como a indústria está muito perto de vários níveis de governo e também de políticos e partidos, essa relação íntima resulta em decisões ruins e corrupção. Isso também significa que a indústria tem uma influência desproporcional sobre a política de governo, não apenas em relação a defesa e política externa, mas até mesmo sobre as políticas econômica, social e ambiental”, avalia Andrew Feinstein, ex-membro do Parlamento da África do Sul, autor de O Mundo das Sombras: Por Dentro do Comércio de Armas Global e uma das mais respeitadas autoridades mundiais no assunto. “Por causa dessa relação estreita, há pessoas enriquecendo e que nunca enfrentam as consequências legais de seus atos. O comércio de armas enfraquece a democracia responsável, o Estado de direito e prejudica a própria se-
Sexta maior taxa de homicídios do mundo Oficialmente sem conflitos civis, emancipatórios, étnicos, raciais ou religiosos, o Brasil tem de 16 a 17 milhões de armas em circulação (sendo 6 milhões registradas) – média de uma arma para cada dúzia de habitantes. A taxa de mortes por armas de fogo cresce substancialmente desde a década de 1980 e mais de 1 milhão de brasileiros morreram vítimas da violência armada nas últimas três décadas, de acordo com o Mapa da Violência 2013, elaborado pelo pesquisador Júlio Jacobo Waiselfisz. Entre 1980 e 2000, o número de assassinatos saltou de cerca de 14 mil para quase 50 mil. Em algumas ocasiões, a taxa de homicídios brasileira ultrapassou diversas nações em guerra – quase 193 mil pessoas foram assassinadas no Brasil de 2004
a 2007, enquanto a soma das vítimas dos 12 maiores conflitos armados internacionais nesse período ficou em 169,5 mil. Em outubro de 2005, o “não à proibição” obteve 60% dos votos num referendo sobre o comércio de armas. O país ainda tem a sexta maior taxa de homicídios do mundo, com 26 mortes por ano a cada mil habitantes. A chamada “bancada da bala”, grupo de parlamentares que defendem os interesses da indústria de armas no Congresso, é uma das mais coesas no Parlamento. Distribui a parlamentares, jornalistas, associações e outros formadores de opinião a cartilha Mitos e Fatos, a respeito da legalidade do comércio de armas, entre outras táticas de convencimento. REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
33
gurança que se destina a reforçar”, critica. Nessa relação intricada entre políticos, militares e indústria, o próprio Estado pode atuar ativamente em prol dos interesses da indústria bélica. Contratos internacionais de venda, mesmo sendo negócios particulares das corporações de defesa, só podem ser firmados em nível governamental. Ou seja, para fazer uma venda a um país comprador, a empresa precisa de autorização e assinatura de um representante do governo de sua matriz. Não por acaso, os contratos militares recebem tratamento de “segredo de segurança nacional”. Um estudo da organização Transparência Internacional sugere que as transações da indústria de defesa respondem por quase 40% de toda a corrupção no âmbito do comércio mundial. “O comércio é tão corrupto porque está estruturado para ser assim. Pouquíssimas pessoas tomam a decisão sobre o que e de quem comprar. E tudo isso acontece em segredo. Nos 13 anos que tenho investigado essas transações, nunca deparei com um negócio que não tivesse algum elemento de ilegalidade”, lamenta o ex-parlamentar sul-africano, que lista a corrupção por meio de suborno aos tomadores de decisão, ações em empresas que se beneficiam de acordos, presentes e viagens, entre outros agrados. Um dos casos mais notórios de corrupção no comércio global de armamentos foi o dos acordos de Al Yamamah. Avaliado em 40 bilhões de libras (cerca de R$ 160 bilhões), o contrato de 20 anos formalizado pelo governo do Reino Unido (liderado então por Margaret Thatcher) e Arábia Saudita em meados da década de 1980 envolveu a troca direta de aviões militares fabricados pela British Aerospace por petróleo saudita. Quase duas décadas depois, investigações independentes revelaram que no contrato a empresa pagou até 120 milhões de libras (aproximadamente R$ 480 milhões) em propina para dirigentes sauditas. A denúncia foi arquivada, já sob o governo Tony Blair (1997-2007), sob alegação de que poderia levar à “destruição completa de uma relação estratégica vital e à perda de milhares de empregos britânicos”. 34
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
DENNIS M. SABANGAN/EFE/2013
MUNDO
Outra forma de corrupção está impregnada na estreita relação entre o comércio formal e o mercado negro, onde os negócios são construídos por intermediários – entre agentes, revendedores e traficantes, como o ex-empresário russo Viktor Bout. Popularizado pela mídia ocidental como o “senhor das armas”, esse ex-oficial da força aérea soviética fundou companhias de carga aérea que prestaram serviços de transporte, de alimentos a armas, para diversos clientes, do grupo extremista Taleban a forças de paz das Nações Unidas e tropas dos Estados Unidos. “Viktor Bout trabalhou para os Estados Unidos e para muitas grandes empresas de defesa, ao mesmo tempo em que estava fornecendo armas ilegalmente em várias zonas de conflito ou de embargos internacionais”, lembra Feinstein. Por US$ 60 milhões, uma empresa aérea de Bout foi subcontratada para transportar munição e botas a soldados norte-americanos entre 2003 e
EIS INTERMINÁV atacar CONFLITOS sicionam para po se os in ip is ta en id oc Soldados fil as ulmanos: arm uç m es ld be re
2004, um momento crítico da segunda guerra no Iraque. Anos depois, o russo foi preso, julgado e sentenciado pelos Estados Unidos. “Ele só foi preso depois que ele não era mais útil, porque, na verdade, o protegeram por muitos anos. Muitos negociantes de armas são empregados por agências de inteligência, o que os torna blindados e efetivamente acima da lei”, reforça. Na tentativa de prevenir e erradicar o comércio ilícito, as Nações Unidas e organizações de diretos humanos aguardam a entrada em vigor do chamado Tratado do Comércio de Armas Convencionais (TCA). Primeiro instrumento jurídico internacional para regular o comércio global bélico, o tratado foi aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em abril do ano passado e aguarda a ratificação por 50 países para entrar em vigor. Embora muitas nações, entre as quais o Brasil, se comprometam a ratificá-lo, até outubro somente
MUNDO
JALIL REZAYEE/EFE/2009
TES ão: ATÉ OS DEN nacional afeg Novo exército pela Otan o ad m criado e ar
sete países o fizeram (Antígua e Barbuda, Costa Rica, Guiana, Islândia, Itália, México e Nigéria). Seus defensores argumentam que o tratado poderá impedir que armas caiam em mãos de violadores de direitos humanos,
organizações terroristas e crime organizado. De acordo com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, as normas fornecidas pelo TCA serão importantes para avaliar os riscos de que as armas transferidas não serão usadas para alimentar
conflitos, armar organizações criminosas ou apoiar a violação de normas do direito internacional humanitário. “Este é o único caminho para uma maior responsabilização, abertura e transparência no comércio de armas”, defende o líder. Críticos ainda apontam falhas no tratado, como o fato de permitir que os países exportadores continuem a fazer o seu próprio julgamento subjetivo sobre vender ou não armas para um regime autoritário. “O TCA é importante simbolicamente, mas é muito fraco, na prática, sem mecanismos de execução significativos. Se é para fazer alguma diferença, isso exigiria vontade política por parte de todos os governos, e isso é altamente improvável, já que eles se beneficiam do comércio conforme este se apresenta atualmente”, critica Andrew Feinstein, que acredita em outro caminho para tornar o comércio de armas menos corrupto e mais transparente, sugerindo que os países divulgassem o nome de intermediários (identificando que eles são pagos e para qual finalidade exata) e proibissem o uso de compensações econômicas em negócios de armas. “Depois, empresas de defesa deveriam ser proibidas de fazer doações a partidos políticos e campanhas eleitorais”, defende o sul-africano.
Impacto de US$ 9,5 trilhões Segundo um estudo divulgado pelo Instituto para a Economia e a Paz (IEP), organização de pesquisa com sede em Sydney, Austrália, o impacto da violência na economia internacional foi de US$ 9,5 trilhões em 2012, valor equivalente a 11% de todas as riquezas produzidas no planeta e a quase o dobro da produção total de alimentos. Há forte correlação entre o impacto da crise financeira mundial de 2008 e a perda de paz
no planeta. “Os cortes nos serviços públicos e nas proteções sociais, somados a um crescente desemprego, levaram ao aumento das manifestações violentas, dos crimes violentos e da percepção da criminalidade em muitos países”, diz o documento. Muito dessa violência está vinculada às mais de 875 milhões de armas leves que circulam no mundo. Parte dessas armas é obtida legalmente e outra parcela,
ilicitamente. Mais de 70% delas estão nas mãos da população civil, estima o projeto Small Arms Survey, do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, na Suíça. Não é por acaso que a maioria das mortes violentas no planeta ocorra em países não afetados por conflitos armados. Das mais de 740 mil vítimas da violência armada anualmente, 490 mil dizem respeito a homicídios, segundo a
Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento. Esse tipo de violência causa perdas de produtividade em até U S$ 163bilhões anuais somente em países sem conflitos declarados – boa parte deles na América Latina (incluindo o Brasil), onde a violência está fortemente vinculada a baixo desenvolvimento, alta desigualdade e reduzidas oportunidades socioeconômicas. REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
35
PERFIL Perto dos 90 anos, o ferroviário Raphael Martinelli, raro remanescente do antigo CGT, segue fazendo o que mais gosta: criticar o poder. E não tem dúvida de que mataram Jango
A vida fora dos trilhos
Por Vitor Nuzzi
“NÃO TEVE REAÇÃO” Martinelli (em sua antiga cela) escapou da prisão no momento do golpe, mas não da tristeza com a falta de resistência: “Foi a minha maior decepção como revolucionário”
36
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
FOTOS REGINA DE GRAMMONT/RBA
R
aphael Martinelli conta que era bom de bola quando garoto. Jogou em times da várzea paulistana e fez vários gols, inclusive de “chaleira”, até que a vida de ferroviário e sindicalista tomasse todo seu tempo. “Sabe o que é ficar invicto um ano na várzea?”, orgulha-se. Habilidoso, apanhava dos defensores adversários, e às vezes a família invadia o campo para defendê-lo. “Acabava o jogo”, lembra. A posição nos tempos de boleiro não poderia ser outra: ponta-esquerda. Se a política fosse um time de futebol, ele também seria escalado ali. Militante comunista desde adolescente, aos 89 anos, quatro filhos, sete netos e três bisnetos, ele ainda se inflama ao falar de alguns temas. A reação é de um descendente de italianos quando se pergunta, por exemplo, sobre um surrado argumento, sempre citado pelos defensores do golpe de 1964, de que havia uma “república sindicalista” em formação no governo João Goulart. “São umas bestas quadradas! Não tinha nada disso. Todo mundo foi enganado. Estávamos continuando a luta pelas reformas de base.” Eram as reformas anunciadas por Jango e combatidas por setores conservadores. Para Martinelli, essa pauta continua de pé. “As reformas estão na ordem do dia até hoje, como a reforma agrária. Nós fazíamos greve, mas o Jango era minoria... Até hoje. Não aprova. Os caras matam. Pra mexer na terra, aqui, precisa ter peito.”
PERFIL
Sindicalista do ramo ferroviário desde 1952, Raphael Martinelli é um dos três remanescentes do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), principal entidade sindical do início dos anos 1960, dissolvida após o golpe, e formada principalmente por dirigentes sindicais ligados ao PCB e ao PTB, partido de Jango. Os outros são o eletricitário Clodsmidt Riani, líder do CGT e ex-deputado, e o aeronauta Paulo de Mello Bastos. Suas raízes são inconfundivelmente operárias: fundidor, torneiro-mecânico, aprendiz, ferroviário. Começou a trabalhar “com 12, 13 anos”, como ajudante em uma indústria de anilina, depois em uma vidraria. “Na minha cabeça estão os fornos até hoje”, lembra. Depois foi ser ajudante de ferreiro em uma fábrica de artefatos, até chegar, em 1941, a companhia São Paulo Railway, como “aprendiz escriturário de quinta categoria”. Ali fez carreira e seguiu os passos do pai, Máximo, que era pintor – e o levava, ainda moleque, para ajudar a pintar a sede do Sindicato dos Ferroviários. E continuou sua militância no Partidão. Em 1958, com 9.112 votos, foi segundo suplente de deputado federal (pelo PTB, pois o PCB estava na ilegalidade), logo atrás de Menotti Del Picchia, que teve 9.363. Martinelli desconfia até hoje do resultado, mas diz gostar da obra do poeta – e de declamar. Quatro anos depois, sairia candidato novamente, mas conta ter sido barrado por Luiz Carlos Prestes.
Dúvida histórica
Amigo de Goulart e da família, Martinelli fala com carinho do ex-presidente – que conheceu quando Jango era ministro do Trabalho de Getúlio Vargas –, mesmo fazendo uma distinção: “Eu era comunista, ele era latifundiário”. Mas preocupado com os problemas sociais do país e dono de “um grande coração”. Coração que teria causado a morte de Jango, um cardiopata, em 6 de dezembro de 1976. O sindicalista é um dos que sustentam a tese de envenenamento do político. Em novembro, os restos mortais de Jango foram exumados e levados a Brasília para tentar tirar essa dúvida histórica. Vol-
taram a São Borja (RS) justamente em 6 de dezembro. Martinelli estava lá, a convite de João Vicente, filho do ex-presidente. “Eu falo isso há anos. Ele (Jango), o JK (Juscelino Kubitschek), o (Carlos) Lacerda... Acho que até o Costa e Silva”, comenta, citando dois políticos de tendências diversas que morreram em 1976, assim como Jango, e o segundo general-presidente da ditadura, morto em 1969. A suspeita se estende ao antecessor, Castello
As reformas estão na ordem do dia até hoje, como a reforma agrária. Nós fazíamos greve, mas o Jango era minoria... Até hoje. Não aprova. Os caras matam. Pra mexer na terra, aqui, precisa ter peito Branco, vítima de acidente em 1967. Em 31 de março de 1964, Martinelli estava em uma reunião no Rio de Janeiro, para onde se mudara em 1959, para comandar a Federação Nacional dos Ferroviários e “tirar a fama de pelego” da entidade. Recorda-se da campanha pela unificação das tabelas salariais da categoria (“Aqui em São Paulo ou no Norte, é tudo ferroviário”) e de muitas outras gre-
ves, inclusive a chamada greve da paridade, pela equiparação de vencimentos de portuários, marítimos e ferroviários com os equivalentes militares. “Eles ganhavam 50% a mais.” Menos de três meses antes do golpe, um congresso com 400 delegados discutia reivindicações como a federalização das ferrovias. Martinelli lembra de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, levando mulheres para jogar flores nos ferroviários, “foi um troço de arrepiar”. E o congresso, claro, foi aberto e encerrado ao som de A Internacional, hino do socialismo revolucionário. O ex-sindicalista, sem recear polêmica, é claro ao defender o papel do líder soviético Josef Stalin, cuja orientação política era seguida pelo PCB no Brasil: “Se não fosse ele, estaríamos dominados pelo nazifascismo”. Martinelli escapou da prisão no momento do golpe, mas não da tristeza com a falta de resistência. “Foi a minha maior decepção como revolucionário. Não teve reação”, diz. “Soube depois que o oficial que tinha de dar a ordem (para contra-atacar) desmaiou.” Algum alento vem ao lembrar que sua categoria chegou a fazer três dias de greve. Mesmo hoje, Martinelli defende a ferrovia como meio de transporte estratégico, e critica a política do governo para o setor. Ele passou anos na clandestinidade. Foi expulso do Partidão e ajudou a montar a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella. Em 1970, “caiu” e foi pego pela Operação Bandeirante, a Oban, em São Paulo. Foram três anos e três meses na prisão. As fotos desta matéria foram feitas no Memorial da Resistência, que abrigou o Deops, órgão da repressão. Hoje à frente do Fórum Permanente dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, Raphael Martinelli acredita que as várias comissões da verdade (municipais, estaduais, temáticas) podem dar “cobertura de baixo para cima” à comissão nacional. E tem esperança de que carrascos do antigo regime sejam punidos um dia. “A gente espera que a democracia evolua para que esses homens sejam condenados.” REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
37
MEMÓRIA
A identidade pelo
38
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
Retratos de operários tirados nos anos 1940, após o surgimento da CLT, democratizaram a imagem. Até então um privilégio da elite Por Vitor Nuzzi
ASSIS HORTA
A
carteira profissional trouxe mais do que uma formalização para o emprego no Brasil. Criou uma identidade para o trabalhador. Para muitos, foi o primeiro registro de sua imagem: o artigo 16 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1º de maio de 1943, determinava que a carteira deveria contemplar, entre outros itens, uma “fotografia, de frente, modelo 3 x 4”. Pioneiro nesse registro, Assis Horta, hoje com 95 anos, fez nos anos 1940 centenas de retratos de trabalhadores. Em 2012, Assis Horta foi tema de um filme de curta-metragem produzido pelas Nitro Imagens em parceria com a Alicate: O Guardião da Memória. “Ele saiu desse formato de fotógrafo de estúdio. Foi para a rua”, diz, no curta, o também fotógrafo Eustáquio Neves. “Você conhece uma sociedade por aquele conjunto de imagens”, comenta a diretora do Museu do Diamante, Lílian Oliveira. Criado em 1954, o museu fica em Diamantina (MG), terra natal de Assis e do presidente Juscelino Kubitschek. Em 1936, o fotógrafo comprou a loja que era do chefe e criou a Photo Assis, que funcionou até 1967, quando ele se mudou para Belo Horizonte. Curador de uma exposição que já passou por Ouro Preto e Brasília (Assis Horta: A Democratização do Retrato Fotográfico através da CLT), o também fotógrafo e professor Guilherme Horta – que não é parente do veterano – destaca a técnica e o esmero na produção. “A gente percebe a extrema habilidade do seu Assis na execução do retrato. Ele fazia um clique, sabe? E conseguia extrair essa personalidade (do fotografado) como poucos”, diz Guilherme, que vê similaridade entre fotos de Assis e quadros do pintor brasileiro Alberto da Veiga Guignard. Ainda hoje, Assis preserva o cuidado com os detalhes, como testemunha o próprio Guilherme. “Na abertura da exposi-
ção em Brasília, ele disse: você precisa arrumar essa gravata...” E, mesmo passados vários anos, lembra de detalhes das fotos: tal pessoa está segurando o terno em tal lugar porque ali faltava um botão, aquele era professor de Educação Física. Um queria aparecer com seus dentes de ouro – “Então, dê um leve sorrisinho”.
Pose para a história
“Muitos provavelmente devem ter sentado diante de uma câmera fotográfica pela primeira vez”, observa Guilherme. Caso de uma fábrica de tecidos na vila de Biribiri,na região de Diamantina, desativada há 30 anos e cenário de filmes como A Dança dos Bonecos (de Helvécio Ratton) e Xica da Silva (Cacá Diegues). Há muitos registros de fotos com a mesma data: 1º de julho de 1943. Exatamente dois meses de-
pois do decreto da CLT. “Seu Assis foi lá e fotografou a fábrica inteirinha.” Pelo menos 70% eram mulheres. E era sempre uma única chapa. “Todos um clique só por pessoa. Até aqueles de estúdio”, conta Guilherme. Câmara de fole, tripé, luz natural vinda de uma janela, fundo pintado e tapete persa. E muito cuidado na produção, além da procura por equipamento importado em tempos de guerra. “Seu Assis pegava trem em Diamantina e ia para o Rio de Janeiro, na rua São José (região central da então capital), comprar material fotográfico.” “Fotografados para a Carteira de Trabalho, de acordo com as normas legais, eles (os trabalhadores) e suas famílias descobriram, com fascínio especial, o estúdio fotográfico”, diz, na apresentação da exposição, o presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Angelo Oswaldo de Araujo Santos. “E o atelier, antes frequentado pelas classes abastadas, foi invadido por populares que queriam mostrar sua cara, para além da foto datada para o documento.” Assis não fotografou apenas os trabalhadores para tirar a carteira profissional. Fez um registro da sociedade que abrange a própria cidade de Diamantina, fotografada por ele para o processo de tombamento – o conjunto arquitetônico e urbanístico foi tombado em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do qual Assis foi funcionário. Mas as imagens dos operários podem ser vistas também como um começo de democracia do ponto de vista da imagem. Acostumada a retratar a elite, a câmera focalizou a população. “O privilégio que refletira nos incontáveis registros da família imperial e da aristocracia da República Velha tornou-se o espelho do povo”, diz o presidente do Ibram. “A partir da Carteira do Trabalho, seguro de si e da família, cabeça erguida no quadro social, ele faz pose para aparecer na História do Brasil.”
MEMÓRIA
trabalho
FOTOS ASSIS HORTA
“ENTÃO, DÊ UM LEVE SORRISINHO” Assis Horta: registro de uma época e seus personagens JOSÉ CRUZ /ABR
REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
39
ARTE
Os incríveis tesouros nazistas Obras de arte saqueadas, que fizeram o pé-de-meia de muitos colaboradores de Hitler nos últimos 70 anos, podem começar a voltar a suas origens Por Flávio Aguiar
40
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
Grã-Bretanha, pois a Luftwaffe alemã jamais teve a supremacia sobre a Royal Air Force,nem a Marinha nazista conseguiu a hegemonia no mar. O dinheiro de araque tivera, porém, vários usos: de pagar suprimentos e matérias-primas comprados no “mercado paralelo” continental, até o de custear salários de agentes e espiões no estrangeiro. Depois da guerra, mergulhadores ousados conseguiram retirar muitas dessas notas do fundo do lago. E elas chegaram a ter uso no mercado, a tal ponto que a Grã-Bretanha, em 1957, decidiu substi-
tuir todas as notas de mais de 5 libras em circulação por novas emissões do seu Tesouro. Essa é apenas uma das inumeráveis histórias – misturando verdade e ficção – sobre os enigmáticos, misteriosos, sinistros e em alguns casos fantasiosos, em todo caso fantásticos, tesouros nazistas. A principal fonte de alimentação das histórias – reais muitas, fantasiosas outras, até hoje não se sabe exatamente em que percentual, embora se saiba com certeza que existem as dos dois tipos – foi o verdadeiro saque, em ouro e moeda, a que os nazistas submeteram os territórios e os povos ocupados.
Pé-de-meia
GROSBY GROUP
O
agente secreto britânico James Bond (com seu mais famoso e melhor intérprete, Sean Connery) se aproxima do arquivilão Auric Goldfinger (Gert Fröbe). Provoca-o para uma partida de golfe, em que está em jogo, na aposta, uma barra de ouro nazista (com a cruz gamada e tudo) retirada do fundo do lago Toplitz. A partida segue, Bond ganha depois de quase perder – prenúncio do que acontecerá no fim do filme 007 Contra Goldfinger, dirigido por Guy Hamilton em 1964. O lago existe de fato, e fica nos Alpes austríacos, perto da cidade de Salzburg – berço do compositor Wolfgang A madeus Mozart. E é verdade que os nazistas o usaram como base para vários experimentos, incluindo torpedos e futuras minas submarinas. E é verdade também que ao fim da guerra ali foram jogadas milhões de notas falsas – libras britânicas – produzidas por 142 falsários de elite, selecionados pelos nazistas em campos de concentração, inclusive o de Auschwitz, e levados para o campo de Sachsenhausen. A produção dessas notas fazia parte da Operação Bernhard, que leva o nome de seu idealizador, o major da SS Bernhard Krüger. O plano inicial era o de inundar a Grã-Bretanha com as notas falsas – consideradas até hoje como perfeitíssimas –, provocar uma inflação incontrolável e desestabilizar a economia. O plano jamais foi posto em prática por várias razões técnicas, entre as quais a dificuldade de fazer as notas chegarem à
TRAÍDO PELA DECLARAÇÃO DE RENDA Cornelius Gurlitt, de 81 anos, levava uma vida discreta, mas as somas em dinheiro que carregava no bolso não batiam com sua declaração de imposto de renda
O saque começou antes da guerra nos países do leste da Europa, como Polônia, República Tcheca (que entre 1918 e 1993 foi Tchecoslováquia) e também a Áustria, e depois da guerra em países do oeste, como a Holanda e a Bélgica. Há uma estimativa de que tais aportes trouxeram às finanças nazistas, na época, mais de US$ 600 milhões apenas em ouro. Além disso, houve o saque mais sinistro ainda praticado nos campos de extermínio, sobretudo dos prisioneiros judeus, que compreendiam desde objetos como armações de óculos, joias, cigarreiras, até os dentes de ouro das vítimas assassinadas. Parte desse ouro foi parar em bancos suíços, de onde trafegava também para Portugal, a fim de pagar suprimentos de tungstênio, matéria-prima para o revestimento das bombas fabricadas. Diante
Otto Griebel
WWW.LOSTART.DE / STAATSANWALTSCHAFT AUGSBURG/AFP PHOTO
Marc Chagall
Auguste Rodin
Conrad Felixmüller
Otto Dix Henri Matisse Wilhelm Lachnit
MAIS DE € 1 BI Algumas obras da coleção de Cornelius Gurlitt amealhadas por seu pai para os nazistas REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
41
ARTE
42
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
Quase todos os dirigentes nazistas gostavam de ser reconhecidos como amantes das artes e da cultura. Mas a começar pelo Führer e seus ministros Joseph Goebbels (Propaganda) e Hermann Göring (comandante da Luftwaffe e ministro sem pasta) esse gosto era, em primeiro lugar, seletivo. Os “degenerados” – por seu estilo, origem étnica ou posição política – não tinham vez na seleção, a não ser como objeto de curiosidade – assim como num museu se pode ter, por exemplo, exemplares de cascavéis ou animais daninhos.
Museu do Fürher
Hitler desejou criar um “Führersmuseum” em Linz, na Áustria, perto de sua cidade natal, Braunau am Inn. Uma das principais seções do museu seria dedicada à “arte decadente”. Com a eclosão da Segunda Guerra, a construção do museu foi suspensa. E com a derrota nazista, postergada para sempre. Entretanto, a projetada construção desse museu deu margem a um dos casos mais curiosos da construção do “acervo nazista” – fosse
da arte “degenerada”, fosse da simplesmente “saqueada” ou “confiscada”. Trata-se do caso Gurlitt, trazido à luz neste final de 2013. O caso veio a público na semana em que se lembrava o 75º aniversário da Krystallnacht, o pogrom contra sinagogas e lojas judaicas de 1938, em que perderam a vida 91 judeus e mais de 30 mil foram aprisionados. A revista Focus foi a primeira a revelar que algum tempo atrás as autoridades policiais haviam descoberto cerca de 1.500 pinturas guardadas secretamente num apartamento na cidade, na casa de um certo Cornelius Gurlitt, um cidadão que vivia completamente isolado, como um ermitão, sem família nem amigos. Cornelius Gurlitt chamara a atenção de autoridades alfandegárias ao viajar num trem de Zurique para Munique, em 2010, com € 9 mil nos bolsos. Transportar € 9 mil através da fronteira sem declará-los não é crime nem contravenção. Mas o que chamou a atenção foi o fato de Gurlitt não ter conta em banco, nem seguro-saúde,
MARC MÜELLER/EFE
de boatos de que os nazistas estavam fabricando dinheiro falso, a partir de certo ponto o governo português passou a exigir pagamento em ouro. A esse propósito, também no campo da ficção, há o excelente romance de Robert Wilson A Small Death in Lisbon, de 1999, que junta tramas que vão desde a Segunda Guerra até o período posterior à Revolução dos Cravos em Portugal. No caminho desse ouro, havia também, estima-se, toda a sorte de desvios, provocados por nazistas que, à medida que compreendiam que a derrota na guerra se aproximava, cuidavam de fazer seu pé-de-meia, até sob a forma de propinas para autoridades envolvidas nesse “war business”. Houve também acusações de que parte do ouro tenha ido parar nos cofres do Banco do Vaticano com a ajuda da Ordem dos Franciscanos, sob a forma de barras ou de francos suíços. Hoje, a principal fonte de tais suspeitas é um relatório do agente do Tesouro norte-americano Emerson Bigelow, tornado público em 1997. As acusações foram sempre negadas e – é bom que se ressalte – jamais comprovadas. Há estimativas de que a parte desse ouro que pegou os vários “desvios” possíveis poderia chegar ao equivalente a US$ 300 milhões – e uma parcela poderia, inclusive, ter acompanhado nazistas que fugiram para a América do Sul. É verdade que a falta de informações precisas a respeito aumenta o furor imaginativo. Mas havia outra forma – igualmente rica em valores – assumida pelo “saque nazista”. Trata-se das obras de arte que eles tomaram por onde passavam, subtraindo acervos de museus, confiscando de famílias judias ou de outros perseguidos, ou simplesmente comprando-as a preço vil de pessoas que desejavam escapar à perseguição. Uma das formas mais conspícuas desse “confisco” foi a promovida pelo desejo de eliminar o que os nazistas consideravam como “arte degenerada” – notadamente a de muitos artistas de vanguarda do começo do século 20. Chegaram a promover uma famosa exposição dessa “arte inferior” em Munique, em 1937, com 650 peças de variada procedência.
GALERIA SECRETA Prédio onde foram encontrada s as obras escondidas desde o final da guerra
DAVIS/TOPICAL PRESS AGENCY/GETTY IMAGES/1938
ARTE
EXPOSIÇÃO DE CURIOSIDADES O conceito de “arte degenerada” dos nazistas era bastante amplo e incluia, por exemplo, o retrato de Albert Einstein, pintado por Max Liebermann. Einstein, o físico que criou a teoria da relatividade, era judeu e fugiu para os Estados Unidos
nem jamais ter declarado renda para o fisco. Apesar disso, era proprietário de um apartamento razoável e levava uma vida aparentemente confortável. Ao inspecionar seu apartamento, já em 2012, as autoridades descobriram nada menos que 1.280 obras de arte, entre pinturas a óleo, aquarelas, desenhos e litografias, cuidadosamente armazenadas e em bom estado, por trás de montes de embalagens tetra de suco e de comida enlatada dos anos 1980. Os autores das obras deixaram policiais e perícia atônitos: Matisse, Picasso, Chagall, Renoir, Dürer, Toulouse-Lautrec, Canaletto, Beckmann, Munsch, entre muitos outros. Acredita-se que Gurlitt teria vendido alguns dos quadros para se manter, já que não tinha outra fonte de renda. A origem do acervo está na atividade de seu pai, Hildebrand Gurlitt. Usando seus conhecimentos no mundo das ar-
tes, tornou-se um dos encarregados de amealhar peças de arte para os nazistas, fossem elas “saudáveis”, para as coleções, ou “degeneradas”, para o museu. Ele o fez com dedicado empenho. Levou o acervo para Dresden, no leste da Alemanha, mas de lá o retirou, conforme a guerra se aproximou do fim, e declarou que grande parte fora destruída no bombardeio que arrasou o centro da cidade, em 15 de fevereiro de 1945. Hildebrand morreu em 1956, em acidente de carro. O acervo passou para sua mulher, até sua morte, em 1967, quando ficou para seu filho, Cornelius, que o guardou ciosamente. Agora, depois da descoberta, discute-se o que fazer – tanto com o acervo como com o próprio Cornelius. Das 1.280 obras (que serão objeto de estudo por parte de uma comissão de peritos), estima-se que 590 faziam parte do “saque” nazista. Existe uma política de
devolução, adotada internacionalmente, a herdeiros ou a instituições saqueadas. Outras 390 deveriam ter sido vendidas no exterior, para capitalização do regime, e não o foram. E 310 seriam da coleção comprovada do próprio Hildebrand. Esse processo vai, certamente, durar anos, e será objeto de ações judiciais. Mais urgente é decidir o que fazer com Cornelius Gurlitt, que completou 81 anos em dezembro. Ele tinha 12 anos quando a guerra terminou, em maio de 1945; e 23 quando seu pai morreu. Até o momento, não pode ser acusado de crime, a não ser, talvez, de sonegação, o que a essa altura é um crime menor diante do quadro histórico. E ele quer pelo menos os “seus quadros”, os de que ele seja legitimamente herdeiro, de volta. O caso – que pode acabar virando livro – dá ideia da complexidade das histórias em torno dos “tesouros nazistas”. REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
43
AMÉRICA LATINA
Cuba em fase de revisão
A ilha ainda tem no turismo sua principal fonte de receita, mas precisa se reinventar para superar a pobreza e oferecer novas perspectivas aos que não têm culpa pelos 51 anos de bloqueio dos Estados Unidos Por Sarah Fernandes 44
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
ALEJANDRO ERNESTO/EFE
MUDANÇAS NO HORIZONTE Acompanhado de turista argentina, músico cubano canta na orla de Havana
AMÉRICA LATINA
“V
NEGÓCIOS PARTICULARES O governo permite que famílias abram pequenos estabelecimentos, aluguem quartos ou ofereçam serviços
FOTOS SARAH FERNANDES
ocê faz como Che: anota tudo!”, diz um senhor durante viagem de Santiago de Cuba a Havana. Seria o último destino, depois de percorrer 3 mil quilômetros por cidades grandes, médias, pequenas, do litoral e do interior da ilha, sempre em casas de famílias. A tensão de um voo turbulento em uma aeronave antiga da Cubana Aviación, durante tempestade caribenha, encurta a conversa. Mesmo assim, ele estica o pescoço sobre as anotações e pergunta: “Este ‘outro mundo’ que você descreve é Cuba?” Tratando-se de um país pobre, com renda per capita bruta de pouco mais de U$ 5 mil, mas com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) elevado, de 0,780, em uma escala que vai até 1, é evidente: não é um “mundo normal”. A ilha caribenha ocupou a 59º posição no ranking de desenvolvimento humano – o Brasil, por exemplo, com renda per capita de US$ 10 mil, ficou em 85º. Isso porque há décadas resiste vitoriosa no combate à miséria, à fome e ao analfabetismo. A expectativa de vida é de 79,3 anos (74,6 no Brasil) e a média de tempo de estudo é de 10,2 anos, maior que a da Grécia (10,1), que tem renda per capita de U$ 20 mil. É certo, porém, segundo alguns anfitriões, que há longo caminho para se alcançar plena igualdade social, e é incerto se o rumo do país está aproado para esse destino. Os militares, por exemplo, continuam formando uma classe privilegiada, com salários maiores, casas confortáveis e hospitais exclusivos. O descontentamento entre os mais jovens é explícito. Muitos têm como objetivo deixar o país. Por isso, e pelo preço do passaporte – inatingível para a renda dos cubanos, toda comprometida com a alimentação – não é incomum visitantes saírem da ilha com uma coleção de pedidos de casamento. “No seu país, se eu estudar e trabalhar eu vou conseguir ter as coisas, não vou?”, pergunta um garçom, em Santiago. Formado em hotelaria e com especialização em gastronomia, ele coleciona duas tentativas de fuga por mar, ambas abortadas pelo medo. “No Brasil, isso ainda depende de detalhes como de onde você veio, a cor de sua pele, e quanto sua família conseguiu acumular antes de você.” Ele não acredita. O encantamento com um mundo supostamente diferente para além da ilha e a dificuldade dos nativos em adquirir bens de consumo pelo mercado formal fazem com que o turista seja abordado a cada passo. E aí começam pedidos e ofertas de serviços. Boa parte das conversas parece ser movida a algum interesse. Os jineteros, pessoas que se dedicam a “negócios” com turistas, são quase reconhecidos como profissionais. A prostituição, proibida desde a revolução, é evidente a ponto de parecer tolerada. Detalhes de um país com dupla economia, um dos reflexos do embargo econômico. Com a necessidade de abertura para o turismo – como alternativa para o chamado “período especial”, depois do fim da antiga União Soviética – Cuba criou, há dez anos, uma moeda própria para o setor do turismo, o peso cubano convertível (CUC). Para manter a paridade com o dólar americano, ela vale 25 vezes mais que o peso cubano, com o qual o trabalhador é pago e paga as contas do cotidiano.
ATRASO A maior região produtora de tabaco – um dos principais itens de exportação da ilha – voltou a trabalhar com tração animal REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
45
AMÉRICA LATINA
degas” (mercearias) do Estado. “Na época da União Soviética, entre os anos 1960 e 1990, tínhamos duas livretas. Uma era só para comida e outra para roupas e produtos de higiene”, conta o taxista Roberto, de 52 anos. A URSS mantinha com o país de Fidel Castro um regime de comércio subsidiado que dava algum fôlego à economia da ilha. Com seu fim, após 1990, ficou difícil. O embargo norte-americano pune comercialmente países e empresas que negociem com Cuba seus principais produtos de exportação, como derivados de cana-de-açúcar e tabaco. A permissão para a entrada de empresas e hotéis com expertise em turismo ajudou a remediar, mas é pouco para um país isolado há cinco décadas, apesar de várias resoluções dos países membros das Nações Unidas a favor do fim do embargo, solemente ignoradas pelos Estados Unidos. “Racionávamos energia ficando 12 horas sem e quatro horas com por dia. Aí ficamos com uma livreta só, para alimentação.” Hoje eles recebem mensalmente, por pessoa, arroz, feijão, óleo, açúcar e café, além de oito ovos a cada 45 dias, um pacote de absorvente por mulher a cada três meses e uma barra de sabão. As crianças ganham um litro de leite por mês. Frango e peixe também são distribuídos, quando há possibilidade. “Uma
CRIANÇAS ESPERTAS E ALFABETIZADAS Onde entrego a foto? “Rua Banneras, 22, entre Havana e Maceo”
FOTOS SARAH FERNANDES
Os salários, mais ou menos planificados, variam de 200 a 700 pesos cubanos, ou 8 a 28 CUCs. E se no passado os moradores da ilha compravam tudo com a chamada moeda nacional, em preços compatíveis com seus ganhos, hoje eles passam a ter de consumir cada vez mais em CUCs, principalmente produtos de higiene e roupas, quase artigos de luxo. Em outubro, o governo de Raúl Castro anunciou que haverá a unificação das moedas. Ainda não foi estipulada data para iniciar o processo. A primeira fase alcançará o setor empresarial e as instituições estatais, visando estimular à produção de bens e serviços e à substituição de importações. “Por si só, a unificação monetária e cambial não é uma medida que resolve os problemas da economia, mas sua aplicação é imprescindível para garantir o restabelecimento do valor do peso cubano e de sua função como dinheiro”, diz em nota o jornal oficial, o Granma. A necessidade de consumir é crescente. Nos primeiros anos da revolução foi feito um acordo entre o governo e a população: os salários teriam de ser mantidos baixos para que pudesse haver outros investimentos, mas em troca o governo daria ou subsidiaria produtos básicos pela chamada livreta, um caderninho em cujas páginas há um controle mensal de produtos que podem ser retirados nas “bo-
CHAMARIZ Os velhos carros e a arquitetura de Havana ainda são um ponto forte do turismo
46
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
coisa é você nascer miserável. Outra é ter vivido bem e de um dia pra outro se tornar muito pobre”, diz Roberto. Outdoors do governo estampam que “as mudanças são para mais socialismo”. O país está de fato mudando rápido, mas ninguém arrisca apostar se para melhor ou pior. Uma das bases das mudanças é a possibilidade de os cubanos abrirem negócios particulares e oferecerem serviços. São pequenas barbearias, quartos para aluguel, carros transformados em táxi, cafés improvisados nas janelas das casas e restaurantes nas salas de estar. A concorrência por turistas, porém, é um fator de desigualdade. Um taxista ganha, em uma corrida do aeroporto ao centro de Havana, o mesmo que um médico em um mês de trabalho: 25 CUCs. É possível observar, assim, o germe do capital privado e, por tabela, da pobreza. Desembarcar em uma rodoviária em qualquer cidade significa ser cercado por famílias que disputam insis-
AMÉRICA LATINA
tentemente a oferta de todo tipo de serviço. “A vida é muito apertada e nós só conseguimos viver melhor porque temos esse negócio com turismo”, conta a economista Luiza, de 66 anos, que aluga um quarto em sua casa em Trinidad, pequena cidade litorânea a 360 quilômetros da capital, Havana. Como a cidade é muito turística, quase todos os serviços já se tornaram particulares e a concorrência entre os cubanos, desleal. “Com as gorjetas ganho mais que meu filho, que é médico. Aqui se estuda por gosto e pela importância do trabalho”, conta Flanco, guia turístico na pequena Vinãles, no norte do país. A cidade é a principal produtora de tabaco, em terras que foram desapropriadas de empresas norte-americanas e cedidas aos camponeses na reforma agrária, primeira ação do governo revolucionário.
Incoerências
As contradições estão por toda parte: saúde e educação são totalmente públicas, gratuitas, para todos os 11 milhões de
cubanos. A assistência social para doentes e vítimas de desastres funciona muito bem. Mas internet e TV a cabo em casa são proibidas, mesmo para quem poderia pagar. A imprensa é controlada. A redação do Granma fica em área militar. A solidariedade, no entanto, parece ser traço característico dos cubanos. E componente curricular escolar. O principal livro da escola primária, O Mundo em que Vivemos, propõe entre suas atividades que os alunos verifiquem “se alguém da turma não tem lápis, divida o seu”, ou que “converse com seu vizinho e pergunte como ele vivia quando criança”. E é essa solidariedade que, segundo os cubanos, justificam suas baixíssimas taxas de criminalidade, quase inexistente no país, mesmo havendo grande desigualdade entre eles e os turistas. “Temos uma educação pautada na comunhão e no humanismo. É por isso que você pode caminhar sozinha e tranquila por aqui”, diz o editor de um jornal local de Santiago. Perto dali, a estudante Yosmila, de 8 anos, pede que faça uma foto dela com
os três irmãos. A família, sem negócios com o turismo, é muito pobre e não tem sequer um retrato dos filhos. “Chame sua mãe para passar seu endereço que eu envio a foto”, sugiro. Ela mesma faz questão de escrever, com desembaraço: “Rua Banneras, 22, entre Havana e Maceo”. O índice de analfabetismo da população acima de 15 anos é de 0,2% – no Brasil, essa taxa varia entre 3,2% (DF) e 22,5% (AL), sendo a média nacional de 8,5%. Os salários de professores estão entre os melhores do país, inclusive os de aposentados. As crianças estudam dos 5 aos 15 anos, obrigatoriamente. Após a alfabetização, todo foco das aulas está nas ciências humanas. A universidade é optativa, mas acessível para todos. O ingresso se dá por uma prova – as menores notas ficam com os cursos menos procurados. Todos têm uma vaga garantida e que, como estudaram na mesma escola, concorrem de maneira mais justa. Mayaha Quiros é médica recém-formada, em Havana. Quer se especializar em dermatologia. Antes, passará três anos trabalhando como médica para o Estado, com salário reduzido, em regiões com maior demanda. “A sociedade custeou todo o meu estudo. O mínimo que eu posso fazer é retribuir”, diz. Segundo o livro Cuba apesar do Bloqueio, do jornalista Mário Jakobskind, o investimento maciço do Estado em saúde permitiu que desde 1959 o país formasse 109 mil médicos. Pelo menos 48 mil estão em missões em 58 países, incluindo China, Catar, Argélia, México e agora Brasil. A política de saúde cubana é de se antecipar a doenças. “Há um médico de família para cada 120 pessoas, no máximo, responsável pelo atendimento básico e por medidas de prevenção. Se há um bebê, é visitado diariamente. Se há um idoso, as consultas também são em casa”, conta Iona Moarison, uma jovem médica escocesa que faz estágio em um hospital especializado em obstetrícia. “Os médicos são bons e bem formados. Será uma grande oportunidade para os médicos brasileiros quando eles começarem a trabalhar no seu país”, disse, desconhecendo que no Brasil ainda se convive com outra cria da desigualdade: o preconceito. REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
47
curtaessadica
Por Xandra Stefanel
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
DiCaprio, com Margot Robbie, é o “lobo” de Wall Street
Ascensão e queda “O meu nome é Jordan Belfort. No ano em que completei 26 anos, ganhei US$ 49 milhões, o que me deixou p... porque era menos de US$ 1 milhão por semana”, diz o ambicioso corretor da Bolsa de Valores em O Lobo de Wall Street, filme de Martin Scorsese que chega aos cinemas em 24 de janeiro.
Trata-se da adaptação da autobiografia de Belfort, preso na década de 1990 por fraude bancária e corrupção na Bolsa de Nova York. O longa mostra os escândalos, os excessos, as drogas, a ascensão e a queda do fraudador, com Leonardo DiCaprio no papel principal.
A artista plástica Tomie Ohtake acaba de completar 100 anos (em novembro). Para celebrar a data, o instituto que leva o seu nome realiza até 2 de fevereiro a exposição Tomie Ohtake – Gesto e Razão Geométrica, em São Paulo. O curador Paulo Herkenhoff reuniu cerca de 80 trabalhos, a maioria pinturas em que ela apresenta sua inconfundível construção geométrica abstracionista. Na capital fluminense, o Museu de Arte do Rio (MAR) exibe 24 trabalhos criados entre 1959 e 1962 que fazem parte de acervos de diversas instituições e colecionadores. A mostra Pinturas Cegas também termina em 2 de fevereiro. Instituto Tomie Ohtake: de terça a domingo das 11h às 20h, na Av. Faria Lima, 201. No Museu de Arte do Rio: de terça a domingo, das 10h às 17h, na Praça Mauá, 5. Grátis. 48
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
SEM TÍTULO, 1953
Centenário
Coleção Hemingway A editora Bertrand Brasil está relançando algumas obras memoráveis do escritor norte-americano Ernest Hemingway. Os clássicos O Velho e o Mar, Paris é Uma Festa e Adeus às Armas já chegaram às livrarias com novo layout. Para fevereiro, está programado o lançamento de O Sol Também se Levanta, que retrata os conflitos e
frustrações dos norte-americanos e ingleses que viveram em Paris depois da Primeira Guerra Mundial. Em março sai Por Quem os Sinos Dobram, em que o jovem Robert Jordan, integrante das Brigadas Internacionais contra o franquismo na Guerra Civil Espanhola, recebe a missão de dinamitar uma ponte. Preços sob consulta.
Diversão de antigamente
No lugar de tablets, celulares e computadores, livro. A opção pode até parecer sem graça para uma parcela das crianças “superconectadas”. Mas Katia Canton prova que muitas brincadeiras que nunca saem de moda não perdem nada para os jogos eletrônicos. Em Fabriqueta de Ideias (Companhia das Letrinhas, 160 págs.) ela traz mais de 80 opções de brincadeiras, acompanhadas de reflexões sobre o mundo das artes plásticas, ecologia, diversidade cultural, língua e literatura. Uma obra que propõe diversão e também reflexão sobre a vida que levamos. R$ 40.
Letícia Sabatella é uma das artistas com depoimento em Eu Maior
Busca pela felicidade Deixar para trás o que é cômodo, mudar radicalmente de vida, reavaliar o que é importante e seguir o próprio caminho fazendo o que realmente gosta. O documentário Eu Maior faz uma reflexão contemporânea sobre autoconhecimento e a busca pela felicidade, com depoimentos de artistas, intelectuais, líderes espirituais, esportistas, entre outros. Laís Bodanzky, Leonardo Boff, Letícia Sabatella, Monja Coen e Rubem Alves são alguns dos entrevistados que compartilharam experiências pelas quais ampliaram suas percepções de si e do mundo. O documentário foi lançado no cinema e em DVD, e pode ser assistido ou baixado na internet em www.eumaior.com.br
REVISTA DO BRASIL
JANEIRO 2014
49
MOUZAR BENEDITO
Padre Cícero e as enchentes
“T
odo rio tem o direito de transbordar na época das chuvas”, ouvi de um urbanista. E ele tem razão. Não sei por que as pessoas ficam reclamando quando as águas saem dos leitos dos rios e ocupam ruas e avenidas, invadem casas e “provocam” tragédias, como no ano anterior e no anterior ao anterior. Bom, nem sempre é igual ao ano anterior. A cada ano, em alguns lugares, as enchentes ocupam espaços maiores, invadem mais ruas, avenidas e casas. Claro: a cada ano constroem mais casas e prédios nas proximidades dos rios, e asfaltam ou alargam mais ruas. E pra onde vai a água do rio cheio, que tem o direito de transbordar? Lembro de quando foi construído, em São Paulo, o Memorial da América Latina,uma obra importante, mas que ocupou e impermeabilizou um grande espaço de várzeas que as águas das chuvas usavam para serem absorvidas pelo solo. Um geógrafo me disse: “Vai começar a ter enchente até na Avenida Pacaembu”. Batata! As enxurradas da Avenida Pacaembu passaram a encontrar uma barreira de cimento pela frente, e haja enchentes. A coisa só abrandou quando foi construído um “piscinão” ali, durante o governo de Luiza Erundina na prefeitura. Mais recentemente, vi políticos festejando o alargamento da Marginal do Rio Tietê. “Não teremos mais tantos engarrafamentos de trânsito ali”, garantiam. E muitos jornalistas, que parece terem esquecido formas lógicas de raciocinar, acreditaram, ou fingiram acreditar. “Vêm aí mais enchentes. Nas próximas chuvas, a área alagada vai ser muito maior”, eu disse para alguns, que torceram o nariz. “Tudo que é obra de tucano ele encontra defeitos”, diziam. Apesar de não gostar dos tucanos (os sem-pena), meu pensamento não era por aí. Era na linha do que hoje tanto se comenta: não adianta privilegiar o transporte individual, os automóveis. 50
JANEIRO 2014
REVISTA DO BRASIL
Por mais que se criem e se alarguem ruas e avenidas, elas serão ocupadas e entupidas pelos carros que se multiplicam ano a ano. O resultado apareceu com as primeiras chuvas fortes. Liguei a televisão e vi cenas transmitidas por helicópteros, de casas invadidas pelas águas onde nunca tinha acontecido isso. E repórteres entrevistavam moradores falando dos prejuízos. “É a primeira vez que a água chegou até aqui”, diziam. Será que choveu mais? Nem sempre é isso. Quase sempre é o resultado da expansão de áreas de impermeabilização do solo. Com as várzeas do rio Tietê ocupadas por mais e mais asfalto e cimento, menos terá espaço para o fluxo natural das águas. E mais encrencas. Alguém já pensou por que o futebol amador se chamava “futebol de várzea”, em São Paulo? Segundo li, havia mais de mil campos de futebol nas várzeas do Tietê. Hoje, no lugar desses campos, há avenidas, fábricas, favelas, prédios... Por falar nisso, sempre culpam as favelas pela ocupação de áreas públicas. Mas quem se der o trabalho de estudar o assunto pode ter surpresas. Certa vez o jornal Shopping News fez uma grande apuração sobre esses fenômenos e revelou que 91% das terras públicas ocupadas irregularmente não eram por favelas, mas por empresas, quer dizer grandes empresas, inclusive shopping centers. Mas ainda tem gente que ignora a necessidade da terra de ter preservada sua capacidade de absorver as águas das chuvas. Alguns consideram até a vontade divina como causa das enchentes. Meu amigo Luizão, paranaense casado com uma pernambucana, tem uma teoria muito particular. Ele culpa o Padre Cícero e a burocracia do céu. “Os nordestinos vão em romaria a Juazeiro do Norte, no Ceará, e pedem ao Padre Cícero que mande chuva para eles. Mas a chuva demora, eles vêm pra São Paulo, e quando o Padre vai atender ao pedido, manda chover onde eles estão. É por isso que chove mais aqui.”
A Revista do Brasil integra uma nova plataforma de mídias, com portal de notícias, jornais de cidade, Rádio Brasil Atual e TVT. Um jornalismo que acompanha a nova realidade do Brasil e do mundo. Assinando a revista, você colabora com toda a plataforma.
Para assinar, acesse www.redebrasilatual.com.br/loja Para consultar os pacotes promocionais para sindicatos, escreva para claudia@revistadobrasil.net
www.redebrasilatual.com.br
Grande São Paulo
Noroeste Paulista
Litoral de São Paulo
Sintonize a frequência que dá as notícias que os outros não dão. E ainda tem cultura, esportes e música brasileira
www.redebrasilatual.com.br/radio