MORTES, MUTILAÇÕES, TRAGÉDIAS E OMISSÃO
As explosões em veículos da GM que custaram vidas: ações se arrastam, empresa não se responsabiliza e poder público não reage
nº 95 maio/2014
www.redebrasilatual.com.br
NÃO VAI TER AGUA
Combinação fatal de condições climáticas adversas e descaso administrativo colocam a maior região metropolitana do mundo em estado de calamidade
Fundo da Represa Jaguari, que integra o Sistema Cantareira, em São Paulo
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ÍNDICE
EDITORIAL
5. Na Rede
Notas que foram destaque na RBA no mês que passou
8. Consumo
Quando desrespeito a consumidor vira desrespeito à vida
16. Saúde
Programa de telessaúde melhora o atendimento e reduz filas FÁBIO VICENTINI/ARCO/RBA
20. Ambiente
Governo paulista não assume falhas e água já começa a faltar
24. Economia
O selo da reforma agrária ainda precisa chegar à sua mesa
Rafael, vítima de um Vectra que se incendiou repentinamente: queimaduras e amputação
30. Entrevista
Silêncios nada inocentes
Autor de biografia de Roberto Carlos crê na volta do livro
A
36. Futebol
Apostas e possibilidades para a Copa dentro dos gramados
43. Memória
Djalma Santos: o craque que nunca levou um vermelho
JOÃO ROBERTO RIPPER
Rio São Francisco, em Ibotirama, BA
43. Ensaio
Uma viagem ao São Francisco em fotos de João Roberto Ripper
Seções Cartas 4 Destaques do mês
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Mauro Santayana
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Lalo Leal
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Curta essa dica
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Crônica 50
exploração de desgraças humanas, desastres naturais ou intempéries como forma de conquistar audiência (por meios de comunicação) ou dividendos políticos (entre adversários eleitorais) não ajuda a restaurar dignidades, desfazer estragos ou buscar soluções corretas. Assim como a maior seca em muitos anos pode causar falta de água num estado administrado por um partido, pode também ocasionar problemas para a geração de energia a um país gerenciado por outro. A torcida é para que a chuva venha e reconstitua os níveis de reservatórios que tanto abastecem residências como usinas hidrelétricas. Tapar o sol com a peneira tampouco resolve. No caso do estado de São Paulo, por exemplo, não se via estiagem tão grave desde os anos 1930. A população saberia reconhecer a eventual necessidade de um racionamento, um rodízio, ou coisa que o valha para que as torneiras não sequem mais adiante. Entretanto, o governo Alckmin resistiu o quanto pôde em aplicar tais medidas. Tudo, segundo entidades e organizações especializadas, para não expor à opinião pública a parte da culpa no cartório que cabe à sua gestão. O conhecimento da real situação e das responsabilidades também é dificultado pela blindagem daquela imprensa sempre mais preocupada com Brasília. E seletiva nas investigações entre público e privado. Contra determinados entes públicos, manchetes implacáveis. Quando o escândalo tem origem privada – sobretudo em grandes corporações, e grandes anunciantes –, as notícias escasseiam como a água da Cantareira. Caso das explosões ocorridas em unidades do modelo Vectra, da GM – objeto de reportagem feita em parceria entre a Rede Brasil Atual e a Agência Pública. Uma das vítimas, que perdeu a filha após a explosão decorrente de um defeito elétrico, revelou que foi entrevistada por um repórter famoso de uma grande emissora. Mas a notícia nunca foi ao ar. São cenas de um país que, se tem mazelas no setor público, também as tem nas organizações privadas e nos meios de informação movidos, mais que a notícias, a interesses comerciais. Daí o entendimento de que o sistema de comunicação precisa ser democratizado. Para que outros possam entrar na história, disputar espaço e preferência do público. Num sistema efetivamente democrático, com pluralidade de opiniões e diversidade de pautas, aí sim, o tal controle remoto será sinônimo de liberdade de escolha. REVISTA DO BRASIL
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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Diego Sartorato, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Peres, Moriti Neto, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Viviane Claudino Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Capa Foto Nacho Doce/Reuters/Latinstock Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa
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50 anos de golpe É impressionante como as novas gerações não sabem quase nada sobre os anos de chumbo e a ditadura advinda após o golpe militar de 64. Não me lembro em minhas aulas de História ou Sociologia de ter estudado sobre esse momento. É preciso que a juventude conheça mais sobre o assunto e que, quando pensasse em defender ideias malucas (como marchas da família, Forças Armadas ou coisas do tipo), soubessem que muitos sofreram para que pudéssemos ter um país mais democrático e mais justo. A Revista do Brasil nos trouxe assuntos para uma reflexão sobre aquele momento. Pedro Oliveira
Com todo o respeito Com todo respeito ao jornalista Lalo Leal, em relação à sua coluna de março, edição 93, permita-me perguntar de onde sai o dinheiro do bolsa família para milhares de pessoas, e permita-me também perguntar se o nobre senhor é a favor do trabalho escravo dos médicos cubanos, pois essas questões não ficaram claras na matéria mencionada (“O Brasil da mídia e o país real”). Como pode o jornalista acusar a imprensa em geral de fazer campanha para a direita, se em suas colunas está explícita sua simpatia pela esquerda? É óbvio que somos contra a intervenção militar, uma vez que já vimos esse filme e não gostamos. Mas temos de nos rebelar contra um governo que desde a posse apresenta a cada semana um escândalo e cujos líderes se encontram trancafiados devido ao maior caso de desvio de verbas públicas que se tem notícia. Francisco de Almeida Filho Nota de Lalo Leal: O artigo a que se refere o leitor trata das diferenças entre a realidade brasileira e aquilo que a mídia divulga, tanto hoje como nos anos que antecederam o golpe de 64. O resto fica por conta da imaginação do autor, que parece confiar no que esses meios publicam e repetem seus chavões de forma acrítica. Cada um se engana como quer.
Erramos Na reportagem “Com olhos em 2015”, (edição 94, de abril), o sindicalista Antônio Neto foi indicado incorretamente como presidente da CGTB. Neto é, na verdade, presidente da Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB).
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
ROBERTO PARIZOTTI/CUT
Sebastian Rollandi, Venício Lima, Rosane Bertotti e Franklin Martins: é preciso ocupar melhor os espaços já existentes
Mais vozes, mais donos Com atos do 1º de Maio, democratização do acesso à informação e da liberdade de expressão é incorporada à pauta dos trabalhadores
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ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social Franklin Martins vê um “crescente mal-estar” da sociedade em relação aos meios de comunicação. O setor, segundo ele, não acompanhou a evolução democrática do país. Ao mesmo tempo, Franklin considera que a questão deve ser assumida pela sociedade e que é preciso ter “competência política” para formar maioria e realizar as mudanças. O ex-ministro se refere a um clamor de parcela dos movimentos sociais por uma lei de meios que, como determina a Constituição, se proponha a coibir a concentração de poderes de comunicar nas mãos de poucas e grandes corporações. Segundo ele, é o que falta para que o avanço da democracia alcance o mundo da comunicação. “E não adianta botar toda a culpa na Dilma”, disse ele, durante seminário promovido em 28 de abril pela CUT São Paulo, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, como parte das atividades do 1º de Maio. Traduzindo: os movimentos têm de parar de apenas destilar fúria sobre a ausência de qualidade e de isenção dos meios comercias. Enquanto não se conquistam novos espaços no espectro eletromagnético por onde se transmitem as ondas do rádio e as imagens das tevês, é preciso ocupar melhor os já existentes. Para o presidente do sin-
dicato anfitrião, Rafael Marques, esta é uma batalha a ser travada: “Temos de disputar a agenda da informação, que está centrada em poucos órgãos de imprensa. Os trabalhadores têm de aumentar o raio de ação”. O diretor da Rede Brasil Atual, Paulo Salvador, ampliou o recado: “É preciso aumentar a consciência, entre nós, sobre a importância estratégica da comunicação”, afirmou. Salvador vê na internet e nas redes sociais importantes veículos, mas nos quais ainda prevalecem os conteúdos das mídias comerciais. “O grande desafio é produzirmos conteúdo, disputar a audiência.” A ideia é corroborada pelo professor Omar Rincón, integrante da Fundação Friedrich Ebert na Colômbia. “É necessário ocupar o espaço da rede. E se há uma instituição que está longe disso, é o sindicalismo”, alertou. Para ele, falta aos movimentos sociais inserir linguagem para se comunicar especialmente com os jovens. Rincón destacou a linguagem utilizada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, ao priorizar soluções e resultados em vez de problemas, passa do pessimismo à esperança. E citou experiências na América Latina, como o Fora do Eixo (Brasil), as manifestações de estudantes do Chile por educação gratuita, movimentos no México, no Uruguai e na própria Colômbia. Para o professor, falta a alguns movimentos “voltar a ser jovem”. http://bit.ly/rba_comunica REVISTA DO BRASIL
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ROBERTO STUCKERT FILHO/PR
REDEBRASILATUAL.COM.BR
Um marco de Dilma A ampliação do acesso dos brasileiros à internet, a aprovação de leis que garantem direitos dos usuários e o protagonismo internacional do país na definição de novos modelos de governança fazem com que a internet seja a grande marca do governo Dilma Rousseff. A avaliação foi feita pelo ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, em entrevista durante a Conferência Multissetorial Global para o Futuro da Governança na Internet, a NetMundial. A importância dada pelo Planalto ao encontro em São Paulo levou a que se trabalhasse no Congresso pela aprovação do Marco Civil da Internet a tempo de que o texto estabelecendo direitos para os usuários na rede fosse sancionado pela presidenta.
Anfitriã e entusiasta da NetMundial, Dilma recebeu elogios públicos pelo empenho de seu governo. “O Brasil deu um exemplo positivo com o Marco Civil”, expressou Vint Cerf, vice-presidente do Google, secundado por Tim Berners-Lee, criador da web. “A lei votada ontem é um exemplo fantástico de como os governos podem proteger os direitos dos cidadãos na internet.” A presidenta manteve diálogos com Fadi Chehadé, presidente da Corporação Internacional para Atribuição de Nomes e Números (Icann); com Tim Berners-Lee,; e Hamadoun Toure, secretário-geral da União Internacional das Telecomunicações (UIT), órgão ligado às Nações Unidas. bit.ly/rdb95_conferencia
Gracias, Gabo
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MARIO GUZMÁN/EFE
Gabriel García Márquez morreu no último 17 de abril, aos 87 anos, depois de quase dois meses internado na Cidade do México, onde morava, devido a uma infecção respiratória. A sua obra mais conhecida, Cem Anos de Solidão, de 1967, é um marco da literatura mundial. E a lista de obras do Nobel de Literatura de 1982 é extensa. Sua primeira obra literária, La Hojarasca, de 1955, inclui pela primeira vez o povoado de Macondo, que se consagraria em Cem Anos. “Não sei se desgraçada ou afortunadamente, creio que (a literatura) é uma função subversiva”, dizia Gabo. “No sentido que não conheço nenhuma boa literatura que sirva para exaltar valores estabelecidos.” bit.ly/rdb95_gabo
Eles estavam fingindo Conhecido pelo codinome de JC ou Jesus Cristo, o delegado Dirceu Gravina, atual titular do Departamento de Polícia Judiciária do Interior, na cidade de Presidente Prudente (SP), acredita piamente no Espírito Santo, crença que jamais o permitiria torturar um ser humano. Hoje com 65 anos, o policial até ouviu pessoas gritando na sede do DOI-Codi, em São Paulo, onde trabalhou no início dos anos 1970. Mas acredita que elas deveriam estar simulando. Não nega, porém, que tenham existido casos de graves violações aos direitos humanos no órgão de repressão do II Exército durante sua passagem por lá, conforme declarou à Comissão Nacional da Verdade. bit.ly/rdb95_tortura1
TVT
Canal 2 NET Digital: São Paulo. Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br
Atividade reduz consumo de drogas
Braços abertos
Em São Paulo, todos os participantes do De Braços Abertos estão reduzindo o consumo de drogas desde a implementação do programa social, há três meses, pela prefeitura. Beneficiários do projeto participam do projeto Fábrica Verde, que oferece cursos de capacitação em paisagismo, plantio de jardins comestíveis, produção de mudas e compostagem. Os participantes do De Braços Abertos terão, carga horária de 160 horas, divididas entre aulas teóricas e práticas. bit.ly/rdb95_abertos
Carnes tremendo As cartolinas pediam “justiça”, e um banner colorido reproduzia foto de Douglas Rodrigues, 17 anos, lembrado por amigos, familiares e vizinhos do Jardim Brasil, zona norte de São Paulo. As autoridades haviam escolhido o dia 17 de abril para fazer a reconstituição do assassinato do garoto, em 27 de outubro de 2013. O soldado da PM Luciano Pinheiro, 31 anos, estaria já com a arma em punho. O gatilho foi acionado de dentro da viatura. Após ser atingido, o jovem questionaria: “Por que o senhor atirou em mim?” Para Rossana Martins, mãe de Douglas, acompanhar a reconstituição do crime e ver-se tão perto do policial que tirou a vida de seu filho, e que não está preso e nem sequer foi afastado, piorou seu estado emocional. “Estou com as carnes tremendo de vontade de grudar no pescoço dele. Mas tive que me conter.” bit.ly/rba_douglas
CÉSAR OGATA/SECOM
Em breve no canal 44 de TV digital de São Paulo Outro dia, um programa da TVT veiculou reportagem sobre os 25 anos de poesia do poeta e cronista Sérgio Vaz, ativista da Cooperifa, morador do Capão Redondo, zona sul de São Paulo. A matéria tida por alguns como “longa para os padrões da televisão” suscitou uma boa discussão entre pessoal de redação, técnicos de estúdio, operadores de câmeras e quem estivesse passando por ali. E a pergunta que não queria calar – e não calou – era: quem disse que as chamadas emissoras “tradicionais” de TV e que muitas vezes adéquam sua programação a interesses comerciais ditam o padrão? Quem disse que “matéria boa” tem de ter no máximo dois minutos? Voltando à matéria sobre Sérgio Vaz: é longa, mas é “redonda”. É fora do padrão comercial, mas dentro da proposta da TVT de levar ao vídeo pessoas e atitudes que são protagonistas de transformações sociais. A partir dessas questões, outras foram sendo desdobradas. Temas dos trabalhadores, dos movimentos sociais, dos direitos de homens e mulheres, de negros, indígenas, das batalhas por igualdade com respeito às diferenças e à diversidade. É aí que brota, naturalmente, o inevitável assunto da democratização dos meios de comunicação. Um assunto que remete a outra batalha, bem definida por Sérgio Vaz: “Não confunda briga com luta. Briga tem hora pra começar e pra acabar. Luta é para sempre”. E desde sempre estão no DNA da TVT as aspirações por democracia com cidadania. Depois de quase 30 anos de obstinação, veio em 2010 a primeira concessão de um canal de televisão para um sindicato de trabalhadores. De lá para cá, são mais quatro anos persistindo para comprovar que no espectro eletromagnético – que é o espaço público, invisível e limitado por onde trafegam os sinais das emissoras antes de chegar aos telespectadores em forma de imagem – cabe uma TV dos trabalhadores. A luta foi árdua. Finalmente, no último 14 de abril, a TVT teve o projeto de conversão para o sistema digital aprovado pelo Ministério das Comunicações. Em breve, o canal 44 da TV digital – com sinal aberto e gratuito – será ocupado por uma emissora que se orgulha de ter um olhar diferente das outras, em que o cidadão se vê e tem voz. A nova antena transmissora será instalada na Avenida Paulista. Quando a aquisição de equipamentos e a fase de expansão forem concluídas, a programação alcançará a Grande São Paulo onde vivem 20 milhões de pessoas. A unidade já existente em Mogi das Cruzes continuará em operação, também no canal 44. REVISTA DO BRASIL
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Explosões e Associação contabiliza dezenas de explosões decorrentes de defeitos do Vectra, da GM. Alguns resultaram em dramas familiares e mortes. Montadora não se responsabiliza e ações se arrastam na Justiça
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Por Moriti Neto, para Agência Pública e Rede Brasil Atual
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Não são só as marcas físicas. Fica um trauma, um medo, vergonha. Existe preconceito com quem é queimado Bruno Ferreira Mulinari
FÁBIO VICENTINI/ARCO/RBA
FÁBIO VICENTINI/ARCO/RBA
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az quase seis anos. E o feixe de luz que entra pela fresta da porta da sala ilumina o olhar marejado de Lucineia Rodrigues dos Santos Silva quando ela lembra do automóvel Vectra GLS, cor prata, ano 1997, responsável pela morte da pequena Raíssa. Era 24 de julho de 2008 no município de Três Lagoas (MS), a 338 quilômetros da capital Campo Grande. Lucineia chegou em casa com Raíssa e o filho Edson, à época com 6 anos. Às 9h45, estacionou o carro na garagem. Mãe e filho desceram enquanto Raíssa dormia. Lucineia foi abrir a porta da casa para depois retirá-la da cadeirinha. Não houve tempo, e um estrondo anunciou a tragédia. “Foi coisa de segundos. A fumaça e o fogo se espalharam muito rápido”, conta. A mãe conseguiu abrir a porta traseira e tirar a menina do carro. Desesperada, viu os olhos da bebê fechados. A pele se desprendia do rosto. Lucineia e a criança foram levados ao Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, no centro da cidade. Chegaram às 10h02. “A Raíssa tinha queimaduras de 2º e 3º graus no rosto, braços, tórax e pernas. Em Três Lagoas, só havia condições de fornecer os primeiros-socorros”, lembra. Saem às 16h05 e três horas depois, chegam à Santa Casa de Campo Grande. Conseguiram internação à meia-noite no Centro de Tratamento Intensivo, onde viverão mais 34 dias de agonia. “E eu ainda a amamentava.” As vias respiratórias da criança, bastante afetadas, agravam as condições de saúde. Para piorar, vem uma forte infecção. No dia 28 de agosto de 2008, com 7 meses e 14 dias de idade, Raíssa morreu. “Como mãe, senti culpa”, diz Lucineia. O trauma a paralisou por dias, deprimiu-a. O inconformismo foi mais forte quando teve nas mãos a perícia do Núcleo de Criminalística Regional da Polícia Civil, que apontava defeito elétrico no Vectra como a causa da explosão.
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e omissões Não tinha vontade de me alimentar, queria morrer Rafael Bonadiman Bisse
Antes da explosão, ele tinha uma vida normal, amigos, trabalhava, saía, namorava Andresa Adelmo (tia de Rafael)
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Foi coisa de segundos. A fumaça e o fogo se espalharam muito rápido. A Raíssa tinha queimaduras de 2º e 3º graus no rosto, braços, tórax e pernas. Em Três Lagoas, só havia condições de fornecer os primeirossocorros Lucineia Rodrigues dos Santos Silva
Outras vítimas
FILIPE GRANADO/RBA
O laudo, de número 10.985, foi concluído em 22 de agosto de 2008. Era a base para o processo, que se fundamenta, também, em relatos de outros Vectra que se incendiaram ou explodiram pelo Brasil. Em 2009, Lucineia e o pai de Raíssa, Edson Pereira dos Santos, entraram com ação judicial contra a General Motors do Brasil, na 4º Vara Cível de Três Lagoas. A perícia havia sido feita muito antes de a família entrar com a ação. Quase cinco anos depois do início do processo, a família ainda não conseguiu sequer uma audiência entre as partes. “A GM protela e tenta enganar a Justiça. Usa argumentos infundados para encher o processo e dificultar o encaminhamento. Alegou que o carro teria sido convertido a gás, o que nunca aconteceu. Até ‘bituca’ de cigarro adentrando a grade dianteira, com acesso ao motor, eles disseram que poderia ser. O fogo veio de trás do veículo”, questiona a advogada da família, Keyla Lisboa Sorelli. Os embates que seguem até hoje passam, basicamente, por uma questão. Em 28 de janeiro de 2011, a GM do Brasil pediu uma nova perícia para “garantir o direito à ampla defesa”. No dia 12 de abril do mesmo ano, o pedido foi concedido pelo juiz Márcio Rogério Alves. Os trabalhos da nova perícia começaram apenas em 13 de fevereiro de 2012, três anos e oito meses depois da explosão. Havia, ainda, outro problema – mais grave. Na época da explosão, o veículo tinha sido recolhido pelo 3º Distrito Policial de Três Lagoas. Dali, foi para um pátio, o Auto Guincho Dori. O estabelecimento ficou como fiel depositário do Vectra levado pela Polícia Civil. No entanto, o carro desapareceu. Os responsáveis pelo pátio alegam que receberam autuação da Vigilância Sanitária e precisaram enviar veículos a um ferro velho, onde o Vectra teria sido prensado sem a retirada de nenhum componente. E os advogados da GM alegam que, sem o automóvel ou os componentes, não se pode tirar uma conclusão. O perito do Núcleo de Criminalística da Polícia Civil Milton César Fúrio sustenta, entretanto, a versão de defeito elétrico e afirma ter documentação suficiente para ratificar o laudo. Na ação, a empresa ainda acusa os pais de negligência pela não conservação da prova material. “Foi a polícia, o Estado, que fez a perícia. Agora, além do sofrimento, somos cobrados por não guardar o carro?”, revolta-se Lucineia. Ela tem ao seu lado o Código de Defesa do Consumidor, que prevê, no artigo 6º, a possibilidade da inversão do ônus da prova. “Se existe segredo no produto, sobre a tecnologia dele, algo inacessível ao consumidor, a Justiça pode determinar que o fornecedor comprove que aquele produto não causa lesões”, observa Christian Printes, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). A Resolução 331 de 2009 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) garante que “qualquer veículo à disposição de autoridade policial não pode, sequer, ser levado a leilão”. A tragédia causou impactos na família. O casal se separou. O menino Edson, hoje com 12 anos, não apagou da memória o drama vivido pela irmã. Ele, a irmã Larissa, de 14 anos, e a mãe foram morar com a avó em Santo Antônio da Platina (PR). Lucineia jamais se conformou: “Minha filha deveria estar aqui. Foi o carro que a matou. A Raíssa não volta, mas muitas pessoas podem estar passando pelo mesmo que nós”.
A Associação Brasileira de Consumidores Automotivos (ABCAuto) tem registros de 59 casos de explosão com modelos Vectra – 26 sem nenhum impacto. Um deles surpreendeu um grupo de amigos que ia para uma festa pela rodovia ES-060, no Espírito Santo, entre as cidades de Piúma e Anchieta. Rafael Bonadiman Bisse já era um rapaz tímido. Mas desde 8 de maio de 2009, a timidez cresceu com as cicatrizes das queimaduras de 2º e 3º graus sofridas em 70% do corpo, inclusive no rosto. Às 20h daquela data, a explosão do Vectra 1996 mudou drasticamente a sua vida e dos outros quatro jovens. Repentinamente, os três que estavam no banco traseiro sentiram calor intenso nas pernas. “Vinha da parte de baixo do carro”, recorda Antonio Mulinari. “Vi o fogo começar no banco traseiro. Tinha uma chama ao meu lado. Gritei que o carro estava pegando fogo.” O aviso foi rápido, mas a explosão foi mais. O estofado pegou fogo, as chamas chegaram no teto e varreram a cabine. O motorista, Charles William, e Bruno Mulinari saltaram do veículo em movimento. Rafael só conseguiu sair quando o veículo, já com muito fogo, colidiu com um mourão. “Foi tudo muito rápido, como uma bomba”, recorda.
CONSUMIDOR Lucineia e Raíssa, então com 4 meses
a em O Vectr a n s a m a ch garagem
Com queimaduras no rosto, braços e pernas, Charles, Bruno e Antonio foram internados em Anchieta: o primeiro por 11 dias. Os demais, por quase um mês. Rafael e Mateus Gomes Alves, os últimos a sair do Vectra, ficaram um ano e meio no Centro de Queimados do Hospital Dório Silva, na cidade de Serra. Para Rafael, veio ainda a infecção que exigiu a amputação da perna esquerda. Então com 20 anos, ele passava 24 horas por dia deitado. “Não tinha vontade de me alimentar, queria morrer”, relembra. Atualmente, ele não exerce nenhum ofício. Não estuda. Mal sai de casa e não se relaciona com amigos. “Antes, ele tinha uma vida normal, amigos, trabalhava, namorava”, relata a tia Andresa Adelmo. A família entrou com processo contra a GM em dezembro de 2011. Em dois anos e meio de espera a ação não foi julgada em primeira instância. Bruno tem cicatrizes no tórax, pernas e nos braços. “Fica um trauma, um medo, vergonha. Existe preconceito com quem é queimado”, diz o ex-ajudante de pedreiro e hoje, com 24 anos, dono de um lava-rápido em Piúma. “Faz um ano que retomei um ritmo mais ou menos normal, mas não esqueço o terror. Era final de semana de Dia das Mães. Não pude nem ver a minha”, diz.
A advogada Janine Vieira Paraíso, que representa as vítimas do caso do Espírito Santo, reclama da extrema lentidão dos processos. “Houve perícia realizada pela GM logo após o acidente, a qual, obviamente, excluiu a culpa da montadora. Aguardamos nova perícia, indicada pelo Estado, desde outubro de 2012.” Na época do incêndio, um engenheiro perito em análise de defeitos veiculares fez uma avaliação, a pedido dos rapazes, e identificou problemas elétricos, mas não entrou no processo porque as vítimas não tiveram condições de arcar com os custos do profissional. Charles hoje mora na região metropolitana de Recife e evita o assunto. Antonio Mulinari teve poucas sequelas e segue no Espírito Santo. Mas Mateus Gomes Alves teve 70% do corpo queimado. As mãos direita e esquerda ficaram quase incapacitadas. Com 23 anos, está preso, acusado de tráfico de drogas. “Era um rapaz forte, bonito, cheio de energia. No estado que ficou, perdeu a cabeça, se envolveu com coisas que não devia”, avalia Bruno.
Caso emblemático
“Sem fotos nem filmagem”, pede em voz baixa, gentil, Edda Pedemonte Araújo, de 75 anos, 14 deles na luta contra um gigante do setor automotivo. Edda ainda sofre ao lembrar a tarde de 17 de agosto de 1999, quando viajava pela BR-070, de Cuiabá para Barra do Garças (MT). À sua frente, viu um carro explodir sem ter sofrido nenhum impacto. Era um Vectra quase zero-quilômetro, sete meses de uso. Seus ocupantes morreram carbonizados. Edda vinha atrás, em outro automóvel. Viu a cena aterradora: entre os corpos consumidos pelas chamas estavam Heronides de Aquino Araújo, Ítala Pedemonte Araújo e Antonio Salvino Pedemonte Araújo. Seu pai, sua mãe, seu irmão. Meia hora antes, ela mesma estava no carro. “Meu irmão era quem dirigia. Era cuidadoso com nossos pais. Pediu para eu descer, queria diminuir o peso. Como tínhamos um amigo vindo logo atrás, em outro carro, troquei”, conta. Heronides Araújo e Maria Domitila Pinto Gusmão, a enfermeira que cuidava do pai de Edda, morreram dentro do Vectra. Antonio e Ítala conseguiram saltar, mas morreram na pista. Todos tiveram queimaduras de até 4º grau. Em 2001, a família acionou a GM na Justiça. Seguiu-se uma verdadeira guerra jurídica. Segundo Heronides Filho, irmão de Edda, logo após a ocorrência a GM sumiu com o carro. “Isso depois de levá-lo para o pátio da montadora, em Barra do Garças.” A primeira perícia – produzida pela equipe da Coordenadoria de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Mato Grosso – atestava que a explosão fora causada por uma peça de freio de caminhão perdida na estrada. A juíza Amini Haddad Campos, da 9ª Vara Cível de Cuiabá, que apreciou o processo, questionou o local e a forma de realização do procedimento. E classificou como “imprestável” a perícia. Pediu outra. Realizada pelo engenheiro mecânico Durval Bertoldo da Silva, a avaliação teve conclusão divergente: “Explosão no compartimento interno do veículo, acima do tanque de combustível e abaixo do banco traseiro”. REVISTA DO BRASIL
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Em 11 de julho de 2008, familiares das vítimas conseguiram a condenação da empresa. A Justiça matogrossense determinou indenização de R$ 6 milhões, partilhada entre 12 beneficiários. A juíza concluiu, também, que a GM teria de emitir um comunicado público sobre os riscos ocultos no modelo e realizar o recall. A GM recorreu imediatamente ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Em 2010, os desembargadores condenaram a empresa, por dois votos a um, mas reduziram a indenização de R$ 500 para R$ 200 mil a cada beneficiário. A exigência do recall, porém, foi excluída. No ano passado, já no Superior Tribunal de Justiça (STJ), instância máxima, as partes chegaram a um acordo. A empresa aceitou pagar R$ 6 milhões no total, depois de 13 anos. O advogado dos familiares, André de Paiva Pinto, acredita que o acordo foi significativo do ponto de vista econômico para os familiares. Porém, considera que a quantia ficou aquém de causar qualquer efeito inibidor para a indústria automobilística. “Morreram quatro pessoas de forma violenta e o valor ganho individualmente, por autor, corresponde a menos de 20 minutos, num período de um ano, do faturamento da GM. Isso, valendo só o parque industrial de São Caetano do Sul”, enfatiza. “Parece mais vantajoso para a empresa pagar indenizações, o que perpetua o desrespeito ao consumidor”, destaca Paiva Pinto. Para dona Edda, a sensação é de impunidade.
Documento: a GM sabia?
Durante a pesquisa para o processo de Mato Grosso, Paiva Pinto e os familiares das vítimas levantaram 30 outros casos em que o Vectra explodiu, sem impacto, nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. A partir desse mapeamento, fundaram a Associação Brasileira de Consumidores Automotivos (ABCAuto). A associação teve acesso a um boletim de informação técnica sobre o Vectra, datado de fevereiro de 1998. O documento, de circulação interna da General Motors do Brasil e distribuído a revendedoras e oficinas autorizadas, alerta sobre um problema no chicote da bomba de combustível do veículo. “A peça, em decorrência do comprimento dos cabos e do balanço do comburente pode tocar os terminais elétricos, provocando o derretimento da proteção e, consequentemente, falha”, descreve. “O resultado disso é óbvio. Vapores e gases de combustível em contato com faíscas dão em explosão”, explica o engenheiro mecânico João Valentim Bin, especializado em desenvolvimento e testes de motores a combustão interna e combustíveis alternativos e ex-supervisor na Engenharia de Testes e Desenvolvimento da Detroit Diesel Allison do Brasil, divisão da General Motors para desenvolvimento de motores. A recomendação do boletim era para que, caso os veículos dessem entrada com problema de queima de fusível da bomba de combustível, o chicote deveria ser verificado. No verso, há uma ilustração do procedimento para a correção do defeito e um aviso para que sejam atendidos apenas veículos dentro do período de garantia. 12
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“MORRERAM QUATRO PESSOAS DE FORMA VIOLENTA” O Vectra de Mato Grosso e o boletim da GM para as concessionárias: conhecimento de causa
O boletim técnico estava com o Ministério Público de São Paulo. Denúncias contra a montadora haviam sido feitas, principalmente, pela Associação Nacional das Vítimas das Empresas Montadoras e Concessionárias Automotivas (Anvemca), sediada em Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo. Para o advogado André de Paiva Pinto, o documento é uma prova da omissão da companhia. “A montadora conhecia o defeito pelo menos 18 meses antes do sinistro de Mato Grosso e mais de dez anos antes das ocorrências do Mato Grosso do Sul e do Espírito Santo. Por que não foi obrigada a fazer o recall? Só esse documento bastaria”, diz.
Recall e omissão
Em tradução livre, recall significa “chamada de volta”. O Código de Defesa do Consumidor, de 1990, prevê que produtos defeituosos ou que contenham vícios ocultos, podendo colocar em risco a segurança e a saúde dos cidadãos, devem receber convocações para checar e consertar eventuais problemas. O caso do Vectra é marcante. O documento interno da GM foi parar em vários órgãos públicos fiscalizadores. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), do Ministério das Cidades, e a Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados foram informados, inclusive com relatórios das explosões de Vectra. A Senacon está há cinco anos em estágio de “averiguação preliminar” – o que serviu de justificativa para negar à repor-
CONSUMIDOR
Jaílton de Jesus Silva, fundador da Anvemca, traduz o que são os boletins: “São procedimentos repassados aos prepostos, concessionárias, oficinas. Elas ‘passam em branco’ defeitos que chamamos de ‘vícios ocultos ou defeitos surpresa’, de difícil visualização pelo consumidor. Por isso, damos o nome de recall branco a esse expediente. Só as concessionárias são informadas dos defeitos e os consumidores não recebem chamado algum. Não são atendidos os requisitos previstos no CDC. É crime”, defende.
Quem resolve?
tagem o acesso aos documentos sobre o caso. A secretaria também se recusou a dar informações ou entrevistas. “Em 2008, a Senacon já apurava a situação. Como pode alegar que está em estágio de investigação preliminar?”, questiona Paiva Pinto, que também teve negado o acesso ao procedimento completo.
Em 2008, o engenheiro mecânico João Valentim Bin foi chamado para fazer o laudo sobre o desprendimento da roda traseira de um Fiat Stilo de Brasília, no que ficou conhecido como “caso Carla Barbosa”, nome da proprietária do veículo que capotou com a soltura da peça. Bin teve papel fundamental para que saísse o recall de mais de 52 mil unidades do Stilo, em 2010, o que não ocorreu sem dificuldades. A perícia elaborada por ele embasou as ações de consumidores na Senacon e na Justiça. O engenheiro, com larga experiência em recalls, afirma que a existência do boletim de informação técnica das explosões, mais os indícios que as relacionam, deveriam ser suficientes para obrigar a GM a convocar o recall. Um exemplo de trabalho de prevenção baseado em indícios vem da própria companhia, mas na Austrália. Em janeiro de 2008, a GM Holden, filial da montadora no país, anunciou um recall de 86 mil veículos vendidos no Oriente Médio, Oceania e, inclusive, Brasil. O modelo era o Ômega, 2006 e 2007. A convocação foi anunciada por haver risco de vazamento de combustível do motor, o que poderia causar incêndios. Na época, o porta-voz do grupo, John Lindsay, afirmou que a chamada era preventiva. “As chances de isso acontecer são muito baixas, mas, obviamente, estamos optando pelo excesso da precaução”, observou.
A GM e os defeitos ocultos Desde fevereiro deste ano, a matriz da General Motors, localizada nos Estados Unidos, está em crise. A montadora anunciou um recall envolvendo pelo menos 2,6 milhões de veículos por falhas no controle de ignição que podem afetar o circuito elétrico e desativar o acionamento de airbags. Todos os veículos são produzidos nos EUA e vendidos na América do Norte. De acordo com denúncias apuradas por órgãos reguladores de segurança, dois comitês do Congresso norte-americano e o Departamento de Justiça, a GM esperou 13 anos para trocar as peças: a empresa detectou o problema no ano de 2001,
mas só tomou providências de correção em 2014. Os órgãos públicos já admitem ao menos 13 mortes, ocorridas em 32 acidentes. Contudo, levantamento feito pela empresa especializada Friedman Research Corporation menciona 303 mortos. Em audiência no Senado norte-americano no último dia 1º de abril, Mary Barra, atual CEO da empresa, disse que a cultura da montadora estava mudando: “Minhas sinceras desculpas a cada um que tenha sido afetado por este recall. Estou muito aflita. A GM de hoje fará o que for correto”, garantiu. No entanto, questionada, foi evasiva e
alegou não ter informações suficientes para responder a várias perguntas. Até mesmo ao ser indagada se a GM indenizaria as vítimas, disse que a fabricante “ainda não havia decidido.” Não é a primeira vez que a matriz enfrenta uma crise por defeitos de fábrica. Em 1998, na Califórnia, foi condenada a pagar uma indenização histórica por um acidente sofrido por Patricia Anderson, seus quatro filhos e um amigo às vésperas do Natal de 1993. Eles estavam numa picape Chevrolet Malibu que pegou fogo. Não houve mortes, mas todos os passageiros sofreram queimaduras graves.
A indenização de U$S 1,2 bilhão foi um recorde. Os advogados da família Anderson convenceram os jurados de que as montadoras sabem que muitos carros não são seguros, conhecem os meios para melhorar projetos, mas optam por reduzir custos em vez de investir em aperfeiçoamentos. Um documento que incentivou a sentença foi o Memorando Ivey. Elaborado em 1973 pelo engenheiro projetista da multinacional, Edward C. Ivey, o memorando demonstrava à empresa que a economia feita nos projetos de milhões de unidades compensaria o gasto com possíveis indenizações. REVISTA DO BRASIL
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Bin ressalta, porém, que o recall no setor automobilístico brasileiro não tem como ser eficiente, pois, além de depender de três entidades de dois ministérios diferentes, os órgãos não contam com recursos humanos suficientes nem competência técnica para cuidar de um assunto tão complexo. Além disso, segundo ele, são órgãos reativos, ou seja, agem apenas se provocados. “São as vítimas das montadoras que precisam levar indícios de vícios e defeitos aos órgãos”, critica. O Departamento Nacional de Trânsito não revelou as conclusões de sua investigação à reportagem. “O Denatran desenvolveu estudo sobre os casos de incêndio dos veículos Vectra por demanda da Senacon. O estudo final está em poder do Ministério da Justiça e, por envolver vítimas fatais, só a Senacon pode fornecer informações.” O Denatran não tem especialistas em tecnologia e acidentes veiculares. Contratou para o estudo o Centro de Experimentação e Segurança Viária (Cesvi), sediado em São Paulo.
No entanto, o estudo de quase 200 páginas não chega a conclusões. No texto, são comuns alegações como “não existem condições técnicas para analisar adequadamente o acidente”, “fica impossível levantar uma hipótese confiável sobre o motivo do incêndio” ou “não é possível precisar exatamente o ocorrido”. André de Paiva Pinto rejeita essas hipóteses: “Eu mesmo passei ao Cesvi dados das explosões. Eles não foram atrás e produziram um estudo de um absurdo completo”. A reportagem procurou, por telefone e e-mail, a General Motors do Brasil para obter a posição sobre as denúncias envolvendo o modelo. Depois de um mês de tentativas, a assessoria de imprensa afirmou, por telefone: “Não temos interesse nessa pauta”. Por e-mail, a assessoria prometeu um retorno, nunca cumprido. No dia 25 de abril, houve uma nova tentativa, informando que a edição impressa desta reportagem estava prestes a entrar em gráfica. Sem sucesso.
“O brasileiro ama demais o carro. No Brasil, a cultura em relação às montadoras é de que elas não cometem erros. O Judiciário, a mídia, endeusam empresas”, critica o engenheiro mecânico e perito João Valentim Bin. Ele defende que o país adote um sistema mais rigoroso do ponto de vista científico e de fiscalização das operações da indústria. Algo nos moldes da National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA), agência responsável pela fiscalização da indústria automobilística nos Estados Unidos. O presidente e fundador da Associação Nacional das Vítimas das Empresas Montadoras e Concessionárias Automotivas, Jaílto n de Jesus Silva, também questiona a eficácia do recall no Brasil. “Senacon e Denatran poderiam acelerar os recalls se agissem com indícios, como faz a NHTSA. Só que ficam à espera do consumidor, que tem de entregar o trabalho pronto para eles. As seguradoras deveriam ser obrigadas a informar ao governo quando um veículo estivesse envolvido em muitos acidentes com a mesma dinâmica”, defende. Silva criou formalmente a Anvemca em novembro de 2001 e estuda a indústria automotiva desde 1994. O Grupo de Estudos Permanentes de Acidentes de Consumo 14
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(Gepac), criado pelo governo federal em 2010, o convocou para reuniões. “O caso Vectra foi um dos provocadores da criação do Gepac, que poderia ser mais efetivo, caso tornasse públicas as atas das reuniões e ouvisse as vítimas e os assistentes técnicos. O Gepac também não possui engenheiros mecânicos especializados na tecnologia automobilística”, observa. “As montadoras são poderosas perante o poder público. Recebem muitos estímulos e são pouco cobradas.” A Sociedade dos Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil), associação que congrega pessoas físicas, engenheiros e executivos para disseminar técnicas e conhecimentos relativos à tecnologia da mobilidade, exalta os avanços do setor automotivo nacional. “Nossos veículos melhoraram. Há muito cuidado nos projetos”, diz o diretor-conselheiro da SAE Brasil Francisco Satkunas, que foi engenheiro da indústria automobilística por 46 anos. “A indústria tem uma conta de que 60% dos problemas são causados por peças de fornecedores, 30% em erros humanos de montagem e 10% por projetos de engenharia”, diz. “Montadora é voraz, quer ganhar sempre muito. É empresa com fins lucrativos. Não
ASCOM SAE BRASIL
Amor ao carro
Satkunas: “60% dos problemas vêm de peças de fornecedores, 30% de erros humanos de montagem e 10% de projetos”
faz filantropia. Muitas vezes, o erro de produção vem da economia da própria empresa para produzir”, diz o presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM-CUT), Paulo Cayres. O sindicalista não aceita o argumento simplificador das supostas falhas humanas. “A empresa, por exemplo, trabalha com matérias primas de qualidades diferentes. Não falar disso e apontar que a falha é humana é querer desviar responsabilidades”, salienta Cayres. Análise aprofundada sobre defeitos e recall na indústria automobilística não é algo fácil de encontrar no Brasil. O professor do curso de mestrado de Engenharia Mecânica da Universidade Nove de Julho (Uninove) de São Paulo, Ivan Luiz Laranjeiras Silva, pesquisou o tema por dois anos para escrever a dissertação que apresentou em 2011. Seu estudo avalia o período 2000-2010,
em que compara o Brasil com Austrália, EUA e Reino Unido em relação a medidas de empresas e órgãos públicos. “Fazemos menor número de recalls que todos os países pesquisados, mas isso não é garantia de que o produto é melhor aqui.” O promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de Minas Gerais Amauri Artimos da Matta chegou a conseguir, em 2010, a proibição da venda, em solo mineiro, de um carro com defeito: Toyota Corolla. A decisão do Ministério Público de Minas Gerais veio depois de alguns modelos apresentarem problema de aceleração e se baseou em relatos de nove acidentes. Após a decisão, o Gepac acordou com a Toyota o recall de 107 mil unidades do Corolla no Brasil. A campanha começou em 3 de maio de 2010 e os veículos voltaram a ser vendidos em Minas. O promotor defende que é preciso organizar iniciativas que envolvam poder público, montadoras e sociedade civil. “É possível fazer. Em Minas, estamos articulando uma ação entre o MP, o Procon e uma associação de engenheiros especialistas na área automotiva. Temos, inclusive, o projeto de lançar um site específico para dialogar diretamente com a sociedade”, conta.
MAURO SANTAYANA
A Petrobras e o futuro
A luta pela criação da empresa foi bela e consagradora. Ela é respeitada internacionalmente, mas ferozmente combatida
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riticada, vilipendiada, atacada desde o início por aqueles que se recusavam a acreditar na capacidade de realização da gente brasileira, e achavam que era melhor entregar nosso subsolo às petroleiras inglesas e norte-americanas, a Petróleo Brasileiro S.A. só foi criada porque milhares foram para a rua em sua defesa. Transformou-se em símbolo e bandeira de um Brasil viável, soberano e forte. Com o tempo, cresceu. Descobriu petróleo nas 200 milhas de nosso mar territorial. Desenvolveu e aprimorou, ao extraí-lo, a mais avançada tecnologia de exploração em oceanos. Tornou-se a mais premiada empresa na disputada Offshore Technology Conference (OTC), o “Oscar” da engenharia de petróleo. É respeitada internacionalmente, e ferozmente combatida. Há, hoje, no mundo inteiro, uma luta surda entre as grandes multinacionais de capital privado e estatais petrolíferas, pelas reservas de óleo e gás do planeta. Considerando-se isso, seria melhor para as grandes corporações internacionais se pudessem incorporar a seu patrimônio as gigantescas reservas do pré-sal. Ou, que não tivessem sido obrigadas a aplicar percentual mínimo, no Brasil, em pesquisa e a transformar o país em um dos maiores polos de desenvolvimento de tecnologia nessa área. Há outros problemas enfrentados pela Petrobras, neste momento, que derivam de equívocos estratégicos cometidos pelo governo nos últimos anos. Antes de incentivar as vendas de automóveis, para diminuir os efeitos da crise sobre a indústria, o país deveria ter atentado para a questão: de onde viria o combustível? Seria possível obter, por meio de incentivo a veículos híbridos e elétricos, e da liberalização e desburocratização total da produção de etanol e biodiesel, fontes nacionais de energia para a movimentação dessa frota? Se investirmos mais em automóveis e menos em transporte público, não estaremos aumentando, dia a dia, mês a mês, o consumo e a importância relativa de insumos importados – diesel e gasolina – na economia, tendo depois, por conta de inflação, de
segurar os preços? O governo recusou-se a aumentar o preço dos combustíveis, afetando o faturamento da companhia, quando poderia tê-los corrigido, homeopaticamente, ao longo do tempo, sem impactar de uma só vez a inflação, como provavelmente terá de fazer a qualquer momento. Finalmente, a produção nacional também diminuiu, não por falta de reservas, mas por causa da abundância delas. Plataformas de petróleo mais antigas tiveram de ser adaptadas ou substituídas por outras mais modernas, especialmente projetadas para trabalhar com o pré-sal, que foram majoritariamente construídas em território brasileiro. Navios gigantescos, como o João Cândido, o Celso Furtado, o José Alencar e o Zumbi dos Palmares, fabricados no Brasil, ajudaram a reerguer a indústria naval, criando milhares de empregos. Os problemas da Petrobras são transitórios. Tenderão a se resolver, quando novas plataformas forem concluídas e entrarem em funcionamento; as novas refinarias forem inauguradas, diminuindo a importação de diesel e gasolina estrangeiros; e houver uma recomposição paulatina do preço dos combustíveis. É natural que, com o tempo, suas diretorias e subsidiárias tenham se transformado – para partidos e parlamentares – em alguns dos mais cobiçados cargos da República. Tudo seria diferente, se, na Constituição, fosse vedada a senadores e deputados a ocupação de cargos públicos para os quais não tenham sido efetivamente eleitos. Ou, no limite, houvesse a proibição da indicação, para cargos executivos, de pessoas de fora dos quadros da própria empresa. Isso poderia diminuir, ainda sem evitar totalmente, a ocorrência de desvios e problemas, considerando-se o tamanho da Petrobras e as múltiplas áreas em que atua. Com todos os problemas que tenha, e que devem ser corrigidos, a Petrobras é trunfo fundamental para o desenvolvimento e o futuro do Brasil, no terceiro milênio. Tudo que se faça, portanto, no âmbito do Congresso, ou da sociedade, pelo aprimoramento da empresa, tem de ser feito não para enfraquecê-la, mas para torná-la mais forte. REVISTA DO BRASIL
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Ciência médica conectada Ao interligar vários centros de referência em saúde, programa brasileiro de telessaúde melhora o atendimento, reduz filas e ganha respeito internacional Por Cida de Oliveira
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o extremo norte do Brasil, na divisa com a Colômbia e a Venezuela, a 851 quilômetros de Manaus, está São Gabriel da Cachoeira. Para chegar lá, são duas horas de avião partindo da capital amazonense, ou quatro dias de barco pelo Rio Negro. A população, de maioria indígena, padece de doenças como a hanseníase, incapacitante se não for diagnosticada e tratada adequadamente, e desnutrição, que afeta o desenvolvimento das crianças. Desafios para os gestores, as grandes distâncias e o baixo desenvolvimento local vêm
sendo vencidos com a ajuda de pontos instalados em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no centro do município e em um pelotão de fronteira. Por meio de um computador e de uma antena apta a receber sinais via satélite, profissionais de saúde entram em contato com a equipe do Núcleo de Telessaúde, instalado na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), na capital. É o canal para assistir a aulas e palestras de atualização em dermatologia, pediatria, odontologia, ginecologia, cardiologia, enfermagem, psiquiatria e psicologia, sob medida para as necessidades da população local. É
FOTOS: NUTES / UFPE
SAÚDE
Sala de teleconsultoria do Nutes/PE CONTROLE DA PRESSÃO ALTA Segundo estudo, os pacientes atendidos nas UBS interligadas ao núcleo pernambucano aderem 20% mais ao tratamento do que os atendidos em outras unidades sem vínculo
MARCIA MINILLO/RBA
Teleconsultoria entre profissionais de saúde
À FRENTE Atendimento remoto no Hospital Municipal Dr. Ignácio Proença de Gouvêa, na Mooca: São Paulo caminha para se tornar a primeira capital a ter toda a Atenção Básica interligada pelo programa de Telessaúde
possível ainda consultar, por videoconferência, a opinião de outros médicos sobre casos mais complexos. São os teleconsultores do núcleo, que transmitem informações atualizadas, baseadas em evidências científicas e clínicas, para auxiliar o diagnóstico, a escolha do tratamento mais adequado ou até mesmo o encaminhamento do paciente para exames ou procedimen-
tos em outra localidade. Implementada em 2007, a estratégia, movida a parcerias entre órgãos federais e estaduais, já mostra bons resultados. Na própria UEA, estudo recente constatou que a qualidade e eficiência do tratamento de pacientes com pé diabético por médicos que utilizam os recursos da telessaúde são idênticas às do serviço prestado na capital, em centros de referência. A qualidade de vida de todos os pacientes ouvidos na pesquisa também era idêntica, conforme a pesquisadora Isabelle Nascimento Costa. “Nosso objetivo é obter mais recursos estaduais para
instalar pontos em todos os 62 municípios do estado, ampliar a cobertura e beneficiar mais pessoas”, diz o coordenador do núcleo amazonense, Pedro Máximo, um economista especializado em gestão de projetos de telessaúde e telemedicina. Conforme ele ressalta, os limites da conectividade são um dos desafios, inibindo a expansão da rede, que muitas vezes depende de acessos via rádio, encarecendo a comunicação. Em Pernambuco, o médico nefrologista Marcos Vinícius Ribeiro dos Santos, do Hospital das Clínicas da universidade federal naquele estado (UFPE), REVISTA DO BRASIL
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SAÚDE
A fila anda
No Rio Grande do Sul, desde o início do ano especialistas do núcleo local conseguiram fechar o diagnóstico e encaminhar para tratamento imediato, em unidades próximas de suas casas, 650 pessoas com diabetes. O número corresponde a 65% da fila para consulta com endocrinologista no serviço público. “Muitos esperavam havia mais de um ano, sem desconfiar que tinham a doença”, diz o epidemiologista Erno Harzheim, que coordena o núcleo do Telesaúde do RS. Em ligação telefônica por meio de um serviço 0800, o médico da UBS que fez o encaminhamento e um especialista discutiam, caso a caso, as condições de saúde dos pacientes conforme protocolos e diretrizes. E o consenso levou ao diagnóstico seguro e a abordagem terapêutica mais adequada. Com o início do tratamento, os pacientes passaram a controlar a doença, evitar suas complicações, como derrames, infartos, amputações, cegueira e insuficiência renal e, ao mesmo tempo, liberaram o serviço e especialistas para outros casos mais complexos. Responsabilidade da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o núcleo mineiro, em Belo Horizonte, atende a mais de 660 municípios, oferecendo entre outros serviços telediagnós18
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tico por meio de laudos de eletrocardiograma, monitorização ambulatorial de pressão arterial (Mapa) e Holter (monitor que mede o ritmo cardíaco), além de teleconsultoria para discussão de casos urgentes em cardiologia. O município atendido conta com computador, impressora e eletrocardiógrafo digital, equipamentos operados por um profissional qualificado que coleta e envia os dados do paciente. No núcleo, os especialistas emitem o laudo para a unidade de saúde, facilitando a vida de médicos e usuários. Só em fevereiro, foram 2,6 milhão de laudos e 56 mil teleconsultorias, sem contar o trabalho de coordenação da descentralização dos serviços para outros pontos no estado. Amazonas, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, mais Ceará, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina integram o projeto piloto do Telessaúde Brasil Redes. Criado há sete anos
para qualificar 2.700 equipes de Saúde da Família no país e melhorar a qualidade do atendimento na atenção básica, o programa começou a ser ampliado em 2009, para respaldar o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Infantil no Nordeste e na Amazônia Legal. No ano seguinte, os nove estados do projeto piloto já tinham cortado pela metade os deslocamentos de pacientes e economizado R$ 35 milhões para o SUS. De acordo com o Ministério da Saúde, há atualmente 14 núcleos em operação e outros 33 em fase de instalação. Ao todo são mais de 5 mil pontos funcionando em unidades básicas de saúde de 2.500 mil municípios, como em São Gabriel da Cachoeira, envolvendo no total 30 mil profissionais das equipes de Saúde da Família. Ainda este ano, o ministério pretende lançar um aplicativo para celular, o que pode ampliar o atendimento para mais de 3 mil municípios.
ANDRÉA GRAIZ/RBA
constatou que a telessaúde tem papel importante no controle da pressão alta. Segundo o estudo, os pacientes atendidos nas UBS interligadas ao núcleo pernambucano aderem 20% mais ao tratamento do que os atendidos em outras unidades sem vínculo. Além de tomar os medicamentos corretamente, reduzem a ingestão de sal, álcool, tabaco e o peso corporal, que aumentam as taxas de mortalidade pela hipertensão. Para o pesquisador, está comprovado que a ferramenta ajuda a modificar as condições que colocam as doenças cardiovasculares entre os desafios da saúde pública em todo o mundo. Tanto é que o núcleo pernambucano vem incorporando outra estratégia para enfrentá-las: a oferta do teleeletrocardiograma nas unidades de saúde, a exemplo do que já acontece em outros núcleos estaduais.
MENOS FILA Em Porto Alegre, especialistas como Roberto Umpierre, que trabalha na Unidade Básica de Saúde Santa Cecília, conseguiram fechar o diagnóstico e encaminhar para tratamento imediato, em unidades próximas de suas casas, 650 pessoas com diabetes, ou 65% da fila para consulta com endocrinologista no serviço público
ALBERTO CÉSAR/RBA
SAÚDE
AMPLIAR A COBERTURA Pedro Máximo, do Amazonas: “Nosso objetivo é obter mais recursos estaduais para instalar pontos em todos os 62 municípios do estado”
Desde 2007, foram realizadas mais de 150 mil teleconsultorias, 1,2 milhão de telediagnósticos, 700 segundas opiniões formativas – ou confirmação do diagnóstico por um médico especialista – e atividades de teleducação para mais de 540 mil profissionais. “Até o final deste ano, o programa alcançará um total de 3.700 municípios em todos os estados”, afirma o diretor do Departamento de Gestão de Educação (SGTES), do Ministério da Saúde, Alexandre Medeiros Figueiredo. A estratégia brasileira, que tem sido acompanhada por gestores estrangeiros, especialmente africanos, que estudam adotar modelo semelhante, é elogiada pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). O organismo aprova sobretudo a redução nos deslocamentos de pacientes para os grandes centros, de custos e principalmente por criar centrais de regulação de consultas e de exames e utilizar teleconsultorias auxiliares na avaliação da população atendida.
Grande e carente
O telessaúde tem ajudado ainda a reorganizar serviços em grandes cidades, como São Paulo, onde a proximidade com centros de referência, hospitais e universidades não dispensa a necessidade de respostas rápidas. É o caso de exames de eletrocardiograma feitos durante um atendimento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o Samu, que exigem um laudo imediato para orientar o trabalho da equipe. Em janeiro, a prefeitura paulistana assinou convênio com o Ministério da Saúde para a criação de um núcleo do Telessaúde Brasil Redes. Com a parceria da Universidade de São Paulo (USP), a cidade caminha para se tornar a primeira capital a ter toda a Atenção Básica interligada pelo programa federal. De acordo com o cardiologista Amaury Zatorre Amaral, coordenador do serviço na Secretaria Municipal de Saúde, serão instalados 340 pontos para conectar 446 UBS, 30 Cen-
tros de Atenção Psicossocial (Caps), 18 hospitais e 16 prontos-socorros, além de supervisões de Vigilância em Saúde. A telemedicina, porém, já é realidade na cidade. O Hospital Municipal Dr. Ignácio Proença de Gouvêa, na Mooca (região central de São Paulo), é um dos serviços de emergência do município interligados ao Tele Emergência e Tele UTI, ferramentas de atendimento remoto desenvolvidas pelo Instituto do Coração (Incor). O sistema permite aos médicos esclarecer dúvidas sobre diagnósticos e obter as melhores condutas no infarto agudo do miocárdio, por exemplo, 24 horas por dia, durante toda a semana. “O serviço soma qualidade no atendimento a pacientes e aumenta a segurança do corpo clínico, evitando remoções desnecessárias, uma vez que nem todo hospital está em condições de ter em seu quadro médicos de todas as especialidades”, afirma o diretor-técnico do hospital municipal, o médico Mauro Apocalypse. Criado em 2009, o Centro Incor de Telemedicina e Telessaúde (CITT) teve sua estrutura tecnológica ampliada recentemente, com investimentos de R$ 320 milhões do governo federal e R$ 100 mil do governo paulista. Com a ampliação, passou a integrar o grupo de 73 núcleos de hospitais da Rede Universitária de Telemedicina do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação para o intercâmbio técnico-científico entre unidades de ensino. “O Brasil é um dos grandes modelos na aplicação dos recursos da telemedicina em atenção primária à saúde, como os telediagnósticos, laudos, teleconsultorias de centros de referência e na atualização profissional”, afirma o médico Chao Lung Wen, coordenador do Laboratório de Gestão e Sustentabilidade em Telemedicina e Telessaúde da Faculdade de Medicina da USP. Conforme ressalta, mais do que uma ferramenta capaz de levar a saúde aos pontos mais distantes do país, a telessaúde é a solução para a organização eficiente do serviço, com melhorias para o profissional e para o paciente. “Mas os recursos da internet, como a webconferência, não podem substituir os serviços e a presença do médico”, assinala. REVISTA DO BRASIL
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RACIONA palavra proibida Governo de São Paulo faz malabarismo para não oficializar rodízio de água durante Copa e perto de eleições. Na prática, população já sofre os cortes Por Diego Sartorato
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m pronunciamentos oficiais e declarações à imprensa, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), é categórico: não haverá racionamento de água em 2014. A temporada é complicada. A capital será vitrine internacional do país durante a Copa do Mundo e a população decidirá nas urnas, em outubro, se mantém com o tucano – como ocorre desde 1995 – a chave do Palácio dos Bandeirantes, sede governo paulista. A realidade, porém, se impõe. Diante da pior estiagem desde o início das medições, há 84 anos, o Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de água de 8 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo, começou o ano com apenas 27% de seu volume útil; no fim de abril, minguava abaixo dos 11%. De acordo com o grupo de acompanhamento formado pela Agência Na20
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Nível médio da água no Reservatório Jacareí, município de Piracaia
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AMENTO,
FOTOS MARCIA MINILLO/RBA
FUNDO DO POÇO Protesto em Piracaia: reações irritadas da população
cional de Águas (ANA), o estadual Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), a estatal paulista de saneamento Sabesp e órgãos municipais, o volume útil do reservatório pode se esgotar em julho, e o “volume morto”, reserva abaixo da altura de captação das bombas da Sabesp, que começa a ser explorado para abastecimento agora em maio, segura a demanda da Grande São Paulo por mais quatro meses, no ritmo atual de consumo. Desde fevereiro, quando reconheceu publicamente o estado de emergência nas reservas de água do estado, o governo pendulou entre medidas consideradas de inúteis a ilegais. Entre elas, o uso de um avião monomotor para “bombardear” nuvens sobre o Cantareira na tentativa de “forçar” a chuva; o desconto de 30% na conta de água para quem reduzir o consumo em 20%; a ideia de ligar o Sistema REVISTA DO BRASIL
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Cantareira a outros reservatórios de água para compensar a vazão reduzida; e a proposta de multar em 30% sobre o valor da conta de água quem aumentar o consumo em relação ao mês anterior. Esta última, antes mesmo de ser oficializada, já causou reação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que considera a multa ofensiva ao Código de Defesa do Consumidor pelo fato de o governo não ter tomado medidas para evitar a situação de escassez. “O governo do estado tem conhecimento desde 2002 dos níveis preocupantes dos reservatórios de água e, no entanto, não adotou, na velocidade necessária, medidas como a diminuição das perdas físicas de água (perto de 25% da água tratada é perdida na rede de distribuição)”, diz o Idec, em nota. O instituto pede também “postura mais proativa” do governo estadual. “A responsabilização deve ser coletiva e, mesmo que a população venha a sofrer com o racionamento, que também tem seus inconvenientes, este já deveria ter iniciado”, diz o gerente técnico do Idec, Carlos Thadeu de Oliveira.
Na prática
Enquanto a situação se agrava, o racionamento já é realidade em áreas da capital, em cidades da região metropolitana, como Osasco e Guarulhos, e da região de Campinas, no interior. Em São Paulo, ofício assinado em 15 de abril pelo secretário municipal de Governo, Chico Macena, revela que a pressão da água que chega à cidade está caindo em até 75% durante a madrugada, dificultando a chegada a locais com elevação do solo superior a 10 metros – afetando cerca de 260 mil pessoas que vivem em Tucuruvi e Tremembé, bairros da zona norte. O caso de Guarulhos é parecido, porém mais grave: a cidade tem uma empresa municipal de tratamento e abastecimento, mas compra água da Sabesp por atacado, um investimento de cerca de R$ 100 milhões por ano. No entanto, como a população local não alcançou os resultados esperados pelo governo estadual com a campanha de descontos na conta, em março, a Sabesp reduziu o volume vendido à cidade. Com a respon22
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Perto de 25% da água tratada é perdida na rede de distribuição sabilidade de iniciar um rodízio no fornecimento, o prefeito Sebastião Almeida (PT) disse à época que foi avisado por um e-mail do corpo técnico do governo estadual que teria de aplicar o racionamento a 850 mil pessoas com apenas dois dias de antecedência. Em Guarulhos, 1 milhão de moradores enfrentam abastecimento inconstante. As cidades da região de Campinas e de Piracicaba vivem situação similar, depois que o volume total de água fornecido para a região, onde vivem 3 milhões de pessoas, foi reduzido de 5 mil para 3 mil litros por segundo, em março. Manipular os valores da conta de água para induzir um tipo de “racionamento voluntário” ou proibir a menção à palavra “racionamento” a cada anúncio de ações do governo não é suficiente para lidar com a situação. E a falta de água já causa reações irritadas da população. Em 21 de abril, moradores dos bairros Cachoeirinha e Vila Marina realizaram um protesto na Avenida Coronel Sezefredo Fagundes. Um ônibus foi queimado antes de as cerca de mil pessoas presentes ao ato serem dispersadas pela polícia.
“Aqui a água começou a vir esbranquiçada, mas deve ser bom, né? Para matar as bactérias”, diz a aposentada Alzira Fernandes, 71 anos, moradora dessa região da zona norte desde que nasceu. “Passei mal do estômago um tempo atrás, e o médico disse que podia ser a água.” Como sua casa não tem caixa, ela é imediatamente afetada todas as vezes que falta água, o que não acontece com seus vizinhos que têm reservatório em casa. “Minha sobrinha mora ao lado da minha casa, mas lá não faltou. Aqui eu fiquei sem algumas vezes no último mês”, conta. Alzira, mesmo sem caixa d’água, tem menos problemas do que os moradores dos morros que se erguem de ambos os lados da avenida. O motorista Bruno César, de 27 anos, que possui caixa, enfrenta problemas constantes de desabastecimento. “Durante a semana retrasada inteira (de 6 a 12 de abril), a água acabava às 22h e só voltava às 6h. Aqui, quem demorava para ir tomar banho à noite corria o risco de ir pro trabalho sem se lavar no dia seguinte. Tivemos de juntar água para não ficar sem”, diz. “No domingo daquela semana, a água parou às 11h30 da manhã e só voltou perto de 23h. Depois deu uma normalizada, mas a pressão continua meio baixa.”
JF DIORIO/AE
AMBIENTE
DANILO VERPA/FOLHAPRESS
MÁ GESTÃO Idec afirma que governo Alckmin não tomou medidas para evitar a escassez
Comerciantes de diferentes perfis sentem na pele as consequências da seca. Edison Ivanov, proprietário de uma cantina em área de classe média do Tucuruvi está antecipando o fechamento da cozinha há cerca de duas semanas por conta do corte de água à noite. “Começou a acabar a água às 23h30, aí começou a acabar às 22h, e agora às 21h30 já seca a torneira. Normalmente volta às 6h, 7h, mas, em um domingo, só voltou 11h45 e eu quase perdi uma reserva para o almo-
ço”, conta. Na porta do restaurante, uma placa avisa aos clientes que a falta de água é responsável pelo fechamento mais cedo, e sugere: “beber vinho pode”. A situação é similar à de Marco Antônio Nunes da Silva, proprietário de um bar aos pés da comunidade do Parque Ramos Freitas, a pouco menos de dois quilômetros de distância do restaurante de Ivanov: “Ainda bem que vendo engarrafados aqui”, afirma Silva. “Há um mês, estamos passando três dias da semana sem água; é dia sim, dia não. O mesmo na minha casa, mas lá tenho caixa d’água. No bar, não, então a torneira fica seca. Ainda não tive prejuízo financeiro, mas tenho de incomodar os vizinhos para buscar baldes para lavar os copos”, diz. “O maior proble-
MARCIA MINILLO/RBA
Ministério Público quer que o racionamento seja instituído de forma oficial RODÍZIO JÁ COMEÇOU Em seu bar na zona Norte, Antônio tem água dia sim, dia não
ma é que a Sabesp nunca avisa quando vai haver falta de água, então não podemos nem nos precaver”, lamenta. Relatos semelhantes se repetem em reclamações postadas diariamente na página da Sabesp no Facebook. Aos questionamentos, a empresa tem respondido que os problemas são decorrentes de manutenção no sistema; quando não há justificativa, solicita mais informações e diz que encaminhará resposta aos usuários. A Revista do Brasil busca com porta-vozes da Sabesp e DAEE informações oficiais sobre o estresse hídrico em São Paulo desde fevereiro, mas teve suas solicitações ignoradas. O Ministério Público também encontra dificuldades para obter uma explicação formal: levou um mês para conseguir informações oficiais do DAEE, e até 23 de abril aguardava posicionamento oficial da ANA e da Agência Reguladora de Saneamento de Energia de São Paulo (Arsesp). O Ministério Público quer que o racionamento seja instituído de forma oficial no estado. “Não temos informação técnica que indique se a próxima estação de chuvas será normal ou seca, como a deste ano. Não temos informações sobre o planejamento das agências envolvidas, estaduais e federais, para recuperar o Sistema Cantareira após esse período de desabastecimento. A situação é grave e, até agora, o racionamento é a medida técnica mais adequada para garantir a saúde da população e o equilíbrio ambiental dos mananciais”, lamenta o promotor Ivan Carneiro Castanheiro, do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) de Piracicaba. Há três inquéritos em andamento por parte dos Gaemas de Piracicaba e Campinas, da promotoria do meio ambiente do Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal, e a falta de prestação de contas sobre o caso pode inspirar uma ação de improbidade administrativa contra o governador Alckmin. Em 25 de abril, o Consórcio PCJ, que representa 43 municípios e empresas baseados nos mananciais dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí realizou protesto cobrando do estado a decretação de calamidade pública. REVISTA DO BRASIL
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Com selo da
reforma agrária Assentamentos plantam e colhem de tudo pelo país. A dificuldade maior é fazer a produção chegar a mesa do consumidor Por Vitor Nuzzi 24
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eu Antônio carpina a terra. São 60 anos de experiência – aos 8, começou a ajudar os pais. Já foi meeiro, hoje é assentado. “Nunca trabalhei empregado em firma”, conta Antônio Paulino Santo, que trabalha na Agrovila III, uma área de assentamentos em Itapeva, no sudoeste paulista, a 270 quilômetros da capital e já perto da divisa com o Paraná. Sete agrovilas espalhadas na região reúnem 450 famílias, aproxima-
damente 1.800 pessoas, em 17.000 hectares. Em todo o país, há 54 cooperativas produzindo, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que completa 30 anos neste 2014. A produção é diversificada, de itens in natura a beneficiados. Parte vem de cooperados, parte de produtores individuais. O desafio é alcançar o mercado consumidor, já que os pequenos produtores enfrentam dificuldades de inserção no sistema de distribuição. “O p rimeiro
NOVO MODELO Fabiana: as produções de quintal são orgânicas
FOTOS: DOUGLAS MANSUR / CELEIRO MEMÓRIA
LUCAS DUARTE DE SOUZA/RBA
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princípio é primar pela soberania alimentar. Diversificar. O segundo é organizar as linhas de produção para agregar valor. São 150 mil famílias assentadas, todas produzem”, diz Antonio Miranda, do setor de produção nacional do MST. Para o presidente da Cooperativa dos Assentados de Reforma Agrária e Pequenos Produtores da Região de Itapeva (Coapri), Sebastião Aranha, ele mesmo um ex-acampado, um sonho é colocar os produtos no mercado tradicional. “Ainda não tínhamos uma marca para negociar. Sempre se vendeu a granel. De uns anos para cá, começou a embalar. O feijão sai da roça, vem para o barracão e é embalado nos domínios da cooperativa.” De lá sai o feijão Raízes da Terra – marca já destinada a merendas em muitas escolas públicas. “A cooperativa compra o feijão do assentado, embala e faz a distribuição via prefeituras”, conta Aranha. Na última safra, a cooperativa comercializou mais de 20 mil sacas de feijão, ou por volta de 1 milhão de quilos. A agrovila onde trabalha seu Antônio abriga a Cooperativa de Produção Agropecuária Vó Aparecida (Copava), em ação há mais de duas décadas. Ali, trabalho, terra e renda são coletivos, e as moradias estão ao lado umas das outras. Ele mora a poucos metros de onde brotam produtos como alface, beterraba, cenou-
ra, rúcula, cheiro-verde, berinjela, mandioca, pimentão, abóbora, jiló, quiabo. A cooperativa faz controle diário e mensal da produção, e o rateio é feito conforme as horas trabalhadas. Na última safra, dos 500 hectares agricultáveis saíram 307 toneladas de feijão, 810 toneladas de soja, 840 toneladas de milho e 1,1 mil toneladas de trigo, além de 110 mil litros de leite. Integrante da administração da Copava, José Aparecido Ramos, o Zezinho, conta que a cooperativa tem 35 famílias, com 50 pessoas distribuídas em dez setores. Periodicamente, se reúne um conselho formado por um representante de cada setor. Ali também funcionam uma padaria (para consumo e encomendas) e um mercado, além de uma oficina para manutenção de máquinas. O mercado atende os cooperados e a vizinhança. O leite é distribuído aos sócios e também vendido. E de um alambique ao lado da padaria sai a cachaça da marca A Socialista.
Merenda
“A divisão de tarefas foi pela aptidão de cada um. Depois foi capacitando as pessoas”, diz a assentada Marisa de Fátima Almeida da Silva, que tem dois filhos, de 7 e 3 anos. Há um ano no local, Marisa já passou pela horta, pela cozinha, pelo resfriador de leite e pelo atendimento a visitas. Está novamente na horta. Plan-
PENSANDO GRANDE A variedade de produtos que saem dos assentamentos abastece comunidades locais. O desafio é escoar a produção numa escala maior REVISTA DO BRASIL
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DOUGLAS MANSUR / CELEIRO MEMÓRIA
ESPALHANDO MUDAS Rita e Tino: crescendo com o assentamento
CONSUMO Programa coordenado pela Conab chegou a 129 mil agricultores em 2012, movimentando R$ 585 milhões. Caiu no ano passado, mas mostrou melhoria neste início de 2014
ta, semeia, colhe, faz a irrigação, carpe, mantém o cultivo. Parte significativa da produção é destinada ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). A Lei nº 11.947, de 2009, determina que pelo menos 30% dos recursos vindos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para esse fim venham de produtos da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando assentamentos de reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas. O orçamento do Pnae para este ano é de R$ 3,5 bilhões. Outra fonte é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), surgido em 2003, no início do governo Lula, por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Segundo a Conab, pelo programa são adquiridos 511 produtos, com 26
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destaque para banana, raiz de mandioca, alface, laranja, abóbora e feijão. Os alimentos são destinados a hospitais, creches, escolas, asilos, restaurantes populares e cozinhas comunitárias. Quando começou, o PAA chegou a 41 milagricultores familiares, 65 projetos e R$ 81,5 milhões em recursos. Em 2012, chegou a 129 mil agricultores, com 2.600 projetos e R$ 585 milhões. No ano passado, caiu bruscamente, para os mesmos 41 mil agricultores de dez anos antes, 887 projetos e R$ 225 milhões. A Conab informa que isso se deve, principalmente, a duas questões. A primeira é o início do Plano de Fiscalização do PAA. A companhia diz que, antes, o plano era vistoriado por órgãos de controle do governo, enquanto à Conab cabia a supervisão. A partir de 2003, a Superintendência de Fiscalização passou a realizar inspeções periódicas e
“de forma mais rigorosa que as supervisões”. Além disso, o clima foi desfavorável à execução do PAA, principalmente na região Nordeste. A produção caiu e o número de projetos inscritos também. Mesmo assim, em março, último dado disponível, o PAA movimentou R$ 24,4 milhões, valor 44% acima de igual perío do de 2012, até então o melhor resultado. “É o melhor início das operações do programa desde sua criação”, declarou a superintendente de Suporte à Agricultura Familiar da Conab, Kelma Cruz.
Crédito
Enquanto observa no galpão um lote com aproximadamente 250 sacas de feijão, em maquinário comprado de outra cooperativa, no Pontal do Paranapanema, e manuseado por três filhos de assentados, Aranha comenta que uma
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das grandes dificuldades para o pequeno produtor ainda é o crédito. “Às vezes anunciam milhões para a agricultura familiar, mas poucos têm acesso. Você pede um crédito, ele vem depois da safra. A liberação de recursos é muito difícil, muito devagar.” Outra questão a enfrentar é da formação. “Quem faz a assistência técnica são as lojas de veneno”, acrescenta Aranha, referindo-se aos fornecedores. “A formação nas universidades é voltada para as grandes áreas. Mas quem produz comida mesmo é o pequeno agricultor.” Na Agrovila I, que completa 30 anos neste 13 de maio, estão assentadas 80 famílias, entre cooperados e produtores individuais. O feijão colhido nesta safra é levado para um barracão. Ali, até os anos 2000, eram organizadas as festas para comemorar o aniversário do assentamento, o primeiro da região, onde ficava, em uma área pública, a Fazenda Pirituba. De lá, o feijão será conduzido à central, empacotado e levado às prefeituras. A poucos metros está a escola municipal Professora Terezinha de Moura Rodrigues Gomes, homenagem a uma docente da região que se aposentou justamente em 1984. Espalhadas, é possível observar áreas de cultivo de quintal. “Todo mundo já tinha uma hortinha.
Em Itaberá, vizinha a Itapeva, há 21 anos um grupo de mulheres começou a desenvolver a produção de fitoterápicos, à base de plantas medicinais. Em 2009, foi registrada a Cooperativa de Produtores de Plantas Medicinais da Agricultura Familiar (Cooplantas), com 32 mulheres e dois homens. Em 2013, a Cooplantas foi finalista do prêmio “Mulheres Rurais que produzem o Brasil Sustentável”, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. No local se desenvolve um projeto de reflorestamento, por meio do plantio dessas espécies, em conjunto com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Parte
da produção se destina à rede pública, por meio do Sistema Única de Saúde (SUS). “Essa é uma cultura de nossos avós”, diz a cooperada Nazaré Carvalho, há mais de 20 anos ajudando a organizar a produção. Creme de calêndula, própolis, arnica, pomada de barbatimão, de aroeira ou a chamada ‘milagrosa’. – “O nosso carrochefe” –, tintura de carqueja, sabonete de mel e própolis, ervas secas... “Tudo é de nossas hortas”, ressalta a alagoana que se orgulha de um enorme mandacaru diante de sua casa. Os produtos são vendidos em feiras livres e universidades. “Tem gente que vem comprar aqui.”
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Colheita premiada
ORGULHO Nazaré Carvalho e Eliane Silva: “Tudo é de nossas hortas“ REVISTA DO BRASIL
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Mas o PAA incentivou bastante”, conta a técnica agrícola Fabiana Fagundes da Silva, no último ano do curso de Agronomia. Em um desses canteiros, o de dona Telma Alves, são cultivadas hortaliças e frutas. “Este ano, a partir de julho, vai entregar ponkan também.” No local onde antes aviões espalhavam agrotóxicos, hoje a produção de orgânicos começa a se tornar realidade, caso da área trabalhada por Telma e seus quatro filhos. “Ela já começou um processo de transição”, diz Fabiana. A maioria dos produtores de quintal é de orgânicos. “Uma das grandes metas nossas é trazer a produção agroecológica para o assentamento”, diz Sebastião Aranha. “É um processo longo. A assistência técnica hoje é veneno. Estamos tentando rearticular o instituto de ensino, para pensar em um novo modelo.”
Incentivo
Miranda, do MST, que tinha 11 anos quando o pai ingressou em um acampamento no Paraná, defende a mudança de modelo. “Hoje estamos num processo de
conversão. Falta investimento, falta política pública. Já temos várias experiências. No Rio Grande do Sul, começamos com cinco, hoje temos 1.500 famílias. No Paraná, queremos colocar o primeiro laticínio de leite orgânico. É um debate sobre o modelo de produção. O problema é a falta de incentivo”, afirma. Ele estima que 30% da base, no setor produtivo, já produz de maneira agroecológica ou agro-orgânica. “Temos de dar o salto. O modelo atual de agronegócio está inviável. O impacto no ambiente e na saúde é grande. Precisamos discutir com a sociedade outro modelo de campo, respeitando a biodiversidade. Isso não vai ser feito só pelo MST, tem de envolver setores urbanos.” Pertinho da horta de Telma, praticamente em outro quintal, Tino manuseia sementes em um viveiro, ajudado por Rita de Cássia dos Anjos. Alface, beterraba, salsinha. É semear e irrigar até quatro vezes por dia, para a muda crescer, ensina Ezequiel Rodrigues de Souza, olhando para 250 bandejas de mudas espalhadas no local. Com a proximidade do inver-
no, predominam culturas como repolho, brócolis, alface crespa e beterraba. No verão, alface lisa, berinjela, pimentão, pimenta. A família veio do Paraná. “Vim com 7 anos. Cresci no assentamento, ajudando o pai e a mãe”, conta Tino, hoje com 37 anos e perto de concluir a faculdade de Engenharia Florestal. Mais alguns passos, atravessando a estradinha de terra, se encontra a Usina do Leite. O produto vem dos sete assentamentos organizados na região. Também irá para escolas, em parceria com a Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento de Itapeva.
Renda
Leite é o carro-chefe na produção do assentamento Valmir Mota de Oliveira, em Cascavel, oeste do Paraná, conta Amelindo Rosa, também do setor de produção do MST. O nome do assentamento homenageia Keno, assassinado em outubro de 2007. “É rara a família que não tem na sua renda a produção de leite”, diz. O Valmir Mota tem 83 famílias. Está perto da cidade, na BR-277, que liga a Curitiba.
Nordeste persistente No município de Simão Dias, agreste sergipano, a 100 quilômetros de Aracaju, o assentamento 8 de Outubro – originário de uma ocupação feita em 1997 – ostenta a condição de maior produtor de abóbora da região Nordeste e principal produtor de grãos do estado. Na safra passada, saíram de lá 15 caminhões de 15 toneladas cada, referência usada pelos agricultores para mensurar a produção de abóbora. Outro produto de destaque, o milho, somou mais de 100 mil sacas (de 60 quilos cada). “Não só furamos o bloqueio da comercialização, como viramos referência na região”, diz o assentado Esmeraldo Leal. Ele conta que a “abóbora dos sem-terra” virou uma espécie de selo. “Falar a procedência já era garantia de qualidade.” Isso estimulou a economia local, acrescenta. Para 28
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Esmeraldo, pode-se falar em uma marca antes e depois da entrada dos trabalhadores rurais. “Quem tinha terra abandonada passou a produzir por medo, de ser classificado de improdutivo”, conta. Ele lembra que Simão Dias foi um grande produtor de algodão até meados do século passado, até uma praga, chamada do bicudo (um inseto), dizimar a cultura. A abóbora in natura segue principalmente para Recife, onde será vendida no Ceasa. O milho vai para casas de farinha de milho e granjas em Pernambuco e na Paraíba. Atualmente a produção de abóbora refluiu por causa de pragas, mas a expectativa é de que volte a crescer. Neste momento, o milho “está dando mais preço” no mercado. Essa realidade, entretanto, não é uma regra na região.
“Em Alagoas, a produção primária que ainda predomina segue desacompanhada de políticas estruturantes, como a agroindústria”, comenta Débora Nunes, do setor de produção do MST. E com suas peculiaridades. A macaxeira, por exemplo, item de destaque, precisa ser vendida no mesmo dia na feira. Assim como o inhame, a batata-doce, o feijão de corda, outros produtos tradicionais. Tem crescido a produção de abacaxi, laranja, maracujá, abóbora, mas Débora ressalta dificuldades de acesso aos programas públicos (PAA e Pnae). “Temos forçado as prefeituras. Mas o grande canal nosso de comercialização são as feiras, onde há fidelização entre nós, que produzimos, e o consumidor”, conta, valorizando a realização, há 14
anos, de uma feira estadual em todo mês de setembro. Ela, que atua na zona da mata, vê a comercialização também como um dos entraves para o crescimento do negócio entre os pequenos produtores, mas alerta que a falta de compreensão do consumidor também é parte do problema. “A sociedade precisa definir o que quer comer, comida envenenada ou comida saudável.” Em todo o estado, são 70 assentamentos e 3 mil famílias, predominantemente na zona da mata, e 560 estão no sertão. Entre elas a do assentado Cleilson Moreira da Silva, o Marquinhos. “Ainda falta incentivo do governo federal, estadual e dos municipais”, reitera Marquinhos, instalado no assentamento Maria Bonita, em Delmiro Gouveia (a 300 quilômetros de Maceió),
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“Estamos perto do parque industrial, um lugar privilegiado.” Em todo o estado, são 321 assentamentos, com 28 mil famílias. Da marca Campo Vivo saem produtos como arroz, requeijão, iogurte, queijo (minas, colonial, mussarela) e manteiga, vendidos em alguns supermercados. Há também o arroz Produtos da Terra e erva-mate, na região central. A parte da produção que conseguem industrializar é pequena ainda. “Quem produz e vende in natura não agrega tanto valor”, afirma Amelindo. “Estamos pen-
sando nessa parte do beneficiamento. O maior desafio é como a gente organiza essa produção para escoar.” A produção de orgânicos evolui. “Temos uma iniciativa até bonita aqui”, diz, citando quatro escolas de agroecologia no estado e a quarta edição da Jornada de Agroecologia, marcada para 21 a 24 de maio, em Maringá. “Há vários assentamentos que têm essa definição política.” O Valmir Mota é um deles. “Na seleção das famílias, quem veio para cá já foi com esse entendimento. Há, de fato, um amadure-
cimento sobre a necessidade de se produzir alimentos limpos. Nosso dilema é como organizar a produção para dar renda.” No caso da Campo Vivo, ainda existe uma contradição, ele admite, à medida que há produtos não orgânicos indo para o mercado. O que exige investimentos na agroindústria e em linhas de comercialização. “Uma tarefa que não é fácil e não deve ser só nossa. Há um processo de conscientização da sociedade de procurar produtos orgânicos. Quando você domina o processo, diminui o custo de produção.”
DOUGLAS MANSUR / CELEIRO MEMÓRIA
FURANDO O BLOQUEIO Roman Santos e família: a abóbora dos sem-terra virou marca registrada no agreste
onde 78 famílias cultivam palma (para alimentação de animais), milho, feijão, abóbora, melancia. Ele lamenta que os produtores ainda permaneçam excluídos de políticas públicas. “A gente fica de fora porque é uma burocracia danada para chegar até nós. Os gestores dificultam.” Sua região vê com boas perspectivas o projeto Plan-
tando Caju, Colhendo Desenvolvimento, com apoio da Petrobras. “Vai dar um salto de qualidade. A gente percebe as famílias com ansiedade.” Hoje, a produção é ainda praticamente toda vendida aos chamados atravessadores, além das feiras livres, de oito em oito dias. Marquinhos – que ficou com esse “apelido” em lembrança de um amigo que
morreu – destaca ainda as chamadas feiras da reforma agrária, realizadas periodicamente. No projeto do caju, a ideia é desenvolver as mudas em um viveiro (de 600 metros quadrados), no próprio assentamento, e organizar uma agroindústria para vender doces e outros produtos. No final de abril, 18 pessoas passavam por um processo de
capacitação sob responsabilidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “A região tem potencial para fruticultura, verduras. Precisa de apoio.” Aos 34 anos, Marquinhos nunca deixou o sertão e, com a metade da idade, lembra seu Antônio, lá de Itapeva. “Desde criança eu trabalho na terra. Não sei fazer outra coisa.” REVISTA DO BRASIL
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ENTREVISTA
São tantas
emoções proibidas
Paulo Cesar de Araújo não deixou de ouvir Roberto depois de ter seu livro proibido pelo ídolo. Ele ainda espera virar o jogo e relançar a obra. E argumenta: biografias são livros de história, não pertencem aos biografados Por Vitor Nuzzi
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ENTREVISTA
LUCIANA WHITAKER/RBA
A
família de Paulo Cesar de Araújo, em Vitória da Conquista, interior da Bahia, não tinha televisão. O menino acostumou-se a ouvir rádio. Com pai lavrador e mãe faxineira, foi engraxate, vendedor de sorvete, ajudante de pedreiro, funções semelhantes às que tiveram alguns dos cantores que ouvia, da mesma origem social. Adolescente, foi ganhar a vida em São Paulo e depois em Niterói (RJ). Mora do outro lado da ponte até hoje. Formouse em Jornalismo e em História. Com a bagagem musical que tinha nos ouvidos, levou um susto quando entrou na faculdade, nos anos 1990. A academia só falava de Chico Buarque, Gil, Caetano, Milton. Onde estavam seus artistas da infância? Ele passou a investigar essa invisibilidade cultural. Foi a campo, em tempos em que os artistas não tinham assessores e tiravam eles mesmos o telefone do gancho. Com várias fichas telefônicas nas mãos, Paulo Cesar começou a ligar para todo mundo. Mais de 200 artistas. “Entrevistei de Waldick Soriano a João Gilberto.” Hoje, está escrevendo um livro sobre esse processo. “São os bastidores da pesquisa.” Os chamados bregas ganharam atenção especial do pesquisador, que em 2002 publicou Eu Não sou Cachorro, Não. Era uma novidade: no livro, Paulo Cesar demonstra que a censura também os perseguiu. E lançou luz sobre esse segmento artístico – e social. Outro livro seu, quatro anos depois, fez mais barulho. Roberto Carlos em Detalhes saiu em dezembro de 2006, e no mês seguinte os advogados do Rei interpelaram o autor e a editora Planeta. Queriam mais de dois anos de cadeia para o autor e apreensão dos livros. Chegaram a ser rodados 60 mil exemplares vendidos 50 mil, até que a venda cessasse. A editora se comprometeu a não mais vendê-los, mas já havia feito a distribuição. “Os advogados do Roberto todo dia compravam o livro e anexavam a nota no processo. A Planeta fez acordo e eu fiquei na mão.” O episódio levantou o debate sobre as biografias. E a briga ganhou publicidade no ano passado, com a entrada em cena do grupo Procure Saber, criado originalmente para esclarecer o público sobre a questão dos direitos autorais. O resultado foi muito bate-boca e surpresa com o fato de um grupo de autores de vanguarda ver com restrições a publicação de trabalhos biográficos. Roberto agregou-se à turma (Chico, Caetano, Gil, Djavan e outros), depois desistiu. A Constituição fala em liberdade de expressão, o Código Civil aborda direito à privacidade. Paulo Cesar acha inconcebível uma lei menor prevalecer sobre a Carta Magna. Atribui isso ao conservadorismo brasileiro, mas no caso do Procure Saber vê predominância de interesses financeiros.
E considera absurda a afirmação de Roberto Carlos de que ele é o dono de sua própria história. Argumenta que seu livro nada mais é do que uma versão, pessoal, da trajetória do Rei. Paulo Cesar, 52 anos, segue atualizando sua obra, a cada informação nova que aparece. No dia em que puder ser publicado, um novo livro estará pronto. Mário Magalhães fez livro sobre Marighella e não pretende voltar a fazer biografia. Fernando Morais disse: “Estou fora”. Ruy Castro tem a famosa frase: o biografado ideal deve sersolteiro, órfão, sem filhos nem irmãos, estéril, até sem cunhado. Com tantas dificuldades, por que escrever biografias?
Respeito a opinião deles, e acho compreensível. Mas penso diferente. Acredito que as trevas não devem prevalecer sobre a luz. Vivemos num Estado democrático, a Constituição garante... Aliás, dizem que poucas constituições têm um preceito tão claro em relação à liberdade de expressão. Você não tem de pedir licença a nenhum personagem da história para escrever sobre ele. Agora, você tem brechas. Um artigo aberrante do Código Civil, uma lei ordinária, menor, não pode prevalecer sobre a lei maior. A biografia é um livro de história. O Brasil sempre foi acusado de ser um país sem memória – eu cresci ouvindo essa frase –, então mais do que nunca é necessário fazer biografias. As trajetórias individuaiscontribuem para o estudo da história, claro, desde que essa trajetória esteja inserida num contexto maior. Esse gênero literário não pode parar por causa de aberrações jurídicas. Isso acontece por causa de uma lei do mais forte? No seu caso, isso é evidente.
Acho que é por uma visão conservadora. Não é só o meu livro. Temos uma formação católica, conservadora, e isso se reflete no Judiciário. Tendo uma brecha jurídica que favoreça esse pensamento, fica mais fácil. Por que o juiz, quando vai analisar o fato concreto, em vez de se guiar pela Constituição, se deixa levar pelo que está no artigo 20 do Código Civil? O juiz que julgou meu caso, por exemplo, que deu a liminar – o livro foi proibido primeiro por uma liminar –, Maurício Chaves de Souza Lima (da 20ª Vara Cível do Rio de Janeiro), foi claro: não desconhece que a Constituição garante a liberdade de expressão, porém o artigo 20 diz que, salvo se autorizado, ninguém pode falar da vida do outro. E eu acho que tem de prevalecer isso. É o julgamento dele. E tem também a questão financeira? O Djavan, por exemplo... REVISTA DO BRASIL
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ENTREVISTA
Ah, você aí está perguntando do Procure Saber? Aí a questão financeira não foi a única, mas foi dominante, embora usem o discurso da privacidade. Possivelmente não todos. Talvez o Chico Buarque esteja sinceramente preocupado com privacidade. Mas Paula Lavigne, Roberto Carlos, deram todos os indícios, preocupação com adaptação para cinema, vídeo, a visão financeira é clara. Conheço o meu biografado. Imagine, tem a vida exposta desde que surgiu com grande sucesso em 1965. Você acha que ele se perturbaria agora porque alguém ficou falando do amor dele por uma mulher, de um acidente que ele teve na infância... São coisas públicas, não é?
Então, a sua visão é que deve haver liberdade total, e se o personagem se sentir agredido, recorre à Justiça?
Acho que o limite tem de ser a calúnia. Você não pode dizer que o cara roubou, se ele não roubou. Em última instância, o limite deve ser a verdade, o fato. Imagine você: a injúria, a difamação e a calúnia. Injúria é uma coisa subjetiva. Por isso não pode ficar tão solto. Eu quero ter uma liberdade para crítica, não preciso de liberdade para elogiar. Quero liberdade para dizer que alguém é um artista medíocre, um político medíocre, que é uma pessoa nefasta. Acho que todos nós devemos ter essa garantia. Há uma ação no Supremo com perspectiva de ser julgada ainda neste semestre. Qual a sua expectativa?
A ação no STF é para considerar inconstitucional o que dizem os artigos 20 e 21, aplicados a biografias. O livro foi proibido com base no artigo 20, e lá não está escrito que é proibido fazer biografia. Diz que salvo se autorizadas, a divulgação de escritos, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidos. O que é divulgação de escritos? Há juristas que interpretam que “escrito” é aquilo que a pessoa escreveu em diários. Você não pode divulgar o diário de alguém sem autorização. Concordo. Agora, escrito do outro é trabalho intelectual do outro. Roberto Carlos vai proibir o meu escrito sobre ele? A ação não é para acabar com esse artigo, ele continua. O uso comercial da imagem é para você não pegar a foto de alguém e usar para vender picolé. Agora, falar dessa pessoa em livros, jornais, revistas é uma função informativa e cultural. Porque daqui a pouco vai aplicar (onde há um projeto prestes a ser votado) para jornais e revistas. É o mesmo princípio. Lá no Congresso a coisa é mais objetiva ainda: é livre a divulgação de imagens e informações biográficas de uma pessoa com notoriedade pública. Quem pautou sua vida pelo anonimato tem direito maior a sua privacidade. Artista, jogador de futebol, político não pode esperar que só falem aquilo que ele autorizar. 32
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E publicadas há mais de 40 anos. Agora, saber que um livro com a história dele pode ser adaptado para um teatro, para um cinema, e ele não vai ter nenhuma participação, vai fugir ao controle dele... Ele falou isso no Fantástico, que não acha certo. O cara escreve um livro e passa a ser dono da “minha história”. É absurdo ele dizer isso. O biógrafo é dono daquela versão. E tem outros casos. A família de Noel Rosa disse “não quero que fale”; agora, acertou, pode falar. A do Garrincha, a mesma coisa.
Uma elite cultural pauta a pesquisa. A música da empregada ficou sem a sua história, porque a empregada não escreve livro. Isso é reflexo do desprezo dessa elite pela produção mais popular Como você chegou no Roberto? Você tinha escrito aquelelivro sobre os cantores chamados bregas, que foi uma novidade. Foi uma sequência?
Na verdade, os dois projetos nasceram juntos. Eu estudava aqui na PUC do Rio, em 1990, quando iniciei uma pesquisa sobre a história da música brasileira. Ali, identifiquei uma grande lacuna. Não tinha um livro até então que analisasse a trajetória de Roberto Carlos. E nada sobre os cantores bregas, ainda mais absurdo. Sobre Roberto ainda tinha coisa sobre Jovem Guarda... Resolvi investigar por quê. Claro que eu tive uma motivação afetiva, esses artistas eu ouvia na minha infância. Quando cheguei na universidade e me interessei pela história do Brasil, particularmente pela história da música, identifiquei que parte daqueles artistas que eu ouvia não estava contemplada nos livros. Lembro que aqui tinha de vez em quando uma semana da música brasileira. Aí vinha alguém e falava de Bossa Nova, Tropicalismo, sambas, marchinhas carnavalescas. Não vinha ninguém falar... Daqueles que você ouvia.
Que eu ouvia no rádio. O que é isso, aquilo não existiu? O historiador deve investigar os silêncios. Eu pensava: por que esse silêncio à música brega, esse desprezo a Roberto Carlos, o mais popular artista do país? Em 1990, você já tinha vários livros sobre Chico, análise de letras, sobre Elis Regina, Caetano, o pessoal do samba.
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E o que é isso, a classe média dita o gosto?
É uma sociedade de classes, e isso se reflete na produção historiográfica. Quem escreve, ou quem escrevia, até esse período, livro no Brasil? Uma elite cultural. A música da empregada ficou sem a sua história, porque a empregada não está escrevendo livro. É um pouco reflexo desse desprezo das elites culturais por essa produção mais popular. Em termos históricos, são os excluídos mesmo.
Sempre priorizando os grandes feitos, os grandes personagens. A música foi a última coisa a chegar. O Chico Alencar (deputado federal pelo Psol-RJ), por exemplo, escreveu nos anos 80 sobre essa coisa de incluir o trabalhador. Um livro dele, História da Sociedade Brasileira, muito inovador, fala sobre dar prioridade não aos grandes vultos, mas ao homem comum, ao trabalhador. E outros livros. Mas quando eu chegava na parte da música, estavam lá: Caetano, Chico, Gil, Milton... Eles não entenderam que aqueles personagens pudessem ter outro tipo de música, que falasse do cotidiano deles. E aí que eu entrei. Vamos dar voz aos excluídos. A história vista de baixo não chegava na produção cultural. Hoje, fico contente de saber, às vezes eu pego um livro de história que os alunos recebem e estão lá Chico, Caetano, que são importantes, mas está lá do lado deles a foto do Odair José, do Waldick Soriano. Avançamos na construção da memória. Você começou esse trabalho, com mais de 200 entrevistados, no tempo do orelhão.
É, eu não tinha telefone em casa... Ligava de orelhão, aqui na PUC tinha vários, descia nos intervalos de aula para marcar entrevistas. Eram aquelas fichas de três minutos, liguei para vários artistas pedindo entrevistas. Do orelhão falei com Tom Jobim, Caetano, Chico, Gil, Milton Nascimento, essa turma do Procure Saber. Eu já estava procurando saber anos antes. Foi uma pesquisa de longo prazo, não havia essa emergência, mandavam ligar dali a dois meses, eu ligava. E não tinha tantos assessores como hoje.
Era outro momento, eles mesmos atendiam o telefone. Certa vez, agora, os alunos vieram me dizer que não estavam conseguindo falar com o Daniel. Eu consegui falar com o Tom. Alguma coisa mudou. Hoje ninguém consegue mais falar com ninguém. Mas eu peguei essa transição, na metade dos anos 90. O Roberto Carlos era o único que tinha assessoria, era o único que não atendia telefone. Para falar com a assessora já era difícil, falava mais com a secretária da assessora. Infelizmente eu não peguei o Vinicius, que recebia os estudantes na banheira (risos). Contam isso, né? As estagiárias chegavam e ele na banheira.
Os seus livros (tirados de circulação) foram queimados?
Isso aí só com um jornalismo investigativo que não existe no Brasil para identificar. Ele levou para um depósito lá em Diadema (na região do ABC paulista). O jornal O Globo chegou a ir lá na porta. O rapaz que atendeu, o Josias, não queria falar nada. A última vez que ele (Roberto) falou a respeito, disse que “(os livros) estão num lugar que não me incomoda”. Era uma situação com que ele não contava. Foi como ele fez com o livro do mordomo (Nichollas Mariano, codinome de José Mariano da Silva Filho), em 1979. Desta vez, teve reação. Naquela época, ainda era ditadura. Queimar livro era mais ou menos tolerado. Odair José teve relançamento, Waldick Soriano foi tema de documentário. A música que só tocava na cozinha ganhou outros ambientes?
A democracia também se refletiu no campo da cultura. Há uma maior compreensão da música brega. Uma empregada doméstica é certamente mais bem tratada do que nos anos 70, tem direitos sociais. Vejo isso como um processo social do qual meu livro teve uma participação. Hoje, esses artistas aparecem nos segundos cadernos. Gaby Amarantos lança um disco e ganha capa. O fato de ter revelado que ele (Odair José) também teve músicas censuradas deu uma aura de mártir. Tem até frase engraçada dele, nem foi para mim, dizendo que achava que essa coisa de censura fosse só negativa... Isso ajuda a revalidar a própria obra dele. São vários fatores que contribuem para uma valorização. Chico Buarque, por exemplo, não é só um grande compositor, é um herói cultural, da resistência. E isso ajudou a valorizar as próprias músicas dele. No seu livro proibido, você resgatou um encontro promovido pela revista Manchete, em 1966, com Roberto, Geraldo Vandré e Chico. Eram de escolas diferentes. Como vê a evolução da carreira de Roberto?
Esse momento a que você refere é decisivo para a carreira de Roberto. Todos os grandes artistas brasileiros tocavam ritmos identificados com o país, faziam samba ou marcha... Ele foi o primeiro grande artista desvinculado dessa tradição. Quando se tornou o mais popular do país, tocava música que não era considerada brasileira, o rock, o iê-iê-iê, mesmo sendo composto por brasileiros. Havia essa visão, que vai ser superada depois pelo Tropicalismo. Chicoe Vandré tentam convencer Roberto a fazer música brasileira. “Você pode contribuir, por que você não vem para o nosso lado, Roberto?” A música que ele fazia era vista como alienada e a lienígena. Nesse sentido, ele é um
Eu não tinha telefone. Liguei para vários artistas pedindo entrevistas. Do orelhão, falei com Tom, Caetano, Chico, Gil, Milton, essa turma do Procure Saber. Eu já procurava saber anos antes
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ET naquele ambiente musical universitário. Só que o sucesso dele foi tão grande, longo, permanente, que aí quem estava do outro lado teve de se adequar. Em vez de brigar com aquilo, assimilar. Ele foi um inovador nesse sentido. Influenciou a geração posterior, Fagner, Djavan, Alceu Valença, Zé Ramalho. Hoje, ele é um clássico, como um Paul McCartney. Qual a contribuição do Paul para a música hoje, o que ele toca nos shows? Beatles. O que faz o Roberto? O mesmo acontece com os Rolling Stones. No seu processo de pesquisa, você conseguiu falar com o João Gilberto. Se bem que às vezes ele é que acaba entrevistando as pessoas.
É verdade, o João é uma figura diferente. Ele é muito interessado no outro. Geralmente as pessoas estão interessadas em falar de si, responder o que você está perguntando, mas o João, não, ele é sinceramente interessado na outra pessoa. Consegue estabelecer um contato. Então, pergunta do seu pai, da sua mãe... No começo, a gente falava sobre a importância de preservar a memória. Agora tivemos um debate intenso, sobre os 50 anos do golpe.Você acha que o Brasil está conseguindo avançar nesse sentido, de contar a história, as histórias?
O Brasil sempre foi acusado de ser país sem memória, então são necessárias as biografias. Trajetórias individuais contribuem para o estudo da história, e isso não pode ser detido por aberrações jurídicas 34
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Certamente. Eu cresci ouvindo esta frase: o Brasil é um país sem memória. Isso, os 50 anos da ditadura, dominou a mídia. Claro que teve um peso por haver toda uma geração que foi atingida por isso. Em 1987, eu não lembro de ninguém falando dos 50 anos de 1937, Estado Novo... Há mais autores escrevendo sobre isso, sobre a própria música popular, o campo da história se alargou. Isso vai refletir também na produção de biografias. Certamente, mudando essa legislação vai ficar muito melhor. Porque hoje o que você mais vê são biografias internacionais. E há um mercado consumidor de biografias. (“Cinedocumentários”, lembra a repórter-fotográfica.) Cinedocumentários, quero lembrar um que não tenha. Só o Roberto Carlos. Ninguém tem coragem de fazer. Quando Roberto Carlos se juntou ao grupo do Procure Saber, você esperava que eles influenciassem no sentido de mudar a postura dele?
Claro! Quando eu soube, pensei: que bom. O Roberto, o ambiente dele é de pessoas que só pensam em dinheiro, negócios, empreendimentos imobiliários. Agora ele vai para o mundo da cultura, conviver com pessoas mais ligadas à arte. Quem sabe ele possa sair arejado de lá e devolver o meu livro. Pra minha surpresa, aconteceu o contrário. Roberto conseguiu convencê-los de que o certo era proibir.
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Foi inocente, o Chico?
Ah, totalmente. Foi de uma ingenuidade... Como eu falei, acredito que o Chico entrou nessa mesmo pela questão da privacidade. Mas o que ele estava querendo também ia servir para o Cabo Anselmo, para o torturador. O fato é o seguinte, os argumentos foram frágeis, contraditórios. Ficou um fato que não vai mais poder ser excluído da biografia deles. Você gosta de ler biografias? Durante muito tempo, se disse que era uma área secundária da literatura, que era bisbilhotice.
Até os anos 80, a biografia sempre foi tratada como um gênero literário menor. No momento em que ganha status, importância, que está na academia, no Brasil você tem essa restrição. Comecei a curtir biografia para valer com o Olga, do Fernando Morais, um marco dessa retomada. Logo depois ele escreveu Chatô, aí nos anos 90 veio o Ruy Castro, com a do Garrincha, e o Anjo Pornográfico (sobre Nelson Rodrigues). A biografia chega à academia, aquela coisa tratada de forma menor não é mais. É um gênero com suas especificidades, nem melhor, nem pior; ajuda a analisar uma época. E no campo da música brasileira, a do Noel Rosa, de João Máximo e Carlos Didier, publicada em 1990, foi outra que calou fundo. Quando eu li, pensei: quero fazer uma biografia dessas, sobre um artista brasileiro. São dois livros que me encaminharam para isso, Olga e Noel. Foi mais ou menos o que tentei fazer com Roberto Carlos, caminhando com ele, pelas épocas do Brasil em que ele atuou e atua. Que personagem está faltando para ser biografado?
Eu acho que faltam mesmo aqueles que já foram biografados. Não concordo com a visão de que biografia é uma só. A definitiva...
É, não acredito nisso. Cada biografia é uma versão. Eu gostaria de ler outra do Tim Maia, além da do Nelson Motta. Acho um personagem tão rico. Em princípio, acho que está tudo por ser feito. Na música popular brasileira, nós estamos começando agora. Do Tom Jobim, por exemplo, você tem uma do Sérgio Cabral. Como é que um artista como ele, daquela dimensão, com uma obra daquela, tem só uma? Se tiver mais, quero ler. Mas não pegamos ainda essa tradição biográfica. Tem mais de mil livros sobre Elvis Presley. No último levantamento sobre Beatles, 8 mil títulos. Bacana, né? Biografia, análise de letra, comportamento. E nós estamos aqui brigando por causa de um livro.
LALO LEAL
Exemplos de irresponsabilidade
Os limites estão sendo testados pela televisão brasileira, repleta de “donos” de uma liberdade absoluta para dizer qualquer coisa, sem medir as consequências das palavras
A
constatação vale para toda a programação, incluindo a publicidade e o jornalismo. Casos, por exemplo, da propaganda dirigida a crianças e adolescentes e da incitação ao crime perpetrada por uma apresentadora do SBT. Quando a sociedade tenta colocar limites a esses abusos, surgem reações calcadas nos argumentos frágeis da autorregulamentação ou do direito à liberdade de expressão. Recente resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) voltou a enfurecer anunciantes e publicitários. O órgão, vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, proibiu a publicidade dirigida ao público infantil, fazendo cumprir determinações constitucionais e aquelas contidas no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A resposta dos publicitários veio em manifesto atribuindo apenas ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) o direito de “evitar os abusos da comunicação comercial”. Como se um órgão formado por anunciantes e publicitários pudesse, de forma equilibrada e equidistante, regular a relação da própria atividade com o conjunto maior da sociedade. Ainda mais quando se sabe do desprezo que o Conar tem pelas demandas do cidadão. Recentemente, o órgão veiculou na TV dois vídeos mostrando situações fictícias de reclamações, numa tentativa grotesca de ressaltar a inconsistência desse tipo de atitude e de ridicularizar quem critica a propaganda mostrada na TV. É preciso lembrar também que o Conar só atua depois de o anúncio ir ao ar, ou seja, depois do estrago feito. Em vários casos, sua atuação não busca proteger o cidadão e sim dirimir divergências entre anunciantes que reclamam de plágios ou da deslealdade de um concorrente. A proibição determinada pelo Conanda represen-
ta um avanço no patamar civilizatório alcançado pelo Brasil. Coloca o país num nível semelhante ao dos países escandinavos, que proíbem totalmente a propaganda dirigida ao público infantil ou de nações como Inglaterra e Alemanha, onde há uma rígida regulamentação do setor. Se no caso da publicidade não há sentido se falar em censura, uma vez que o anúncio faz parte da mercadoria (assim como o rótulo de qualquer produto), nada tendo a ver com o debate em torno da liberdade de expressão, no jornalismo a questão é mais delicada. Mas nem por isso os abusos podem ser relevados. Como no caso da apresentadora do SBT. É inconcebível que uma concessão pública, outorgada pelo Estado em nome da sociedade, seja usada contra a sociedade e o Estado. Foi o que ela fez ao dizer que “o contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E, aos defensores dos direitos humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido”. A responsabilidade por esse ataque às instituições não é apenas da apresentadora. É da empresa que a contratou e também dos governos, sempre lenientes diante da mídia, temerosos do poder que ela detém. A concessão de um canal de TV tem como objetivo a prestação, por particulares, de um serviço público de informação, entretenimento e educação. Não cabe aos concessionários emitir qualquer tipo de opinião. Editorial cabe em jornal impresso, uma atividade privada, e não numa TV locatária de um espaço público privilegiado. O dever das emissoras é o de veicular opiniões divergentes, manifestadas por agentes políticos e sociais, dando ao telespectador a possibilidade de formar a sua própria opinião. Donos das emissoras e apresentadores não receberam da sociedade nenhum mandato para opinar sobre o que quer que seja e devem ser democraticamente impedidos de agir assim. REVISTA DO BRASIL
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Maracanã, julho de 2014 Os resultados só serão definidos em campo, mas as análises de trajetórias e probabilidades sobre os times e craques da Copa do Mundo já estão postas Por Glauco Faria, do Futepoca*
À
s 17h do dia 12 de junho, quando Brasil e Croácia abrirem o primeiro jogo da Copa do Mundo, em São Paulo, terá início um evento com audiência estimada em 3,2 bilhões de pessoas em todo o planeta. Uma rara ocasião que coloca frente a frente ídolos já consagrados do esporte e dá a chance de diversos jogadores menos conhecidos despontarem em uma com36
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petição que tem em sua história confrontos épicos, gratas surpresas e grandes decepções a marcar gerações inteiras. Entre as seleções favoritas estão sempre as tradicionais, já campeãs ou que chegaram a mais de uma final de Copa, como a Holanda, presente em três delas. A Copa de 2010, que trouxe a Espanha como vencedora, foi uma exceção ao coroarum time que nunca havia levantado a taça, algo que não acontecia desde o título da Ar-
gentina em 1978. De acordo com levantamento realizado em abril pela Ladbrokes, maior empresa de apostas do mundo, o Brasil, com cinco triunfos, é o principal favorito, pagando 3 libras para cada 1 apostada. Na sequência vêm Argentina (com uma cotação de 4,50 para 1); Alemanha (5 para 1) e Espanha (6 para 1). Além da parte técnica e da tradição, contribui para o favoritismo brasileiro o fato de jogar em casa. Novamente, a his-
ÉRICA RAMALHO/GERJ
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ROBERT GHEMENT/EFE
EM CASA De 19 Copas, em seis o país-sede foi campeão
tória mostra a importância de ter a torcida favorável (e talvez não ter a arbitragem desfavorável...). Das 19 edições de mundiais disputadas até hoje, em seis o campeão foi o país-sede. Para o jornalista Juca Kfouri, esse pode ser o diferencial a favor da seleção. “A torcida cantando o hino brasileiro à capela deu um combustível a esse time que ninguém imaginava que ele poderia ter, e o Felipão soube aproveitar isso muito bem. Se você pesquisar REVISTA DO BRASIL
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os jogos da Copa das Confederações, vai ver que o Brasil, em quatro jogos, fez gol logo no começo da partida, ainda tomado por aquela manifestação dos torcedores. Imagino que isso vá se repetir agora na Copa do Mundo”, avalia. Em termos técnicos, Kfouri acredita que um dos problemas da seleção pode estar no gol. O titular vive uma fase no mínimo oscilante desde a derrota brasileira no Mundial de 2010. Goleiro da Internazionale de Milão à época, Júlio César seguiu em baixa no clube depois da Copa e foi para um time menor da Inglaterra, o Queens Park Rangers, em 2012. Sem nunca ter convencido como titular, está agora no inexpressivo Toronto FC, mas mesmo assim tem a confiança de Felipão. “Ao contrário da nossa tradição, o ponto forte do time é a defesa e o ponto fraco é o Júlio César. Aí vai uma idiossincrasia pessoalíssima, porque não confiava nele nem quando era tido, com razão, como o melhor goleiro do mundo, e essa desconfiança ganhou um respaldo menos pela falha em si contra a Holanda (na eliminação da seleção na Copa de 2010) do que pela sua reação depois, por não ter sido capaz de conviver com aquela falha”, diz Kfouri. “Um grande goleiro tem de ser um cara que toma um frango e faz como Gilmar (goleiro da seleção nas Copas de 1958, 1962 e 1966) fazia, sacode a poeira e avisa o time: ‘Agora aqui não entra mais’. Na minha visão, tem de ser um cara de sangue frio, e o Júlio César é um cara de sangue quente.” Para o jornalista e pesquisador Celso Unzelte, há um grupo destacado de países que chega à Copa com chances maiores de título. “Hoje há quatro times acima dos outros: Alemanha, Espanha, Brasil e Argentina, cada um por motivos diferentes e dependendo do caminho que enfrentarão, já que brasileiros e espanhóis podem se cruzar logo nas oitavas”, avalia. Ele destaca ainda o fato de a seleção alemã chegar à Copa em um estágio mais maduro e ser, como a Espanha, uma equipe mais homogênea e que depende menos de craques, como ocorre com as equipes brasileira e argentina. “A Alemanha talvez tenha menos talento concentrado em 38
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FOTOS ANTONIO LACERDA/EFE
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O uruguaio Ghiggia, autor do gol que derrotou o Brasil em 1950, em partida lembrada até hoje
um jogador só, mas conta com grandes nomes em todas as posições, algo que o Brasil não tem. Vão para a terceira Copa do Mundo. Na primeira que disputaram em casa eram muito jovens, e agora chegam muito fortes.”
O fantasma do Maracanã
“Em 1950 ainda éramos suficientemente inocentes para achar que o futebol provava tudo, e que um país que construí ra aquele estádio (Maracanã) e formara aquele time estava abençoado pela história. Assim, não só o drama de 16 de julho foi passado à geração seguinte como um relato cada vez mais depurado nos seus piores significados, como a decepção daquele dia ficou nas células, passa geneticamente para cada novo brasileiro, que já nasce massacrado pelo Ghiggia, já nasce com 2x1 contra.” Era assim que o escritor Luis Fernando Verissimo definia em artigo publicado no Zero Hora em 1988 o que signifi-
cava a derrota na final da Copa de 1950 para o Uruguai, um revés considerado o momento mais triste do futebol nacional, transcendendo o mundo da bola. O triunfo memorável afetou a alma brasileira, consolidando à época aquilo que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-latas”, um sentimento cultivado por muito tempo de que os brasileiros estavam fadados ao fracasso, e não apenas no futebol. Agora, novamente em casa, é possível fazer alguma comparação com o que ocorreu há 64 anos? Para o historiador Gerson Wasen Fraga, autor da tese de doutorado A derrota do Jeca na Imprensa Brasileira: Nacionalismo, Civilização e Futebol na Copa do Mundo de 1950, ainda que haja muitas diferenças de contexto entre aquela competição e a que vai se iniciar em junho, há ao menos uma semelhança. “Era parte do objetivo em 1950, e também é um pouco hoje, mostrar para o mundo que o Brasil é um país moderno, de Primeiro Mun-
Copa no Brasil, 64 anos depois, desperta lembranças e temores, após superação do “complexo de vira-latas”
DANIEL DAL ZENNARO/EFE
SANGUE QUENTE Desde a falha na Copa de 2010, o goleiro Júlio César provoca desconfiança
do, onde as coisas funcionam. Interessante que não é uma preocupação nossa com nós mesmos, mas sim com a forma como vamos ser vistos e entendidos.” Contudo, o algoz da seleção brasileira em 1950 deve ter dificuldades para repetir o feito. O Uruguai, que mais uma vez se classificou para a Copa do Mundo dependendo da repescagem, caiu no chamado “grupo da morte” da competição, que tem ainda as campeãs Itália e Inglaterra, além da Costa Rica. “Coube à seleção um grupo muito complicado. Se conseguir passar, creio que a equipe vai ganhar confiança para fazer uma campanha similar à de 2010. Diria que pode perfeitamente chegar às quartas de final”, acredita Andrés Reyes, autor do livro El Propio Fútbol Uruguayo. Se a Copa de 1950 influenciou a vida brasileira a partir daquela derrota, também foi responsável por forjar a identidade do futebol do país vencedor. E o desempenho da Celeste Olímpica em 2010, REVISTA DO BRASIL
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quando chegou ao quarto lugar, resgatou a autoestima de uma nação que parecia condenada a somente recordar as glórias passadas. “O Maracanazo está presente na identidade dos uruguaios. Existe um antes e um depois de 16 de julho de 1950 (há muitos que sustentam que o antes era melhor que o depois)”, aponta Reyes. “Até 2010, ver o Uruguai campeão do mundo era visto como um feito fantástico e irrepetível, mas depois do que se passou na África do Sul, onde estivemos perto da final, já não se vê isto de uma forma tão distante. Seguramente, como aquela partida (a final de 1950) não haverá outra.”
Candidatas a surpresa
Embora o clube dos campeões do mundo ainda seja restrito, muitas seleções acabam sendo gratas surpresas em Copas mesmo não chegando a finais. Além do já citado Uruguai, um exemplo clássico é a equipe de Camarões no Mundial de 1990, sétima colocada do torneio. Os chamados Leões Indomáveis, que tinham o veterano de 38 anos Roger Milla como estrela, bateram a então campeã mundial Argentina na estreia, mesmo atuando quase todo o segundo tempo com um jogador a menos. Derrotaram a Romênia de Hagi, superaram a Colômbia de Valderrama e Rincón nas oitavas e só para-
ESPERANÇAS Neymar machucado, Messi em má fase: a circunstância pode ser boa para o desempenho dos dois na Copa
ram diante da Inglaterra nas quartas de final, na prorrogação. Hoje, a Bélgica é uma considerável candidata a surpresa/sensação da Copa entre as seleções que não têm tanta tradição. Sua campanha nas eliminatórias europeias foi impecável, e o time ocupava a 11ª posição no ranking da Fifa de abril deste ano, tendo chegado ao 5º posto em outubro de 2013 (agora está em 12º). Tal colocação garantiu o lugar de cabeça de
chave à seleção no grupo F, com Rússia, Argélia e Coreia do Sul. Apesar de ter participado de 11 mundiais e ter até um título que o Brasil ainda não possui, a medalha de ouro olímpica conquistada em 1920, a seleção belga tem como sua melhor colocação em Copas um quarto lugar, obtido em 1986. “Depende muito do que ocorrer nos cruzamentos entre grupos, mas, se fosse apostar em uma surpresa, seria a Bélgica, que ainda é uma equipe muito jovem para ser campeã do mundo, mas tem jogadores com muita qualidade que atuam nas principais competições. Da América do Sul, tem a Colômbia. Já dos outros continentes não vejo nenhum com condição de ser candidato a zebra”, analisa Celso Unzelte. A se levar em conta o desempenho das Eliminatórias, a Suíça – de pouca tradição no futebol e país-sede da Copa de 1954 –, é 8ª no ranking da Fifa e é cabeça-de-chave do Grupo E, ao lado de França, Equador e Honduras. Vive, portanto, momento respeitável.
Fim de temporada
Maior artilheiro de uma edição só da Copa do Mundo, tendo feito 13 gols somente na Copa de 1958, o francês Just Fontaine explicou um dos porquês do seu desempenho em uma entrevista concedi-
O que pode ficar da Copa A vez dos africanos?
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Klose: novo recorde?
O atacante Ronaldo é o jogador que mais marcou gols em Copas do Mundo. Em três edições da competição, de 1998 a 2006 (em 1994 também foi ao Mundial, mas não atuou), ele anotou 15 gols. Caso o alemão Miroslav Klose venha ao Mundial no Brasil, a marca pode ser superada, já que o avante da Lazio, de 35 anos, tem somente um gol a menos que o Fenômeno.
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Drogba: veterano da Costa do Marfim
As seleções da África ainda não conseguiram superar a barreira das quartas de final. Em três ocasiões, o continente colocou uma equipe entre as oito melhores, com Camarões (1990), Senegal (2002) e Gana (2010). Agora, quem parece mais apto a ter um bom desempenho são os ganeses e a seleção da Costa do Marfim, que tem no elenco o veterano Drogba, o atacante Gervinho e um dos melhores volantes do mundo, Yaya Touré, do Manchester City.
Klose pode superar Ronaldo
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da quando fez 80 anos, em 2013. “Acho que para alcançar aquele recorde na Copa minha grande vantagem foi ter operado o menisco em dezembro de 1957. Como voltei a jogar apenas em fevereiro do ano seguinte, tive um período de repouso que me permitiu estar mais inteiro do que os outros [atletas] em junho.” Para Juca Kfouri, o desgaste de alguns atletas que estarão em final de temporada na Europa e em especial na disputa da Liga dos Campeões pode influenciar no desempenho de algumas seleções. “Há jogadores que certamente chegarão à Copa do Mundo esgotados. É só olhar pra trás e lembrar do melhor jogador do mundo à época da Copa de 2002, Zidane, e o desempenho que teve a França, o mesmo ECONÔMICA A Espanha foi campeã de 2010 marcando apenas oito gols em sete partidas
valendo para a Copa de 2006, quando o melhor era o Ronaldinho Gaúcho, e para a Argentina em 2010, com o Messi. O jogador que é campeão da Liga dos Campeões tira uma tonelada de responsabilidade das costas e relaxa. Só que aí dizem pra ele: ‘Espera aí, você tem um mês de Copa do Mundo para disputar’. É quase sobre-humano.” A final da Liga dos Campeões será disputada em 24 de maio, a pouco menos de 20 dias do início da competição no Brasil. Entre as quatro equipes finalistas (as semifinais seriam disputadas em 29 e 30 de abril), há diversos astros e protagonistas de seleções importantes como o Bola de Ouro da Fifa, o português Cristiano Ronaldo, jogador do Real Madrid,
e boa parte dos atletas do setor defensivo brasileiro como David Luiz, Dante e Marcelo, além de possíveis convocados, como Rafinha e Filipe Luis. O Bayern de Munique é a base da seleção alemã; o Chelsea tem figuras importantes da seleção inglesa como John Terry, Ashley Cole e Gary Cahill, e a Espanha possui vários de seus atletas entre os semifinalistas Real e Atlético de Madrid. Neste aspecto, Brasil e Argentina poderiam comemorar a desclassificação precoce do Barcelona, já que isso preservaria um pouco mais suas duas principais estrelas, Neymar e Messi. No entanto, o argentino vive a pior temporada no Barcelona desde que foi escolhido como melhor do mundo. Neymar, que também não vive um grande momento no Barcelona, passou por um período turbulento em função da obscura negociação que o levou para a Espanha, episódio que determinou a renúncia do então presidente do clube catalão, Sandro Rossell. Agora, uma contusão deve deixá-lo fora de ação por um mês, fato que pode lhe dar uma folga das cobranças no clube e também desgastá-lo menos fisicamente para a Copa. Ruim para o Barça, mas algo que pode ser providencial para a seleção brasileira. *Acompanhe a partir de 7 de maio, o dia a dia da Copa. Uma parceria do Futepoca com a RBA e veículos parceiros.
SRDJAN SUKI/ EFE/EPA
A melhor defesa... é a defesa
Nos últimos quatro Mundiais, em três a equipe campeã foi a dona da melhor defesa: França (1998), Itália (2006) e Espanha (2010), com cada uma das seleções levando dois gols na competição. Os espanhóis, aliás, também foram o time que levou o título com a pior média de tentos marcados, somente oito nas sete partidas. Será que a lógica vai ser inverter no Brasil ou a Copa continuará sendo um jogo de defesa contra defesa? REVISTA DO BRASIL
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O Brasil é o país do futebol?
A
julgar pelos cinco títulos mundiais, a participação em todas as 19 Copas já realizadas e a exportação de craques para o exterior, sobretudo para a Europa, o Brasil parece mesmo ser o país do futebol. Porém, se os dados relacionados ao esporte forem analisados sob aspectos históricos, econômicos, políticos, sociológicos, ideológicos, culturais e estatísticos – mas de uma estatística que relativize todos esses fatores –, o Brasil é apenas mais um dos países do futebol. A constatação, que pode despertar a ira dos amantes da bola ainda mais às vésperas da Copa do Mundo – especialmente uma disputada no Brasil – é do professor aposentado da USP Hilário Franco Júnior, autor do livro A Dança dos Deuses – futebol, sociedade, cultura. Em entrevista a Oswaldo Colibri Vitta, da Rádio Brasil Atual, ele deixa de lado sua paixão e, a partir de uma análise profunda, desconstrói argumentos que estão na ponta da língua de quem acredita piamente na ideia de pátria de chuteiras. Para Franco Júnior, o brasileiro vai menos ao estádio do que torcedores de outros países, acompanha pouco os resultados pelos meios de comunicação, sobretudo jornais impressos, e os campeonatos disputados aqui estão aquém daqueles de outros países. “Os campeona42
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RAZÃO E EMOÇÃO Ronaldo durante a Copa de 2002: vitórias deveriam ser relativizadas
tos são mal organizados, os estádios são ruins, de difícil acesso, os craques jogam fora, há poucos gols por partida e, por razões até culturais, o brasileiro lê menos sobre seus clubes”, resume. As conquistas mundiais e a participação em todas as Copas também são discu-
tíveis. Conforme lembrou, é preciso considerar o número de vitórias em termos proporcionais: o país ganhou cinco dos 19 mundiais disputados, quando outros campeões, como Itália (quatro títulos), Alemanha (três) e França (um) não estiveram em todos porque enfrentavam sérias questões internas, como guerras, por exemplo. E nem todas as participações do Brasil foram conquistadas na raça, em eliminatórias, conforme o historiador. “Em muitas ocasiões fomos beneficiados pela desistência de outros países em eliminatórias”. Ele lembrou ainda que destaques do Brasil, como o jogador Ronaldo ser o maior artilheiro em Copas, são ofuscados pelos de outros países, que conquistaram muito mais títulos em campeonatos internacionais regionais, como a Libertadores da América. Paixão à parte, as reflexões de Franco Júnior levam o ouvinte a pensar o futebol como mais um dos elementos que devem compor um país – e não o único. Nessa perspectiva, o Brasil tem de ser o país da educação, da saúde, da ciência, da música, da indústria e também do futebol.
BERND WEI BROD/EFE
Autor do livro A dança dos Deuses – futebol, sociedade, cultura, Hilário Franco Júnior questiona clichê que aflora mais apaixonadamente entre os brasileiros em tempos de Copa
MEMÓRIA
Meu nome é Djalma
“M
ário era um ponta esquerda fenomenal. Maluquinho, é verdade, adorava dar dribles desconcertantes nos adversários, não para humilhá-los, mas porque se divertia. Não tinha nenhuma objetividade. A torcida, porém, o amava e ia a loucura quando as tais jogadas aconteciam. Era sempre assim, todo domingo. Naquele domingo de verão de 1949, o Pacaembu fervilhava à espera do Corinthians e do seu divertido ponta, Mário. “O adversário era a Portuguesa, e, na lateral-direita, um desconhecido, Santos, “neguinho” troncudo, que estava lá prestes a ser a próxima vítima. E não deu outra. Não havia passado nem dez minutos do primeiro tempo quando Mário parou em frente a Santos (que ainda não tinha o Djalma no nome), gingou, brincou, ergueu a bola, deu um chapéu e
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Ele foi para a coletânea de lendas futebolísticas ao combinar inteligência, técnica, força e lealdade. Djalma Santos sempre entrou e saiu de campo pela porta da frente saiu pelo lado, enquanto o estádio quase ia abaixo. “Os torcedores do Corinthians ainda riam do lance quando, novamente, a bola para o lado esquerdo do ataque alvinegro. Dessa vez, Santos chegou primeiro. Poderia simplesmente se desfazer da bola. Mas para quê? Esperou por Mário. Gingou, brincou, ergueu a bola, deu um chapéu e saiu jogando com o requinte de fazer uma embaixadinha – que viraria a sua marca – antes de lançar a bola para o ataque. “A torcida engoliu o riso. Mário não acreditou no que viu. “Que neguinho atrevido!” Os corintianos acabavam de ser apresentados àquele que se tornaria o maior lateral-direito da história. Aquele lance parecia dizer: “Muito prazer, meu nome é Santos. Djalma Santos”. Anos depois, Mário e Djalma se transformaram em grandes amigos e riam muito lembrando daquela ensolarada tarde de domingo.”
Do porão ao palácio O texto acima é uma das 18 crônicas do livro Djalma Santos, do Porão ao Palácio de Buckingham (Amazon Books). A ideia dos jornalistas Adriana Mendes, Flavio Prado e Norian Segatto foi intercalar o relato biográfico do “maior lateral-direito da história do nosso futebol” com histórias pitorescas colhidas com amigos e familiares do craque que defendeu a seleção brasileira por 111 jogos, entre 1954 e 1968. Djalma disputou quatro Copas do Mundo e foi
bicampeão, em 1958 e 1962. Entrou para a coletânea de lendas do esporte no Brasil ao combinar inteligência e técnica, precisão nos desarmes e passes, força física e lealdade – nunca um árbitro apontou-lhe um cartão vermelho. O atleta, cidadão uberabense (nasceu na cidade mineira de Uberaba, onde morreu em julho do ano passado), é também modelo de uma fidelidade clubística impensável. Jogou 453 partidas pela Portuguesa de
Desportos, entre 1948 e 1959, quando transferiu-se para o Palmeiras. Ali seria um dos fundadores da “Academia de Futebol”, da qual só sairia em 1968, 498 partidas depois. O livro do trio de jornalistas levou três anos para ser produzido e resultou numa luxuosa obra, com vasto estoque de imagens. Um trabalho elegante como o craque a quem, como quase todos de sua geração, o país ficou devendo um reconhecimento mais digno. (PD) REVISTA DO BRASIL
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Cenas do Velho Chico A relação das populações ribeirinhas com o rio São Francisco em imagens do fotógrafo João Roberto Ripper
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a música São Francisco de Canindé, Luiz Gonzaga comunga a importância do rio com a fé. Luta, muito trabalho, o enfrentamento de falsas promessas de se acabar com a seca e a esperança nas formas de se aproveitar a água da chuva fazem parte da vida das populações do semiárido brasileiro, dos ribeirinhos e do próprio São Francisco, o único grande rio inteiramente brasileiro. Nascido em Minas Gerais, o Velho Chico se desloca pelo estado da Bahia, molha a divisa deste com Pernambuco e de Alagoas com Sergipe. Há muito, o rio é alvo de projetos polêmicos, como a construção da barragem de Itaparica (PE) pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), em 1988. Na ocasião, a sede do municí44
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pio foi deslocada para a região que ocupa hoje, causando impactos de ordem ambiental, social e cultural, segundo moradores. Muitos acompanharam a mudança da sede; outros, porém, levados pelas circunstâncias, tiveram de recomeçar suas vidas em localidades vizinhas. Um desses empreendimentos é o Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional – simplificado em “Transposição do São Francisco”. A ideia é especulada desde o século 19. Começou a virar projeto na era Getúlio Vargas, nos anos 1940. Esteve nos planos dos governos de João Baptista Figueiredo (19791985), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). No primeiro governo Lula, em 2003, foram iniciados estudos de impactos am-
bientais. No segundo, em 2007, a obra começou a sair do papel, com previsão de término em 2012, já ajustada para 2015. É prevista a construção orçada em R$ 8,5 bilhões – de mais de 700 quilômetros de canais de concreto em dois grandes eixos (norte e leste) ao longo do terreno de quatro estados (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte) para o desvio das águas do rio. E não sem polêmica. Opositores argumentam que a água será retirada de regiões onde a demanda para uso humano e dessedentação animal é maior que a demanda na região de destino, onde a finalidade principal seria, na visão dos críticos, atender a agroindústria e o agronegócio. No município de Floresta (PE), as obras passam próximo da casa do sertanejo Paulo Feitosa, de 67 anos, em loca-
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Pesca em Barra, Bahia, na junção do rio São Francisco com o rio Grande
Eu vi o rio virar Um deserto de pedra e pó A noite se avermelhou De tão quente o céu e o chão Meu povo se encomendou Esperando o fim do sertão Dê um jeito, meu São Francisco Foi assim que pedi com fé De repente, choveu bonito O rio encheu de fazer maré São Francisco de Canindé, Luiz Gonzaga
Barra, BA
Embarcação leva crianças à escola em Xique-Xique, BA
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Marcos e Indiana Barbosa brincando na travessia de Xique-Xique para Barra, BA
Matias Cardoso, MG
Entardecer na cidade de Pirapora, MG
lidade próxima do lago de Itaparica. Apesar disso, ele diz que não será beneficiado pelo projeto. “A tal transposição vai passar a 200 metros da minha casa, mas vai estar tudo gradeado e a gente não vai poder pegar uma gota. Os homens dizem que o que vai ter é muito emprego pra fiscal”, brinca. Paulo já experimentou vários tipos de trabalhos pesados. “Trabalhei na roça, quebrei pedra, construí casa. Lutei muito nessa vida, fiquei doente com o trabalho, passei por várias cirurgias e hoje vivo de uma aposentadoria pequenininha, assim como eu, que sou baixinho”, diz, bem-humorado. O sertanejo mora numa casa simples, com um cercado de madeira. Vive só, com poucos móveis, sem televisão e com uma criação de cabras. Ainda corre como um garoto. “Sou que nem essas cabras, gosto de viver solto e ter o meu 46
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Júlia, em Floresta, PE
canto de sombra pra descansar. Me acostumei com o sol e a falta d’água, mas tenho a vida que Deus me deixou. Pra ser feliz, a gente não precisa de muito, não, né? Agora, água era bom, mas...” A cerca de um quilômetro da casa de Paulo Feitosa, notam-se trechos destruí dos, abandonados antes de a obra terminar, carcaças abandonadas de gado vitimado pela seca. Um vaqueiro com roupas de couro, usadas para se proteger dos espinhos da vegetação, cavalga cansado, na esperança de encontrar, ainda com vida, uma rês desgarrada. Indagado sobre a obra, responde: “Ah, uma obra tão grande de Deus o homem não deve se meter a mudar, não. O velho Chico está chorando”, diz. Não é o que pensam as populações dos 360 municípios na área de confluência dos quatro estados que esperam para poder
Lindemberg Passos, 89 anos, pescador da Lagoa do Retiro, MG
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Tamires, da comunidade Ilha Pau Preto, às margens do rio no entorno do Parque Estadual Verde Grande, Matias Cardoso, MG
irrigar seu solo uma água que nem sempre cai do céu. Os defensores do projeto admitem os efeitos listados no Relatório de Impacto Ambiental, mas respondem com a adoção de 38 ações socioambientais compensatórias. E sobretudo com a perspectiva de um desenvolvimento sustentado local – com criação de empregos e renda numa faixa de Brasil onde vivem 12 milhões de pessoas, segundo o Ministério da Integração Nacional. A peleja entre os prós e contras teve forte repercussão nacional quando o bispo de Barra (BA), dom Luiz Cappio, fez duas greves de fome, em 2005 e 2007, contra a transposição. Ganhou destaque o apoio recebido da atriz Letícia Sabatella. Em artigo endereçado à atriz, o ex-ministro da Integração Ciro Gomes disse que dom Cappio não tinha direito “de fazer a Nação de refém de sua ameaça de sui-
Paulo Feitosa, em Floresta, PE: “Sou que nem essas cabras, gosto de viver solto”
cídio”. Argumentou que a integração de bacias do rio São Francisco aos rios secos do Nordeste, ao beneficiar 12 milhões de pessoas da região mais pobre do país, “não prejudicará rigorosamente nenhu-
ma pessoa”. E concluiu: “Imagine se um bispo a favor do projeto resolver entrar em greve de fome exigindo a pronta realização do projeto. Quem nós escolhería mos para morrer?” REVISTA DO BRASIL
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curtaessadica
Por Xandra Stefanel
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Grandes e reais
Nove esculturas hiper-realistas de Ron Mueck ficam expostas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro até 1º de junho. O australiano radicado em Londres reproduz o corpo humano com tanta precisão que, não fosse pelo tamanho, as obras poderiam facilmente ser confundidas com seres reais. Além das seis esculturas que já passaram por Buenos Aires e Paris, o artista criou outras três especialmente para a mostra que leva seu nome: Woman with Shopping, Young Couple e a maior obra da exposição, Couple Under a Umbrella, com 3 metros de altura. De terça a sexta, das 12h às 18h e aos sábados, domingos e feriados, das 11h às 19h, na Avenida Infante Dom Henrique, 85, Parque do Flamengo, Rio de Janeiro, (21) 3883-5600. R$ 7 e R$ 14.
Ângelo Antônio, como Vicente, revira o lixo em Gramacho
Altos e baixos
O que acontece quando se perde tudo? Onde fica o fundo do poço? Vicente (Ângelo Antônio) é um economista casado e com um filho que, depois de várias perdas seguidas, muda de identidade e passa a viver em um aterro sanitário. Filmado no lixão do Jardim Gramacho (em Duque de Caxias, RJ), o maior da América Latina, o segundo longa-metragem de Philippe Barcinski, Entre Vales, mostra a dramática história de Vicente ladeira abaixo e, depois, a reconstrução de sua vida, como Antônio. Com estreia nacional prevista para a segunda semana de maio, o filme tem no elenco o uruguaio Daniel Hendler, Inês Peixoto, Matheus Restiffe e Melissa Vettore. Nos cinemas. 48
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Futebol e cultura
Na escola, os amigos de Juca dizem que ele não joga bem futebol e por isso não o aceitam no time. Incentivado pelo tio, o garoto decide convocar jogadores mirins nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo. Além de ser bons de bola, os escolhidos devem ter conhecimento e comprometimento com a cultura do país e da cidade onde mora. No livro Jovens Craques do Brasil Futebol Clube (Ed. Leitura & Arte, 48 pág.), Nereide Schilaro Santa Rosa aproveita o gancho da Copa para apresentar aos leitores infantojuvenis a cultura regional e as modalidades de futebol vindas de cada lugar. Festa do boi, frevo, capoeira, os jogos indígenas, as peladas no campinho de várzea... A história de cada jogador revela a enorme riqueza do Brasil. Preço sob consulta.
CURTA ESSA DICA
RICARDO HARA/DIVULGAÇÃO
Tributo
Poesia e artes plásticas A mostra Narrativas Poéticas, em cartaz até 20 de julho no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, apresenta 58 obras de expoentes do Modernismo combinadas com fragmentos de poemas de 23 autores brasileiros. Pinturas, gravuras e desenhos de 38 artistas, entre eles Di Cavalcanti, Candido Portinari, Cícero Dias e Aldo Bonadei se relacionam com trechos de poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade e Vinicius de Moraes. Os textos estão espalhados pela sala: impressos em alto-relevo, adesivados nas janelas, projetados no chão e anunciados em painéis sonoros. A exposição conta com quatro obras táteis para pessoas com deficiência visual. De terça a domingo, das 10h às 18h, na Praça da Luz, s/n, Centro, São Paulo, (11) 3322-0080. R$ 3, R$ 6 e grátis aos sábados.
O clássico álbum Alucinação, gravado por Belchior em 1976, acaba de ganhar uma releitura feita por jovens músicos brasileiros. O projeto do jornalista Jorge Wagner é uma homenagem ao cantor cearense, ultimamente mais lembrado pelo seu sumiço que pela sua obra. O álbum Ainda Somos os Mesmos tem Como o Diabo Gosta por Lucas Vasconcellos, Como Nossos Pais na voz de Phillip Long e Apenas um Rapaz Latino-Americano com Dario Julio & Os Franciscanos. Há versões indies moderninhas e arranjos bem próximos aos das canções originais. Outros clássicos de Belchior, como Medo de Avião, Paralelas e Todo Sujo de Batom, foram registrados no EP Entre o Sonho e o Som, para completar a homenagem. O disco e o EP estão disponíveis para download gratuito no site Scream & Yell no link bit.ly/rdb_belchior.
Sob(re) o olhar de Salgado Apesar de as fotografias de Sebastião Salgado serem famosas no mundo todo, sua história pessoal era pouco conhecida até o lançamento do livro Da Minha Terra à Terra (Companhia das Letras, 176 pág.). A biografia escrita por ele em parceria com a amiga Isabelle Francq mostra o homem além do mito. Não há uma fotografia sequer (além da capa). O que importa na obra é apresentar a trajetória que moldou um dos melhores fotógrafos do mundo, um profissional cujo trabalho vai muito além do pleno domínio técnico. Da Minha Terra à Terra foi feito a partir de uma série de entrevistas que Isabelle fez com Salgado às vésperas da apresentação do projeto Gênesis, uma série de reportagens dedicadas aos lugares intocados no planeta, cujo material virou livro e uma exposição itinerante que tem percorrido o mundo desde o ano passado. Depois de ter registrado guerras, miséria e tanta desgraça humana, Salgado diz ter recuperado a fé na humanidade com seu último e maior projeto. “Gênesis me fez ter consciência de que de tanto nos afastarmos da natureza, com a urbanização, nos tornamos animais muito complicados; de tanto nos tornarmos estrangeiros no planeta, nos tornamos seres estranhos. Mas não se trata de um problema insolúvel. A solução passa pela informação – e ficarei feliz se puder ter contribuído com ela”, conclui. REVISTA DO BRASIL
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MOUZAR BENEDITO
Nascer aposentado é a solução
Todos deveríamos vir ao mundo já desfrutando de aposentadorias igualitárias. E poder fazer as coisas boas da vida numa idade mais adequada: a juventude. Depois dos 40, aí sim, ao trabalho
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ditado “O trabalho enobrece e dignifica o homem” é muito utilizado por quem trabalha pouco, e lucra muito com o trabalho alheio. E a gente embarca nessa “ética” patronal como se fosse uma lei divina. Claro que o trabalho é que produz riqueza, mas o problema é que a riqueza nunca vai para as mãos de quem a produziu. Ninguém fica rico à custa do seu próprio trabalho. Por isso, para esse ditado vale mais a sua versão gaiata: “O trabalho empobrece e danifica o homem”. Ora, o que a humanidade deveria procurar era diminuir o trabalho. Para isso é que, teoricamente, foram sendo criadas máquinas e tecnologias. Teoricamente. Se uma máquina produz por 100 homens, o que se deveria fazer era diminuir a quantidade de trabalho deles, mas isso acontece? O capitalismo vive da mais-valia, que os novos direitistas fingem não existir mais. Aos capitalistas não interessa a felicidade humana, a não ser a deles mesmos. Então, quando colocam numa fábrica, num escritório ou seja onde for cinco máquinas que fazem o trabalho de 100 pessoas cada, em vez de diminuir a exploração dos seus empregados, aumentam. Assim, cada vez que a ciência cria novas máquinas e tecnologias, deveria contribuir para a felicidade humana, mas o resultado é uma degradação maior. Para quê? Para o patrão acumular. E depois culpam pela violência os miseráveis produzidos por esse círculo vicioso. Bom... E daí? Todo esse discurso é para entrar em propostas que parecem absurdas, mas deveriam nortear todo o desenvolvimento tecnológico: colaborar para a felicidade humana. 50
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Na minha visão anárquica, uma boa proposta seria, como dizia meu amigo Zé Alencar (o jornalista, não o vice-presidente), a gente trabalhar apenas um dia por mês. Por exemplo: eu trabalharia todo dia 20 de cada mês. Todos os dias restantes, tiraria para fazer o que gosto. No dia 19, véspera do meu dia de trabalho, eu ficaria concentrado, informando a quem me convidasse pra qualquer coisa: “Não. Amanhã é meu dia de trabalho”. E no dia 20 trabalharia alegre para, no final do dia, dizer: “Missão cumprida, este mês”, e voltar à boa vida, à produção artística, às safadezas, à cachaça... Isso valeria pra todo mundo. Quanta gente tem um baita potencial artístico e vive insatisfeita por não ter condições de desenvolver esse potencial? Isso acabaria. Seriam dadas condições a todos. Outra proposta, e essa não tem nada a ver com tecnologia: todo mundo deveria nascer aposentado. Todos com os mesmos salários de aposentado, mas com condições de fazer coisas boas, viajar, vadiar, numa idade mais adequada: a juventude. Quando completasse 40 anos, o sujeito seria desaposentado e teria de trabalhar o resto da vida, claro que com uma carga horária decente, direito a férias etc. Aos ricos, sei que esta proposta não seria muito atraente, pois eles já começam a trabalhar tarde mesmo, muitos deles depois dos 30 anos, já pós-graduados e doutorados. Mas para os pobres seria uma baita vantagem, ainda mais que aposentado ao nascer, todos teriam salários iguais... Mais um motivo para os ricos não gostarem, né? Fora isso, imagino que haveria uma onda de suicídios aos 40 anos, mas eu pergunto de novo: e daí?
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