Revista do Brasil nº 096

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DOM PEDRO CASALDÁLIGA, UM PASTOR CONTRA OS LOBOS Aos 86 anos, bispo ataca o agronegócio e o neoliberalismo. E fala da América Latina, do papa, povos indígenas e sobretudo de esperança nº 96 junho/2014 www.redebrasilatual.com.br

ELES VÊM AÍ, DE NOVO Mercado financeiro alimenta alarmismo e escolhe seu candidato para impor seu jogo


COPA NA REDE Boletins diários. Análises. Comentários. A Copa do Mundo do Brasil com a visão diferenciada do jornalismo cidadão.

www.redebrasilatual.com.br em parceria com o futepoca.com.br


ÍNDICE

EDITORIAL

5. Na Rede

Notas que foram destaque na RBA no mês que passou

12. Economia

O “mercado” se agita e já aposta em seus candidatos

16. Entrevistas

Em pauta, política industrial e sindicalismo internacional

20. Perfil

Dom Pedro Casaldáliga: não ao poder e sim à esperança JOAN GUERRERO

26. Sociedade

Eles saíram de casa, sumiram: histórias de desaparecidos

30. Mundo

Dom Pedro Casaldáliga defende uma atitude firme para a educação, saúde e comunicação

34. Cidadania

As palavras e as intenções

O drama dos mineiros do Chile é revivido no cinema Jovens das comunidades põem a favela no mapa

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38 Urbanismo

DAFNE SAMPAIO/GAFIEIRAS

Arranha-céus: no mundo, cada vez mais para cima

O sambista Noite Ilustrada

44. Música

Entrevistas de artistas em site revelam curiosidades

Seções Cartas 4 Destaques do mês Mauro Santayana

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: Luiz Ruffato

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m boato rapidamente espalhado resultou em uma tragédia em Guarujá, no litoral sul de São Paulo. Uma dona de casa, mãe de dois filhos, foi identificada como uma sequestradora de crianças para rituais demoníacos. Bastou alguns “acharem” que se tratava da mesma pessoa para justificar o ato bárbaro, como se isso fosse tolerável em qualquer circunstância. Uma informação atribuída a “fontes”, sem identificação, provoca alvoroço no mercado financeiro em questão de minutos. Não é difícil imaginar que alguém ganha com isso, porque não existe almoço – nem jantar – grátis nesse universo. Ganhos financeiros, mas também políticos, à medida que beneficiem esta ou aquela linha de pensamento, menos ou mais favoráveis aos negócios, na visão de quem está fazendo girar a ciranda financeira. Embora não se possa comparar um caso como o ocorrido em São Paulo, pela sua dimensão humana, com o que se verifica nas bolsas mundo afora, é possível notar que as duas situações têm algo em comum: a circulação de informações. Nem sempre corretas, nem sempre confiáveis. Que podem, no primeiro caso, enterrar reputações e vidas. No outro, dar a governos e países direções que não contemplam os principais interesses da sociedade. Entra aí o papel dos meios de comunicação, que em seu noticiário econômico não raro privilegia temas de interesse desse chamado mercado, muito mais interessado no superávit fiscal do que na taxa de desemprego. De fora e de dentro do Brasil, jornalistas e “analistas” já enviam sinais nesse sentido, sem contar os polemistas de plantão, sempre dispostos a mostrar, ano após ano, que o país está à beira do colapso. A quatro meses das eleições, é momento de começar a identificar quem defende quais interesses. Desenvolvimento está na boca de todos, mas alguns entendem que isso só é possível com algum nível de justiça social, enquanto outros pregam a chamada flexibilização, o que a prática tem demonstrado resultar em benefício para poucos. Que, em tempos de endurecimento do discurso político, valha a inspiração de dom Pedro Casaldáliga (tema de perfil nesta edição), defensor da população mais humilde, a mais necessitada de medidas práticas neste imenso, generoso e injusto país. REVISTA DO BRASIL

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www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Diego Sartorato, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, João Peres, Moriti Neto, Sarah Fernandes, Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Capa Ilustração de Brett Lamb/Getty Images e foto de Sônia Oddi (dom Pedro Casaldáliga) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

DANILO RAMOS/RBA

redebrasilatual.com.br

Leci Brandão no evento unificado da CUT, CTB e CSB

Outubro em maio

Aécio e Paulinho: pegando pesado

CARLA CARNIEL/FRAME/FOLHAPRESS

O 1º de Maio foi, de certa forma, um marco do que se prevê para a campanha rumo às eleições de outubro. No ato da Força Sindical, o presidente licenciado da central, deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, subiu o tom nos ataques a Dilma Rousseff e levou ao palanque os dois principais adversários da presidenta. Em evento organizado pela CUT, CTB e CSB, os sindicalistas ressaltaram a importância de medidas anunciadas na véspera pelo governo, como a correção da tabela do Imposto de Renda e o compromisso de manter a política de valorização do salário mínimo. bit.ly/rdb96_maio1

A dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, dois filhos, foi atacada por vizinhos em um bairro de Guarujá, litoral de São Paulo, e morreu em consequência do linchamento. Foi confundida com uma sequestradora de crianças, após imagem divulgada na internet. Ainda que fosse a mesma pessoa, esse não pode ser um caminho, aponta o coordenador do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos, Rafael Custódio. “O lastimável é que, inocente ou não, uma pessoa foi morta brutalmente pela sociedade comum. É absurdo que as pessoas tenham ido às ruas e feito justiça com as próprias mãos”, comentou. Para ele, veículos de comunicação incentivam esse tipo de atitude e a tolerância a ataques. bit.ly/rdb96_lincha

CONECTAS.ORG

Com as próprias mãos

Rafael Custódio: “Lástima”

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REDEBRASILATUAL.COM.BR

Copa, contra e a favor

Juiz: crença no culto

Não é religião?

O entendimento de um juiz no Rio de Janeiro, contrário à retirada de vídeos do Youtube, chamou mais a atenção pela fundamentação. Para ele, manifestações religiosas afro-brasileiras “não constituem religião”. Segundo o juiz, faltam a esses cultos características como um textobase, estrutura hierárquica e veneração de um deus único. O Ministério Público Federal no Rio recorreu, afirmando que a decisão causou perplexidade justamente porque um magistrado “arvorou-se a dizer o que é e o que não pode ser considerado religião”. Posteriormente, o juiz reconsiderou a sua decisão. E observou que “o forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil demonstra, por si só e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões”. bit.ly/rdb96_religiao

Biografias liberadas

Um acordo costurado na Câmara permitiu a aprovação do projeto de lei que libera biografias de personalidades públicas. Não se pode contar a história “adocicada” só conforme o juízo da celebridade, argumenta o autor. Quem se considerar atacado pode apelar à Justiça. O texto seguiu para o Senado. Na edição de maio, a Revista do Brasil publicou entrevista com o pesquisador Paulo Cesar de Araújo, autor da biografia proibida sobre Roberto Carlos. bit.ly/rdb96_biografia 6

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ACERVO JAIRRODRIGUES.COM.BR

Jair e Elis no O Fino da Bossa

LUCIANA WHITAKER/RBA

Paulo Cesar de Araújo

TOMAZ SILVA/ABR

OSWALDO CORNETI/FOTOS PÚBLICAS

A Copa começou no dia 12 deste mês e vai terminar em 13 de julho. Antes de a bola rolar, manifestações contrárias ao torneio voltaram a ocorrer, como em 15 de maio, o chamado 15M, com atividades em vários locais. Alguns terminaram em confusão, como em São Paulo. O movimento dos sem-teto defendeu as manifestações, mas fez críticas aos candidatos de oposição. Na mesma data, o governo organizou evento com centrais sindicais e entidades empresariais, além da Organização Internacional do Trabalho (OIT), para estabelecer parceria que cria regras para contratações durante os jogos. Foram três compromissos firmados, relativos a condições de trabalho, dentro do conceito de trabalho decente definido pela OIT. bit.ly/rdb96_copa1

Jair Rodrigues, uma voz Sambista, precursor do rap, intérprete múltiplo, Jair Rodrigues foi referência musical brasileira durante mais de 50 anos. Fez dupla inesquecível com Elis Regina no programa O Fino da Bossa, da TV Record, na segunda metade dos anos 1960. Ela o chamava de Cachorrão e ele se referia à amiga como Pimentinha. Em 1966, Jair arrebatou o público no festival da Record interpretando Disparada, de Geraldo Vandré e Theo de Barros. O cantor de Deixa Isso pra Lá e A Majestade o Sabiá, entre outros clássicos, morreu em 8 de maio, aos 75 anos. bit.ly/rdb96_jair


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Oficina clandestina de costura no Brás, em São Paulo

CPI em família

CPI, sim ou não? Bruno Covas e Alckmin: tradição rompida

ANDRÉ BUENO/FOLHAPRESS

Aloysio Nunes

A oposição conseguiu emplacar uma CPI na Assembleia Legislativa de São Paulo, mas não ficou com a presidência, contrariando uma tradição da casa. A comissão destinada a apurar valores de pedágio e modelos de licitação usados pelos sucessivos governos do PSDB, desde a gestão de Mário Covas, será comandada pelo deputado Bruno Covas, neto do ex-governador e filiado ao PSDB. A relatoria também ficará com uma legenda fiel aos tucanos no estado. Ao autor da proposta coube a vice-presidência. bit.ly/rdb96_covas

ANTONIO CRUZ/ABR

Mais de 2 mil (exatos 2.063) trabalhadores em condição análoga à de escravidão foram resgatados em 2013, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego. A novidade foi que, pela primeira vez, a maioria (1.068) estava em áreas urbanas, com destaque para a construção civil, que registrou 849 casos, acima de setores que tradicionalmente têm maior número de ocorrências, como agricultura (342) e pecuária (276). Dos 2 mil, quase 300 eram estrangeiros, principalmente haitianos e bolivianos. bit.ly/rdb96_escravo

REPORTERBRASIL.ORG

Escravos urbanos

Em uma tranquila terça-feira (6 de maio), o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) foi abordado por um blogueiro, conhecido como Rodrigo Pilha, e questionado sobre a importância de comissões parlamentares de inquérito. A conversa foi amena, até chegar a São Paulo – a pergunta era sobre a articulação de deputados tucanos contra CPIs nas duas últimas gestões. A essa altura, o parlamentar se irritou: “Vai pra puta que o pariu”, gritou, com outras frases de nível equivalente. bit.ly/rdb96_aloysio REVISTA DO BRASIL

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MAURO SANTAYANA

Por um lugar no mundo

Ou o Brasil assume o destino que lhe cabe, ou se entrega aos interesses colonialistas do passado

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odas as grandes nações do mundo se ergueram sobre espaços amplos, população instruída, e o ânimo de grandeza. Essas são as condições para que seu povo disponha de autoestima, identidade nacional, e exerça sua influência política e econômica em sua região. Há países que nascem suficientemente fortes, do ponto de vista territorial e populacional, em determinado continente para o exercício de sua liderança. Esse foi o caso dos Estados Unidos, com relação às Américas, da independência até meados da segunda metade do século passado, ou da Rússia, no território ocupado pela União Soviética, depois da Revolução de Outubro. Outras nações, ainda que desprovidas de grandes territórios ou população, conseguiram estender sua influência para além de suas regiões de origem, como, por exemplo, Portugal, que foi buscar na África, na Ásia e na América do Sul, uma dimensão que não tinha em sua própria Península, ou no contexto continental daquela época. Sem autoestima e identidade nacional, os portugueses não teriam cruzado o Atlântico. Os Estados Unidos não se teriam transformado, por extenso período, na nação mais poderosa do mundo. A URSS não teria derrotado o nazismo, ou enviado o primeiro satélite, o primeiro foguete, o primeiro homem para a órbita da Terra, dando início à conquista do espaço. Sem autoestima e identidade nacional, a China não teria erguido, há 4 mil anos, a Grande Muralha, e construído o Exército de Terracota, nem teria chegado onde se encontra, prestes a se transformar na maior economia do planeta – por poder paritário de compra – antes de dezembro, e na nação mais importante do mundo, nos próximos anos. Sem autoestima, e identidade nacional, o Brasil não teria, nos últimos anos, contribuído para a derrocada progressiva do G-8, participando decisivamente da criação do G-20; nem do Mercosul, para a qual se esforçaram os cinco últimos presidentes da 8

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República; nem fundado a Unasul - União das Repúblicas Sul-Americanas; nem o Conselho de Defesa Sul-Americano, criando as condições para o estabelecimento natural e pacífico de nossa influência política e econômica, no restante do continente. Há outros países como o México, por exemplo, que, ainda que quisessem, não conseguiriam fazer o mesmo. Na região do mundo em que se situa o México, o país mais importante em economia, território, população, são os Estados Unidos, que lhe tomaram, em ato de guerra, boa parte do território. Além do vizinho do norte, que projeta sobre ele esmagadora influência, o México só faz fronteira com Belize e Guatemala, duas pequenas nações, do ponto de vista territorial e demográfico, que não pertencem ao Nafta, e são incapazes de se aliar a ele em qualquer tipo de alternativa geopolítica ou econômica. Além do Mercosul, e da Unasul, a influência brasileira se exerce, do ponto de vista global, no Brics, a aliança que nos une à Rússia, China, Índia, e África­ do Sul, países que têm, como característica, ser – como o Brasil –, cada um à sua maneira, o mais poderoso em suas respectivas regiões. No âmbito do Brics, se negociarmos, com inteligência, com os chineses, a criação de joint ventures industriais, meio a meio, para o atendimento ao nosso mercado interno, evitaremos que todo o lucro tome, todos os anos, o caminho do exterior, como ocorre com as multinacionais instaladas no Brasil, que são majoritariamente europeias e norte-americanas. Com a Rússia, e com nossos outros sócios, como os chineses e indianos, podemos aprender a explorar o espaço, como já estamos fazendo, construindo, de igual para igual, satélites como os CBERS sino-brasileiros. Com a Índia, podemos aprender em matéria de software e da capacitação maciça de engenheiros na área de TI. Com todos eles podemos desenvolver e produzir armamento para defender, se necessário, o quinto território do mundo, e as riquezas da Amazônia Azul, que se escondem em nossas águas do Atlântico.

LONGE DO CONTROLE NORTEAMERICANO Além do Mercosul, a aproximação com a Índia, Rússia, China e África do Sul são as únicas alianças que podem oferecer ao Brasil uma posição de relevância nas próximas décadas. Na foto, encontro dos chefes de Estado do Brics, em São Petesburgo, em 2013


ROBERTO STUCKERT FILHO/PR

Obtendo a tecnologia de ponta, na área de defesa, que sempre nos foi negada pelos europeus e norte-americanos. Afinal, se Índia, China e Rússia fossem nações atrasadas, estudantes e cientistas desses países não estariam à frente das maiores descobertas científicas realizadas nos últimos anos, no “ocidente”. Nem venceriam, como estão fazendo os chineses e suas universidades, as maiores competições acadêmicas internacionais. Na economia, a única região do mundo em que ainda temos competitividade em manufatura – o que se deve também ao protecionismo norte-americano e da União Europeia – é a América Latina, e, mais especialmente, a América do Sul. Apresentar a Aliança do Pacífico como contraponto ao Mercosul, que nos deu mais de US$ 50 bilhões em superávit nos últimos dez anos, é uma balela. O México só sobrevive por estar na fronteira sul dos Estados Unidos, o maior mercado do mundo. Fazer um acordo de livre comércio com os Estados Unidos não nos aproximaria nem um centímetro a mais de suas fronteiras, que continuariam a milhares de quilômetros e tão distantes de nossos produtos como estão agora. Nossos salários são muito maiores que os do México. Crescemos mais que eles nos últimos dez anos – incluindo 2013 – e somos superavitários com nações, como a China, que usam o México como plataforma de exportação, enquanto a indústria do país de Zapata teve com Pequim US$ 51 bilhões de prejuízo no último ano. Não existe seguro-desemprego no México. Sessenta por cento de sua população se encontra na informalidade, e ele é, segundo a própria OCDE, organização a que pertence, o país mais desigual das Américas. Ao contrário do México, exportamos mais para o Mercosul do que para os Estados Unidos, e é natural que o façamos, já que não temos fronteira com os Estados Unidos, mas dividimos as nossas com nove diferentes países sul-americanos.

Dizer que os Estados Unidos ou a Europa serão para nós mercados maiores que nossos vizinhos é ignorar a geografia e se burlar da história. Basta ver quantos contenciosos já tivemos com os Estados Unidos, devido a barreiras impostas por eles para nossos produtos, entre eles o aço, o etanol, o suco de laranja etc. Os acordos assinados entre a Rússia e a China, no dia 21 de maio, para cooperação científico-militar e a exportação de gás no valor de US$ 400 bilhões, mostram onde está o dinheiro, o poder e o futuro. Certamente, ele não está nem em uma Europa decadente, nem em um Estados Unidos que nada nos ofereceram de justo no passado, e que nos compram cada vez menos, sem nos dar um centavo de superávit. Recente levantamento, realizado pela agência inglesa Ipsus-Mori, em 20 grandes países, comprova isso. Segundo a pesquisa, os norte-americanos são mais pessimistas que os mexicanos, e na França só 7% da população considera que o mundo em que viverão seus filhos será melhor que o de agora. Depois, vêm os 13% de otimistas da Bélgica e os 16% da Espanha, enquanto os habitantes dos Brics são os mais confiantes, com 81% dos chineses, por exemplo, afirmando que o amanhã será muito melhor do que o presente. Nosso futuro está nos Brics, no qual seus quatro maiores membros se encontram – incluído o Brasil – por qualquer critério, entre as dez primeiras economias do mundo. O nosso destino, e principal opção estratégica, é fortalecer nossa cooperação com os vizinhos, e nos aliarmos à Rússia, Índia, China e África do Sul, na única aliança que nos pode oferecer um lugar no mundo nas próximas décadas. Ou assumimos isso – uma situação e uma atitude à altura de nossa história e geografia – ou partimos para a abjeta entrega, aos interesses europeus e norte-americanos, de nosso território, recursos, ­consumidores e do mercado sul-americano. REVISTA DO BRASIL

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TVT

Canal 2 NET Digital: São Paulo. Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

Quarenta anos de história

RÁDIOBRASILATUAL

ACERVO TVT

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apito da panela de pressão chiou pra valer, o ABC cruzou os braços, parou as máquinas e Vila Euclides gritou um redondo não. Invisíveis mas em busca de protagonismo, as mulheres metalúrgicas ali estiveram e também gritaram. E juntas, ousaram tomar das mãos dos patrões e dos homens seus próprios destinos, naquele que foi o 1º Congresso das Mulheres Metalúrgicas do ABC, realizado em 1978. Passados 36 anos, os sonhos, afetos e utopias daquelas trabalhadoras e de tantas outras pessoas que nos últimos 40 anos quebraram barreiras até então intransponíveis, ousaram questionar regimes e protagonizaram transformações sociais podem ser revividos no Memória TVT. O programa, com formato dinâmico, é mais que uma simples imersão em quatro décadas de história. Ao revelar ao telespectador imagens e sons de um chão de fábrica da década de 1970, a saga e a luta de extrativistas na Amazônia, como a de Chico Mendes, contra as pressões e ameaças daqueles que ignoram o sentido da vida e até mesmo o esculacho impregnado nas criações do cartunista Henfil em plena ditadura, é a oportunidade de olhar o passado na perspectiva da compreensão de erros

e acertos para fortalecer conquistas, efetivar direitos sociais e a consolidar a ainda jovem democracia brasileira. O Memória TVT é uma imersão nas histórias das últimas quatro décadas. Você pode assistir ao programa todas as quintas-feiras, às 20h45 pelo canal 46 UHF em Mogi das Cruzes; canal 13 da NET em Mogi das Cruzes; canal 2 da NET na cidade de São Paulo e pela internet em tvt.org.br

93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio

Futebol e música

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ma exposição no Sesc Pompeia, de 16 de maio a 13 de julho, que aborda a relação entre música popular e futebol, traz o acervo do radialista Beto Xavier, autor do livro Futebol no País da Música, lançado em 2009, resultado de quase 15 anos de pesquisa. Em entrevista a Oswaldo Colibri Vitta, ele dá detalhes desse casamento desde o 1 a 0 de Pixinguinha e Benedito Lacerda, composição que celebra o primeiro campeonato sul-americano conquistado pelo Brasil, em 1919, após duas prorrogações contra o Uruguai. “É um dos choros mais gravados da música brasileira”, diz. O casamento ocorreu também literalmente: o de Charles Miller, apontado co10

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mo o introdutor do futebol no Brasil, com a musicista Antonieta Rudge, “uma das melhores intérpretes de Chopin no mundo”. Segundo Beto, a ligação da música com a seleção brasileira começou em 1958, “para muitos o redescobrimento do Brasil como uma nação”. O livro fala, claro, do Pra Frente, Brasil de 1970, e do Voa, Canarinho gravado pelo então jogador Júnior em 1982, com 680 mil cópias vendidas. E lembra de clássicos como Geraldinos e Arquibaldos, de Gonzaguinha, autor ainda de Se o meu Time não fosse o Campeão, “uma das cinco melhores de todos os tempos”, gravada só pelo MPB-4. Até chegar ao período mais recente, citando, entre outras, Uma Partida de Futebol (do cruzeirense Samuel Rosa e do são-paulino Nando Reis), com o grupo Skank.


LALO LEAL

O jogo fora do campo

Dirigentes ávidos por recompensas econômicas e políticas seguem controlando um dos maiores negócios comerciais do planeta

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espira-se futebol nos ares brasileiros e o aroma traz memórias longínquas. A mais remota é de um final de tarde de domingo eu pai desliga o rádio de cabeceira e comenta: “O Brasil perdeu”. A data: 16 de julho de 1950. Nas páginas dos jornais e nas cabeças dos cartolas aquela Copa já estava ganha antes da final. O jogo com o Uruguai era só para comemorar o título e deu no que deu. Flávio Costa, técnico da seleção, concluiu: “O futebol brasileiro só evolui do túnel para dentro do campo”. A nova derrota, quatro anos depois, na Suíça, confirmou a impressão de que o nosso futebol necessitava de mudanças drásticas em sua organização. As medidas tomadas deram certo e o resultado veio com a conquista brilhante na Suécia, em 1958, repetida sem tanto brilhantismo no Chile, em 1962. A euforia dessas vitórias dava o tri na Inglaterra como favas contadas. Os apetites dos eternos aproveitadores voltaram à tona. Todos queriam tirar uma casquinha. Um exemplo: para contentar o maior número possível de clubes foram convocados para a fase preparatória 44 jogadores. Depois, como só podiam ir 22, escolheram dez do Rio, dez de São Paulo (os principais centros do futebol no país), um de Minas Gerais e outro do Rio Grande do Sul (estados em ascensão futebolística). Critérios de convocação político-geográficos. Com esse tipo de organização não passamos das oitavas. Lembro das fisionomias abatidas de Djalma Santos, Gilmar, Bellini, Zito e Garrincha, machucados, assistindo das cadeiras, ao lado da tribuna de imprensa, a derrota diante de Portugal, em Liverpool. A volta ao Brasil foi emblemática. Encontrei a delegação no aeroporto de Londres, pronta para embarcar. Viríamos juntos num voo da Varig. Minutos antes da partida somos chamados para um ônibus que nos leva a Brigthon, cidade turística localizada a cerca de 100 quilômetros da capital. Lá é servido um demorado almoço seguido de um retorno sem pressa para o aeroporto. Tudo para que as chegadas no

Rio e em São Paulo ocorressem durante a madrugada, o mais longe possível da ira dos torcedores brasileiros. Como já ocorrera após a derrota na Suíça, a remodelação foi total e a seleção se recupera de maneira grandiosa com a conquista no México, em 1970. Seguimos assim, com grandes sucessos e profundas decepções, até chegarmos à Copa de hoje. Saem do túnel para o gramado jogadores de alta qualidade técnica num conjunto, às vezes, primoroso. Fora do campo nada mudou. Dirigentes ávidos por recompensas econômicas e políticas seguem controlando um dos maiores negócios comerciais do planeta A grande diferença neste 2014 é que está sendo possível separar, pelo menos para análise, o que se passa no campo dos malfeitos administrativos. Para isso, a contribuição de jornalistas brasileiros e estrangeiros, fazendo investigações e publicando livros, tem sido determinante. Cito dois exemplos, entre outras importantes publicações: Um Jogo cada vez Mais Sujo, do jornalista inglês Andrew Jennings, e O Lado Sujo do Futebol, dos brasileiros Luiz Carlos Azenha, Leandro Cipoloni, Amauri Ribeiro Jr. e Tony Chastinet. Documentam as falcatruas milionárias perpetradas pelos dirigentes do futebol. No centro de muitas delas estão os acertos para garantir a determinadas emissoras de televisão os direitos de transmissão dos jogos. São negócios bilionários que permitem à Fifa, por exemplo, manter uma reserva de US$ 1,3 bilhão na Suíça, mesmo sendo uma organização sem fins lucrativos. Só da Copa da África do Sul a entidade levou livres de impostos US$ 2,35 bilhões. Guardadas as proporções várias federações nacionais seguem no mesmo padrão. Basta ver os salários pagos pela CBF aos seus dirigentes. Ao mesmo tempo o meia Alex, do Coritiba, um dos lideres do Bom Senso F.C., lembra que depois do final dos campeonatos estaduais cerca de 500 jogadores ficaram desempregados. A esperança é de que uma nova vitória brasileira – diferente das outras – não iniba as mudanças urgentes de que necessita o futebol do campo para fora. REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

O mercado faz suas apostas Assim como em 2002, preferência ou rejeição em torno de candidaturas alimenta onda especulativa. O país está ruim assim? Por Vitor Nuzzi

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nício de maio, meio de semana, começa a circular um boato sobre pesquisa do instituto Datafolha que indicaria queda nas intenções de voto da presidenta Dilma Rousseff. A pesquisa nem havia começado – e depois acabaria indicando estabilidade em vez de queda –, mas bastou para o principal índice da Bolsa de Valores de São Paulo acelerar. Assim tem sido nos últimos meses. O mercado financeiro abriu as apostas, marcadamente em nomes identificados com a oposição e em propostas no rumo da flexibilização de regras. A enxurrada de notícias e informações, não raro, atropela análises mais ponderadas. Um momento semelhante ao de 2002, quando o chamado “risco Lula” expunha o então candidato como uma ameaça para o equilíbrio econômico. Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo,­a comparação é clara. “Os mercados tendem a exagerar no movimento de preço. Havia um clima de pessimismo, como está sendo colocado agora. O Lula estava sendo ameaçado de ser deposto três meses depois (de eleito). Claramente, o clima era esse”, recorda. A explicação é relativamente simples: “Os mercados são 12

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insanos. Não têm fundamentos, são essencialmente especulativos.” Tanto Belluzzo como o professor de Ética e Filosofia Política Renato Janine Ribeiro, da Universidade de São Paulo (USP), referem-se ao termo “antropoformização” para se referir ao mercado, que no noticiário surge como um ser vivo, demonstrando reações emocionais. “Por um lado, o mercado é apresentado como um grande agente de racionalidade. Mas é curioso que existe esse conjunto de metáforas que apresenta o mercado como nervoso”, diz Janine, para quem as duas leituras possíveis no atual discurso econômico (governista e oposicionista) contêm elementos ideológicos.

Estratégia

Nervoso, mas que sabe o que quer. “O investidor é avesso a mudanças bruscas”, diz o analista Raphael Figueiredo, da Clear­Corretora. Há uma tentativa de impor no preço uma expectativa futura. Essa decisão tem de ser rápida, emocional. O impacto vai ganhando cada vez mais peso quando se enxerga naquele candidato, ou grupo de candidatos, um cenário de menor tranquilidade. Ele tenta prote-


ECONOMIA

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ECONOMIA

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CAPAS DE 2009 E 2013

ceirização” a partir de 1990: notícias sobre reformas, privatizações, impostos, gastos públicos, arrecadação, câmbios, juros estiveram sempre em evidência. Temas sociais – como investimentos em saneamento básico, transportes públicos e habitação – nunca foram destaque. Uma das conclusões: “Ideias e opiniões que não condiziam com o pensamento neoliberal praticamente não apareceram nas notícias econômicas”. “É um fenômeno internacional”, afirma o professor Antônio Corrêa de Lacerda, do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, um dos entrevistados no livro. “À medida que houve a globalização, há uma tendência de as finanças influenciarem as próprias economias, governos, mídia. No caso brasileiro, tenho a impressão de que isso é mais forte”, diz Lacerda, observando que os bancos, em particular, têm “departamentos bem estruturados que fornecem análises para a mídia, de excelente qualidade e de fácil digestão para o jornalista”. O resultado é que se vê uma visão “meio consensual”, que às vezes excluem o contraponto, representado pelo setor produtivo e pelos trabalhadores. “O mercado financeiro é, por natureza, especulativo. Num ano eleitoral, isso se torna mais forte. A melhor maneira seria ter fontes qualificadas de outros segmentos da sociedade. Você teria um debate mais qualificado.” Lacerda diz sempre recomendar a entidades empresariais que seus departamentos econômicos tenham atuação mais incisiva na mídia. Isso também vale para as entidades de trabalhadores. Ele observa que, da forma como é apresentado, o noticiário pode transmitir a impressão de que a economia se mostra pior do que realmente está. “Na verdade, não há um balanceamento entre os vários aspectos que deveriam ser levados em conta, como desemprego baixo, aumento da renda, o fato de ser um país dos que mais recebem investimentos estrangeiros no setor produtivo. Você vê muito uso do off (decla08/04/2013

ger sua estratégia e coloca no preço essa expectativa”, acrescenta, distinguindo ­visões de curto e longo prazo, resultando em conflito que leva ao movimento especulativo. Algo que pode partir do nada. Em 13 de maio, lembra Figueiredo, bastou uma declaração do presidente do PT, Rui Falcão, sobre controle de capitais, para “assustar” o mercado. “Um rumor vai sendo criado de forma GUIA LIBERAL The Economist fez campanha muito intensa. Em poucos minutos, contra o ministro Guido Mantega e a favor de o mercado tende a embutir no preço.” Aécio Neves e Eduardo Campos Também para o analista, o clima atual lembra 2002, quando se dizia que, vencendo Lula, haveria descontrole de gastos públicos e calote no pagamento de juros da dívida, entre outros perigos. “Existia o risco Lula, o mercado era avesso ao Lula e o mercado cresceu. No histórico recente, é um governo que tem intervindo mais na economia.” A questão é se a economia, ou o país, vai tão mal assim. Os consensos, diz Belluzzo, trazem avaliações nem sempre corretas. E observadores detectam que o noticiário dá ênfase, principalmente, a temas de interesse do mercado financeiro. O assunto chamou, inclusive, a atenção de uma jornalista habituada à cobertura econômica, Paula Puliti, que no ano passado publicou um livro a respeito do assunto (O Juro da Notícia – Jornalismo econômico pautado pelo capital financeiro), resulta- REFERÊNCIA O Financial Times reverencia do de uma tese de doutorado orien- Margaret Thatcher quando a ex-primeira ministra morreu, em 2013: defesa dos livres mercados, tada, na USP, pelo professor B ­ ernardo inclusive no Brasil Kucinski. Segundo ela descreve, nos últimos anos o noticiário tem sido dominado pelo chamado discurso de pensamento único. ver crescimento econômico sustentável e distribuição da renda, colocando fim às Retórica desigualdades sociais de forma científi“No Brasil, a retórica neoliberal con- ca e apolítica”, escreve a jornalista. Essa quistou os jornais em parte por influên- “financeirização” do noticiário também cia da imprensa estrangeira, mas em es- teve como consequência afastar o leitor cala muito maior por conta do discurso comum, que não via relação do noticiáestrategicamente preparado e veiculado rio com seus cotidianos. Em seu trabalho, a pesquisadora fez, por banqueiros, executivos de empresas, economistas e acadêmicos alinhados por exemplo, uma análise tendo como com a forma neoliberal de ver o mundo, amostra um período de 14 anos (1989que para eles é a única capaz de promo- 2002), mostrando a ênfase na “finan-


GERARDO LAZZARI/RBA

ECONOMIA

EXAGEROS Belluzzo: “Os mercados são insanos. Não têm fundamentos, são essencialmente especulativos”

rações sem identificação da fonte) como instrumento. Alguém disse que o mercado pensa assim, e aquilo vira uma verdade.”

‘Ronronando’

Professor da PUC e da Universidade Metodista de São Paulo, José Salvador Faro identifica uma “tendência ideológica” dos noticiários, mas ressalva que sua observação, como leitor, não é linear. “Percebo que há cadernos de economia com boas matérias de política econômica, como no Estado de S. Paulo, que transcende um pouco a posição ideológica do Estadão. O Valor traz excelentes matérias de análise”, comenta. Mas o ponto de vista de que o mercado deve ser o regulador da economia não causa dúvida de que aparenta um discurso único. “A orientação editorial é pró-mercado, e há um discurso econômico muito hermético, um noticiário para iniciados.” A questão se estende ao próprio ensino, acredita Faro. “As escolas de jornalismo não ensinam. Grande parte do leitorado fica fora da compreensão dessas

questões.” O problema se estenderia à formação de economistas, acrescenta o professor. Ele cita artigo publicado no Valor Econômico que chamava a atenção justamente para o fato de as faculdades, em determinado momento, terem abandonado o estudo de algumas linhas de pensamento, menos monetaristas. “Se todo mundo fala a mesma coisa, os jornais acabam sendo homogêneos”, constata. Porta-voz do pensamento liberal, a revista britânica The Economist, que algumas vezes tentou “derrubar” o ministro da Fazenda, Guido Mantega, publicou recentemente um texto elogioso aos principais pré-candidatos de oposição, Aécio Neves e Eduardo Campos. “Empresários e banqueiros saem ronronando de encontros com os dois homens”, diz a publicação, que não deixa de citar resultados importantes do governo Dilma Rousseff, como as baixas taxas de desemprego e o crescimento da renda. O também britânico Financial Times reforçou o coro das reformas, ao sustentar que as preocupações generalizadas no país estão começando a empurrar o debate “para uma direção amigável ao mercado”, o que, para o jornalão, só

pode ser “uma coisa boa”. Por sua vez, analistas brasileiros já vêm batendo insistentemente na tecla dos “ajustes” e das “medidas impopulares” – identificadas com Aécio, o que provocou abalos na aparente união entre as candidaturas antigoverno. Tanto Campos como a vice Marina já procuraram demarcar territórios em relação aos tucanos. Com essa ênfase na cobertura financeira e a proximidade das eleições, terá o chamado mercado escolhido seus candidatos? A lógica indica que sim. “O mercado não dá preferência a partidos, mas a um ambiente de mais estabilidade. Corre para o lado político que transmita esse ambiente. Não vai vestir uma bandeira”, diz o analista Raphael­Figueiredo. “O modelo de negócio do investidor embute entre suas variáveis o fator risco. E tem o fator risco político, que não é mensurável.” Renato Janine vê debate eleitoral em aberto, à medida que ninguém ainda definiu as “mudanças”, demanda que aparece nas pesquisas. “Ao menos a discussão moralista não está surgindo. Prefiro uma discussão sobre economia a uma discussão sobre aborto.” Mas ainda há problemas no debate político, avalia. “Eles ficam brigando pelo terço que já está convencido. Parece que as pessoas esqueceram que quem decide a eleição são os indecisos.” Para o professor Lacerda, está se formando certo consenso pró-oposição. “Mas uma coisa é o que o mercado pensa e outra o que a sociedade pensa.” Belluzzo não vê “importância” nos candidatos do ponto de vsita do mercado. “Eles já foram capturados”, afirma. Com isso, ele diz que o debate vai sendo dominado por uma visão restrita, considerando apenas fatores como inflação, superávit fiscal, câmbio. Dentro disso, análises que defendem que mesmo uma alta da taxa de desemprego pode valer a pena. “Criam um clima de catástrofe. O debate econômico hoje está muito centrado nessa tentativa de apresentar as coisas piores do que estão. Isso já faz parte da luta eleitoral mesmo. Eles (mercado) exigem uma fidelidade canina.” E vão sempre lembrar de quem aparentemente se opõe. “Eles nunca aprendem nada, mas também não esquecem de nada.” REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Política industrial é discutir o modelo de país Dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC destaca importância de programas que combinem produção, tecnologia e ambiente, para dar sustentação à economia Por Vitor Nuzzi

Há um sinal amarelo na indústria automobilística?

Atravessamos uma crise porque o ABC é um polo muito forte de produção automotiva. Ford, Mercedes e Scania enfrentam dificuldades no setor de caminhões. Já na Volks a dificuldade está no fim da produção da Kombi e do Gol geração 4. Lógico que temos uma expectativa de retomada do setor, principalmente após a Copa do Mundo, mas isso exige uma negociação maior. Por enquanto discutimos com o governo federal o programa de renovação da frota de caminhões, que começa com 30 mil uni16

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ADONIS GUERRA/SMABC

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setor automobilístico reduziu a marcha, atingido por fatores estruturais (reestruturação produtiva em várias fábricas) e conjunturais (queda das exportações para a Argentina, estrangulamento dos programas de financiamento governamentais, aumento do IPI). Uma das regiões mais atingidas pela redução das vendas foi o ABC paulista, onde a ameaça ao emprego na categoria levou o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC a fechar acordos emergenciais para garantir postos de trabalho nas fábricas. Lay-off (suspensão do contrato de trabalho), férias coletivas, semanas curtas, banco de horas foram alguns dos mecanismos adotados. Ao mesmo tempo, a entidade abriu negociações com o governo federal e empresários em busca de uma política industrial para o setor. Na opinião do diretor do sindicato Teonílio Monteiro da Costa, o Barba, 55 anos, na base há 29 (entrou na Volkswagen em 1985 e na Ford em 1990), o debate passa por uma discussão mais profunda sobre o modelo de país. “Conseguimos uma articulação maior com setores empresariais e o próprio governo tem mostrado disposição de fazer isso”, comenta.

O governo federal nos ouviu e criou um regime que pode absorver empresas produtoras e torná-las fabricantes de veículos, desde que invistam em pesquisa, engenharia, tecnologia... dades financiadas por ano. Se conseguirmos fechar esse acordo, com certeza teremos um plus na produção. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC propõe a renovação da frota há algum tempo para o segmento de veículos...

Se fizermos as 30 mil unidades adicionais, levaria uns dez anos para substituir apenas os 309 mil caminhões com mais de 30 anos de idade que circulam no Brasil. Ainda existem outros 429 mil com mais de 20 anos... Por isso considero esse projeto, que surgiu de uma articulação com o setor empresarial, avançado. O caminhão velho, que causa grande número de acidentes e forte impacto na saúde pública pela alta emissão de gases poluentes, será desmontado e virar sucata, matéria-prima. Vejo esse debate de maneira otimista. A experiência começa com caminhão e podemos estender para outros setores.


ENTREVISTA

Desde o início dos anos 1990 o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC propõe programas de política industrial. Vocês acham que essa discussão é mais fácil de ser feita hoje?

Na questão da política industrial, este governo nos ouviu e nos recebeu quando fizemos o debate do programa Inovar Auto, o novo regime automotivo que está em curso dentro do Programa Brasil Maior. O governo federal nos ouviu e criou um regime que pode absorver empresas produtoras e torná-las fabricantes de veículos, desde que invistam em pesquisa, engenharia, tecnologia, inovação, ferramentas e ferramentaria. O Inovar Auto criou ainda um programa de conteúdo regional, determinando que todos os carros fabricados tenham 60% de peças nacionais. Isso dá um impulso ao setor de autopeças, que teve no ano passado um déficit comercial de quase US$ 10 bilhões. Agora, em 2014, foi assinado decreto que permite rastrear todo o conteúdo de peças nacionais que vão no veículo. São programas de política industrial. É uma ação do governo federal, e os estados não estão entrando. As montadoras eram resistentes à transferência de tecnologia para o Brasil. Algo mudou?

O período de 2013 a 2017 é extremamente importante para a implantação de tudo isso. O Brasil é hoje um grande montador de automóveis, mas não um produtor, um fabricante. Com o Inovar Auto isso muda. Entre 2013 e 2017 deve ocorrer a efetivação e o ajuste do programa, tanto com as montadoras como no setor de autopeças. E o governo poderá implementá-lo em outros setores como máquinas ou estamparia, para que a indústria de transformação aumente a sua participação no PIB, que hoje está em torno de 14,6%. O ideal é chegar a 25%, 27%. Você só consegue isso em longo prazo. Vocês veem a política de desonerações dos últimos anos como paliativo?

Foram medidas extremamente importantes. O que temos de entender? Parte do PIB é puxada pela indústria. Se o setor produtivo enfrenta uma recessão muito forte, cai a renda de todos os trabalhadores do país, no setor público e privado. A queda impacta na arrecadação. Quando o governo reduziu o IPI de setores como o automotivo, linha branca, construção civil e químico, adotou medidas corretas no momento correto. Antigamente o uso da palavra pacto em relação aos acordos de política industrial era quase ofensivo. Diziam que as empresas, ou o governo, entravam com a corda e o trabalhador, com o pescoço. Isso mudou?

Não fizemos pacto com as empresas. Esse acordo nasceu de um processo de mobilização iniciado pela CUT com um ato em São Paulo, no dia 6 de julho de 2011, que reuniu mais de 10 mil trabalhadores. Dois dias depois, os metalúrgicos do ABC (ligados à CUT) e de São Paulo (Força Sindical) colocaram mais de 30 mil trabalhadores na (rodovia) Anchieta para fazer os empresários e a presidenta receberem nossa pauta e discutir política industrial. Entendemos que é preciso discutir investimentos, qual o modelo de produção, qual modelo de país nós queremos. Isso é parte de uma luta, não foi construído assim porque as empresas são boazinhas. Parte das matrizes, por exemplo, foi contra o acordo, chamaram de protecionismo, moveram ações contra o Brasil na ­Organização Mundial do Comércio. Não houve pacto, houve a iniciativa de um sindicato que ousa discutir além da questão corporativa da categoria, ousa discutir política industrial, sistema financeiro, sistema de proteção ao emprego. Entendo que isso faz parte da luta do movimento sindical, das centrais. Essa é a nossa visão. Quem usar esse discurso de pacto está totalmente equivocado, vai fazer só o discurso da negação. Nós cumprimos o que entendemos ser a obrigação do sindicato: combinar mobilização, luta, organização e negociação. As atenções nas eleições que se aproximam não estão muito concentradas no Executivo, deixando em segundo plano o Legislativo, onde as representações dos trabalhadores são pequenas em relação às dos empresários?

Nós, trabalhadores, temos de participar do processo político. É uma disputa de correlação de forças, de interesses. É uma luta extremamente importante, que não pode ser só dos partidos. Não posso confiar que o PSDB defenda o interesse dos trabalhadores, não é característica dele. Não basta eleger a presidenta ou o presidente da República, o prefeito, o governador, e não eleger uma boa bancada de parlamentares. Não podemos eleger deputados interessados em defender a terceirização ou que o Brasil se transforme apenas num grande exportador de grãos. O Brasil é a sétima economia do mundo hoje. Temos condições de ser a sexta, a quinta. Mas só se faz isso com desenvolvimento e organização política. A eleição é o momento mais importante da vida do país. Precisamos crescer distribuindo renda, terra, resolvendo problemas básicos, como saúde pública de boa qualidade, educação, segurança pública, transporte público, saneamento básico e habitação. Essa é uma pauta que os partidos de esquerda têm de abraçar. Leia íntegra da entrevista no www.redebrasilatual.com.br

Não posso confiar que o PSDB defenda o interesse dos trabalhadores, não é característica dele. Não basta eleger a presidenta ou o presidente da República, o prefeito, o governador, e não eleger uma boa bancada de parlamentares. Não podemos eleger deputados interessados em defender a terceirização ou que o Brasil se transforme apenas num grande exportador de grãos

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É possível humanizar a globalização?

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x-presidente da CUT, o professor João Felício foi confirmado em 23 de maio para o comando da Confederação Sindical Internacional (CSI), maior entidade global de trabalhadores, com representação em mais de 160 países. Primeiro dirigente das Américas a ocupar o comando da CSI, formada em 2006, ele lembra que a globalização foi acompanhada de mais concentração de riqueza e que esse é um dos desafios do movimento sindical. “É preciso que haja mais lutas internacionais”, diz ele. Na fundação da CSI, em 2006, o slogan era “humanizar a globalização”. Logo depois, em 2008, veio a crise financeira. A globalização é humanizável?

Considero difícil. A globalização atende muito mais ao interesse do capital. Não que defendamos que cada país fique isolado, é importante ter relações comerciais, culturais, mas também relações sociais, quando você procura garantir direitos de forma global. A luta central que tem de ocorrer é por direitos. Não concordamos e nunca tivemos simpatia por tratados de comércio que não levem em consideração a garantia de direitos, desenvolvimento, a soberania de cada país. Tal como tem se dado, a globalização não respeita nada disso. Com a crise recente, os ricos ficaram mais ricos. Talvez tenha sido o período nos últimos 20 anos que se acentuaram relações comerciais, as transnacionais se expandiram, e houve o período de maior concentração de riqueza da história. A crise de 2008 não levou a uma distribuição de renda, ao contrário. Esse talvez seja um dos grandes desafios do movimento sindical internacional. 18

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DINO SANTOS/CUT

Primeiro representante das Américas a presidir a maior central sindical internacional, João Felício avalia que hoje os trabalhadores estão na defensiva Por Vitor Nuzzi

O Brasil é um dos poucos países onde não houve reforma trabalhista e onde não caiu a taxa de sindicalização, um dos poucos onde houve distribuição de renda e a classe trabalhadora melhorou de vida

Nesse processo de internacionalização, as empresas foram mais ágeis do que o movimento sindical?

Sem dúvida. Eles se unificam muito mais, são mais unidos na exploração, têm recursos para isso, se expandem com facilidade e têm uma coisa que nós não temos: o apoio da maioria dos governos. Na imensa maioria dos países, há sempre uma parceria do governo com o capital, e geralmente contra nós. Geralmente a unidade é entre eles, o que demonstra que a maioria dos governos está a serviço de uma única classe social. Ao se constatar isso, a facilidade de o capital se deslocar e impor a sua lógica e sua hegemonia é muito maior. O Brasil é um dos poucos países onde não houve reforma trabalhista e onde não caiu a taxa de sindicalização, um dos poucos onde houve distribuição de renda e a classe trabalhadora melhorou de vida. Eu não tenho nenhum receio de dizer que os governos perderam uma grande oportunidade de controlar o setor financeiro, que até hoje vive


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numa libertinagem total. Causaram a pior crise da história, e os governos não tiveram força política para impor um controle. Socorreram o sistema financeiro, sugaram as contas públicas. Estão fazendo as reformas em cima de quem? Do funcionalismo público, trabalhadores. Quando a gente, algum tempo atrás, falava em luta de classes, tinha sempre alguém que dizia que esse discurso era atrasado. O que está acontecendo no mundo hoje é a mais cabal demonstração de que a luta de classes existe, e como disse um ricaço americano recentemente, existe e eles estão vencendo. Toda aquela fase espetacular, a melhor fase da história, os anos 50, 60, até os 70, acabou. O Estado do bem-estar social...

De acúmulo de direitos, que teve influência no nosso país. Tudo isso está tendo um fim. O movimento sindical está tendo de se adaptar. Nesse sentido, o debate sobre projetos, papel do Estado, é importantíssimo. O movimento sindical não pode apresentar uma pauta de reivindicação trabalhista, imediata, sem debater o mundo em que a gente vive, que sociedade a gente quer. Se a gente não debater esses assuntos, seremos sempre presa fácil do capital. O que pode mudar em termos de política da CSI daqui para a frente? Pode mudar o eixo das políticas, ou globalmente você tem de pensar em estratégias gerais?

A CSI é uma organização que eu diria progressista. A análise feita tem muito apoio nosso, nos identificamos dentro da CSI com suas resoluções. E ela tem de ser a média, tem de expressar a vontade de suas filiadas, que tem matizes ideológicos diferenciados, entidades mais à esquerda e mais conservadoras. Ela tem de ter muito jogo de cintura. Acho que o congresso e as decisões têm conseguido estabelecer essa unidade ideológica. A segunda coisa: não é que a CSI está precisando de uma mudança, ela precisa combinar melhor entre o lobby que é feito nos organismos internacionais – pressão política na OIT, na OMC, no G20 –, onde a gente atua com desenvoltura e competência, mas precisa combinar isso com a concretização das ações que são decididas em suas instâncias. Sei que isso não depende somente dela, e eu quero contribuir muito nessa área. Não basta adotar uma resolução sobre determinado assunto e orientarmos as filiadas que as ações são fundamentais. É preciso construir as ações, sensibilizar as centrais em cada país. Se a gente quiser concretizar aquilo que a esquerda sempre falou, que a classe operária é internacional, é preciso ter mais lutas internacionais. Qual é a luta que a gente faz com eficiência? É a luta pelo trabalho decente. Mas é necessário que não sejam

resoluções “orientativas”, mas que você adota e espera que a sua base esteja concretizando. E isso eu sei que não depende só da CSI. Não adianta a direção ter vontade política se você não consegue sensibilizar sua base filiada. É preciso um diálogo mais eficiente, estimular que cada central saia de seu mundo, de suas ações pelo país. Não vamos resolver os problemas com ações fragmentadas. Acho que a CSI tem posições corretas, mas está faltando.... Porque o capital derruba fronteiras com muita facilidade. Determina sua lógica, compra governos, e nós ficamos na defensiva, na luta em cada país. A OIT hoje é um aliado. Em 2012, vocês conseguiram eleger o Guy Ryder como diretor-geral. Houve uma mudança de política, ou lá também dentro das Nações Unidas é uma instituição que carece de força?

A eleição do Guy Ryder foi uma grande novidade na OIT. Nunca um sindicalista tinha chegado a ocupar o cargo máximo. E a CUT teve uma participação importante na eleição dele. Quem elege é o conselho de administração: são 28 votos de governo, 14 de trabalhadores e 14 de empresários. Ninguém consegue se eleger sem apoio de parte dos governos. Na reta final, ficaram um empresário francês (Gilles de Robien) e o Guy Ryder. Conseguimos garantir o apoio de todos os governos da América Latina. Foi um tremendo avanço. A OIT é o único organismo internacional em que temos direito de participação. E achamos que as convenções da OIT são convenções que procuram humanizar o mundo do trabalho, procuram normatizar o mundo do trabalho para que ele tenha relações respeitosas. Por causa disso, por ser o único organismo em que temos o direito de falar, ela sofre um brutal ataque por parte de governos conservadores. Alguns países querem diminuir o papel dela, querem que ela apenas oriente, sem acompanhar, sem fiscalizar. E aí é o mundo da selvageria. Essa pressão política de alguns governos conservadores e do capital já existia antes da eleição do Guy Ryder. Com a eleição dele, se acentuou. Querem tirar o poder normativo dela, transformá-la numa ONG de baixíssima eficiência. Grandes potências, inclusive?

O orçamento da OIT, a maior fatia, quem mais paga é o governo americano. Não interessa para o governo americano ter uma OIT forte, com a total desregulamentação que existe no mercado de trabalho daquele país. Leia a íntegra da entrevista no site da Rede Brasil Atual

Não adianta a direção ter vontade política se você não consegue sensibilizar sua base filiada. É preciso um diálogo mais eficiente, estimular que cada central saia de seu mundo, de suas ações pelo país. Não vamos resolver os problemas com ações fragmentadas

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“Por mi pueblo en lucha, vivo. Con mi pueblo en marcha, voy”

Aos 86 anos, dom Pedro Casaldáliga segue enfrentando ameaças, o sistema político, o agronegócio, os impérios. Em nome da esperança, se apresenta como soldado de uma causa invencível Por Sônia Oddi e Celso Maldos

JOAN GUERRERO

Eucaristia fraterna e subversiva

ão Félix do Araguaia, nordeste mato-grossense, 10 de maio de 2014. Numa pequena capela, no fundo do quintal, uma oração inaugura o dia na casa do bispo emérito de São Félix, dom Pedro Casaldáliga. A simplicidade da arquitetura ganha força com o significado dos objetos ali dispostos. No altar, uma toalha com grafismos indígenas. Na parede, um relevo do mapa da África Crucificada, um Cristo rústico no crucifixo, uma cerâmica de mãe que protege seu filho com um braço e carrega um pote no outro. No chão de cimento, bancos feitos de toras de madeira, que lembram aqueles de buriti, usados pelos Xavante, em uma competição tradicional, em que duas equipes se enfrentam numa corrida de revezamento, carregando as toras nos ombros, demonstração de resistência e força, qualidades de um povo conhecido por suas habilidades guerreiras. Cercada de plantas, a luz entra por todas as faces das tímidas e incompletas paredes. Nesse ambiente orgânico, assim como tem sido a vida de Pedro, os amigos se aninham para tomar parte da oração. José Maria Concepción, companheiro de Pedro de longa data, e recém-chegado da Espanha, inicia a leitura: “1795: José Leonardo Chirino, mestiço, lidera a insurreição de Coro, Venezuela, com índios e negros lutando pela liberdade dos escravos e a eliminação de impostos. 1985: Irne García e Gustavo Chamorro, mártires da justiça. Guanabanal, Colômbia. 1986: Josimo Morais Tavares, padre, assassinado pelo latifúndio. Imperatriz, Maranhão, Brasil” Os martírios lembrados referem-se àquela data, 10 de maio. Inúmeros outros, centenas deles, são e serão lembrados ao longo de todo o ano, de acordo com a Agenda Latino-Americana. E continua: “2013: Ríos Montt, ex-ditador guatemalteco, condenado a 80 anos de prisão por genocídio e crimes contra a humanidade. A Comissão da Verdade calcula que ele cometeu 800 assassinatos por mês, nos 17 meses em que governou, depois de um golpe de Estado.” O jovem padre Felipe Cruz, agostiniano, de origem pernambucana, conduz um canto, a reza do pai-nosso e a leitura de uma passagem da edição pastoral da Bíblia. O encerramento se dá com a Oração da Irmandade dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, escrita por REVISTA DO BRASIL

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dom Pedro, onde na última linha pode-se ler “Amém, Axé, Awere, Aleluia!”, em respeito à diversidade de crenças do povo brasileiro. Em nome desse respeito, dom Pedro nunca celebrou uma missa na Terra Indígena Marãiwatsédé, dos Xavante, comunidade que desde sempre contou com o seu apoio na luta pela retomada da terra, de onde haviam sido deportados em 1968 e para onde começaram a retornar em 2004. “Se o bispo está aqui celebrando a missa, significa que nós estamos em pleno direito aqui. E, por orientação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e da igreja da Prelazia, ele, pessoalmente, não fez nenhuma celebração na reserva”, testemunha José Maria. Por apoiar a luta quase cinquentenária dos povos originários daquela região de Mato Grosso, Pedro foi ameaçado de morte algumas vezes. Na última, no final de 2012, quando o processo de desintrusão (medida legal para efetivar a posse) dos fazendeiros e posseiros da TI (terra indígena) Marãiwatsédé avançava e se efetivava, decorrente da determinação da Justiça e do governo federal, ele teve de se ausentar de São Félix. Perseguições, ameaças de morte e processos de expulsão do país têm marcado a trajetória de Pedro, que chegou à longínqua região do Araguaia, como missionário claretiano, em 1968, aos 40 anos. De origem catalã, ele nasceu em 1928 – e aos 8 anos teve sua primeira experiência com o martírio, quando um irmão de sua mãe, padre, foi assassinado quando a Espanha estava mergulhada em uma sangrenta guerra civil. A Prelazia de São Félix, uma divisão geográfica da Igreja Católica, foi criada em 1969 e abrange 15 municípios: Santa Cruz do Xingu, São José do Xingu, Vila Rica, Santa Terezinha, Luciara, Novo Santo Antônio, Bom Jesus do Araguaia, Confresa, Porto Alegre do Norte, Canabrava do Norte, Serra Nova Dourada, Alto Boa Vista, Ribeirão Cascalheira, Querência e São Félix do Araguaia. Atualmente, conta com uma população estimada em 135 mil habitantes, uma área aproximada de 102 mil quilômetros quadrados e 22 chamadas paróquias. 22

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CELSO MALDOS

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SEM PAREDES Uma oração na capela, no fundo do quintal, inaugura o dia na casa de Pedro

Pedro, em meio às distâncias, encontrou um povo carente, sofrido, abandonado, à mercê das ameaças dos grandes proprietários criadores de gado. Os pobres do Evangelho, a quem havia escolhido dedicar a sua vida, estavam ali. Em 1971, pelas mãos de dom Tomás Balduíno (que morreu em maio último, aos 91 anos) foi sagrado bispo da prelazia. A partir de 2005, quando renunciou, recebeu o título de bispo emérito. Um dos fundadores da Teologia da Libertação, o seu engajamento nas lutas dos ribeirinhos, indígenas e camponeses incomodou os latifundiários e a ditadura. Ainda hoje, incomoda os homens ricos e poderosos do Centro-Oeste brasileiro. A política dos incentivos fiscais, levada a cabo pelos militares, por meio da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), foi o berço do agronegócio. E também dos conflitos advindos da expropriação da terra das populações ori-

ginárias, da exploração da mão de obra, do trabalho escravo e toda sorte de violências, que indignou o missionário Pedro e o fez escolher do lado de quem estaria. “O direito dos povos indígenas são interesses que contestam a política oficial”, diz dom Pedro. “São culturas contrárias ao capitalismo neoliberal e às exigências das empresas de mineração, das madeireiras. Os povos indígenas reivindicam uma atuação respeitosa e ecológica.” Em plena ditadura, nos anos 1970, fundou, junto com dom Tomás Balduíno, o Cimi e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), como resposta à grave situação dos trabalhadores rurais, indígenas, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia. Ainda nesse período, em 1976, presenciou o assassinato do padre João Bosco Burnier, baleado na nuca quando ambos defendiam duas mulheres que eram torturadas em uma delegacia de Ribeirão Cascalheira (MT).


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PORTAS ABERTAS Raimundo passa e entra emocionado para pedir a bênção

FOTOS SÔNIA ODDI

TIJOLOS APARENTES a casa é simples...

PARCERIA Frei Paulo acompanha Dom Pedro nas leituras diárias das cartas e notícias

...mas repleta de significados

Pedro faz seções de fisioterapia algumas vezes na semana. Aos 86 anos, e com o Parkinson diagnosticado há cerca de 30, esse cuidado se faz necessário para minimizar os avanços do mal que provoca atrofia muscular e tremores. Ele segue disciplinadamente uma dieta alimentar, o que de certa maneira retardou, mas não cessou, segundo seu médico, o avanço da doença. A disciplina se repete na leitura diária de e-mails, notícias, artigos, acompanhado mais frequentemente por frei Paulo, agostiniano, que assim como dom Pedro tem sempre as portas abertas para moradores da comunidade e viajantes. Durante a visita da Revista do Brasil, por exemplo, há uma pausa para acolher Raimundo, homem alto, pardo, magro que, aflito, emocionado, de joelhos, pedia a sua bênção. A casa é simples, de tijolos aparentes, sem acabamento nas paredes. Porém, tal como a capela no fundo do quintal, é ple-

Em 1994, dom Pedro apoiou a revolta de Chiapas, no México, afirmando que quando o povo pega em armas deve ser respeitado e compreendido. Em 1999, publicou a Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba. Fala com convicção da importância da unidade latino-americana, idealizada por Simon Bolívar (17831830) e defendida pelo ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013). “Eu dizia que o Brasil era pouco latino-americano, a língua comum dos povos castelhanos fez com que o Brasil se sentisse um pouco à parte do resto”, diz dom Pedro. “Por outro lado, o Brasil tem umas condições de hegemonia que provocava nos outros povos uma atitude de desconfiança. Hugo Chávez fez uma proposta otimista, militante, apelando para o espírito de Bolívar, com isso se conseguiu vitórias interessantes, como impedir a vitória da Alca.” Ele recorda de um encontro com o ex-

na de significados e ícones que atestam o compromisso com as causas humanas, de quem vive sob aquele teto.

Che, Jesus, Milton

No quarto, na salinha, na cozinha, no alpendre dos fundos, no escritório, um devaneio para os olhos e para o coração. Imagens de significados diversos: Che Guevara, Jesus Cristo, Milton Nascimento, padre João Bosco Burnier, dom Hélder Câmara, monsenhor Romero, Pablo Neruda. Textos de Martín Fierro, São Francisco de Assis, Joan Maragall, Exodus. Pôsteres da Missa dos Quilombos, da Romaria dos Mártires da Caminhada, da Semana da Terra Padre Josimo. Calendários da Guerra de Canudos, de operários no 1º de Maio. E ainda fotos, pequenas lembranças e artefatos populares, em meio a estatuetas de prêmios recebidos. O seu compromisso com as causas populares extrapola as fronteiras do país.

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PERFIL

-presidente brasileiro. “Quando Lula esteve na assembleia da CNBB, estávamos nos despedindo, ele se aproximou de mim e me deu um abraço. E eu falei, vou te pedir três coisas. Primeiro, que não nos deixe cair na Alca, segunda, que não nos deixe cair na Alca, terceira, que não nos deixe cair na Alca. Só te peço isso”, conta, em referência a Área de Livre Comércio das Américas, ícone do neoliberalismo. “E realmente não entramos na Alca. Porque a América Latina tem de se salvar continentalmente, temos histórias comuns, os mesmos povos, as mesmas lutas, os mesmos carrascos. Os mesmos impérios sujeitando-nos, uma tradição de oligarquias vendidas. Tem sido sempre assim. Começavam com o império, o que submetia as oligarquias locais. Os exércitos e as forças de segurança garantiam uma segurança interesseira. Melhorou, inclusive os Estados Unidos não têm hoje o po-

der que tinham com respeito ao controle da América Latina. Somos menos americanos, para ser mais americanos.”

Esperança e diálogo

É preciso de todo jeito salvar a esperança, defende dom Pedro. “Insistir nas lutas locais, frente à globalização. Se somar as reivindicações, sentir como próprios, as lutas que estão acontecendo nos vários países da América Latina. El Salvador, Uruguai, Bolívia, Equador... Claramente são países muito próximos nas lutas sociais.” Há tempos dom Pedro Casaldáliga não concede entrevistas pela dificuldade que tem encontrado em conciliar a agilidade do raciocínio com o tempo possível da articulação das palavras. A ajuda de José Maria, seu amigo e conterrâneo, foi fundamental para a compreensão das pausadas e esforçadas falas, enquanto discorria

sobre assuntos por ele escolhidos. Otimista com a atuação do papa Francisco, ressalta que “ele fez gestos emblemáticos, muito significativos”. “A Teologia da Libertação se sentiu respaldada por ele. Tem valorizado as Comunidades Eclesiais de Base, com o objetivo de uma Igreja pobre para os pobres. Estimulou o diálogo com outras igrejas... Chama a atenção nele o diálogo com o mundo muçulmano e com o mundo judeu, e agora essa visita a Israel... Muito significativa. Desmantelou todo o aparato eclesiástico, seus colaboradores tiveram de se adaptar.” Ele reconhece as limitações que o sistema político impõe à atuação do governo, que segundo dom Pedro tem “um pecado original”: as alianças. “Quando há alianças, há concessões e claudicações. Enquanto esses governos todos se submeterem ao capitalismo neoliberal teremos essas falhas graves. A política será sempre

A minissérie em dois capítulos de uma hora Descalço sobre a Terra Vermelha, baseada em livro homônimo do jornalista catalão Francesc (Paco) Escribano, é uma produção da TVE (Educativa da Espanha), da TV3 da Catalunha, da produtora Minoria Absoluta, da TV Brasil e da produtora paulista Raiz Produções Cinematográficas. Descalço sobre a Terra Vermelha estreou na TV3 em março e está programada para ser exibida na TV Brasil no segundo semestre. Trata da vida de dom Pedro Casaldáliga, desde sua chegada ao Brasil até sua visita ad Limina ao Vaticano, quando se apresentou ao Papa João Paulo II e ao conservador cardeal Joseph Ratzinger, então à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, herdeira da Santa Inquisição, onde deveria explicar sua ação teológica a favor dos pobres e dos oprimidos. O filme, uma belíssima e apurada produção, contou 24

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com a participação de mais de mil figurantes de povoados e das cidades de Luciara e São Félix do Araguaia, locais onde foram construídas verdadeiras cidades cenográficas, representando como eram esses lugares nos idos dos anos 1970. Dirigido por Oriol Ferrer, tendo Eduard Fernández, premiado ator catalão, no papel de Casaldáliga, contou com um elenco de ótimos atores espanhóis e brasileiros. Rodado como uma espécie de western teológico, retrata com grande força e sensibilidade a violência e tensão existentes, ainda hoje, nos conflitos entre latifundiários, invasores de terras indígenas, posseiros e a ação pastoral da Prelazia de São Félix que, tendo dom Pedro à frente, desde sempre esteve ao lado dos despossuídos. De acordo com a descrição que aparece no site da Minorita Absoluta, a série combina ação e misticismo “no cenário exuberante de

O ator catalão Eduard Fernández interpreta Dom Pedro no filme rodado no Brasil

Mato Grosso, em contraste com a paisagem humana e social chocante”. A história de Pedro Casaldáliga se desenvolve “em torno de valores universais”, no contexto da teoria filosófica e teológica da libertação e da situação geopolítica dos anos 1970, na ditadura brasileira. O jornalista e produtor executivo Francesc Escribano salienta que a produção se tornou “seu coração” para contar “uma história notável de um catalão

universal”. Durante o making of, impressionou como a historia e principalmente o próprio dom Pedro teve impacto na vida de todos os envolvidos na produção. Confirma a impressão que tive desde a primeira vez que viajei com ele, há mais de 30 anos: estar na sua presença é sentir-se na presença de um espirito muito elevado; sem exagero, um verdadeiro santo do povo. (Celso Maldos)

CELSO MALDOS

Descalço sobre a terra vermelha


PERFIL

Porto Alegre do Norte, 1978

Ribeirão Cascalheira, 1977

FOTOS CENTRO COMUNITÁRIO TIA IRENE

São Félix do Araguaia, 1971

COMPROMISSO Sagrado bispo pelas mãos de dom Tomás Balduíno, dom Pedro dedicou a vida ao povo da região do Araguaia

uma política condicionada. Tanto o Lula como a Dilma gostariam de governar a serviço do povo mesmo, mas as alianças fizeram com que os governos populares estivessem sempre condicionados”. Para ele, deve haver uma “atitude firme, quase revolucionária”, em relação a temas como saúde, educação e comunicação. Morto em março do ano passado, o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez é lembrado com determinação pelo religioso. “Ele tentou romper, rompeu o esquema. Por isso, a direita faz questão de queimar, queimar mesmo, a Venezuela. Nos diários e noticiários, a cada dia tem de aparecer alguma coisa negativa da Venezuela”.

Direitos indígenas x ruralistas

Ele aponta a “atualidade” da causa indígena, e as ameaças que não cessam. “Nunca como agora, se tem atacado tanto. Tem várias propostas para transformar a política que seria oficial, pela Constituição de 1988, que reconhece o direito dos povos indígenas de um modo muito explícito. Começam a surgir propostas para que seja o Congresso quem defina as demarcações das terras indígenas, sendo assim já sabemos como será a definição. A bancada ruralista é muito grande...”, observa dom Pedro. Por outro lado, prossegue, nunca os povos indígenas se organizaram como agora. E o país criou uma “espécie de consciência” em relação a essa causa. “Se querem impedir que haja uma estrutura oficial com respeito à política indígena, tentam suprimir organismos que estão a serviço dessas causas. Isso afeta os povos indígenas e o mundo rural . Tudo isso é afetado pelo agronegócio, o agronegócio é o que manda. E manda globalmente. Não é só

um problema do Mato Grosso, é um problema do país e do mundo todo. As multinacionais condicionam e impõem.” “A retomada da TI Marãiwatsédé é bonita e emblemática. Os Xavante foram constantes em defender os seus direitos. Quando foram expulsos, deportados – esta é a palavra, eles foram deportados –, seguiram vinculados a esse terreno, vinham todos os anos recolher pati, uma palmeira para fazer os enfeites. E reivindicavam sempre a terra onde estão enterrados nossos velhos. E foram sempre presentes”, testemunha. “Aqui, nós sempre recordamos que essa terra é dos Xavante, que esta terra é dos Xavante. Os moradores jovens, meninos, outro dia diziam – nossos vovôs contam que essa terra é dos índios, nossos papais contam que essa terra é dos índios.” A essa altura, dom Pedro lembra de “momentos difíceis” em que o Cimi se vê obrigado a contestar certas ações do governo. “Quando se diz que não há vontade política pelas causas indígenas, eu digo que há uma vontade contrária ao direito dos povos indígenas, isso é sistemático. A Dilma, eu não sei se se sentisse um pouco mais livre, respaldaria as causas indígenas. Alguns pensam que ela pessoalmente não sintoniza com a causa indígena. Tem sido criticada porque nunca recebeu os índios. Faz pouco foi o primeiro encontro com um grupo. Todos esses projetos de Belo Monte, as hidrelétricas. Se ela tem uma política desenvolvimentista, ela tem de desrespeitar o que a causa indígena exige: em primeiro lugar seria terra, território, demarcação, desintrusar os invasores. Seria também estimular as culturas indígenas e quilombolas”, diz, sem

meio-termo. “Se você está a favor dos índios, você está contra o sistema. Não adianta colocar panos quentes aí.” Dom Pedro defende a presença de sindicatos, mas critica o movimento. “Eles são a voz dessas reivindicações todas dos povos indígenas, do mundo operário. Na América Latina, estiveram muito bem os sindicatos, ultimamente vêm falhando bastante. Foram cooptados. Quando se vê um líder sindicalista transformado em deputado, senador, ele se despede”, afirma, vendo a Via Campesina como uma alternativa, por meio de alianças de grupos populares em vários países. “Daí voltamos à memória de Hugo Chávez, que estimulou essa participação”, observa. “De ordinário acontece que antes as únicas vozes que os operários tinham eram o sindicato e o partido. Nos últimos anos, tanto o partido como o sindicato perderam representatividade. Em parte foram substituídos por associações, alguns movimentos. Mas continuam sendo válidos. Os sindicatos e partidos são instrumentos conaturais a essas causas do povo operário, camponês.” Para fazer campanha eleitoral, todo candidato operário a deputado, senador, tem de “claudicar” em algum aspecto, acredita dom Pedro. “Por isso, é melhor que não se candidate. Por outra parte, não se pode negar completamente a função dos partidos e dos sindicatos. Não é realista, ainda continuam sendo espaços que se deve preencher.” Lúcido, Pedro conclui a conversa lembrando a frase de um soldado que lutava contra a ditadura franquista na Guerra Civil Espanhola: “Somos soldados derrotados de uma causa invencível”. REVISTA DO BRASIL

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Idosos, pessoas doentes ou com deficiências cognitivas esperam para serem encontradas por suas famílias. Que nem sempre estão à procura Por Marcelo Santos

Os esquecidos “N ão sei se ela ainda está me procurando e nem o que faria se a encontrasse hoje. Gostaria apenas de manter contato”, lamenta o gráfico aposentado Claudio Gaspar, de 62 anos, ao referir-se à filha Alexsandra, de 42, que não vê há mais de uma década. Seu sorriso largo, voz tranquila e gestos elegantes não deixam transparecer nenhum sinal de amargura pelo passado ou solavancos da vida. “Eu me sinto bem aqui.” Há dez anos ele vive no Lar Bom Repouso, uma instituição assistencial espírita de São Caetano do Sul, no ABC paulista. Lá ele é conhecido como “o jornalista”. Recebe refeições, acolhida e uma cama num quarto com outras dezenas de pessoas. Claudio trabalhou para muitas revistas e jornais. Mas sua atividade foi sendo, aos poucos, engolida pela tecnologia. Após anos revisando e diagramando, uma atrofia no nervo 26

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ocular enfraqueceu seu atento olhar. Não pôde mais ler os textos – o que lhe causa grande tristeza – e sua situação econômica piorou. A morte da esposa, em 1999, o fez “perder o rumo” de vez. A antiga casa, onde vivia na zona leste da capital paulista com a mulher e a filha, passou a ser habitada por fantasmas. “Eu via a imagem dela em todo o lugar. Decidi sair e fui morar num barraco de uma favela próxima, na Vila Nhocuné.” A filha mudou-se também, mas para Curitiba, onde casou e teve dois filhos. Desde então, nunca mais a viu. Em 2004, ele foi encontrado sozinho no barraco, já quase sem vida, castigado por uma tuberculose. Ficou internado por três meses. “O médico me disse que rasgou duas vezes meu atestado de óbito”, ri, enquanto ouve da assistente social Aladia Rodrigues explicações por não ter conseguido ainda encontrar sua filha. “Ela provavelmente não mora mais no Paraná. Aí o fio da meada se rompeu”, conclui Claudio.


SOCIEDADE

FOTOS PAULO PEPE/RBA

SOZINHA Lázara vive num centro especial para idosos na Casa Verde, em São Paulo

Aladia realiza um trabalho difícil. A casa, fundada em 1974 pelo casal de industriais do setor têxtil Margherita Biasi Corsi, 72, e José Carlos Corsi, 71, possui quatro pavimentos e acolhe pouco mais de 130 homens, público majoritariamente formado por pessoas com deficiências cognitivas, idosos e sem vínculo familiar. “Creio que 90% não possuem nenhum tipo de contato com as famílias”, observa. Para encontrar os parentes, a assistente social usa a internet, faz buscas nas redes sociais, em cartórios eleitorais e delegacias. Foi assim que, após cinco meses de investigação, encontrou, por acaso, os familiares do metalúrgico Mauricio Medina Maciel, de 55, anos. Vitima de esquizofrenia, perda de memória e sem nenhum documento, Mauricio desapareceu de sua casa em Mauá, também no ABC, no mês de março de 2005, vestindo calça jeans, blusa e tênis azul. Após vagar pelas ruas, chegou ao abrigo espírita em 2007. Cinco anos mais tarde a assistente social encontrou um sobrenome parecido na lista telefônica e resolveu arriscar. Era o de sua casa. A comoção do outro lado da linha foi enorme. “Elas achavam que ele já estivesse morto.” A família foi visitá-lo, festejou, mas não puderam levá-lo de volta ao que ele insiste em chamar de “seu próprio castelo”, um sobrado construído por ele quando ainda estava bem de saúde. “Sua ex-esposa já havia se casado novamente e, além disso, sua irmã tinha um filho com deficiência mental e que precisava de muitos cuidados. Não tinham como assumi-lo.” Mauricio, então, permaneceu no Bom Repouso. Lá cantarola pelos corredores e recebe, ocasionalmente, visita dos irmãos e do filho.

Procura-se

No site da Polícia Civil paulista, ao lado de nomes

e fotos de desaparecidos, há outra lista. A de pessoas em abrigos que estão à procura de suas famílias. São mais de 200 perfis. Vítimas de acidentes, pessoas com dificuldades cognitivas e idosos. A Secretaria estadual da Saúde de São Paulo mantém um número ainda maior. São quase 700 pacientes não identificados em unidades de saúde. Gente que aguarda ser resgatada por algum rosto familiar. Segundo o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 2003), no seu artigo 98, abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado pode resultar em detenção de seis meses a três anos e multa. Mesmo assim, no Hospital Estadual Geriátrico Eduardo Rabello, no município do Rio de Janeiro, cerca de 7% dos pacientes que já receberam alta hospitalar não podem deixar a unidade de saúde por não ter para onde ir. “Em alguns casos os pacientes foram internados por familiares que deixaram informações, como telefone ou endereço, inverídicas. Essas pessoas não são localizadas depois, quando o idoso recebe a alta”, denuncia o diretor geral da instituição, o médico Edson Mendes Nunes. “Eu acredito que o abandono se repita nas outras unidades geriátricas.” Além das doenças emocionais, causadas pelo abandono, o período de internação hospitalar ­desnecessário pode resultar em novas infecções. “O hospital é um ambiente insalubre para quem não precisa estar ali. E também ficamos impedidos de abrir novas vagas para outros pacientes que estão necessitando do atendimento.” Quando isso ocorre, o departamento de serviço social do Hospital Eduardo Rabello recebe a tarefa de tentar localizar as famílias e cobrá-las de suas responsabilidades. Se não houver resultados, o caso segue ao Ministério Público. Ainda segundo o Estatuto do Idoso, é o Ministério Público o responsável por acionar os eventuais responsáveis e também dar uma destinação adequada ao idoso desamparado.

Apoio às famílias

“ME SINTO BEM AQUI” Claudio Gaspar, 62 anos, vive em uma casa de repouso e não vê a filha há mais de dez anos

De acordo com Marisa Accioly Rodrigues da Costa Domingues, docente no curso de Gerontologia da Universidade de São Paulo (USP), o abandono “não acontece apenas nessa fase mais longeva, mas vem de muitos anos de dificuldades e esgarçamento das relações, que se agravam ao ponto de, quando há necessidade do idoso contar com a família, essa já não o reconhece”. Assistente social de formação, tendo atuado por vários anos no Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP, Marisa acredita que se houvesse maior apoio REVISTA DO BRASIL

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às famílias, o resultado seria menos dramático. “Algumas estão pedindo socorro. Se tivessem algum tipo de ajuda, não abandonariam. Mas essas pessoas não têm, muitas vezes, nem condições de cuidar da vida delas. Então vão deixando os idosos nas instituições, as visitas vão rareando e, por fim, acontece o abandono.” Como exemplo de boas ações, a professora cita o Programa Acompanhante de Idosos (PAI), da prefeitura de São Paulo. Os idosos vinculados às Unidades Básicas de Saúde (UBSs) recebem até cinco visitas de acompanhantes, que têm a responsabilidade de ajudar nas tarefas cotidianas, como fazer compras, ir ao médico ou nalguma atividade doméstica. O atendimento já atinge 2,5 mil pessoas na cidade. “O cuidado melhora, as pessoas se sentem acolhidas e há uma resposta positiva. Não resolve 100% dos casos. Nem todos seguem o mesmo padrão. Mas costuma ser uma forma melhor de atendimento, fazendo com que o idoso fique mais tempo em sua casa, sem a necessidade de utilizar equipamentos para longa permanência”, explica a pesquisadora. Ela destaca ainda outras iniciativas, como o Núcleo de Atendimento Domiciliar (Nadi), do Hospital das Clínicas da USP, e o Programa de Atendimento Domiciliar (Padi), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A cidade de São Paulo dispõe de seis Centros de Acolhida Especial para Idosos, com abrigamento provisório para 670 pessoas e outras nove instituições de Longa Permanência (Ilpis), com mais 300 vagas pela capital, onde não há prazo para ir embora. Na Casa Verde, zona norte, 60 idosos se dividem entre o abrigo provisório e o de longa permanência, que se avizinham, sendo separados apenas por um portão de ferro. Há seis meses, ali é o lar da aposentada e ex-empregada doméstica Lázara Rodrigues de Lima, de 69 anos. Solteira, sem filhos e adotada por um casal já falecido, ela passou os últimos anos vivendo com dois cachorros numa casa alugada próxima dali, onde desenvolveu o hábito de acumular objetos. “O pessoal falou que eu juntava muita coisa em casa, mas não era isso. Eu só pegava na rua o que achava que poderia servir.” Entre 28

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INICIATIVA PESSOAL José Carlos e Margherita, do Lar Bom Repouso: atendimento a pessoas com deficiências cognitivas

ENCONTRADO Maciel não quis abandonar o “seu castelo”

os achados, uma coleção de livros que hoje serve de distração a ela e outros moradores do local. Lázara conta que foi morar, ainda na infância, com uma família adotiva em Jacutinga, sul de Minas Gerais. Sua mãe natural era muito pobre e não tinha condições de cuidar dela e de seu irmão mais velho, que foi entregue a um orfanato, o Lar Américo Prado. “Ele ia me ver, subia num morrinho, me beijava e dizia: ‘Olha a minha irmã!’ Esse era o Geraldo Rodrigues de Lima.”


BRIGAS Alipio, 66 anos, se desentendeu com a família e foi para um centro de acolhida: “Queria que Victor e Leo ouvissem minha música”

trabalho como representante comercial. Sua família, que se mudou para Curitiba, não sabe onde ele está. Ele também, admite, prefere não ser localizado. “Não tenho nem fotos delas. Não sei o que é dia dos pais ou Natal. Sinto falta da minha filha mais nova, que casou e mora no Canadá. Se ela me chamasse para ir para lá, eu não pensaria duas vezes.” O Centro de Acolhida onde está Alipio funciona há um ano. “Atendemos idosos que possuem um pouco mais de independência. Mas eles só podem ficar até o prazo máximo de um ano e meio”, explica a gerente de serviço e gerontóloga Tatiane Andrade, de 27 anos. “São pessoas que estão com o vínculo familiar rompido, às vezes nem totalmente, mas já não conseguem morar mais com os familiares.”

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Reencontro

A aposentada conta que ‘ouvia histórias’ de que sua mãe teria se mudado para Santos, no litoral sul paulista, onde namorou um imigrante japonês, dono de uma lanchonete. “Eu devo ter irmãos japoneses também”, ri, divertindo-se da sorte. “Eu me lembro de toda a minha família. Tem muita gente lá em Jacutinga. Mas ninguém sabe que estou aqui. Eu gostaria de ver meus primos, tias e meu irmão, que já deve estar bem velho.” No prédio ao lado, onde funciona o Centro de Acolhida Especial para Idosos, mora Alipio Mendes da Silva, de 66 anos. É o músico do local, sempre dedilhando seu violão. “Queria que Victor e Leo (dupla sertaneja) ouvissem minha música.” Ao contrário de sua vizinha, Lázara, Alipio teve uma vida econômica pregressa mais tranquila. Foi casado e teve três filhas, até que uma desavença pôs fim ao casamento de 15 anos, um acidente lhe tirou a firmeza nas pernas, obrigando a se amparar numa muleta e a doença e consequente morte da mãe o fez gastar tudo que tinha. Já são 11 anos sem teto. “Vim de outro equipamento, não tão bom como esse. Aqui é bem melhor, com uma estrutura equalizada mediante aos fatores das pessoas que têm uma idade mais avançada”, diz, demonstrando a erudição conquistada pelas duas faculdades cursadas e o

Nem todas as histórias têm final triste. O vendedorJosé Carlos Laguna, de 57, saiu de sua casa em Campina Grande do Sul (PR), em janeiro de 1990, quando tinha 34 anos. Deixou para trás a família perplexa, principalmente sua mãe, Iracema Laguna, que morreu em 2012 sem nunca aceitar o sumiço do filho. “Ela dizia que a gente ainda o encontraria. Pena que morreu antes de ver realizado seu sonho.” No ano passado, em outubro, a família Laguna recebeu um telefonema do Abrigo Cristo Redentor, em São Gonçalo (RJ). Entre os 200 asilados do pioneiro abrigo a trabalhar gratuitamente com idosos, estava um tal “Carlos Caloi, de 70 anos”, mas que desconfiavam se tratar do desaparecido José Carlos. Uma foto foi encaminhada para o e-mail da família, no Sul. “Eu sei que homem não chora, mas não teve jeito”, conta o pedreiro Antonio Carlos, de 54, irmão de José. Ele e outro irmão foram até o Rio de Janeiro, onde resgataram José Carlos. “Ele não sabe dizer por onde andou, mas deu para perceber que sofreu nas ruas. Uma de suas orelhas tinha sido cortada. Ele acha que ainda tem 17 anos”, conta Antonio. Foi na juventude que José Carlos viveu seus melhores dias. Despontava como habilidoso meiaesquerda nos campos de futebol de Curitiba. “Isso foi antes dos vícios no álcool, da perda de memória. Ele teve muitas oportunidades de ser profissional. Jogou até contra o Atlético Paranaense”. Para celebrar o reencontro foi organizado um churrasco no início desse ano, num bar onde costumavam se reunir no passado. Amigos de longa data tocavam pagode e, entre abraços e afetos, José Carlos sentia-se, enfim, em casa. “É uma história triste, porque minha mãe sofreu muito. Mas ficamos muito felizes ao encontrá-lo de novo.”

MAURÍCIO BAZÍLIO/DIVULGAÇÃO SES

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ABANDONO Edson Nunes: “Em alguns casos os pacientes foram internados por familiares que deixaram informações, como telefone de contato ou endereço, inverídicas”

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Salvos, mas não ilesos Quatro anos depois, o cinema reconstitui o drama dos 33 trabalhadores chilenos que ficaram debaixo da terra durante 69 dias. Maioria está doente, e os responsáveis não foram acusados Por Cida de Oliveira

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epois de um forte estrondo, toneladas de terra e pedra são despejadas sobre um túnel. Quando a densa nuvem de poeira se dissipa e os trabalhadores percebem que estão presos no interior da mina, vem o desespero. “Estamos enterrados vivos”, grita Antonio Banderas, em cena gravada no começo do ano para o filme Os 33, em fase de finalização. 30

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Previsto para estrear em 2015 no festival de Cannes, na França, o longa é dirigido pela mexicana Patricia Riggen, de Sob a mesma Lua (2007), tem produção do norte-americano Mike Medavoy, o mesmo de Cisne Negro (2011) e roteiro assinado pelo porto-riquenho José Rivera, de Diários de Motocicleta (2003). No elenco, a francesa Juliette Binoche, vencedora do Oscar pelo papel em O Paciente Inglês (1996), e o brasileiro Rodrigo Santoro, de

Carandiru e 300, entre outros. A produção, de primeira, tem a pretensão de levar para as telas o drama de 33 trabalhadores e suas famílias, que na vida real protagonizaram uma das maiores tragédias da história da mineração em todo o mundo. Na tarde de 5 de agosto de 2010, uma pedra de 700 toneladas, equivalente ao tamanho de duas torres Eiffel, bloqueou a única saída da mina de cobre e ouro San José, em Copiapó, na região do


MUNDO

NA TELONA A saga dos 33 mineiros de San José estreará ano que vem, durante o festival de Cannes

CLAUDIO REYES/EFE

IAN SALAS/EFE

O BOMBEIRO DO INFERNO Elisabeth e María Segovia, irmãs do mineiro Darío Segovia aguardam a saída do irmão. María (abaixo) ficou conhecida por sua determinação durante o resgate

deserto do Atacama, no norte do Chile. Ao longo de 17 dias, até que fossem descobertos pela equipe de resgate, os mineiros com idades entre 19 e 64 anos dividiam pequenas porções de atum e leite encontrados em um abrigo. Como contariam depois, em entrevistas, recearam enfrentar a mesma situação dos sobreviventes uruguaios do acidente aéreo ocorrido nos Andes, em 1972, que não tiveram outra alternativa senão se alimentar da carne dos próprios amigos mortos. Em um domingo, dia 22 de agosto, em meio a um fio de esperança dos familiares apesar de todas as evidências, o então presidente Sebastián Piñera anunciou que os trabalhadores estavam vivos. Diante das câmeras de TV, exibiu um bilhete trazido à tona por uma sonda instalada pelo resgate: “Estamos bien en el refugio los 33”, escrito por José Ojeda. Desde então, como num reality show, o drama passou a ser transmitido pela TV para todo o mundo. Os trabalhadores foram transformados em heróis capazes de sobreviver em condições extremas, quando não passavam de vítimas de um grave acidente que por pouco não custou suas vidas e que por mais de duas semanas o deixaram perdidos no centro da terra, morrendo aos poucos de fome, chegando ao ponto de escrever cartas de despedida. “Estávamos na antessala da morte. Eu esperava por ela e estava tranquilo. Sa-

bia que a qualquer momento as luzes se apagariam e seria uma morte digna”, diria meses depois Mario Sepúlveda, interpretado por Antonio Banderas, ao jornalista britânico Jonathan Franklin, autor de Os 33 – A milagrosa sobrevivência e o dramático resgate dos mineiros no Chile. “Preparei meu capacete, minhas coisas, vesti o cinto e arrumei as botas. Queria morrer como um mineiro. Caso me encontrassem, o fariam dignamente, com a cabeça erguida.” A apuração exemplar das causas do acidente, a cobrança por fiscalização e melhores condições de segurança e trabalho num setor tão perigoso, mutilante e letal como a mineração – promessas de Piñera à época – perderam espaço para a cobertura dos preparativos do resgate espetacular, que mesmo com tecnologia da Agência Espacial Americana, a Nasa, poderia falhar numa região sujeita a terremotos.

Tragédia anunciada

“A transmissão ao vivo do resgate como um espetáculo obscureceu a tragédia trabalhista e as expressões dos próprios trabalhadores sobre o trauma, a precarização do trabalho, o enfraquecimento dos sindicatos e a ausência do Estado nas questões trabalhistas”, afirma a professora de Estudos Ibéricos e Latinoamericanos Else Vieira, da Queen Mary Universidade de Londres, em artigo que contrapõe a ênfase no resgate como um capítulo nobre da história política chilena às condições de trabalho na mineração, a principal atividade econômica do país. Ela destaca o depoimento de Yessica Chilla, companheira do trabalhador Darío Segovia, o “bombeiro do inferno”, que apagava pequenas chamas na mina, que marca a certeza de que o colapso ocorreria a qualquer momento. “No dia anterior ao acidente, ele me disse que a mina estava a ponto de sofrer um ajuste, e que ele preferia não estar no turno em que o desmoronamento acontecesse. Mas precisávamos do dinheiro. Seu turno terminara, mas ofereceram horas extras.” Maria, irmã de Segovia, que pela firmeza ficou conhecida como a “prefeita” do acampamento dos familiares até o final do resgate, será interpretada por Juliette Binoche. REVISTA DO BRASIL

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Ojeda, ambos ao documentáda San José por mais de dez rio Os 33: Com os pés na terra. anos, o presidente da regional Copiapó da CUT do ChiUma investigação do Congresso do Chile, encaminhale, Javier Castillo Julio, aponta da pela Confederação Mineiainda o descuido do Serviço ra Chilena, já tinha constatado Nacional de Inspeção de Minas. Em 2002, o sindicato dos que a mina San José nunca teve uma saída de emergência, mineiros fez um filme que já obrigatória pelas leis do pa- Castillo, da CUT: advertia para práticas inseguís, assim como escadas de fu- más condições ras de trabalho e os riscos de e ga nas chaminés, que além de continuam, desmoronamento devido a espetáculo da mídia fornecer oxigênio deve ser distorce a realidade um grande acidente na mina uma segunda via de escape San Antonio, na mesma monem caso de desmoronamento dos túneis. tanha, em 2003. Em vão, foram encamiA confederação já tinha denunciado, du- nhados documentos e relatórios para os rante anos, que a escada da San José es- donos da San José. tava decrépita e que a segunda chaminé, O resgate foi seguido de manifestações além de não ter luzes, corria junto ao tú- de solidariedade, presentes, convites e nel principal, fazendo com que um úni- pedidos de entrevista cada vez menores co acidente destruísse simultaneamente com o passar do tempo. Três anos depois as duas vias de saída. Assustadoramen- do acidente, em agosto de 2013, a fiscate perigosa, conforme a entidade, a mina lização chilena encerrou as investigações estava à beira de um colapso. sem apontar culpados por entender que Na sua batalha contra os proprietários não havia convicções suficientes sobre os LORENZO MOSCIA/WWW.THECLINIC.CL

Ainda segundo Else Vieira, a certeza do desabamento aumentava a poucas horas da tragédia, conforme o próprio mineiro. “Antes das 11 da manhã, eu sabia que a mina desabaria, mas eles nos enviaram para colocar redes de reforço. Nós sabíamos que o teto estava mal e que poderia cair”. A montanha estalou meia hora depois. Conforme o depoimento do próprio trabalhador a Jonathan Franklin, o chefe de operações mineiras, Carlos Pinilla, chegou a esclarecer que o barulho era um “ajuste normal da mina”, indo imediatamente para a superfície, deixando o local de trabalho mais cedo do que o costume. Houve então um segundo estalo e um terceiro. O desmoronamento começou, com camadas e mais camadas do túnel desabando. Às 16h, a mina tinha desmoronado totalmente. ”Nesse momento pensei que eu não voltaria a subir nunca mais”, disse Mario Gomez, o mais velho de todos, à época com 64 anos. “O que se vivia lá embaixo foi bem duro”, completou José

União e companheirismo Segundo a ser retirado da mina, Mario Sepúlveda ficou conhecido como Super Mario após o resgate dos trabalhadores chilenos. Para ele, mais importante que o acidente é a própria história deles, com a mensagem de união e companheirismo que os acompanhou durante todos os dias, à espera do salvamento. O que o acidente mudou na vida de vocês? Mudou nossas vidas por completo em todos os aspectos. Uma situação limite à beira da morte nos fez valorizar o dia a dia, nos faz pensar tanto no futuro como viver o presente valorizando as coisas essenciais e simples.

O acidente de San José deixou alguma lição? Hoje no Chile tem se avançado no tema segurança, mas nos falta muito. A lição que o Chile recebeu é que falta segurança e mais fiscalização. De todo modo o acidente incentivou melhorias, mas lamentavelmente, como podemos ver hoje, é insuficiente. Creem que a história está viva ou sendo esquecida? Lamentavelmente a memória é frágil, a gente se esquece. Mas com outros acidentes como este, o caso da Turquia, o tema volta a ressurgir e a gente volta a recordar e sentir de perto. Nosso acidente foi algo que marcou a todos e o mundo inteiro, mas que lamentavelmente com o tempo se esquece, já que é uma notícia que envelhece. Mas, nesse caso, se trata da história de nossas vidas e de um final feliz. 32

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FELIPE TRUEBA/EFE

Vocês foram indenizados? Até o momento não recebemos indenização correspondente. É uma luta que segue até o dia de hoje.

No filme, “Super” Mario é interpretado por Antonio Banderas

O que pensam sobre o filme? Até que ponto vai chamar atenção para o acidente? Levar às telas nosso acidente claramente fará reviver uma história que teve um final feliz e que foi uma lição de vida para todos. Não estamos acostumados a finais felizes. O filme poderá fazer a história ficar no tempo e ultrapassar fronteiras, mas o mais importante é nossa história, a mensagem, a união e companheirismo que nos levou adiante até o último dia.


HUGO INFANTE/GOVERNO DO CHILE

MUNDO

SÓ POSE O presidente Sebastián Piñera (à dir., com Luis Urzúa, o último a sair) manteve-se­­ à frente das câmeras durante o resgate, mas não cumpriu suas promessas

mas os acidentes com morte continuam”, lamenta Castillo, da CUT. Segundo ele, em geral, os trabalhadores assumem o próprio risco sob pena de perderem seus empregos. Apenas 13% dos mineiros são sindicalizados. Quatro anos depois do desmoronamento, os 33 estão longe de usufruir das benesses de celebridades que a mídia Carlos Barrios deixa a mina na cápsula de resgate

HUGO INFANTE/GOVERNO DO CHILE

responsáveis. Os proprietários, Alejandro Bohn e Marcelo Kemmeny, que em 2010 responsabilizaram os trabalhadores por não colocar as redes protetoras, foram desresponsabilizados pela falta de segurança. O gasto que tiveram foi pagar os custos do resgate. A decisão foi criticada até pelo ex-ministro Laurence Golborne, que no cinema será vivido por Rodrigo Santoro. “Para que houvesse condenação, era necessário sair dali um par de velhos mortos. Assim, não há prisão”, disse o mineiro Mario Sepúlveda. A partir de então, o mineiro Luis Urzúa, o chefe de turno no momento do acidente e que decidiu ser o último a deixar a mina, tenta protocolar uma representação à Organização Internacional do Trabalho (OIT). A tragédia não desencadeou medidas efetivas para a melhoria da segurança no trabalho no Chile. O Serviço Nacional de Geologia e Mineração, órgão do Ministério da Mineração, registrou em 2010 a morte de 45 mineiros enquanto trabalhavam. No ano seguinte, 29 mortos; em 2012, 25. E só entre janeiro e fevereiro de 2013 seis trabalhadores morreram. A maioria dos acidentes ocorre na região do Atacama, geralmente em minas de pequeno porte. As vítimas têm entre 20 e 30 anos e menos de três anos de casa. “A mineração chilena vai bem,

produziu. Tampouco se tornaram milionários, como muitos supõem, e esperam pelo pagamento dos direitos pelo filme. Aliás, a vida é bem diferente da rotina digna que tinham antes. Sepúlveda, o mais midiático desde o confinamento no interior da mina, com frequência é convidado para palestras e entrevistas. A maioria, no entanto, enfrenta problemas psiquiátricos, sofre com pesadelos e problemas de memória, conforme uma reportagem produzida pela BBC no final de janeiro. O acompanhamento especializado é feito por entidades privadas. Dos que conseguiram novos empregos em minas menores, alguns estão afastados por licença médica. Há quem não consiga trabalho justamente pelas condições de saúde mental. Das promessas feitas por Piñera em 2010, nada foi honrado, nem a ajuda em assistência social, treinamento e tratamento dentário para amenizar os danos causados pela água dos tanques subterrâneos. Recebem pensão (equivalente a R$ 500) apenas 14 dos mineiros, os mais velhos. O governo alega que faz a sua parte e que cabe à Justiça decidir sobre o pagamento de indenizações. Até a Fundação Os 33, criada após o resgate, está com atividades suspensas por falta de recursos. Como diz Castillo, “ninguém se preocupa com eles porque prevalece a premissa neoliberal de que o mundo oferece oportunidades e cada um deve agarrar a sua”. Enquanto o longa não chega aos cinemas, mais afeitos a aventuras de heróis em suas epopeias, quase sempre com final feliz, sobram expectativas. Castillo, que por 12 anos trabalhou no interior de uma mina, aprova a iniciativa dos cineas­tas por mostrar a fraternidade, união e companheirismo que mantiveram vivos 33 seres humanos, principalmente quando incomunicáveis. Mas lamenta a distorção da realidade por relatos equivocados. “Prevaleceu a ideia de que trabalhar em condições precárias, sem segurança, é opção dos mineiros, que aceitam a situação de bom grado porque habita dentro deles um herói disposto a enfrentar todas as circunstâncias para levar o pão para casa”, diz. “Não se trata de uma opção, mas sim de uma condição.” REVISTA DO BRASIL

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A vez do morro Jovens de comunidades combatem a exclusão simbólica dos mapas oficiais e digitais e se inserem na cartografia das cidades Por Xandra Stefanel 34

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“A

Rocinha é considerada bairro desde 1993, só que quando você olha no Google não tem nenhuma rua registrada, só aquelas ruas da entrada. Não tem a Laboriaux, não tem a rua da Caxopa, ruas tradicionais que todo mundo conhece. A Rocinha é conhecida internacionalmente e não tem nada no Google?”, questiona

o jovem jornalista comunitário Michel da Silva, morador desta que é uma das maiores e mais populosas favelas do Brasil, na zona sul do Rio de Janeiro. Em tempos que as ferramentas de busca pela internet e os sistemas de posicionamento global (ou GPS, da sigla em inglês) fazem cada vez mais parte do cotidiano de milhares de pessoas, o fato de não “existir” no mapa reforça o sentimento de exclusão


CIDADANIA

FRANCINE ALBERNAZ

FORA DO MAPA Michel da Silva: comunidades cariocas não têm registro cartográfico

ESSENCIAL Rocinha no Google Maps: falta o básico

já bem conhecido das populações carentes. Das 6.329 favelas identificadas pelo Censo Demográfico – Aglomerados Subnormais de 2010, do IBGE, boa parte não consta nos mapas. Ou seja, apesar de serem povoadas, aparecem como vazios cartográficos. É o que aborda o documentário Todo Mapa tem um Discurso, lançado no final de abril pelo Programa Rede Jovem. A organização, que existe desde 2000 e que usa a tecnologia para fins sociais, criou em 2009 o Wikimapa, um mapa virtual colaborativo voltado para o mapeamento de pontos de interesse e cartografias de ruas, becos e vielas de comunidades de baixa renda ainda excluídas das representações gráficas oficiais e digitais. “Em 2006, nós começamos a trabalhar integrando internet com o celular porque percebemos que o celular era uma ferramenta que também fazia parte da inclusão digital e que tinha uma capilaridade de uso muito maior que o computador. Conversando com os jovens, começamos a perceber que as ferramentas de geolocalização, principalmente o Google Maps, na maioria das vezes não eram nem conhecidas por quem morava dentro das favelas”, afirma a antropóloga e diretora estratégica do Programa Rede Jovem, Patrícia Azevedo.

GOOGLE

Segmentação

Naquela época, já era comum pesquisar endereços e trajetos em sistemas de geolocalização e a equipe do programa começou a questionar as razões que faziam com que os moradores de comunidades carenREVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

FERRAMENTA COLABORATIVA Wikimapa: mapa virtual para cartografias de ruas, becos e vielas de comunidades de baixa renda ainda excluídas das representações gráficas oficiais e digitais

tes não utilizassem este tipo de ferramenta. “A gente chegou à conclusão muito brevemente: a favela não estava representada dentro desses mapas. Eles eram mais um elemento de segmentação, que afastava a favela da cidade e criava outra barreira social para quem morava ali dentro. Nós vimos que todos os mapas que faziam alusão à favela eram mapas do tráfico, da milícia, da criminalidade... Eles destacavam sempre essas regiões a partir de algo negativo”, constata a antropóloga. Em cinco anos, a tecnologia social criada pelo Rede Jovem incluiu 11 comunidades no Wikimapa, dez delas no Rio de Janeiro e em Capão Redondo, na zona sul da capital paulista. A primeira foi o Morro de Santa Marta, no bairro de Botafogo, onde mora e trabalha o guia turístico Paulinho Otaviano. “O fato de não estar no mapa, para mim, é uma sensação excludente, de que a gente não faz parte da cidade, do roteiro tradicional. É uma coisa que a gente sabe que não é verdade. As favelas estão inseridas neste contexto e existe uma interação. Quem não mora na favela hoje pode subir tranquilo e quem é da favela participa do dia a dia da cidade”, opina Otaviano no documentário. O objetivo do Wikimapa é dar visibilidade aos potenciais locais e encurtar as distâncias entre a cidade e a favela, afinal, uma faz parte da outra. “Com relação à ausência dessas comunidades do mapa, a gente remete isso muito ao interesse econômico. Até pouco tempo atrás, não existia nenhum interesse econômico dentro dessas áreas, então não havia esforço para mapear essas regiões, o que vem mudan36

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DOCUMENTÁRIO O fato de não estar no mapa transmite uma sensação de exclusão


VALORES HISTÓRICOS A identidade, o pertencimento e a autoestima dos jovens que participam do projeto mudam

FOTOS FRANCINE ALBERNAZ

CIDADANIA

do a partir do aumento do poder aquisitivo dos moradores de favela. Hoje, várias empresas querem entrar nas comunidades, querem ter suas lojas e uma representação nestes lugares. Então isso vem mudando desde 2009,” aponta Patrícia. Além de toda a simbologia de fazer parte do mapa, também tem as questões práticas que podem ser conquistadas a partir da mobilização da sociedade. “É claro que precisa de muita articulação para efetivamente virar nome de rua e entrar nos mapas digitais... É algo muito maior do que o projeto Wikimapa pode alcançar. O documentário foi pensado no intuito de atravessar outras instituições que também têm um trabalho de mapeamento, pesquisadores e profissionais que pensam o território, a relação do espaço com a cidade e os direitos que estar no mapa pode trazer para aqueles moradores. O filme amplia a possibilidade de debate sobre o assunto porque nossa ideia é fazer exibições, promover encontros e discussões mais profundas”, afirma Thaís Inácio, que é uma das diretoras de Todo Mapa tem um Discurso, ao lado de Francine Albernaz. Depois de completado o circuito de exibição e debate, o documentário poderá ser assistido pela internet.

A DIREÇÃO CERTA Natalia e Patricia no Morro da Mangueira: o objetivo não é fazer o mapa da favela, mas inserir a favela no mapa com a participação da comunidade

Livre e colaborativo

O uso do prefixo wiki não é por acaso. O termo faz alusão ao uso de software ou aplicativo que permite a criação e edição de documentos na web de forma livre e colaborativa. “A questão wiki está na veia do projeto. A ideia é ser colaborativo, garantir que todo mundo produza conteúdo, insira conteúdo e que isso não passe por uma moderação”, explica a geógrafa e diretora executiva do Programa Rede Jovem, Natalia Aisengart. Segundo Patrícia Azevedo, o wiki-repórter é selecionado dentro da favela onde mora. “Selecionamos jovens que são articulados, comunicativos, que conhecem bem a comunidade e já têm alguma experiência com trabalhos sociais. Fazemos uma capacitação para que eles não só façam o mapeamento, mas principalmente que multipliquem esse conhecimento, que apresentem o Wikimapa para que outras pessoas também o façam. O wiki-repórter é um multiplicador, mas o sistema é aberto a qualquer pessoa e em qualquer lugar do mundo.” Os jovens fazem o treinamento e passam seis meses incluindo no mapa ruas, becos, vielas e estabelecimentos que acham significativos dentro de suas comunidades. “A principal mudança que nós vemos com os jovens que trabalham com a gente é a questão da valorização local e a autoestima deles com relação a onde moram. Eles passam a conhecer melhor as comunidades, abordam comerciantes, têm o mapeamento de ruas, procuram saber por que aquela rua recebeu aquele nome. Eles conhecem a história da sua própria comunidade e acabam se deparando com valores históricos e memórias que até então eles não tinham. A identidade, o pertencimento e a autoestima mudam”, garante Patrícia. Enfim, os jovens percebem que os mapeamentos não são dotados de neutralidade e objetividade. Fica evidente que, quando se inserem no mapa da cidade, o discurso cartográfico (e o sentimento) passa a ser de inclusão. Para conhecer e inserir comunidades no mapa: www.wikimapa.org.br REVISTA DO BRASIL

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URBANISMO NOVO SKYLINE A Freedom Tower, rebatizado de One World Trade Center, desponta no sul de Manhattan

Mania de

GRAND Onda de construção de arranha-céus mundo afora é cultivada por setores da arquitetura, com a desconfiança de ambientalistas e urbanistas, que temem a especulação e o caos Por Paulo Nogueira

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VANDER FORNAZIERI/RBA

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pesar do trauma coletivo, ninguém deu bola para a superstição, como a que leva tantos hotéis a pular do 12º para o 14º andar. Assim, 13 fatídicos anos depois daquele 11 de setembro está sendo inaugurado o One World Trade Center (OWTC), em Manhattan, onde ficavam as funestas Torres Gêmeas. Com 541 metros de altura, será o edifício mais alto do Ocidente, refletindo a tendência da arquitetura contemporânea de que o céu é o limite. O espigão mais alto do mundo – 828 metros – é o Burj Khalifa, em Dubai. Porém, num estalar dedos será inaugurada a Kingdom Tower, na Arábia Saudita: um quilômetro de altura. Enquanto isso, na China, quatro prédios ainda mais estratosféricos ganham as últimas pinceladas. Por enquanto, este UFC de cimento e aço tem no OWTC o cinto de campeão provisório: o Council on Tall Buildings and Urban Habitat (CTBUH, Comissão de Edifícios Altos e Habitação Urbana, uma espécie de Fifa dos prédios) já confirmou solenemente que o novo espigão do Ground Zero mede mesmo 541 metros e é o mais elevado do hemisfério norte. O tira-teima era com a Willis Tower, de Chicago (de 1974, e conhecida na intimidade como Sears Tower). Situada no centro financeiro da terceira maior cidade dos Estados Unidos, a Willis alcança 442 metros, sem contar as antenas que a encimam – e era até agora o prédio mais alto do país. Já com o OWTC, que tem como medida simbólica 1.776 pés (tributo ao ano da independência norte-americana), o bicho pegava por causa de uma dúvida: se o pináculo que o culminava fosse considerado uma antena, sua altura diminuiria. Na conta do CTBUH, antena não vale. A altura dos prédios é medida em duas categorias diferentes: da entrada mais baixa para o público a pé até um topo que não seja móvel; e até o piso mais elevado com ocupação (excluindo áreas de serviço ou casas de máquinas). O OWTC acabou proclamado o mais alto do Ocidente, pois “a estrutura de seu topo é um elemento arquitetônico permanente, e não uma peça de equipamento funcional ou técnico”. REVISTA DO BRASIL

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URBANISMO

ARQUIVO ARQUITETOS DE CHICAGO

REVOLUÇÃO The Home Insurance Building, de Chicago: estrutura em aço permitiu alturas nunca imaginadas

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VANDER FORNAZIERI/RBA

PRIMEIRO COM MAIS DE 100 ANDARES Inaugurado em 1931, o Empire State, de 381 metros, ostentou o título de mais alto do mundo até 1972, quando foi terminado o World Trade Center

Além do OWTC, o novo Ground Zero inclui mais duas torres, um memorial, um museu e uma sala de espetáculos. A reconstrução do conjunto atrasou devido a picuinhas entre a prefeitura de Nova York, o governo federal norte-americano, construtores, companhias de seguros e famílias das vítimas (uma Babel de 372 nacionalidades). Após os ataques de 2001, rolou muito bafafá sobre o futuro local do novo World Trade Center. Propostas fervilharam quase imediatamente, uma a uma ceifadas pela empresa Larry Silvertein, que detinha o contrato de aluguel para o World Trade Center na época dos atentados. Um projeto final para a Freedom Tower (Torre de Liberdade) foi finalmente aprovado em junho de 2005. Para cumprir as questões de segurança exigidas pela polícia de Nova York, uma base de concreto de 57 metros acabou incorporada à planta. O desenho final incluiu também o revestimento da base com prismas de vidro, para desarmar as alfinetadas de que o arranha-céu parecia “um bunker de concreto”. Por fim, o design afunilou-se ­ octogonalmente à medida que


AHMAD YUSNI/EPA/EFE

URBANISMO

CENÁRIO DE FILME Petronas Twin Towers, na capital da Malásia: 483 metros

foi subindo­rumo às nuvens. Em 2009, a Autoridade Portuária mudou o nome do prédio: de Freedom Tower para One World Trade Center, alegando que “fica mais fácil para as pessoas identificarem”.

Crescendo e aparecendo

Convém lembrar que, até o século 19, prédios com mais de seis andares eram raríssimos, à medida que um número elevado de escadas os inviabilizava. Sem falar na capacidade de pressão da água, que era incapaz de fluir acima dos 50 metros. O edifício mais alto da Antiguidade tinha 146 metros de altura: a Grande Pirâmide

de Gizé, nos arredores do Cairo, construída no século 26 a.C. Aquele mausoléu de faraó inspirou uma das mais antigas piadas do mundo, da pena de um escriba de Tebas: “A própria forma das pirâmides não está lá senão para mostrar que no Egito, como em qualquer outro lugar, as pessoas trabalham cada vez menos”. A revolução imprescindível para o advento de arranha-céus só aconteceu em 1852, quando o norte-americano Elisha Ottis inventou o elevador moderno, permitindo a deslocação cômoda e segura entre os andares. Outra inovação crucial foi o uso de estruturas de aço, em vez de

pedras ou tijolos – caso contrário, os pisos inferiores de um prédio elevado fatalmente desabariam. O primeiro arranha-céu foi o Home Insurance Building, em Chicago, construído em 1884, com dez andares, elevadores à prova de fogo e fiação elétrica. Em pouco tempo, as metrópoles de Chicago e Nova York estavam em queda de braço pelos espigões mais espichados. Nova York largou na frente. No início­ da terceira década do século 20 foram inaugurados – apesar da Grande Depressão – dois dos mais icônicos de todos os tempos. Em 1930, o edifício da Chrysler, de 319 metros e em estilo art déco – charmosíssimo, até hoje o favorito dos nova-iorquinos. Em 1931, brotou o Empire State, de 381 metros, e o primeiro com mais de 100 andares (103). Ostentou o título de mais alto do mundo até 1972, quando ficou pronto o World Trade Center.

Animal selvagem

Em 1955, o filósofo francês Jean-Paul Sartre visitou os Estados Unidos e pontificou: “Nova York é uma cidade que deve ser vista de cima”. Depois deu uma cachimbada e acrescentou: “O céu de Nova York é belo porque os arranha-céus o empurram, afastando-o das nossas cabeças. Solitário e puro como um animal selvagem, monta guarda e vela sobre a cidade. E não constitui apenas uma proteção local, visto que sentimos que ele se estende à distância sobre toda a América; é o céu de todo o mundo”.

O sobe e desce de Sampa Em São Paulo, a bola da vez é o Plano Diretor da cidade, conjunto de diretrizes que regulará o crescimento paulistano nos próximos 16 anos. Entre as novidades anunciadas pelo relator do projeto, vereador Nabil Bonduki (PT), está o limite de oito andares para novas construções nos miolos dos bairros, especialmente os já apinhados. O próprio prefeito Fernando Haddad pôs o dedo

na ferida: “Não queremos novos Itaims Bibis, com ruas estreitas e prédios de 25 andares, atravancando e encalacrando os locais”. Por outro lado, a ideia é liberar os espigões nos grandes corredores viários, com estrutura de transporte adequada. Tudo com o objetivo de adensar, com empregos e moradias, as regiões dotadas de mobilidade. E, numa tacada só, limitar o

crescimento populacional nos bairros já verticalizados e nas áreas rurais. Segundo o plano, haverá incentivos financeiros a construtoras que tocarem empreendimentos com comércio no térreo e limites para vagas na garagem em zonas centrais. Por fim, o projeto prevê também a ampliação do número de casas para a população de baixa renda. Além de endereços para

pessoas na faixa de até seis salários mínimos, serão delineadas as zonas especiais de interesse social (Zeis), para a tal nova classe média, de até dez salários mínimos. Se tudo der certo, a esperança é de que perca o sentido a resposta na lata dada pelo humorista Bussunda, quando lhe perguntaram qual o lugar mais estranho em que já tinha feito amor. Ele não pensou duas vezes: “São Paulo!”. REVISTA DO BRASIL

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NAS NUVENS O Shard London Bridge desaparece em meio ao típico céu cinzento da capital britânica

A partir de então, a coqueluche dos arranha-céus se tornou viral. Em 1998, floresceram em Kuala Lumpur, capital da Malásia, as Petronas Twin Towers, majestosas estruturas gêmeas de 483 metros, assinadas pelo arquiteto argentino César Pelli – tão mirabolantes que foram cenário do filme Missão Impossível. Mas alegria de novo-rico dura pouco: em 2003 a coroa passou para o Taipei 101, longilíneo edifício na capital de Taiwan, logo entronizado como uma das Novas Sete Maravilhas do Mundo Moderno. Se agora o OWTC ganhou a parada, não cantará vantagem por muito tempo – pelo menos em escala planetária. Mesmo o portentoso Burj Khalifa, em Dubai, com seus 828 metros, já tem a primazia ameaçada pela Kingdom Tower, em Jeddah (Arábia Saudita). Estimada em US$ 28 bilhões, a torre saudita excederá o quilômetro de altura – mais precisamen42

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te, 1.023 metros (ultrapassará as primeiras nuvens da atmosfera). E é concebida para suportar as agrestes tempestades de areia do deserto (e, eventualmente, o tráfego de tapetes voadores). O perfil das metrópoles planetárias (São Paulo, Hong Kong, Xangai, Cidade do México) degenerou numa espécie de paliteiro tamanho família. Muitas vezes, é verdade, os projetos brotam das pranchetas dos arquitetos mais talentosos do mundo. Outras vezes, a incontinência brega é deplorável, dando vontade de subscrever Mário Quintana: “O mais triste da arquitetura moderna é a durabilidade de seus materiais”.

Para inglês ver

E há outra ordem de objeções, não apenas estéticas. Em Londres, por exemplo. Até pouco tempo atrás, o horizonte da capital da Inglaterra era relativamente lím-

pido: primeiro monopolizado pelas torres da Catedral de São Paulo, do século 17; mais recentemente, pelo conjunto de prédios comerciais do Canary Wharf, pelo espigão Gherkin e o piramidal Shard London Bridge (o edifício mais alto da Europa). Sem falar, claro, na fofíssima roda-gigante London Eye, de 135 metros de altura. E estávamos conversados. Tudo indica, porém, que em um piscar de olhos o skyline londrino ficará tão eriçado quanto uma paliçada de concreto: 236 torres já estão aprovadas, 189 destinadas a blocos residenciais, 26 a escritórios comerciais, oito a hotéis e 13 a uso misto. Segundo autoridades municipais, 68% desses espigões já começaram a ser construídos. Um terço deles terá entre 40 e 49 andares, e pelo menos 22 contarão com mais de 50 pisos. No final de 2013, o prefeito de Londres, Boris Johnson, bufou alto e bom som: “Temos de erguer 42 mil novos


URBANISMO

DAVID CHANG/EPA/EFE

MARAVILHA DE TAIWAN O Taipei 101 preserva traços da arquitetura oriental

ALI HAIDER/EFE

JONATHAN BRADY/EPA/EFE

O CÉU É O LIMITE Burj Khalifa, em Dubai: 828 metros

l­ares todo ano”. Peter Murray, diretor do NLA, principal escritório de arquitetura da Inglaterra, cutucou: “Não tenho nada contra arranha-céus, mas precisamos entender o impacto deles. Afinal, estamos mobiliando o futuro”. Ele lembrou que a proliferação de novos espigões está ligada à inflação imobiliária: os preços exorbitantes incitam os construtores. Para a oposição, é aí que o bicho pega. Darren Jonson, do Partido Verde, observa: “Os novos prédios estão e continuarão sendo comercializados a preços proibitivos. E o que é pior: acabam inflacionando os imóveis das vizinhanças. Assim, os trabalhadores que ainda moravam no centro de Londres são forçados a se mudar para muito mais longe, devido à disparada do valor dos apartamentos e dos aluguéis”. Sir Edward Lister, secretário municipal do Planejamento, argumenta que é necessário conciliar a harmonia do horizonte

londrino com a necessidade imperiosa de mais casas para 1 milhão de pessoas – obras que criariam 500 mil empregos. O próprio Peter Murray realça que a questão é complexa. “Hoje em dia, os cidadãos aceitam muito melhor as torres do que num passado recente, porque a arquitetura se tornou mais atraente do que era, por exemplo, nos anos 60. Muita gente passou a acreditar que os arranha-céus enfeitam a vista, em vez de poluí-la.” Outros realçam que cada caso é um caso. O bairro de Battersea é cobiçado para um punhado de novos espigões. Mas vereadores locais não querem nem ouvir falar nisso, invocando desde razões culturais até ao nicho de skatistas que ali se divertem. Neste caso, o prefeito está do lado dos skatistas, nem que seja por razões econômicas: “Dê o Saara a um tecnocrata, e em poucos anos o deserto estará importando areia”. REVISTA DO BRASIL

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MÚSICA Thaíde: “A gente acreditava menos que podia passar dos 30. Hoje não, a gente quer passar dos 60”

Tudo junto e misturado

DAFNE SAMPAIO/GAFIEIRAS

Luiz Melodia: “Maria das Graças, aquela gostosinha!”

Site de entrevistas exclusivas com nomes da música brasileira tem histórias inéditas e curiosas Por João Correia Filho uem acessa o site Gafieiras. com.br pode ser surpre endido inicialmente pela mistura de gêneros e nomes da música brasileira que são destaque em sua primeira página. Compositores como Lenine e Jards M ­ acalé dividem espaço com Frank Aguiar, o grupo Los Hermanos, a folclorista Inezita­ Barroso e o rei do bolero, Lindomar Castilho. Notórios da MPB como Chico César e Luiz Melodia têm frases entremeadas com nomes não menos importantes, mas menos conhecidos do grande público, como Dona Inah, Mônica 44

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Salmaso, Moacyr Luz e Noite Ilustrada. Ainda entram no balaio os sanfoneiros Sivuca e Dominguinhos, o performático André Abujamra, o infantil Palavra Cantada, o lúdico Cordel do Fogo Encantado e o pop Ritchie. O que esses artistas têm em comum, num primeiro momento, é terem concedido grandes (e exclusivas) entrevistas ao site, nas quais abordam temas incomuns em reportagens de menor fôlego, ou nas que se limitam a divulgar o disco da vez. De lembranças profundas da infância a revelações sobre a carreira, parcerias e sonhos para o futuro, tudo está transcrito no site.

Lenine, por exemplo, fala de sua coleção de orquídeas, e mostra um lado colecionista que remete à infância e dialoga com seu trabalho como artista. “Tenho as turnês em forma de planta”, diz o músico, que contabiliza 6 mil em sua coleção, com mais de 600 espécies de orquídeas. “O que mais me fascina nas orquídeas é essa diversidade.” Por trás de declarações inusitadas como essa, disponíveis gratuitamente na internet, está um grupo de amigos formado por produtores culturais, jornalistas, fotógrafos e documentaristas que, em 2001, resolveu criar um material sobre música brasileira baseado em longas entrevistas. A ideia inicial, do produtor cultural ­Ricardo Tacioli, foi acolhida imediatamente por outros companheiros, como o jornalista Dafne Sampaio, o documentarista Max Eluard


Sivuca: entrevistas obrigatórias para biógrafos

DAFNE SAMPAIO/GAFIEIRAS

MAURICIO HIRATA/GAFIEIRAS

MÚSICA

DAFNE SAMPAIO/GAFIEIRAS

Lindomar Castilho: assassinato e prisão

eod ­ esigner Flávio Rosselli (responsável pela elaboração do site), além de vários fotógrafos que se alternam registrando os encontros. Max Eluard conta que a primeira entrevista do Gafieiras – com o compositor Eduardo Gudin – foi publicada num blog e, no ano seguinte, 2002, o material passou para um site. O nome escolhido pelo grupo surge porque, por definição, uma gafieira é um baile onde se toca todo tipo de música. “Colocamos no plural para que a ideia ampliasse ainda mais esse espectro da diversidade da cultura brasileira”, afirma. Em mais de uma década de atividades, o site já publicou 43 entrevistas, e possui outras nove prontas, a serem compartilhadas em breve. Entre elas de Ney Matogrosso, Gaby Amarantos, Odair José, Alaíde Costa, Ângela Maria e Guinga.

Diversidade

É nessa aparente salada musical, que reúne nomes tão distintos, que está a proposta do site Gafieiras. “A intenção é mostrar que o que liga toda essa diversidade é justamente o fato de serem todos música brasileira, de terem em comum uma raiz que mistura o tambor africano, o bandolim português e o toré dos índios”, explica Max. A partir desse eixo, seguem-se narrativas distintas, de situações engraçadas a trágicas, urbanas e rurais, de histórias cotidianas a episódios antológicos. Um exemplo é o primeiro encontro de Luiz Melodia com Gal Costa, ainda chamada por seu nome de batismo, Maria da Graça, no início da década de 1970. “Fui à casa dela – morava ali em Ipanema e conheci a dona Mariá, a mãe, aquela chata (risos), que cortava tudo. Tinha até razão, REVISTA DO BRASIL

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Equipe do site entrevista Gaby Amarantos

porque era muita gente em cima da filha dela. Maria das Graças, aquela gostosinha! Cheguei lá, mostrei o trabalho. E muita Coca-Cola. Ela tomava Coca-Cola pra caralho! E não teve outra, velho! Ficamos muito amigos!”, conta o músico, que deve à baiana o ingresso de Pérola Negra no rol dos clássicos brasileiros. Já o músico Frank Aguiar conta sobre sua intuição para fatos que vão ocorrer. “Quando meu olho direito treme é fatal, é coisa boa”, afirma. Mistura-se ainda a infância de Sivuca, filho de lavradores, nascido e criado em Itabaiana, sertão da Paraíba, com a de Thaíde, paulistano da Cidade Ademar, na periférica zona sul da maior cidade do país. “Não sabia que ia chegar aos 40, porque a estatística era muito mais complicada que hoje. A gente acreditava menos que podia passar dos 46

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30. Hoje não, a gente quer passar dos 60. Isso é maravilhoso”, diz um dos pioneiros do hip hop nacional. Entre histórias há temas recorrentes, que ajudam a criar uma unidade entre as entrevistas. O futebol, por exemplo, aparece com força na vida de vários compositores distintos, como Lindomar Castilho, Luiz Melodia e Itamar Assumpção, que vislumbraram no esporte uma grande carreira, mas optaram pela música. As primeiras composições, as parcerias e os ídolos também estão entre os temas que ajudam a formar a teia imaginária sobre a música brasileira. Para o jornalista e pesquisador Celso de Campos Júnior, autor do livro Adoniran, uma Biografia (2004), o trabalho desenvolvido pelo site Gafieiras serve como documento e tornou-se imprescindí-

FLÁVIO SERAFINI/GAFIEIRAS

RENATO NASCIMENTO/GAFIEIRAS

MÚSICA

vel para pesquisadores e biógrafos. “Hoje, quem quiser fazer uma biografia do Sivuca, por exemplo, tem de ler essa entrevista”, diz o pesquisador.

Grandes entrevistas x entrevistas grandes

Um dos grandes trunfos (e exigências) do Gafieiras é propor sempre entrevistas de fôlego, a maioria com mais de duas horas de duração, algumas com até quatro horas, algo cada vez mais raro no meio jornalístico. Nem entrevistados nem entrevistadores têm mais tanto tempo assim. “Tal disponibilidade permite uma viagem mais profunda pela vida dos artistas, indo a lugares antes impensáveis em suas memórias. O artista tem a chance de sair das respostas que estão no piloto automático, geralmente


MÚSICA

JEFFERSON DIAS/GAFIEIRAS

Frank Aguiar: “Quando meu olho direito treme é fatal, é coisa boa”

Jards Macalé

quando estão divulgando um disco ou em turnê”, diz Tacioli. “Quando o artista percebe que é um momento dele, para falar do que ele quiser, de recontar sua vida, aí ele se desarma, se entrega”, acrescenta Max. Lindomar Castilho fala abertamente sobre o fato de ter assassinado sua mulher, a cantora Eliane de Grammont, em 1981, e ter permanecido preso por sete anos. Um assunto tabu na vida do autor de Você é Doida Demais, da década de 1970, e que virou tema do seriado Os Normais, da Rede Globo. Segundo os integrantes do site, é comum os artistas dizerem que nunca haviam dado certas declarações em entrevistas. “Encontrei Moacyr Luz tempos depois da nossa entrevista, que teve mais de quatro horas, e ele me contou que ha-

JEFFERSON DIAS/GAFIEIRAS

Lenine: coleção com 6 mil plantas

via começado a fazer terapia e que quando o terapeuta perguntou sobre a infância ele sugeriu que lesse a entrevista do Gafieiras”, conta Ricardo Tacioli. O site garante, ainda, que tudo que é dito é publicado. “Quando iniciamos as entrevistas, os artistas são avisados dessa questão. Algumas vezes ocorre de um ou outro pedir pra não colocar algo que falou e se arrependeu, o que é respeitado, mas, de forma geral são sempre publicadas na íntegra”, acrescenta Tacioli.

Projetos

O grupo mantém projetos além do site. Em 2002, reverenciaram Adoniran Barbosa com uma série de iniciativas intituladas “Adoniran foi embora”, que incluíam uma Kombi com sistema de alto-falante para divulgar depoimentos so-

bre o compositor. Em 2009 foi a vez de Pioneiras, projeto no qual sete fotógrafos registraram cantoras como Alaíde Costa, Cláudia Morena e Inezita Barroso, entre outras divas da música que se destacaram entre as décadas de 1940 e 1960. As imagens fizeram parte de um site (www.pioneiras.com.br) e foram exibidas em mídias indoor, como metrôs (TV Minuto) e ônibus (TVO) da capital paulista. Com todo esse material valioso em mãos, o grupo trabalha quase que exclusivamente com dinheiro dos próprios integrantes. Desde 2005 tornaram-se uma associação cultural sem fins lucrativos, com estatuto e personalidade jurídica. Com mais de uma década de trabalho, seguem acumulando histórias contadas por protagonistas da nossa música. Basta acessar. REVISTA DO BRASIL

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Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

GASULL FOTOGRAFIA/AP/DIVULGAÇÃO

curtaessadica

Pintor, escultor, fotógrafo, cineasta, o catalão Salvador Dalí morreu em 1989

A Memória da Mulher-Menina, 1929

Autorretrato Cubista, 1923

Duas vezes Dalí

Praticamente toda a trajetória artística do espanhol-catalão Salvador Dalí poderá ser visitada neste ano em duas exposições no Brasil. Salvador Dalí fica em cartaz até 22 de setembro no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro. Em outubro, segue para São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake. Esta é a mais completa exposição do artista no país, com 150 peças, entre pinturas, gravuras, fotografias e objetos. Apesar de ter ênfase na fase surrealista, o CCBB também exibe as primeiras pinturas, o período cubista e obras que mostram o interesse de Dalí pelos pintores metafísicos. Já a mostra Salvador Dalí – Esculturas, em cartaz até 15 de junho na Caixa Cultural Brasília, apresenta 26 esculturas do artista, a maioria feita em bronze na década de 1970. No CCBB-RJ, de quarta a segunda-feira, das 9h às 21h, na Rua Primeiro de Março, 66, no centro da capital fluminense, (21) 3808-2020. Na Caixa Cultural Brasília, de terça a domingo, das 9h às 21h, no SBS, quadra 4, lotes 3/4, na Asa Sul, (61) 3206-9448. As duas exposições são gratuitas.

Contos de humildade

Por mais livros em braille

Segundo a Fundação Dorina Nowill, que atua há quase 70 anos na inclusão social de pessoas com deficiência visual, 95% do que o mercado editorial brasileiro publica não tem versão em braille. Por isso, a entidade lançou Palavras Invisíveis apenas no sistema de leitura por tato. Sob o tema “Tudo aquilo que não se pode ver”, o livro traz textos inéditos de Luis Fernando Verissimo, Lya Luft, Eliane Brum, Martha Medeiros, Fabrício Carpinejar, Antonio Prata, Tati Bernardi, Ivan Martins, Carlos de Brito e Mello e Estevão Azevedo. A ideia é provocar o debate sobre o acesso universal à cultura, do que os cegos são privados. O hotsite www.palavrasinvisiveis.com.br traz o audiolivro e vídeos em que pessoas com deficiência visual leem os textos. 48

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O escritor Hans Christian Andersen, mundialmente conhecido por seus contos de fadas, teve uma infância bem pobre. Aos 11 anos, depois que o pai morreu, o garoto teve de deixar a escola e começar a trabalhar. Autor de O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo e A Pequena Sereia, não é à toa que ele sempre se identificou com pessoas humildes e marginalizadas. O livro infantil Minimaginário de Andersen (Companhia das Letrinhas, 190 pág.) reúne histórias que têm a presença desses personagens ilustradas por Salmo Dança. R$ 43.


As idiotas, 1991

Ascensão I, 1973 Sem título, 1993

Centenário de Iberê A exposição Um Trágico nos Trópicos, em cartaz até 7 de julho no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, marca o início das comemorações do centenário de nascimento do artista gaúcho Iberê Camargo. A retrospectiva ocupa todo o prédio do CCBB com 145 obras, entre pinturas, desenhos e gravuras. Suas telas grandes e trágicas e os carretéis – seu brinquedo de

infância – fazem parte da exposição. O gaúcho morreu em 1994, em Porto Alegre, e deixou um acervo de mais de 5 mil obras, grande parte pertencente à Fundação Iberê Camargo, parceira da exposição. De quarta a segunda-feira, das 9h às 21h, na Rua Álvares Penteado, 112, no centro de São Paulo. Informações: (11) 3113-3651. Grátis.

Capoeira ensina a gingar na vida A historiadora Letícia Vidor de Sousa Reis está de volta com Capoeira, uma herança cultural afro-brasileira (Selo Negro Edições). Depois do livro De Pernas para o Ar, também sobre capoeira e escrito a partir de sua tese de mestrado, esta nova obra tem edição didática e é destinada às aulas do ensino médio, dentro da Lei 10.639/03, que determina a obrigatoriedade do ensino da cultura afrobrasileira. Na companhia da mãe, a arquiteta Elisabeth Vidor, produziu um livro rápido, denso e abrangente sobre a capoeira. No prefácio escrito pelo batuqueiro, capoeirista, teólogo, filósofo e mestre em Educação Antonio Filogenio de Paula Junior, a filosofia da capoeira aparece às claras: “Há muitos anos tenho dito que a capoeira transformou a maneira como olho para as coisas. E assim, penso que ela também pode transformar a vida das pessoas de modo geral. Costumo dizer que aprendi a gingar na vida com as situações que nos chegam, sejam agradáveis ou não. A partir da esquiva e da flexibilidade, permite-nos olhar os desafios de diferentes ângulos e amplia as possibilidades de solução. O equilíbrio não é apenas físico, mas também psíquico e espiritual. A paciência é um dos maiores atributos que a capoeira ensina”. As autoras equilibram a narrativa entre a história do Brasil, da monarquia, da escravidão e dos movimentos que os negros realizavam. Em um dos capítulos, contam a história dos mestres Bimba e Pastinha, os pais da capoeira do Brasil. (Paulo Salvador) REVISTA DO BRASIL

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LUIZ RUFFATO

J

Mais cem anos de solidão

osé Santos, um dos grandes nomes da literatura infantil da atualidade, era líder estudantil em Juiz de Fora, interior de Minas Gerais, no final da década de 1970. Cursava a faculdade de comunicação na universidade federal e encabeçava um grupo de jovens reunidos em torno do Varal de Poesia, que acontecia quinzenalmente aos sábados no calçadão da Rua Halfeld, e do folheto Abre-Alas, espécie de antologia, publicada em off-set e ilustrada por desenhos dos novos artistas plásticos da cidade, que trazia o melhor da produção poética contemporânea do Brasil. Eu o conheci durante uma greve. Escalaram-me para conclamar os alunos reticentes a aderir a uma paralisação destinada a impedir o aumento do preço do bandejão – a comida servida no Restaurante Universitário -, pretexto para sairmos às ruas numa demonstração de força contra a ditadura militar. Quando subia as escadarias do Instituto de Ciências Humanas e Letras, encontrei José. Disse a ele, rapidamente, que era de Cataguases, cidade onde, sabia, ele havia morado, e, simpático, me convocou para participar de uma das reuniões de estudo que realizavam-se em sua casa. Demorou alguns dias ainda para que eu o reencontrasse e ele reiterasse o convite. Apareci lá uma noite. José me recebeu com alegria e conduziu-me a um quarto apertado, onde um bando de rapazes e moças em torno dos vinte anos discutia uma passagem obscura de Os conceitos elementares do materialismo histórico, da socióloga chilena Marta Harnecker. Sobre a mesa, uma enorme bacia cheia de pipocas, duas garrafas grandes de guaraná e vários copos de vidro usados. Após as apresentações, encostei-me a um canto, deslocado. Como retomassem a discussão, deixei meus olhos passearem pelas estantes abarrotadas. Pegava ao acaso um volume, folheava-o, devolvia-o. A curiosidade de José não compreendia limites, enredada em teses de política, em conceitos sociológicos, em pensamentos filosóficos, em considerações literárias, em reflexões poéticas, em biografias, história, ficção. Esgotada a pauta daquela sessão, os interesses se dispersaram. Alguém colocou um disco de Mercedes Sosa na vitrola, outro acendeu um cigarro, outro ainda se despediu, tinha prova na manhã seguinte. José então aproximou-se e perguntou se algo havia me chamado a atenção no caos daquelas obras enfileiradas. Sorri, tímido, 50

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e, antes que respondesse, ele, retirando dois livros de uma pilha, me entregou, dizendo, “Leia esse escritor, é simplesmente genial”. Mirei os estranhos títulos, Os funerais da Mamãe Grande e Olhos de cão azul, observei o nome do autor, Gabriel García Márquez, enfiei-os sob o braço e calado saí para a noite de perfumes adocicados. Assim que deixei o prédio, abri ao acaso um dos volumes, justo na página em que se iniciava o conto Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo. As primeiras palavras reveladas seqüestraram meu espírito e meu corpo caminhou sonâmbulo negaceando de postes, buracos e pessoas, buscando os coágulos de luz que, rompendo a copa das árvores, drapejavam a calçada mal conservada da avenida Rio Branco. A chuva que caía interminável naquela pequena aldeia dos confins da Colômbia encharcava meus pés adolescentes. No silêncio da casa, transformada em república, assentada no número 420 da rua Moraes Sarmento, todos dormiam. Todos, menos eu. Lido o último conto de Os funerais da Mamãe Grande, percebi, exausto, que as sombras projetadas na parede desenhavam rostos de pessoas amadas que, pouco a pouco, iriam se diluir na memória. Então, os barulhos vindos de fora penetraram por debaixo da porta inaugurando a manhã, passos, vozes, a agitação dos passarinhos, o ônibus que subia lotado de estudantes para a Cidade Alta e descia abarrotado de trabalhadores para a Cidade Baixa. Eu já acumulava 18 anos de uma irremediável melancolia. E agora, debruçado à mesa, compreendia que, sem uma segunda chance sobre a terra, restavam para mim ainda mais cem anos de solidão... Texto publicado originalmente no jornal El País Brasil e reproduzido com autorização do autor


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A Prefeitura de Osasco incentiva o hábito da leitura com eventos como a realização da Feira do Livro. Dessa forma, a cultura chega até a população e avança sempre em direção a uma vida melhor.


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