Revista do Brasil nº 098

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MERCADO DE NOTÍCIAS O cinema de Jorge Furtado analisa o mundo da informação

CLÍNICAS DE TESTEMUNHO A terapia do desabafo contra as dores e os traumas da ditadura

nº 98 agosto/2014 www.redebrasilatual.com.br

O FATOR BAIXARIA

Nas redes sociais e na imprensa, manipulação e ódio ofuscam debate de projetos para o Brasil. Previna-se das armadilhas da desinformação


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ÍNDICE

EDITORIAL

12. Capa

As redes e a batalha da opinião; sem espaço para ingenuidade

16. Entrevista

PAULO PEPE/SINDICATO DOS BANCÁRIOS DE SÃO PAULO

Jorge Furtado: decifra o jornalismo, ou ele te devora

20. Economia

A má notícia, a maldade das notícias e a vida que segue

24. Saúde

O Instituto Butantan, em São Paulo: pesquisa envenenada

28. Consumo

A moda costurada com trabalho indecente e o Brasil atrasado

34. Cidadania

Presidentes dos sindicatos dos Bancários e dos Metalúrgicos: gestão compartilhada da TVT

38. Cultura

Parceria fortalecida

A memória e a voz como remédio do trauma e da dor Uma estação itinerante de cinema com sustentabilidade

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40. Literatura

JESUS CARLOS/IMAGEMGLOBAL

O cartum de Fortuna, referência do humor político brasileiro

Nordeste no Rio

44. Viagem

Sotaques e sabores do Nordeste na Feira de São Cristóvão

Seções Cartas

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Destaques do mês

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Mauro Santayana

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Marcio Pochmann

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: Ariano Suassuna

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ois dos maiores sindicatos do país, os dos Bancários de São Paulo e dos Metalúrgicos do ABC, acabam de assumir a gestão compartilhada das concessões da TV dos Trabalhadores (TVT) e da Rádio Brasil Atual. A partir de 25 de julho, a Fundação Sociedade Comunicação, Cultura e Trabalho, mantenedora das emissoras, é administrada e mantida pelas duas entidades. A iniciativa é parte de um conjunto de investimentos com objetivo de ampliar a produção e o alcance da programação. Um novo canal HD, o 44, terá um público exposto de 25 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo. Trata-se de um gesto de ousadia que amplia a parceria já existente em torno da plataforma de comunicação mantida desde 2006, com o lançamento da Revista do Brasil, o portal RBA e a rádio. Além do esforço financeiro, que demanda investimentos estimados em R$ 3 milhões, o gesto tem também forte dimensão política. Por ressaltar o conceito de sindicato cidadão, ator social ao qual cabe promover ações, interferir na qualidade de vida e por mais cidadania também fora dos ambientes de conflito entre capital e trabalho. Nesse caso, contribuindo para que as pessoas tenham acesso a mais informação, serviços e diversidade cultural. Essa dimensão política implica ainda que o projeto deve estar pronto para a reação de adversários a tentar obstruir seu alcance. A comunicação é um terreno em disputa. As mídias convencionais e a que nos últimos anos experimenta a revolução da informação estão em débito com as boas práticas. A ostensiva partidarização de um lado, e de outro a ausência de limites para preconceitos, frustrações e ódio – como define o cineasta Jorge Furtado em entrevista nesta edição – ainda são dificuldades para que o jornalismo da era digital chegue a sua idade adulta. Enquanto não se viabiliza um grande marco institucional que leve a um sistema de comunicação mais civilizado e democrático, esse projeto vem contribuir com alguns passos nessa direção. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS Dagmar Garroux Um exemplo de ser humano, emocionante essa reportagem, parabéns Tia Dag! (“É agora, José!”, ed. 97) Rodolfo Castro

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Diego Sartorato, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, Hylda Cavalcanti, João Peres, Moriti Neto, Sarah Fernandes, Rodrigo Gomes e Tadeu Breda Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Capa Fotos de By: Phil Banko/Photographer’s Choice/Getty Images, Vera Massaro/ALESP (Clínicas), e Luciana Whitaker (Furtado) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Roberto Salvador, Raimundo Suzart, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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Xavantes A reportagem sobre os xavantes (“Aqui viviam nossos ancestrais”, ed. 97) traz um retrato interessante do cotidiano e das preocupações da nação indígena. Mostra a vida das comunidades como ela é, ou como deveria ser, não fossem as ameaças do homem branco. É uma mostra de como se pode proteger a terra. A matéria menciona a ação do governo federal no processo de expulsão dos invasores, o que é bom. Mas vamos ver até quando os poderes públicos vão estar de olho para garantir esse direito. Edelson Pascon Marcio Pochmann As despesas do governo com juros caíram de 14% do PIB em 2002 para atuais 6% (“As eleições e a economia”, ed. 97). E a participação da renda do trabalho subiu de 39% para 47%. E a gente nem sabia. Maria Helena Correa Mauro Santayana América do Sul toda e Caribe só têm a se beneficiar e se desenvolver com o Banco dos Brics (“A Copa dos Brics”, edição 97). Não seremos mais reféns impotentes frente ao FMI e ao Banco Mundial. Vanderson Lieone Mafalda Sem intento de originalidade, claro, viva Mafalda, essa menina valorosa! (“A rebelde de 6 anos chega aos 50”, ed. 97) Tiago Bevilaqua

Mercado e suas apostas Isto é terrorismo eleitoral, beneficiando candidato, falta saber quem são os tais terroristas. Ou terá de ser assinada uma carta de intenção assim como Lula fez em 2002, para poder tomar posse. (“O mercado faz suas apostas”, ed. 96) JB Martins O morro no mapa Que projeto eficaz. Espero que dê certo! Torço pela conquista desses jovens. (“A vez do morro”, ed. 96) Antonio Carlos Jr. Arranha-céus Se é para liberar geral a construção de espigões em quase todos os quarteirões da cidade, São Paulo não precisa de um Plano Diretor (“Mania de grandeza”, edição 96). Basta entregar a administração municipal ao Secovi-SP de uma vez. E nossos frágeis vereadores deveriam ceder seus lugares aos sócios-gerentes das maiores incorporadoras locais. Assim, ficaria mais fácil destruir o que resta da já sofrível qualidade de vida de São Paulo. Ricardo Haroldo Ribeiro As cidades brasileiras, de modo geral, são estranhas. Estranhamente avessas a edifícios altos, elas se espalham por quilômetros e quilômetros quadrados de monótonas construções em forma de caixas de sapatos. Estão todas elas necessitando de uma repaginada geral. Vistas de cima, se parecem todas. Quem vê São Paulo de cima e vê Belo Horizonte ou Curitiba, por exemplo, pensa estar vendo uma mini São Paulo. Que monotonia infinita são os skylines de nossas grandes cidades. Marcvs Antonivs

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

JOSÉ CRUZ/ABRL/FOTOS PÚBLICAS

Favela way

Botín disse que tomaria providências sobre o caso

No início de julho, as últimas famílias que ainda permaneciam na Favela da Penha, zona leste de São Paulo, começaram a deixar o local, que três meses antes havia sido praticamente destruído por um incêndio. As pessoas foram embora depois de um acordo com moradores, empresários e prefeitura, por meio do qual receberiam um valor (R$ 2 mil por família) e seriam cadastradas em programas municipais de habitação. O terreno é público e fica ao lado de um empreendimento imobiliário denominado Way Penha. Sem favela, cessa o desconto oferecido por corretores, com direito a “comemoração” no Facebook. bit.ly/rba98_favela

O voto do mercado

Rotina paulistana: depois do incêndio, a desocupação

FELIPE TESSER/FOTOS PÚBLICAS

O vazamento da informação de que o Santander mandou a clientes considerados VIPs uma correspondência associando a reeleição da presidenta Dilma Rousseff à possibilidade de deterioração da economia teve repercussão internacional e virou exemplo do viés político da atuação de analistas do mercado. O Sindicato dos Bancários de São Paulo informou que faria uma reclamação formal ao banco por gestão temerária. Dilma considerou o fato “inadmissível”. O Santander informou que tomaria providências internas, afirmando que o texto não refletia a posição da instituição, que seguia confiante na economia brasileira. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu a dispensa dos responsáveis e lembrou de um encontro, em 2002, com o presidente mundial do Santander, Emilio Botín. Ao lembrar do episódio da mordida do atacante uruguaio Luis Suárez, comentou que o mercado financeiro é muito mais violento: não morde, engole. bit.ly/rba98_santander1

RDB, MAIO, 2014

Racionamento, não

A preocupante situação do fornecimento de água no estado de São Paulo fez o Ministério Público Federal recomendar à Sabesp, gestora do sistema, um racionamento nas regiões atendidas pelo Sistema Cantareira. A estatal informou que garante o fornecimento até a próxima estação chuvosa, prevista para outubro. Se chover, a garantia se estende por seis meses. A Sabesp diz discordar “frontalmente” da proposta, que na avaliação da empresa prejudicaria a população. Enquanto isso, o sistema, no final de julho, chegava a 15,7% de sua capacidade de armazenamento. Só sobrava o chamado volume morto, que se constitui em uma reserva técnica. Um ano atrás, o Cantareira estava com 53,7% da capacidade. O Sistema Alto Tietê estava pouco acima dos 20%, perto de também usar a “reserva técnica”. bit.ly/rba98_seca1 REVISTA DO BRASIL

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MAURO SANTAYANA

A imprensa ocidental e o gueto de Gaza Há ocasiões na história em que a irresponsabilidade dos meios de comunicação só é comparável à hipocrisia com que descrevem os fatos

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as últimas semanas tem chamado a atenção, mais uma vez, a diferença de tratamento entre dois temas e dois países: a Rússia, no âmbito da crise ucraniana, e Israel, no contexto de seu confronto com o Hamas e a destruição física e humana da Faixa de Gaza. Moscou – cujo governo pode ter, naturalmente, seus defeitos – tem sido acusada de agir como potência agressora no país vizinho, quando, na verdade, está defendendo o último espaço teoricamente neutro que lhe restou após a queda do muro de Berlim. Quando do fim da União Soviética, e do próprio desarme nuclear da Ucrânia, os Estados Unidos comprometeram-se a não atrair os países do antigo Pacto de Varsóvia para a órbita da Otan, e, assim, não cercar, com tropas hostis, o território russo. De lá para cá, em menos de 20 anos, várias nações, entre elas a República Tcheca, a Hungria e a Polônia, abdicaram de qualquer neutralidade e se agregaram à aliança ocidental, envolvendo a Rússia com um anel de aço. Nele, não existem apenas soldados inimigos, mas também podem ser colocados mísseis com capacidade de atingir as principais cidades do país em poucos minutos, e em menos da metade do tempo do que levariam suas armas nucleares para chegar ao território dos Estados Unidos. Quando da “independência” da Ucrânia, em 1989, ficaram dentro de seu território milhões de russos étnicos que haviam compartilhado durante anos, com os ucranianos, a cidadania soviética. Esses cidadãos não aceitam se aliar ao “oci6

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dente” para combater sua própria gente, sua própria história, sua própria cultura, que estão também nos territórios russos que existem do outro lado da fronteira. Antes da queda do governo que estava no poder até fevereiro, os russos subsidiavam o gás vendido à Ucrânia, e procuravam estabelecer com ela maiores laços econômicos, para que o país não caísse totalmente sob a influência dos Estados

Unidos e da União Europeia. Manobras ocidentais romperam o precário equilíbrio existente dentro da sociedade ucraniana, levaram à queda de Yanukovich e à ascensão, pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial, de membros de partidos neonazistas a um governo de um país europeu. A isso, se seguiu a ocupação, por Putin, da mais russa das regiões ucranianas, a Crimeia. Por mais

RUSSOS ASSASSINOS E ISRAELENSES OPRIMIDOS Inspetor analisa restos do voo da Malaysia Airlines: a imprensa ocidental acusa o próprio Kremlin de ter derrubado o avião enquanto compra o discurso de Obama, que afirma que Israel “está apenas se defendendo”


que a imprensa dos Estados Unidos diga o contrário, no mundo real nem o governo ucraniano nem o atual governo israelense podem ser “vitimizados”.

des como Donetsk e Karkhov, o governo ucraniano encontra na queda de um avião civil, com grande número de passageiros ocidentais a bordo, um excelente “ponto de virada” para tentar impedir que os independentistas de etnia russa continuassem a derrubar suas aeronaves, e colocar Putin contra a parede, obrigando-o, por sua vez, a pressioná-los. Afinal, o presidente russo acabara de marcar importantes pontos em seu jogo de xadrez contra os Estados Unidos, retornando de vitoriosa viagem à América Latina, na qual participara da criação do Banco e do Fundo de Reservas do Brics, e mostrara que tem suficiente jogo de cintura para se furtar às tentativas “ocidentais” de isolá-lo internacionalmente. E o que teria ocorrido, caso – como disseram fontes russas – tivesse sido atingido o avião de Vladimir Putin, que cruzou a mesma rota do voo da Malaysia Airlines? Os ucranianos não teriam da mesma forma – com a ajuda da imprensa “ocidental” e como fizeram com o avião malaio – acusado os rebeldes de ter derrubado o avião presidencial russo, por engano? Em todo caso, os últimos interessados e os que tinham mais a perder com a explosão do avião da Malaysia Airlines teriam sido exatamente os russos e os rebeldes ucranianos. Enquanto a imprensa ocidental acusa os rebeldes e, eventualmente, o próprio Kremlin, de ter derrubado o avião de passageiros, Obama afirma que Israel – que acusa sem confirmação o Hamas de sequestro e assassinato de três adolescentes – “está apenas se defendendo”, na Faixa de Gaza, e é acompanhado, nisso, pelos mesmos “analistas” e editorialistas que atacam o comportamento da Rússia na Ucrânia.

Ponto de virada

O magnata Petro Poroshenko chegou ao poder no rescaldo da derrubada de um governo eleito, sob um pretexto que até hoje é colocado em dúvida: a morte de civis na etapa final das manifestações da Praça Maidan, por policiais ligados ao regime anterior, quando, na verdade, há fortes indícios de que os tiros foram disparados por franco-atiradores neonazistas, interessados em criar um fato que servisse de “ponto de virada” na situação ucraniana. No caso da derrubada, não do governo Yanukovich, mas do avião malaio que caiu no leste da Ucrânia, é preciso perguntar: a quem interessava o crime? Com vários aviões de guerra abatidos nas últimas semanas, e impossibilitado de retomar, pelas armas, grandes cida-

ROBERT GHEMENT/EFE

Ódio, alma do negócio

Há pouca diferença dessas campanhas com outras, como a que afirmou, durante anos, sem nenhuma prova, que havia armas de destruição no Iraque. A imprensa nazista passou anos recorrendo ao mesmo tipo de gente, de “analistas” raciais a “entendidos” em geopolítica, para explicar e contextualizar os perigos do judaísmo para o mundo, e a sua vinculação com os bolcheviques comunistas.

Quando a Alemanha de Hitler dominava a Europa, os nazistas costumavam matar dez reféns para cada soldado alemão que sofria um atentado. Na ofensiva de Tel-Aviv em Gaza, a mídia “ocidental” parece achar normal que a proporção de civis mortos e feridos, seja de mais de 20 palestinos para cada israelense atingido em combate ou pelos foguetes artesanais do Hamas, e que boa parte do território – com mais de 4 mil habitantes por quilômetro quadrado – já tenha sido destruída, deixando mais de 100 mil desabrigados. Ao bombardear mulheres e velhos, meninos e meninas, apartamentos e ruas de Gaza, Israel está implantando, regando e alimentando, com ossos e sangue – como faziam os nazistas com suas experiências com repolhos no campo de extermínio de Maidanek – um ódio profundo e incomensurável em nova geração de palestinos, da mesma forma que, ao destruir o Iraque, os Estados Unidos abriram caminho para Bagdá e Mossul para os terroristas da Al Qaeda. Quando se tornar impossível a sobrevivência e a permanência, dentro das estreitas fronteiras de sua gaiola de escombros, cercada por muros e arame farpado, dos quase 2 milhões de palestinos que vivem em Gaza, será que os israelenses se inspirarão em seus algozes de um outro gueto, o de Varsóvia? Lá, judeus de toda a Europa foram amontoados, sem água, luz, comida ou aquecimento, durante meses a fio, para morrer de tifo e outras doenças contagiosas. Finalmente, foram levados para campos – como Israel pode fazer com os palestinos – se quiser, teoricamente, assisti-los “humanitariamente”. A outra opção é entrar – como fizeram os SS do Brigadeführer Jürgen Stroop há exatamente 71 anos – com tanques e lança-chamas no meio das ruínas, e caçar, um por um, os sobreviventes, até o último homem, mulher ou criança, como se fossem ratos. As ações do governo israelense são muito contestadas por parte da oposição israelense e também por integrantes da comunidade judaica espalhados pelo mundo. Mas a julgar pelo noticiário da imprensa “ocidental”, essas vozes dissonantes tampouco existem. REVISTA DO BRASIL

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TVT

Canal 2 NET Digital: São Paulo. Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

O peso do mínimo Para economistas, setores que condenam a política de valorização do salário mínimo não têm coragem nem argumentos para expor seus reais objetivos ao público

FOTOS DIVULGAÇÃO/TVT

Programa debateu importância do piso nacional para a economia e os trabalhadores

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política de valorização do salário mínimo é uma experiência democrática inédita no Brasil. O economista Claudio Dedecca, professor da Unicamp, observa que em 2015 o mínimo completará 75 anos de existência e que apenas nos sete últimos anos contou com uma política de valorização estável, consistente, definida e garantida em acordo. A política a que se refere – durante debate do programa Melhor e Mais Justo, da TVT – se consolidou por meio de negociações entre governo federal e centrais sindicais. Incorpora a variação do PIB de um ano e a inflação do ano seguinte. Assim, o salário mínimo de 2015 será reajustado em 2,5% (PIB de 2013) mais a variação do IPCA em 2014. O acordo foi estabelecido em 2007, mas sua validade vai somente até o próximo ano. Essa circunstância tem levado alguns jornais e economistas identificados com o mercado financeiro a defender, discretamente, o fim dos aumentos reais. Alegam que o salário mínimo custa caro para a Previdência Social e as contas públicas e que aumento real sem aumento correspondente de produtividade é insustentável. 8

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Ademir

Dedecca

Airton

No debate, o economista Airton Santos, coordenador técnico do Dieese, discorda: “Temos de ir em frente porque os setores da sociedade ligados ao empresariado dizem que o salário mínimo está acima da produtividade média do país e isso tira a competitividade da indústria ”. E rebate: “Salário é renda, renda é consumo e o mercado interno precisa de consumo e de renda”. Diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Ademir Wiederkehr lembra que a valorização do mínimo compõe, junto com os sucessivos aumen-

tos reais que vêm sendo alcançado pelos demais trabalhadores, um estímulo ao crescimento. “Passamos a década de 90 não conseguindo nem repor a inflação. Todas as categorias perderam muito naquele período”, compara. E assinala que se houve aumento de gastos para a Previdência, é preciso incluir na conta o quanto o salário mínimo e o aumento de emprego e da renda ajudaram a financiar as contas públicas, mantendo o consumo e a economia aquecidos. Para Dedecca, a crítica política ao salário mínimo é violenta, não apresenta números e tem natureza ideológica. “Acoberta interesses conservadores que são contra movimentos distributivos de renda e direitos. É difícil haver uma discussão em que os críticos do mínimo venham a público defender aquilo que consideram errado. Quando se convida não aparecem, porque é antipopular e porque não há argumentos consistentes.” O programa Melhor e Mais Justo discute toda semana com especialistas e convidados temas contemporâneos que terão impacto no futuro do país. Todas as quintas-feiras, às 19h30, na TVT. E pode ser visto também pela internet.


MARCIO POCHMANN

Nova partilha do mundo

Os críticos da política externa brasileira insistem em embarcar na canoa dos países ricos – uma canoa furada – sem reconhecer, contudo, os acertos dos não ricos em abrir novos caminhos

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om 7,2 bilhões de habitantes e mais de 200 países, o planeta Terra contabiliza Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 75 trilhões. Se repartido equivalentemente, cada habitante receberia US$ 10,5 mil em 2013 (R$ 23,6 mil). Infelizmente, a repartição da renda no mundo não é bem assim. Como diria G. Shaw: “A estatística é uma ciência que demonstra que se meu vizinho tem dois carros e eu nenhum, nos dois temos um em média”. Atualmente, o PIB global encontra-se repartido em quatro grandes blocos de países. De um lado, as economias ricas que se associam à Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), operando em dois grandes blocos distintos de economias. Um na América do Norte, outro sob o comando da União Europeia. De outro lado, a parte restante dos países fica com 49% do PIB, dividindo-se também em dois grandes blocos de economias. O primeiro atende pelo nome de Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e o segundo bloco compreende os demais países restantes. De tudo isso, interessa destacar o Brics por se caracterizar por ser mais dinâmico e se diferenciar da subordinação e dependência associada à dinâmica das economias ricas. Em 1990, por exemplo, a União Europeia respondia por 31,9% do PIB global, os Estados Unidos tinham 30,6%, os Brics, 7,9% e os demais países, 29,7%. Na comparação entre os anos de 1990 e 2013, os países ricos (OCDE) reduziram a sua participação relativa no PIB global de 62,5% para 51%. Nesse período de tempo, o Brics teve o peso relativo no PIB global crescido de 7,9% para 21,2%. Projetada para a próxima década a mesma trajetória, os Brics poderão alcançar cerca de um terço do PIB global, restando próximo de um quinto cada para Estados Unidos e União Europeia no produto mundial. Dentro dessa nova partilha do mundo, se pode reconhecer o reposicionamento do Brasil. Até o início da década de 2000, a economia nacional estava forte-

mente associada à dinâmica do bloco dos países ricos. Nos últimos anos, três ações governamentais contribuíram para apontar o caminho próprio do Brasil, graças a uma opção pelo desenvolvimento de uma “política externa ativa e altiva”, como destaca o embaixador Celso Amorim – ministro de Relações Exteriores durante os governos de Itamar Franco (19931995) e de Lula (2003-2010), hoje ministro da Defesa. A universalização da diplomacia com enfoque nas relações Sul-Sul do mundo impulsionou o comércio com países não ricos. Somente com a China, as exportações passaram de US$ 1 bilhão para US$ 46 bilhões, enquanto em relação ao mundo as vendas externas brasileiras subiram de US$ 60 bilhões em 2002 para US$ 242 bilhões em 2013. Além disso, o perdão da dívida externa em países pobres criou saldo comercial, assim como a abertura de novas embaixadas e consulados e a maior cooperação do país por meio de instituições públicas. A segunda ação governamental direcionou-se à internacionalização do setor privado brasileiro. Por meio de estímulos do BNDES, várias empresas tornaram-se capazes de elevar a exportação. Por fim, a terceira ação foi voltada ao fortalecimento do sistema de defesa – o país tem a segunda maior fronteira seca do mundo e a maior costa marítima no Oceano Atlântico. Agrega-se, ainda, a descoberta de enormes reservas de petróleo na camada do pré-sal. A constituição de estratégia para o sistema de defesa nacional vem se sustentando por meio de diversos acordos de aquisição tecnológica nos campos da aviação supersônica, submarino de propulsão nuclear, modernos equipamentos antiaéreos e eletrônicos. É a recomposição do complexo industrial de defesa. Diante disso, se pode perceber a natureza das críticas da oposição à política externa do governo da presidenta Dilma Rousseff. Possivelmente, desejam avidamente embarcar na canoa dos países ricos sem reconhecer, contudo, a nova repartição do mundo. Uma canoa furada. REVISTA DO BRASIL

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RÁDIOBRASILATUAL

93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio MAURO HORITA/AGIF/FOLHAPRESS

PROBLEMAS ESTRUTURAIS Fernando Prass: dizer que o Bom Senso se trata de um movimento de atletas de elite é desinformação

Mudanças no time No mundo mágico do futebol vendido pela TV, atuam apenas 5% dos jogadores do Brasil. Para os outros 95% às vezes faltam até chuteiras 10

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m 21 de julho, oito dias depois da final da Copa, vencida pela Alemanha, a presidenta Dilma Rousseff recebeu três representantes do Bom Senso F.C., Dida, Ruy Cabeção e Aline, para tentar aprofundar o debate sobre reestruturação do esporte no país. Três itens, entre outros, estavam na pauta: o projeto sobre responsabilidade fiscal, que tramita no Congresso, a participação de atletas nas entidades e a criação de um Plano Nacional de Desenvolvimento do Futebol.

Foi mais um passo dado pelo Bom Senso, que começou a atuar no ano passado. Em entrevista à Rádio Brasil Atual, o goleiro Fernando Prass, representante do grupo, disse que tudo começou a partir de uma discussão entre alguns jogadores sobre o calendário do futebol brasileiro. Muitos jogos por semana nas séries A e B, e falta de condições para equipes menores para assegurar atividades durante a maior parte do ano. Prass defende uma “uma ação multidisclipinar para começar a resolver pro-


RÁDIO BRASIL ATUAL

blemas graves do futebol brasileiro”. Para ele, dizer que se trata de um movimento de atletas de elite é desinformação. “A maioria desses jogadores não precisaria sequer se preocupar com isso. São jogadores que não usufruirão desses benefícios que estão reivindicando, caso venham a ser conquistados. Nossa visibilidade maior permite que os problemas tenham também uma visibilidade.” Ele cita uma outra reunião com Dilma, onde estava um rapaz cujo filho de 10 anos passou por 15 escolas. “Uma criança com essa idade passar por tantas escolas é claro que vai ter sua educação comprometida. Isso é mais do que corriqueiro no Brasil”, afirma. O jogador, hoje no Palmeiras, também fez críticas aos meios de comunicação, que vendem um “mundo mágico”, apenas com as principais séries brasileiras e europeias, “onde estão no máximo 5% dos jogadores”. E relatou situações de atletas que passam boa parte do ano, após os campeonatos estaduais, trabalhando

em escolinhas de futebol, no caixa do supermercado, na construção civil. Passam três quatro meses até arranjar outro emprego, e depois saem de novo, e vão à procura de outro, e mudam de times três quatro vezes no ano. “Essa é a realidade para mais de 90% dos jogadores de futebol do Brasil, e contas tem todo mês. E a maioria não consegue fazer uma reserva para se manter”, observa. Sobre o fracasso da Selecão na Copa, ele pede cuidado, afirmando que é “covardia” tomar o jogo contra a Alemanha como parâmetro. “Acho que tem de olhar com muito cuidado para não se cometer injustiças, que se julgue tudo que se faz no Brasil é errado, que todos os jogadores são ruins, e que tudo da Alemanha é bom. Com certeza a Alemanha está na nossa frente em termos de organização e de qualidade, mas é preciso se fazer uma análise muito mais ampla.” A derrota, para ele, pode esconder problemas, em vez de escancará-los. “Assim como uma grande vitória, como aqueles 3 a 0 con-

tra a Espanha (na Copa das Confederações, em 2013) de repente encobriu alguma coisa também.” Ele acredita que as propostas do Bom Senso poderão trazer resultados a longo prazo. “Dando melhor estrutura financeira, física, condição de formação, uma gestão mais profissional, isso vai refletir diretamente nos jogadores. Tem de começar pela base da pirâmide.” O plano nacional proposto pelos jogadores passa por mudanças no calendário e regras para administração dos clubes, com punição para quem gastar mais do que arrecadar, investimento mínimo nas categorias de base e capacitação profissional. “Oposição vai ter sempre. A nossa maior força é a nossa argumentação. Ainda creio que tem mais gente no Brasil que queira futebol fortalecido do que o contrário.” A entrevista completa pode ser ouvida na internet: bit.ly/rba_bomsenso https:// soundcloud.com/redebrasilatual/bomsenso-fc-dialogo-a-tatica-para-melhorarfutebol-brasileiro

Depois do fiasco do futebol brasileiro na Copa, especialmente com o inesquecível 7 a 1 diante da Alemanha, aumentou a pressão por reformulações dentro e fora de campo. De imediato, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) demitiu toda a comissão técnica. Começou a especulação sobre quem seria o novo treinador – poderia ser um estrangeiro? No intervalo de uma semana, ainda em julho, foram anunciados o coordenador, Gilmar Rinaldi, e o técnico: Dunga. Alguns lembraram de uma célebre frase do romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa: é preciso que tudo mude para que tudo continue como está. Ambos são ex-jogadores. Gilmar foi bom goleiro. Dunga, um bom volante. O primeiro tornou-se empresário de jogadores.

RAFAEL RIBEIRO/CBF/FOTOS PÚBLICAS

Novos tempos. Novos?

Dunga e Gilmar: “Não adianta explicar”

O segundo ainda não emplacou como técnico. Dirigiu apenas a seleção brasileira e, por menos de um ano, sem brilho, o Internacional de Porto Alegre. Ambos representam dúvidas se podem personificar as mudanças pelas quais se clama. O fato de Gilmar ter longa atuação como empresário

deixa um rastro de desconfiança. Ele declarou que já esperava receber “pancadas” e ter sua vida devassada. Disse que responderá os críticos com trabalho. “Não adianta explicar, tem de mostrar”, afirmou, destacando talento, trabalho e planejamento como os três pilares da nova era Dunga. Será a terceira. Começou

como bode expiatório da eliminação brasileira na Copa de 1990, contra a Argentina, atingiu o ápice na conquista do tetra em 1994, marcada por um futebol burocrático, e terminou na melancólica derrota para a França, na final de 1998. A segunda foi em 2010, com campanha razoável, derrota súbita para a Holanda nas quartas de final e muitas, muitas brigas com jornalistas, tendo a Globo como face mais visível. Os desafios estão próximos. No ano que vem, começam as eliminatórias para o Mundial de 2018, na Rússia. Em 2016, tem Copa das Américas. No ano seguinte, Copa das Confederações. Entre os adversários do futebol brasileiro, além de seleções mais evoluídas e organizadas, está a resistência de cartolas que não gostariam de mexer em time que está ganhando: o deles.

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JON BERKELEY/IKON IMAGES/GETTY IMAGES

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As redes de Pandora As redes sociais tanto podem ser canal de compartilhamento de informação, como de escoamento de confusão e ódio. A desinformação e a baixaria podem ser identificadas e evitadas Por Diego Sartorato

C

om o início oficial da campanha eleitoral de 2014, no dia 5 de julho, candidatos a presidente da República, senador, governador, deputado federal e deputado estadual ativaram suas páginas nas principais redes sociais, como Google+, Facebook e Twitter. O objetivo da presença na internet é centralizar mensagens de estímulo a seus apoiadores e dialogar com eleitores indecisos, apresentar propostas e projetos ou, simplesmente, reforçar nome e número de urna na memória do cidadão. Isso, claro, na superfície. Sob um ambiente republicano e propositivo, onde impera a cordialidade, candidaturas de todas as cores partidárias e ideológicas concentram em torno de si, com anuência das coordenações de campanhas ou não, centrais de boataria que espalham notícias desatualizadas ou fora de contexto, mentiras e maldades pelas redes sociais. A página boatos.org, dedicada a desmentir fofocas mentirosas que circulam pelas redes sociais como se fossem fato, aponta a presidenta Dilma Rousseff (PT) como principal alvo das mentiras nas redes sociais, com mais de 50 boatos divulgados sobre ela desde 2010, sua campanha anterior. São montagens de foto – como a que apresenta a presidenta exibindo os dedos do meio à torcida do Brasil durante o jogo de abertura da Copa do

Mundo –, de vídeos – um deles mostra que um jogador alemão, após sagrar-se campeão do Mundial, teria se recusado a apertar a mão da presidenta– e muitas histórias para lá de suspeitas. “Ministro das finanças da Suíça humilha Dilma na Europa”, “Dilma traz 50 mil haitianos para votar pelo PT” e “ex-namorada de Dilma entra na Justiça e cobra pensão” são apenas alguns exemplos do tipo de material que busca alimentar preconceitos contra cor da pele e identidade sexual, por exemplo, e prejudicar a imagem da presidenta perante a parcela mais conservadora da sociedade. Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB), candidatos a presidente pela oposição, são menos citados e com menor virulência. Em relação a Campos, a única invenção das redes sociais registrada no site, de tendência neutra, é o de que ele seria filho ilegítimo do compositor Chico Buarque. A “evidência” do parentesco seria apenas a cor dos olhos. Contra Aécio, a carga é mais pesada: “memes”, como são chamadas as imagens sobrepostas por texto de tom humorístico ou sarcástico, e falsos links o acusam de mover ação contra a cerveja Heineken por ter uma estrela vermelha (símbolo do PT) na garrafa, de menosprezar o voto dos professores e de usar sua filha do casamento anterior, com Andrea Falcão, para realizar tráfico internacional de diamantes. A campanha mais intensa contra Aé-

cio, no entanto, é relacionada a seu suposto vício em cocaína. Foram as repetidas menções a essa história que levaram o candidato a solicitar ao Google que restringisse o recurso autocompletar da barra de busca do site por conta da associação imediata que o sistema fazia entre o nome do senador mineiro e o entorpecente, levando em conta a quantidade de citações na rede e de pesquisas realizadas com esses termos. O candidato tucano registra, ainda, o único caso de boato positivo para sua imagem de acordo com o boatos.org: texto que circulou pelas redes sociais como se fosse produzido por veículos tradicionais de comunicação dava conta de que o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa teria aceitado ser ministro da Justiça caso Aécio seja eleito presidente. Barbosa, que mesmo sem poder ser candidato chegou a pontuar 14% em pesquisa Datafolha de fevereiro, é figura de prestígio entre o eleitor alinhado ao PSDB.

Exacerbar a comunicação

Dilma, cuja campanha atualmente realiza seminários de formação para militantes virtuais e orienta seus apoiadores a buscar desmentir boatos, e Aécio, que tem buscado prioritariamente o caminho judicial para impedir a propagação de notícias falsas, são alvos mais atingidos por sua evidência pública. “Enquanto nas redes empresariais e científicas há objetivos e tarefas, a finalidade das redes sociais de internet é prioritariamente promover e exacerbar a comunicação”, analisam as professoras Lúcia Santaella e Renata Lemos, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, no estudo A Cognição Conectiva do Twitter (2010). “As redes sociais de internet estão demonstrando que o humano quer se comunicar com a finalidade pura e simples de se comunicar, estar junto”, continuam, “não importa quando, como ou para quais fins”. Essa tendência, que valoriza o estardalhaço de um boato negativo, indica a prioridade de compartilhar conteúdos que confirmem opiniões já compartilhadas pelo meio social do internauta, REVISTA DO BRASIL

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CLEMILSON CAMPOS/JC IMAGEM

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sem necessidade de que as informações sejam, de fato, verdadeiras. Ocorre, no entanto, que determinadas histórias obscuras da internet tenham objetivos muito claros. Em 2013, um boato sobre o fim do Bolsa-Família originado em uma empresa de telemarketing contratada para espalhar a história por meio de mensagens pelo celular, além de uma enxurrada de compartilhamentos da história por perfis falsos no Twitter, levaram a 920 mil saques de beneficiários do programa na Caixa Econômica Federal em maio de 2013, com impacto sobre o caixa da instituição da ordem de R$ 152 milhões. O episódio alimentou nova onda de críticas ao programa e de comentários preconceituosos na rede contra cidadãos que recebem o auxílio governamental. Um capítulo à parte são os “causos” sobre as posses de Fábio Luís Lula da Silva, filho do ex-presidente Lula, conhecido como “Lulinha”. De acordo com mensagens divulgadas pela internet, ele se14

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ria proprietário da Friboi (empresa pertencente ao grupo JBS), teria comprado uma fazenda em Fortaleza, no Ceará, por R$ 47 milhões e um jatinho Gulfstrem Gill por mais R$ 100 milhões. A imagem que acompanhava as mensagens sobre a compra da fazenda é, na verdade, de prédio histórico que sedia a Escola de Agricultura da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba, interior paulista. Seis pessoas foram denunciadas em inquérito pela difamação da família de Lula, entre elas Daniel Graziano, coordenador do site Observador Político, do Instituto FHC, e filho de Xico Graziano, coordenador de redes sociais da campanha de Aécio. Intimado a depor por três vezes, Daniel nunca compareceu ao Judiciário para esclarecer seu envolvimento no caso. As histórias de enriquecimento de Lulinha fazem consonância a outro boato comum, de que Lula integraria a lista de 100 maiores bilionários da lista da revista Forbes. A própria revista norte-americana desmentiu.

ROBERTO STUCKERT FILHO/PR

CRIME Em 2013, a central de boatos levou milhares de pessoas a correr para as agências da Caixa por causa do “fim do Bolsa Família”

DILMA BOLADA Jeferson Monteiro, criador do personagem, tirou seu site do ar no dia 5 de julho para se prevenir de possíveis acusações de favorecimento à candidata. A central de boatos não o poupou: estaria trabalhando para o PT ou como agente duplo do PSDB


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Trolls e robôs

conta com poucos contatos e Os canais de divulgação compartilha conteúdos com dos boatos são variados. longos espaços de tempo entre um e outro, sobre temas Além do internauta ansioso por compartilhar infordesconexos. Já o troll se esmações que ganhem a atenconde e, em uma discussão ção da maior parte de seus on-line, apresenta sempre o contatos, há páginas e perdiscurso mais extremado, fis, geralmente falsos ou com o objetivo de provocar anônimos, profissionalizapolêmica, e com o qual é imdos em compartilhar infor- DIFAMAÇÃO possível argumentar: o obO filho de Lula, mações duvidosas. É o caso Fábio Luís, é vítima jetivo do troll, inflexível em da “TV Revolta”, perfil que preferencial da central suas “opiniões”, é embolar o boatos. As mentiras tem mais de 3,6 milhões de de debate e desqualificar interrenderam processos locutores. fãs no Facebook e promove contra empresas, Fenômeno na internet, a “notícias” que distorcem o jornalistas e políticos personagem Dilma Bolada, funcionamento de programas sociais, como o auxílio sátira da presidenta Dilma reclusão pago a famílias de presidiários (o mantida pelo publicitário Jeferson Monsite é, provavelmente, o criador do ape- teiro, relatou recentemente caso que, se lido “bolsa bandido”) e superdimensio- confirmado, revela o quão baixo o jonam indicadores, como a inflação. Há, go pode chegar na internet. No começo ainda, os “robôs”, como são chamados do ano, uma agência de marketing digiperfis falsos que proliferam, principal- tal que supostamente estaria trabalhando mente, no Twitter, programados para re- para a campanha de Aécio teria entrado produzir intensamente boatos para que em contato com Monteiro com o objetivo eles ganhem a credibilidade de um gran- de “comprar” a personagem para a campade número de “curtir” e “compartilhar”. nha tucana por R$ 500 mil: assim, Dilma Não é difícil identificar esses perfis. Ro- Bolada, que normalmente brinca com a bôs, em geral, têm perfil vazio e incomple- personalidade tida como durona da presito, com fotos genéricas ou de celebridades, denta e defende as ações do governo petis-

ta, passaria para o lado da oposição. Pelo relato do publicitário, não fica claro se a contratação seria divulgada abertamente ou se a atuação da Dilma Bolada para o PSDB seria enrustida, confundindo o internauta alheio ao processo. Por conta da interferência eleitoral, Monteiro chegou até a retirar a personagem do ar após 5 de julho. “Há alguns dias foi liberada a campanha e é muito ruim saber que você pode fazer a diferença, mas ver que está quase sozinho no meio de uma tormenta que é a internet, e que tem tudo para piorar conforme 05/10 se aproximar”, postou, nas redes sociais, o criador da personagem. Desde então, boatos de que Monteiro seria contratado para a campanha do PT passaram a surgir na mídia tradicional, que chegou a afirmar que Monteiro teria sido contratado para ser consultor da campanha de Dilma. O publicitário nega. “Caso um partido procurasse a mim, Jeferson Monteiro, para trabalhar na campanha, eu aceitaria numa boa, até mesmo porque não há nada de errado nisso. A Dilma Bolada não entra nessa história e em nenhuma negociação, porque é uma página pessoal, Única e exclusivamente minha e que não tem preço”, afirmou, no último dia 30 de julho, em seu perfil no Facebook.

Como evitar a central de boatos O internauta ainda é central na prevenção de boatos que têm como objetivo substituir o debate verdadeiramente necessário do período eleitoral: o de projetos para o país. “Uma vez conectado, de uma forma ou de outra, acabaremos sendo atingidos por mensagens falsas, principalmente se tratando de política, que será o assunto principal de inúmeras pessoas, familiares e amigos”, avalia Gabriel Leite, presidente da Mentes Digitais, empresa de mídias sociais de Aracaju. “Nem tudo que lemos na internet é verdade, assim como nem tudo que nos dizem é verdade. É preciso entender isso e buscar sempre pesquisar, saber

se realmente a publicação é verdadeira, ir ao Google, buscar portais de maior credibilidade. Você é o que você compartilha, e se você compartilha inverdade, as pessoas vão achar que o mentiroso é você, e não a notícia. Compartilhou, assinou embaixo”, aconselha. As dicas de Leite estão em consonância com as orientações da agência de marketing digital Frog, com sede no Rio de Janeiro. A pedido da Revista do Brasil, os analistas da empresa, que atende clientes como Vale, Coca-Cola e Motorola, entre outras, enumeraram passos simples para evitar armadilhas.

Se a notícia é real precisa ter fonte. Não acredite em conteúdos que estejam unicamente em um post em rede social. Sempre procure por um link externo e veja se é de uma fonte conhecida e confiável. Notícias reais também possuem datas e nunca são apócrifas. Citações vagas do tipo “segundo um jornal de grande circulação” quase sempre apontam um boato. Ainda na dúvida? Pegue um trecho do texto ou arraste a imagem para o Google e faça uma busca. Pelas respostas você poderá ver se a imagem foi usada fora de contexto, ou se a matéria é real. Tente confirmar informações com as fontes oficiais, sejam os candidatos, partidos ou veículos. Não compartilhe conteúdos sem checar a veracidade. Os boatos só viralizam porque as pessoas os compartilham sem refletir sobre seu conteúdo. REVISTA DO BRASIL

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O jornalismo no divã do cinema O cineasta Jorge Furtado reúne um time respeitável de profissionais, uma peça teatral de 1625 e analisa quanto do jornalismo contemporâneo guarda do mercado de notícias do século 17. E vice-versa Por Paulo Donizetti de Souza

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m 1625, o dramaturgo inglês Ben Jonson escreveu a peça The Staple of News, sobre uma atividade que começava a nascer: o jornalismo impresso. O texto jamais havia sido traduzido para o português, até o cineasta gaúcho Jorge Furtado descobri-la e decidir montar a peça e levá-la ao cinema. Diretor de grandes títulos nacionais como Ilha das Flores, O Dia em que Dorival Encarou a Guarda, O Homem que Copiava, Meu Tio Matou um Cara e Saneamento Básico, Furtado lança neste agosto o documentário O Mercado de Notícias, inspirado na peça do autor contemporâneo de Shakespeare, para discutir a qualidade do jornalismo praticado no Brasil. Furtado chamou um time de 13 profissionais que considera “intelectualmente honestos” para dividir com o espectador reflexões sobre a profissão, as mudanças na maneira de consumir notícias e o futuro do jornalismo na era digital. As entrevistas são com Bob Fernandes, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, 16

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Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, José Roberto de Toledo, Leandro Fortes, Luis Nassif, Mauricio Dias, Mino Carta, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira e Renata Lo Prete. O filme intercala depoimentos, trechos da peça e minidocs que recuperam momentos emblemáticos do jornalismo brasileiro. Transparente, Furtado publicou as entrevistas, com pelo menos uma hora cada uma, no site do filme. O portal www.omercadodenotícias.com.br traz também o texto original e traduzido da peça, a montagem feita exclusivamente para o documentário e artigos analíticos do mundo da imprensa, em plena “infância” da era do jornalismo digital. “No momento em que o jornalismo de internet reagir, e só publicar comentários assinados, identificados, sem ofensas, aí vai chegar à idade adulta. Por enquanto, ainda permite que as pessoas descarreguem preconceitos, frustrações e ódio.” O cineasta faz uma reconstituição inédita do caso da bolinha de papel jogada em José Serra, na campanha de 2010, a partir


ENTREVISTA

O que o despertou para o interesse de fazer esse filme?

Sempre quis fazer Jornalismo. Não sei viver sem notícias. Tem gente que não dá bola. O Jorge Luis Borges, por exemplo, dizia que não lia jornais porque não acontecem coisas transcendentes todos os dias. Mas eu não sei viver sem. O jornalismo mudou muito com a internet, e teve muita gente que chegou a dizer que não seriam mais necessários jornalistas nem cursos de Jornalismo. Eu pensava o oposto. Naquele momento é que a gente passou a precisar mais ainda do Jornalismo. O jornalista é uma pessoa necessária. Junto tem a questão política. Na era pré-64 todo jornal tinha identificação com alguma força partidária. Em 1964, praticamente todos apoiaram o golpe. Com a abertura, todos acabaram sendo relativamente governistas, com Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique. A partir de 2003, passaram a ser oposicionistas.

LUCIANA WHITAKER/RBA

O Janio de Freitas comenta que os veículos aderiram ao processo de democratização, mas com a pretensão de tê-lo sob controle. A era Lula teria passado dos limites?

do olhar de cinco câmeras de TV, cada uma de um ângulo diferente. A análise permite se chegar a 99% de certeza sobre a origem do arremesso que levou Serra a uma teatral mesa de tomografia. Mas nenhum veículo foi atrás de chegar aos 100%. O texto de Jonson pode ser confundido com uma descrição contemporânea do mundo da informação: “Notícias criadas à moda de hoje, vigarices semanais feitas para ganhar dinheiro. E não poderia haver melhor forma para criticá-las do que criar essa ridícula agência, esse mercado onde cada época pode ver sua própria insensatez, sua fome e sede de panfletos de notícias que saem às ruas todos os sábados e que são escritos por quem não sai de casa, sem uma sílaba de verdade.” E Furtado provoca: “Se você tem certeza, está mal informado. O bom jornalismo é o que suscita dúvidas, e a ideia do filme é provocar dúvida”. O objetivo é alcançado. Não se sabe se Ben Jonson era um autor muito à frente de seu tempo ou se o jornalismo de hoje é que guarda resquícios dos mercados de notícias do século 17.

Os grandes veículos passaram a agir como partidos de oposição. Com a imprensa fragilizada pela concorrência da internet, e partidarizada, tarefas fundamentais do jornalismo passaram a ser descumpridas. E fiquei com mais vontade de fazer um documentário. Fui pesquisar a história do jornalismo e num livro do Peter Burke e do Asa Briggs, Uma História Social da Mídia, encontrei menção a uma peça do dramaturgo inglês Ben Jonson chamada O Mercado de Notícias (no original The Staple of News), de 1625. A peça é uma crítica ao jornalismo inglês, que tem início em 1622. Vi uma incrível atualidade no texto. Aí juntou uma obsessão minha pelo teatro elisabetano e fui estudar a peça. Levamos três anos na tradução. Fiquei espantado como o autor conseguiu em tão pouco tempo perceber questões como a credibilidade da fonte, a origem da notícia, o interesse econômico por trás das notícias, que são questões fundamentais até hoje – e gente que quer ser notícia, que paga para sair no jornal, o sensacionalismo, o consumo de notícia como entretenimento. A peça foi montada para uso exclusivo no filme?

Foi. Só para o filme. Chamei um grupo de atores gaúchos, ensaiamos durante seis meses, montamos, estudei a peça exaustivamente. Depois peguei o texto e convidei vários jornalistas brasileiros para analisar os temas que a peça discute. E o filme ficou com essas três linhas narrativas: a peça, as entrevistas e os minidocs lembrando alguns casos para ilustrar essas análises. E com que critério você escolheu os entrevistados?

Totalmente pessoal. São jornalistas intelectualmente honestos, que eu respeito e acompanho e que representam vários veículos e opiniões. Uma das frases do filme é “se você não está em dúvida, está mal informado”. Porque a dúvida é necessária. Eu queria que as pessoas terminassem o filme com muitas dúvidas, novas dúvidas. Falei por pelo menos uma hora com cada um deles e fui misturando os depoimentos dentro de um planejamento lógico. No site tem as entrevistas inteiras, tem a peça inteira, toda a pesquisa que a gente fez – tudo que tem no filme está ampliado no site. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Os grandes jornais produzem conteúdo para influenciar pessoas, ou o conteúdo é dirigido a pessoas que já tem o apetite aberto e esse tipo de jornalismo?

Tem um pouco das duas coisas. Tem gente que não muda de opinião, e a imprensa vai levar a determinado público exatamente o que ele quer. Mas ao mesmo tempo ela precisa criar novos leitores também, e de certa maneira aqueles que vão atrás de uma leitura sobre futebol ou cultura vão acabar vendo as outras coisas e sair repetindo. As pessoas leem muito manchete e legenda. Outro dia, numa conversa familiar, uma pessoa me disse que soube de um certo acontecido porque “deu na internet”. Que internet? A pessoa se refere à internet como se fosse uma coisa só. Antes tinha o “vi no jornal”, “ouvi no rádio”. Agora, “na internet”. Isso piora a qualidade da informação, porque na internet qualquer um pega o Facebook ou o Twitter e escreve qualquer besteira. Por isso, a produção jornalística é mais séria e necessária. Ou deveria ser...

Como aquele episódio da bolinha de papel atirada em José Serra na campanha presidencial de 2010. No filme, você reconstrói também essa história?

Esse episódio foi registrado por cinco câmeras de TV, cada uma por um ângulo diferente. Serra chegou a interromper a agenda e foi fazer uma tomografia para apurar a gravidade da lesão provocada por um objeto que todos noticiaram como sendo algo arremessado por algum militante governista. Havia câmeras de cinco emissoras de TV ali e ninguém na imprensa foi investigar quem foi o homem que, diante de cinco câmeras, jogou a bolinha de papel em José Serra. O filme mostra fortíssimas evidências de que foi um integrante da própria equipe de segurança do então candidato. Há 100% de certeza? Há 99%. O que os jornalistas têm de fazer? Ir atrás. Achar o cara que jogou a bolinha que todo mundo viu que foi jogada. Aí os jornalistas dizem: “Não dá para acusar sem ter 100% de certeza”. Não deixa de ser correto, não?

Sim, mas veja o caso do ex-ministro do Esporte Orlando Silva, denunciado por um sujeito que tinha sido preso por um desvio de mais de R$ 1 milhão, de um convênio de R$ 2,5 milhões com uma entidade que atende crianças carentes. Esse cara, quando saiu da prisão, deu uma declaração ao repórter: “Na época eu fiquei sabendo por um dos operadores do esquema que o ministro recebia dinheiro na garagem...” E a manchete foi: “Ministro recebia dinheiro na garagem”. Qual a credibilidade dessa fonte para transformar o que ela diz em manchete da Veja, sem checar se o que ele está dizendo procede? 18

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LUCIANA WHITAKER/RBA

Pois é. Se até na grande imprensa hoje em dia chegam a publicar denúncias com base em uma única fonte, com ficha criminal corrida servindo de denúncia contra a honra de uma pessoa, e aquilo vira manchete, imagine no Twitter, no Facebook. Quando essa poeira baixar, acho que a tendência será as pessoas passarem a filtrar mais o que é confiável e o que não é autêntico.

Tem gente que não muda de opinião, e a imprensa vai levar a determinado público exatamente o que ele quer Diariamente deparamos com um festival de “teria dito”, “teria feito”, “supostamente”. Por que a imprensa não checa antes de publicar? Não é curiosa o bastante?

Aí vem o viés ideológico. Se o boato favorece o pensamento do jornal, checa. Se não convém, não checa. E a influência desses veículos é grande. “Ah, eu li que o cara pegava dinheiro na garagem...” E o caluniado carrega o estrago para a vida toda. Para conseguir um direito de resposta leva cinco, seis anos até sair um desmentido, e desse tamanhinho escondido, ninguém vê.

Você fez Jornalismo no início dos anos 1980 e frequenta ambientes universitários. Há esperança de que as faculdades hoje estejam formando pessoas melhores?

Tem uma novíssima geração que está entrando na universidade agora e que é mais politizada do que a de pelo menos dez anos atrás. Esses movimentos de rua que aconteceram, com todos os seus problemas de indefinições, serviram para mostrar que os jovens estão interessados em política. Esse era um assunto-chave: “Ninguém quer saber de política”. Querem, sim. Só que estão descrentes, e com razão. Estão procurando novos caminhos, meio atabalhoadamente, mas estão. Então está chegando aí uma geração melhor, inclusive de jornalistas.


ENTREVISTA

Mas as grandes empresas não acabam atraindo os melhores, que por sua vez logo passam a pensar com a cabeça do dono?

Tem isso. É que a gente está no meio de uma revolução (da era da informação). E é difícil entender uma revolução enquanto ela ainda está acontecendo. Não se descobriu, por exemplo, como se viabilizará financeiramente o jornalismo digital. O jornalista tem de sair a campo sempre, tem de criar e manter o público para viver daquilo. Quem é que vai financiar isso?

A oferta é grande. Por que o leitor vai pagar por algo que encontra fartamente na praça?

O mesmo cara que escreveu Cauda Longa (Chris Anderson, editor da revista Wired, a respeito do conceito de negócio que sobrevive por ter um volume muito amplo de itens a oferecer mesmo que haja poucos compradores para eles), tem um livro chamado Grátis – O Futuro dos Preços. Ele diz o seguinte: “O que não for grátis vai acabar”. Se as pessoas mal têm tempo de ler o que é de graça, por que vão pagar por algo que encontram fartamente? Mas se o leitor não bancar um veículo de informação, o que vai garantir a sua independência?

Ninguém tem essa resposta. Se sua revista tem anúncios de incorporadoras, você vai conseguir fazer matérias críticas à especulação imobiliária? E se tiver anúncios do governo, terá liberdade de produzir informação contra o governo? Por isso, essa é uma questão inconclusa. Mas a necessidade de o jornalismo ser algo profissional não se discute. Você acredita que os grupos que vêm promovendo protestos desde junho do ano passado possam vir a incorporar causas como a reforma política e a democratização das comunicações?

Não sei. A primeira impressão é que não. Essas pessoas foram impulsionadas por uma série de fatores, uma demanda represada. Começaram em Porto Alegre contra o aumento das tarifas e pela melhoria dos serviços de transporte público. A mobilização pelas redes torna possível que em poucas horas 20 mil pessoas estejam na praça. Era contra o aumento, depois passou a ser contras as más condições de saúde e de educação, depois “contra tudo isso que aí está”, a Copa, os governos, o PT, o PSDB, fora Globo, fora Itaú... Vários movimentos tentaram se apropriar e não conseguiram. Até a grande imprensa tentou. Então, se protesta contra muita coisa, mas a favor de quê? Aí entra a diferença entre a política e a rebeldia. Política não é só ser contra, é preciso propor. Na onda de ser contra todo mundo se une. Para ser a favor, se dividem.

O suplente do senador Demóstenes Torres (DEM-GO, cassado em julho de 2012 por envolvimento com o criminoso Carlinhos Cachoeira) foi o maior financiador de campanha dele...

Sim. E foi também o primeiro marido da mulher do Carlinhos Cachoeira. E é hoje um senador da República... Mas sou otimista. Vivemos nosso maior período de estabilidade democrática, há 25 anos temos eleições diretas para presidente, e a gente só está melhorando. Tem milhões de coisas para consertar. Só um imbecil viria a público dizer que está tudo certo. Mas a gente só está melhorando, e graças à democracia. Não há nenhum candidato competitivo com origem na direita conservadora tradicional. Recentemente você lançou a campanha “Troll Free – Sem trolhas (pelo ar puro na rede!)”. Qual o significado disso?

Tem um texto interessante no site do filme sobre o “veneno digital”. Enquanto a internet não criar meios de conter a baixaria, o jornal e a revista de papel vão continuar existindo, porque eles não aceitam isso. No momento em que o jornalismo de internet reagir, só publicar comentários assinados, identificados, sem ofensas, vai chegar à idade adulta – por enquanto está na infância. E ainda permite que as pessoas descarreguem preconceitos, frustrações e ódio. O que acha dos programas que misturam jornalismo com entretenimento? Dá para misturar?

É o que tem de pior. Tem uma frase na peça que diz: “Danem-se as brincadeiras com a verdade”. Não dá pra chamar isso que fazem de informação. Humilhar pessoas para ganhar audiência. É baixaria. Você acredita que o cinema pode ser ferramenta auxiliar de educação, na falta de um jornalismo mais qualificado e de currículos que acompanhem melhor a evolução das sociedades?

Sim, tem até um projeto recém-lançado, que distribui ingressos para que alunos e professores da rede pública tenham mais acesso a filmes nacionais. Outro que determina pelo menos duas horas-aula por mês baseadas em exibição. A escola é uma instituição ultrapassada. Funciona praticamente do mesmo jeito que nos tempos de José de Alencar e Monteiro Lobato. Foi pensada num tempo em que não existia nenhuma das formas de expressão que temos hoje. Não havia rádio, televisão, cinema, internet. Todas essas formas de expressão têm de ser incorporadas. O cinema é uma excelente maneira de se discutir a vida, e pode até motivar a ler um livro. Colaboraram Vitor Nuzzi e Xandra Stefanel

Outro dia, numa conversa familiar, uma pessoa me disse que soube de um certo acontecido porque “deu na internet”. Que internet? A pessoa se refere à internet como se fosse uma coisa só. Antes tinha o “vi no jornal”, “ouvi no rádio”. Agora, “na internet”

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UMA BOA E UMA MÁ NOTÍCIA

Quem acompanha a situação da economia pelos jornais pode ver um país. Quem acompanha a opinião das pessoas pode ver outro. Um dos lados pode estar errado. E quem dialogar com o lado certo pode vencer a eleição Por Fábio Jammal Makhul

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ECONOMIA

LUCIANO LOZANO/IKON IMAGES/GETTY IMAGES

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ão é improvável um espectador do telejornal noturno ter o sono perturbado com vozes soturnas de apresentadores e analistas. Pelo que se vê e se ouve, não se sabe o que aquele apresentador sério e bem afeiçoado quer dizer com aquele “boa noite”. Afinal, a economia do Brasil pode estar à beira da bancarrota. Tampouco se perdoa aquele “bom dia” do apresentador da manhã, pois os jornais do dia também trarão o apocalipse. Não é para menos. A preocupação com a economia move o dia a dia das pessoas, inclusive as que dormem mais cedo que os jornais noturnos. Ninguém passa um único e escasso dia sem fazer contas. Foi entendendo a importância dessa ciência, nem sempre exata, que o estrategista James Carville, do Partido Democrata, eternizou a frase “é a economia, estúpido!” Era 1992, e com esse aprendizado Bill Clinton superaria o favoritismo do republicano George Bush, pai, demonstrando sintonia com as angústias cotidianas dos norte-americanos nesse quesito. Eis o segredo do homem que faria história no Salão Oval da Casa Branca pelos próximos oito anos: saber o que, com quem e por que estava falando. O noticiário econômico cumpre vários objetivos. Um deles, saciar os humores do mercado financeiro, servir de ponte para suscitar apostas nos cassinos da especulação, detectar (ou criar) o clima do ambiente eleitoral, entre outros, inclusive informar de vez em quando. Mas pelo que algumas pesquisas têm demonstrado, a opinião pública talvez não veja a economia do Brasil como a veem os especialistas. Pesquisas do Datafolha apuram o índice de confiança do brasileiro em relação ao país. Numa escala de 0 a 200, um levantamento feito no início de julho revelou que a expectativa da situação econômica pessoal é de 160 pontos, sendo um dos “aspectos para os quais os brasileiros demonstram um sentimento positivo acima da média”, no relato do instituto. Já a expectativa da situação econômica do país registrou 102 pontos em julho, alta de 6 pontos na comparação com maio. Os eleitores brasileiros também foram consultados sobre a situação econômica pessoal

e 48% esperam que ela vá melhorar nos próximos meses. Outros 38% acreditam que ficará como está, e apenas 12%, que vai piorar. Pela pesquisa, pode-se constatar que há um grande descompasso entre o sentimento positivo do brasileiro com relação à economia e o cenário catastrófico divulgado pela mídia tradicional.

O jornal ou o caixa

O comerciante Mário Paixão da Silva, de 46 anos, tem uma pequena loja de roupas no centro de Recife há mais de 20 anos. E diz que basta conferir as vendas para saber se a economia está bem ou não. “Você acha que vou acreditar no jornal ou no meu caixa?”, brinca, ainda comemorando as vendas que fez durante a Copa do Mundo. “A gente precisa ser criativo e se reinventar a cada dia. Durante a Copa, por exemplo, troquei as tradicionais roupas da vitrine por camisas da seleção ou por peças que privilegiassem o verde e o amarelo. Vendi muito, não posso reclamar. E nos últimos meses, minhas vendas estão no mesmo patamar dos anos anteriores”, diz. Mesma opinião tem a auxiliar de serviços gerais Vilma Silva de Lima, de 57 anos. O noticiário econômico não é algo que a perturbe, ou atraia. Moradora de um bairro pobre de Camaragibe, região metropolitana de Recife, Vilma diz que suas principais preocupações são com a saúde pública e a segurança. “Aliás, nas próximas eleições, vou prestar atenção no que os candidatos vão dizer sobre esses problemas”, afirma. Com a aproximação do pleito, a imprensa começa a definir candidatos que querem ajudar ou atrapalhar. E diferentemente de quase um quarto do eleitorado, parecem não estar indecisos, analisa o jornalista e sociólogo Venício Artur de Lima, professor titular de Ciência Política e Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Lima analisa o comportamento da imprensa em eleições há três décadas e tem vários livros sobre o tema. Para ele, a profusão de informações parciais para privilegiar uns e prejudicar dá o tom. “Seguem a mesma conduta das eleições passadas, talvez de forma ainda mais exacerbada.” O pesquisador pondera, porém, que REVISTA DO BRASIL

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ARQUIVO PESSOAL

ECONOMIA

o Brasil mudou e o eleitor está mais capacitado e dispõe de meios diversos de informação para decidir o voto. “Tenho uma visão diferente da que tinha quando comecei a estudar eleições, nos anos 80. As pessoas buscam muito mais informação fora do esquema da grande mídia. É claro que a TV aberta continua sendo a principal fonte de informação, mas as fontes alternativas têm peso muito grande desde 2006”, avalia. Isso não significa, observa Lima, que a imprensa convencional não seja importante para influenciar comportamentos em longo prazo. “A percepção das pessoas sobre corrupção e a estigmatização dos partidos ainda são influenciadas pela mídia. Mas no comportamento eleitoral em si, o peso do que é publicado nos principais jornais, na TV e no rádio diminuiu, graças a meios que antes não existiam”, diz.

Pessimismo militante

Usar o jornalismo econômico para fazer política no Brasil é uma estratégia que tem sido bastante criticada por Luis Nassif, jornalista econômico com 45 anos de experiência e organizador do portal GGN. Para ele, há muitas críticas à condução da política econômica do governo federal e vulnerabilidades que precisam ser enfrentadas – especialmente o desequilíbrio nas contas externas do país. “Mas nada que nem de longe se pareça com o quadro pintado nos grandes veí22

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FÁBIO JAMMAL MAKHUL

DESCONFIANÇA À ESQUERDA E À DIREITA Alexandre: “Gosto da pluralidade de pensamentos. Com a internet é possível comparar versões”

VENDAS EM ALTA Mário: “Você acha que vou acreditar no jornal ou no meu caixa?”

culos. Aumentos de meio ponto percentual ao ano nos índices inflacionários são tratados como prenúncio de hiperinflação; acomodamento das vendas do varejo, em níveis elevados, como prenúncio de recessão”, comenta. O que ele chama de “pessimismo militante” compromete a crítica necessária sobre os pontos efetivamente vulneráveis da política econômica e do processo de desenvolvimento do Brasil. “Há uma guerra política inaugurada em 2005 que sacrifica a notícia no altar das disputas partidárias. É evidente que há muito a melhorar no ambiente e na política econômica. Mas quem está em crise expos-

ta, hoje em dia, é certo tipo de jornalismo que acabou subordinando os fatos a disputas menores.” O fotógrafo Alexandre Lombardi, de 38 anos, não gosta de generalizar uma má conduta da imprensa. Ele não duvida que todo veículo favorece um lado e prejudica outro. Lê os jornais tradicionais, procura na internet por blogs, fóruns de discussão e mídias sociais com pensamentos diferentes. Mas desconfia à esquerda e à direita, e procura consistência: “Gosto da pluralidade de pensamentos”, conta Alexandre, que mora em Sorocaba, interior paulista. “A internet deixou tudo muito fácil. É possível comparar versões. Analiso, converso com os amigos e formo a minha própria opinião. Não tiro conclusões baseadas em uma única fonte”, explica. Ele ainda não definiu candidatos para a próxima eleição, mas levará em conta suas propostas, inclusive para a economia. Transmitir confiança, credibilidade e consistência, com propostas claras, será o melhor meio de ganhar o voto do eleitor em outubro. Quem afirma é o publicitário Renato Meirelles, sócio-diretor do instituto Data Popular – empresa de pesquisa especializada no conhecimento das classes C e D, onde se concentra a maioria dos brasileiros. “O que vai decidir o voto é a capacidade das candidaturas de entender os problemas reais que o eleitor enfrenta e de oferecer perspectivas de futuro”, observa. Para Meirelles, será, antes de tudo, uma eleição sobre o futuro, e não de legado. “Os eleitores estão mais preocupados em saber o que vai levar o Brasil adiante, e não o que trouxe o país até aqui. Isso coloca a discussão em outro patamar. Os candidatos devem fazer uma campanha muito mais propositiva, em vez de ficar falando do passado”, explica. A queda na credibilidade da imprensa, as novas tecnologias da informação e a recente ascensão social no Brasil criaram um novo formador de opinião que terá peso nestas eleições. Trata-se do jovem da classe C. “Esses jovens estudaram mais que os pais, estão mais conectados, contribuem mais com a renda familiar do que o jovem da elite. Ele é provedor de conteúdo em casa e sua opinião vai ajudar a definir o voto da família”, afirma Meirelles.


LALO LEAL

Raro espaço democrático

A cada dois anos, o rádio e a TV vivem um curto período democrático, pelo menos no que diz respeito às informações políticas: o chamado horário eleitoral gratuito

O

horário eleitoral, para começar, de gratuito não tem nada. As emissoras recebem compensações do Tribunal Superior Eleitoral pelo tempo despendido, que acaba sendo um oásis de informação e debate diante do cotidiano partidarizado da mídia eletrônica. Durante 45 dias, entre 19 de agosto e a antevéspera das eleições, as emissoras de rádio e TV abertas (mais as dos poderes legislativos e executivos transmitidas por cabo) são obrigadas a reservar determinados espaços em suas programações para que partidos e candidatos se apresentem. Por lei, os programas devem ser transmitidos em dois horários. Na televisão, das 13h às 13h30 e das 20h30 às 21h. No rádio, das 7h às 7h30 e das 12h às 12h30. São os raros momentos em que temas excluídos ou demonizados pelo telejornalismo convencional aparecem na tela. Claro que aberrações político-eleitorais que vão dos palhaços aos aerotrens também surgem, mas isso faz parte do jogo. O importante é a independência editorial desses momentos. Só neles o rádio e a TV livram-se das imposições políticas, comerciais e religiosas das emissoras. Mas como toda a liberdade, essa também não é absoluta. A lei eleitoral estabelece os limites, e a Justiça especializada cuida do seu cumprimento. Graças a isso, um dos mais importantes instrumentos existentes para o exercício da democracia – o direito de resposta – é aplicado sempre que necessário. Infelizmente, fora do período eleitoral, por uma decisão equivocada do Supremo Tribunal Federal, presidido à época pelo ministro Carlos Ayres Britto, o direito de resposta deixou de existir em lei, embora garantido pela Constituição. No caso do horário eleitoral, a resposta tem de ser veiculada em, no máximo, 24 horas após a transmissão da cena considerada ofensiva pela Justiça. Se a infração ocorrer durante a programação normal das emissoras, o prazo para reparação é de 48 horas – e de 72 horas quando se tratar da mídia impressa.

Como se vê, não é apenas no horário eleitoral que cabe o direito de resposta. Qualquer programa, telejornal, auditório, novela que fizer propaganda contra ou a favor de um partido ou candidato estará sujeito a sanções. É por isso que muitos apresentadores de rádio e TV se insurgem raivosamente contra a lei eleitoral alegando cerceamento à liberdade de expressão. Alguns podem até ser sinceros e predispostos a discutir as eleições de maneira equilibrada. No entanto, conhecendo nossa mídia não seria surpresa se, na ausência da lei, as emissoras se transformassem de forma descarada em agentes de propaganda partidários. Programas eleitorais obrigatórios e uma legislação que coíba o uso irresponsável de um meio de comunicação são dois exemplos que deveriam ser ampliados para o cotidiano da comunicação. No primeiro caso, trata-se do direito de antena, prática consagrada em vários países democráticos, mas inexistente no Brasil. As concessões de rádio e TV não podem ter suas grades de programação preenchidas apenas por conteúdos de interesse de seus controladores. Como espaços públicos, devem ser abertos para outras vozes organizadas existentes na sociedade. Hoje só os partidos políticos, de forma restrita, têm esse direito. Além deles, “organizações sindicais, profissionais e representativas das atividades econômicas, bem como outras organizações de âmbito nacional” deveriam ter o mesmo direito, “de acordo com a sua relevância e representatividade e segundo objetivos a definir por lei, a tempos de antena no serviço público de rádio e televisão”, como diz com clareza a Constituição de Portugal. No mesmo sentido, França, Países Baixos, Alemanha e Espanha, por exemplo, também garantem que partidos e movimentos sociais tenham espaço no rádio e na TV. Além da Argentina, que consagrou essa prática em sua nova Lei de Meios Audiovisuais. Por aqui, em vez de avançarmos no mesmo sentido, até a Voz do Brasil, uma das poucas áreas públicas de comunicação ainda não privatizadas, vê-se ameaçada pelas forças do mercado. REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

O fim da picada Referência brasileira em soros e vacinas, Instituto Butantan paralisa grande parte de sua produção e segue sucateado pelo governo paulista Por Cida de Oliveira

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fachada imponente do Edifício Vital Brazil tem significado duplo para o Instituto Butantan, vinculado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Inaugurado em abril de 1914 para abrigar laboratórios para pesquisar soros, principalmente contra a peste bubônica, o centro de pesquisa deu origem a uma instituição que se tornaria uma das maiores referências em saúde, ciência e inovação no país. Cem anos depois, o avançado processo de sucateamento é evidenciado por rachaduras, infiltrações e mofo que tomaram conta das paredes e de partes do teto que parecem prestes a desabar, pelas imensas portas 24

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de madeira que apodrecem e por visíveis gambiarras na parte elétrica – como a de um aquecedor, segundo a perícia, que teria causado o incêndio no laboratório de répteis, em maio de 2010. O descaso que destruiu o acervo e indignou a opinião pública resultou no indiciamento, pela Justiça, do então diretor-geral Otavio Azevedo Mercadante, ex-chefe de Gabinete de José Serra (PSDB) no Ministério da Saúde, além do diretor administrativo, Ricardo Braga de Souza, o diretor de um dos laboratórios, Otávio Augusto Vuolo Marques, da pesquisadora Selma Maria de Almeida Santos e do engenheiro Carlos Ely Almeida Correia. Em condições precárias, o prédio abri-

ga hoje a biblioteca, fechada ao público há anos e com parte do acervo no porão, e salas onde pesquisadores se espremem para continuar trabalhando. Na rua de trás, outras construções antigas, que deram lugar à produção de vacinas como a BCG, contra a tuberculose, também estão abandonadas, carecendo de restauro urgente. A poucos metros dali, outro monumento ao descaso com o patrimônio público: numa área onde uma creche para filhos de funcionários e a sede da associação de servidores foram demolidas, um prédio moderno, de dois pavimentos, teve a obra embargada recentemente. Uma placa na entrada informa que os recursos vieram da Financiadora de Estudos e


SAÚDE

de 40 anos por decreto do governo estadual. Muitos dos antigos moradores não conseguiram resistir às pressões e deixaram as casas, que aos poucos vão sendo adaptadas em instalações administrativas e até mesmo laboratórios. Outros resistem.

DETERIORADA A fachada do Instituto aguarda o término da reforma há anos. Por dentro, a situação é ainda pior

Projetos (Finep), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação – o logotipo do governo federal está apagado. O espaço seria suficiente para abrigar diversos laboratórios e tantas outras salas para finalidades afins. Nas imediações do Hospital Vital Brazil, construído na década de 1940 e que até hoje atende pessoas picadas por cobras, aranhas, escorpiões e outros animais peçonhentos, cientistas trabalham em laboratórios apertados, com paredes mofadas, mobília e equipamentos carentes de manutenção. Pudera. As oficinas onde eram fabricados e reformados estão desativadas. Há ainda o desmonte do núcleo residencial de servidores, instituído há mais

FOTOS RAONI MADDALENA/RBA

Obras frenéticas

Nem tudo, porém, é sucateamento. Bem perto do hospital e do macacário, onde são criados os macacos rhesus para pesquisas com vacinas contra o vírus da aids, estão prédios novos cujas placas indicam ser fábricas de vacinas e soros, além de modernas oficinas de manutenção e contêineres transformados em escritórios. Há grande movimento de veículos e pessoas, a maioria seguranças terceirizados, engenheiros e outros trabalhadores da construção. Frenéticas, as obras avançam sem limites, chegando a cortar árvores como o pau-brasil, o que é proibido por lei. A intervenção criminosa em área de preservação permanente está sendo investigada pela promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público Estadual. Quem passa por ali tem a impressão de ser um complexo biotecnológico produzindo a todo vapor. Mas não é preciso entrar para constatar exatamente o contrário: praticamente nada produzem atualmente. “Há dois anos não se faz vacina contra hepatite. A única coisa que tem lá é o concentrado em pó, no congelador,

que logo perde a validade. A água estava contaminada e a Anvisa não deu certificado de boas práticas. Teve de parar”, conta uma trabalhadora do setor. Como outros servidores, ela pede para não ser identificada, já que o assédio e as ameaças são frequentes. Há paralisação também na produção do imunizante contra difteria e tétano. O Butantan está colocando sua marca em rótulo de vacina de uma empresa canadense, a Intervax, que por sua vez compra de um laboratório da Bulgária, a BB-NCIPD. E há vacinas cujo rótulo indica produção em 2013, período em que a fábrica desse imunizante estava interditada pela Anvisa. Também está para da a produção dos soros antirrábico humano, antitetânico, antibotrópico (contra o veneno da jararaca), anticrotálico (da cascavel), antielapídico (coral) e antiloxoscélico e antiaracnídico, contra veneno de aranhas. Conforme a Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde (MS), “as instalações não estão de acordo com as normas legais vigentes das boas práticas de fabricação (BPF) exigidas pelas agências regulatórias e não puderam produzir”. Maior comprador, o ministério está recorrendo aos estoques da Organização Pan-Americana de Saúde para abastecer os postos de saúde, que há pelo menos um ano tem seus estoques abaixo do necessário.

RECURSOS PÚBLICOS Edifício para abrigar novos laboratórios teve verba federal, mas não foi concluído pelo governo de São Paulo: desperdício e má gestão REVISTA DO BRASIL

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De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no início deste ano o Butantan obteve certificado de boas práticas de fabricação em algumas de suas linhas. Já a produção de insumos monovalentes da vacina fragmentada e inativada contra gripe tipo A/H1N1, A/H3N2 e tipo B expiram em novembro próximo. Quanto aos registros, vacinas e soros estão dentro do período de validade. A maioria vence a partir de 2017, exceto as da gripe, da raiva e o soro contra botulismo. O aracnólogo Rogério Bertani, do Laboratório de Ecologia e Evolução, ressalta que a autorização é dada a partir das condições constatadas em inspeções. “Mas isso não garante que os produtos estão sendo fabricados ali. Me parece que o instituto usa essas brechas entre as competências dos diversos órgãos”, diz. Segundo ele, a Anvisa fiscaliza as condições do local, o MS paga e recebe as vacinas e soros mas não sabe de onde vieram, se de indústria nacional ou de fora. O médico aposentado do Hospital Vital Brazil João Luiz Costa Cardoso, autor de diversas obras sobre animais peçonhentos, diz que o problema na produção de vacinas vai ganhar a devida importância quando afetar diretamente a elite. “Enquanto pessoas pobres atendidas no serviço forem prejudicadas, a coisa cai rapidamente no esquecimento”, afirma. A falta de transparência nas informações, segundo ele, pode esconder esquemas para elevar o preço no mercado. Ele menciona o caso da vacina Onco BCG, distribuída pelo SUS para o tratamento de pacientes com câncer de bexiga, que deixou de ser fabricada pelo Butantan há cinco anos, sob pretexto de modernização da fábrica. Coincidência ou não, passou a ser fabricada pela Fundação Ataulpho de Paiva, do Rio de Janeiro, que hoje fornece as vacinas BCG para o Ministério da Saúde. Segundo o médico, o custo de cada dose ao SUS, que era de R$ 3 quando produzida em São Paulo, subiu para R$ 100. Por meio do governo federal, o Butantan assinou acordo de transferência de tecnologia com o laboratório Merck, Sharp & Dohme para a produção da va26

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RAONI MADDALENA/RBA

SAÚDE

FALTA TRANSPARÊNCIA João Luiz: “Enquanto apenas pessoas pobres forem prejudicadas, a coisa cai no esquecimento”

cina contra quatro tipos de vírus da família HPV. Com isso, segundo o MS, o faturamento do instituto será quase que triplicado em cinco anos, passando de R$ 348 milhões em 2013 para R$ 1,1 bilhão em 2018 – valor correspondente a 36 milhões de doses da vacina. Bertani, porém, é cético quanto ao preparo do Butantan para a parceria. Isso porque, segundo ele, há histórias mal contadas, como problemas na transferência de tecnologia para vacina Influenza, com o laboratório francês Sanofi, que levou mais de dez anos para se concretizar parcialmente, a ponto de as vacinas virem da França apesar dos recursos federais para a fábrica da vacina da gripe H1N1, que foram mal empregados e estão sendo investigados pela Justiça. “A impressão que tenho é que são criados aqui problemas com a produção para atrasar a vacina nacional”, opina.

Reconstruir as fábricas

Ex-presidente da fundação e ex-diretor do instituto, o médico Isaías Raw diz que o Butantan saiu de uma crise em 1984 e que em 2009 entrou em outra, apesar do padrão internacional. “Sair delas não é fácil. Além de faltarem recursos, tem a concorrência dos grandes laboratórios, a quem não interessa que um laboratório público, que desenvolveu tecnologias e produz muita pesquisa, continue ope-

rando e vendendo mais barato”, diz Raw, que não acredita na lisura dos contratos de transferência de tecnologia. “É preciso inovar porque tecnologia não se compra. Tecnologia vendida é um mecanismo perverso em que não se transfere tudo e quem recebe é controlado pelo resto da vida pelo dono da tecnologia que quer o país como comprador, e não como fabricante, como parceiro.” Segundo ele, ainda não há recursos nem instalações para produzir a vacina contra HPV no Butantan. Nem vacina, nem fábrica. “Precisamos reconstruir todas as fábricas, fazer o prédio da pneumonia porque a vacina que está aí não presta. Mas é necessário dinheiro, que ninguém dá.” Controverso, Raw foi afastado da fundação em 2009, durante o escândalo dos R$ 30 milhões que vinham sendo desviados desde 2007 – mas, para funcionários, a cifra chega a R$ 100 milhões. Na época, o Ministério da Justiça descobriu que o dinheiro ia para uma conta inativa, que não aparecia na contabilidade, para a qual iam os recursos pagos pelo Ministério da Saúde por lotes de vacinas e soros. A superintendente técnica da fundação, Hisako Higashi, que acumulava o cargo de diretora do instituto, foi exonerada. Em dezembro de 2011, ele publicou artigo em que afirmava que a Sanofi, gigante multinacional de medicamentos, ofereceu ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), R$ 4,5 bilhão pela compra da divisão bioindustrial do instituto. A notícia não foi confirmada nem pela farmacêutica, nem pelo governo estadual, que chegou a afirmar que o Instituto Butantan e nenhuma de suas partes estava à venda. Em nota, o governo ainda chamou de irresponsável a afirmação de Raw. Para os trabalhadores, muitos dos quais integram a Frente em Defesa dos Institutos de Pesquisa e Fundações de São Paulo, que conta também com deputados estaduais, as palavras de Raw têm um fundo de verdade. E o que se assiste ali é a criatura engolindo o criador. Constituída em 1988 para apoiar o instituto do ponto de vista administrativo e financeiro, a fundação tem hoje mais de 60% dos funcionários, todos contratados pela CLT, não realiza concursos, gasta dinheiro com carros de


FOTOS RAONI MADDALENA/RBA

PÉSSIMAS PRÁTICAS Pouca coisa além de abandono é produzida no Butantan. Boa parte das vacinas já é fabricada fora e a produção de outras foi interrompida. A Anvisa chegou a encontrar água contaminada e não deu certificado de boas práticas

luxo e dá todas as cartas com mão de ferro. Segundo o Sindicato dos Químicos de São Paulo, a fundação não dialoga, não abre as contas, persegue quem se manifesta e demite quem pode demitir. Entre janeiro e julho, a fundação demitiu 59 trabalhadores. À frente em defesa dos institutos, trabalhadores disseram que, além da dificuldade de fixação dos servidores, está em curso um processo de desvalorização profissional e desvios de função, no qual os concursados para postos de nível médio são pressionados a atuar em áreas que exigem formação superior. Presidente do Instituto e da Fundação Butantan, o médico Jorge Kalil não atendeu a reportagem. Em junho, em reu-

nião com o presidente da frente, deputado Carlos Neder (PT), e alguns de seus integrantes, ele afirmou que estão sendo discutidos diversos aspectos em termos de recursos humanos, como a dificuldade de reposição do quadro de funcionários, mérito e remuneração. E que há estudos para recuperar toda a estrutura, que padece da redução de investimentos. Disse ainda que além da carreira, está sendo discutida a figura jurídica do Butantan. Segundo relatório da reunião com a frente, a tendência é o Butantan se tornar autarquia especial e assim unificar a gestão. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ex-diretor do Incor e amigo do ex-secretário de Saúde

do governo Alckmin, Giovanni Cerri, Kalil assumiu o Butantan depois da morte do ex-secretário Luiz Barradas, em 2010. Na época, segundo pesquisadores, havia mais dinheiro para a pesquisa e tudo parecia entrar nos eixos. Porém, nada melhorou. Um ex-pesquisador, hoje professor na USP, vê o sucateamento como pretexto para a venda do setor de vacinas. Exatamente como foi com outras empresas do setor financeiro, elétrico e de telefonia privatizadas no anos 1990. Num futuro próximo, ele prevê a placa de uma multinacional do setor no portão do instituto público símbolo de pesquisa em saúde no Brasil durante quase 100 anos. REVISTA DO BRASIL

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CONSUMO

Escravos da

Nesta oficina clandestina em São Paulo, o Ministério Público do Trabalho encontrou 13 trabalhadores bolivianos que costuravam peças para a marca Fenomenal. Havia crianças no local, que também servia de moradia e refeitório

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CONSUMO

moda

O trabalho degradante deixa muita gente indignada. Mas na hora de comprar roupa nova poucos se preocupam se a loja ou a marca tirou algum proveito dessa prática Por Cida de Oliveira

ASSESSORIA DE COMUNICACÃO/MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO

A

foto de um menino paquistanês costurando uma bola de futebol da Nike em 1996, nas páginas da extinta revista Life, causou indignação. No mesmo ano, o documentarista norte-americano Michael Moore filmou sua conversa com o presidente da multinacional, Phil Knight, para o documentário The Big One. “Você não tem problema de consciência? Sabe como vivem seus empregados na Indonésia?”, questionou. O filme foi exibido em 1998, quando as condições degradantes de trabalhadores da companhia em países da Ásia já eram conhecidas e a marca tinha se tornado sinônimo de exploração. No mesmo ano, ativistas dos direitos humanos aproveitaram o Mundial da França para denunciar o trabalho de crianças na produção de bolas e chuteiras. Com ajuda da internet, consumidores de todo o mundo boicotaram produtos da marca, derrubaram executivos e ações nas bolsas. Para limpar a barra, a empresa passou a controlar as relações de trabalho nas subsidiárias e a investir em marketing. No final de 1999, curiosamente, um de seus principais garotos-propaganda, o ex-jogador Ronaldo, foi nomeado embaixador do Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), para ajudar a disseminar ações de combate às desigualdades. Mesmo assim, a companhia não conseguiu se desvencilhar da imagem negativa. O caso Nike é emblemático no mundo quando se trata de demonstração de força do consumidor. No Brasil, é a Zara. Em 2011, a grife espanhola ganhou as manchetes não pelo sucesso da nova coleção de roupas caras, mas pelo trabalho análogo à escravidão flagrado por fiscais em sua cadeia produtiva. Em São Paulo, bolivianos ganhavam R$ 2 por peça produzida em oficinas de costura terceirizadas para a AHA, que responde pela produção da Zara no Brasil. Seus executivos tentaram desfazer o vínculo e chegaram a se recusar a assinar termos de ajustamento de conduta (TACs) com o Ministério Público do Trabalho (MPT). O episódio obteve destaque nas redes sociais, e a marca foi alvo de protestos e boicote. “Por mais que eu gostasse de usar, cheguei a deixar de lado uma peça da marca que ganhei de presente. Em vez de status, a roupa passou a dar vergonha”, diz a recepcionista paulistana Bruna Araújo, 17 anos. O barulho levou acadêmicos a estudar o assunto. Os professores Cintia Rodrigues de Oliveira, Valdir Machado Valadão Júnior e Rodrigo Miranda, da Faculdade de Gestão e Negócios REVISTA DO BRASIL

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CONSUMO

Ajudar o consumidor a conhecer a conduta de algumas de suas lojas preferidas e fazer escolhas mais conscientes. Esse é o objetivo do aplicativo para celular Moda Livre, iniciativa da organização Repórter Brasil. Com mais de 5 mil downloads, o aplicativo é destinado a quem gosta de moda, mas não quer que alguém tenha sido explorado para costurar suas roupas. Traz avaliações de 22 marcas a partir de questionários respondidos pelas próprias empresas. São classificadas com verde aquelas que têm mecanismos de acompanhamento sobre sua cadeia produtiva e histórico negativo em relação ao tema. Recebem amarelo as que demonstram ter mecanismos de acompanhamento, mas apresentam histórico desfavorável em casos de trabalho escravo ou precisam aprimorar esses mecanismos. Já o vermelho é para aquelas que não contam com mecanismos de acompanhamento, têm histórico desfavorável ou não responderam o questionário. Segundo o aplicativo, que não tem a pretensão de recomendar a compra ou boicote de determinadas marcas, mostram a pior avaliação 775, Bo.Bô, Centauro, Collins, Gregory, Havan, John John, Leader, Le Lis Blanc e Talita Kume. Ficam no nível intermediário Cori, Dzarm, Emme, Hering, Luigi Bertolli, Marisa, Pernambucanas, PUC, Renner, Riachuelo e Zara. A C&A tem a melhor avaliação. Segundo o coordenador da Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, o Moda Livre vai ser atualizado, com inclusão de outras marcas. Outros setores, como automobilístico e de eletrodomésticos, terão em breve um aplicativo semelhante.

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FOTOS PAULO PEPE/RBA

Lojas com sinal verde

Bruna ficou com vergonha de usar uma roupa da Zara que ganhara de presente

da Universidade Federal de Uberlândia (MG), analisaram comentários de internautas sobre o caso. A conclusão é que o consumidor entende que o crime corporativo é compensador do ponto de vista financeiro e que a empresa deve ser fiscalizada intensamente pelo poder público e punida com multas severas. E mais: que a população aceita tal crime ao continuar comprando da empresa. Em abril, a grife foi responsabilizada pelo MPT. A justificativa é que, como detentora do poder econômico relevante na cadeia produtiva, pode proteger os 15 mil trabalhadores subordinados a ela, e não apenas os das pequenas oficinas. A Zara anunciou que vai recorrer, alegando que não obteve vantagem financeira com a irregularidade cometida pela AHA – que não foi investigada, julgada nem punida. Esta não é a única a ser envolvida em casos assim. Nos últimos quatro anos, fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) flagraram trabalhadores bolivianos em condições degradantes em oficinas de costura fornecedoras de marcas populares e caras. Autuada 48 vezes em 2010 e multada, a Marisa assinou um TAC e afir-

ma fiscalizar. Mas não divulga os resultados. Absolvida em primeira instância, questiona o governo na Justiça por publicar a “lista suja” do trabalho escravo. O MTE recorre da absolvição. A C&A não chegou a receber autuação formal, mas passou a fazer auditorias surpresa e divulga na internet casos de trabalho infantil e pagamento abaixo do salário mínimo. A Collins assinou TAC e passou a fiscalizar os parceiros. Já a 775 não fiscaliza nem informa as ações para evitar o trabalho escravo na sua produção. Com oficinas flagradas em 2011, as Pernambucanas se recusaram a assinar acordo para sanar os problemas e não publicam dados das auditorias que garantem fazer. A Gregory, que em 2012 recebeu 25 autos de infração, não assinou TAC e não diz o que faz para combater o trabalho escravo. No ano passado, foi a vez de oficinas da Bo.Bô, Le Lis Blanc e John John, e da Cori, do mesmo grupo de Emme e Luigi Bertolli. As marcas não declaram ações contra trabalho escravo ou se descartam fornecedores. Em maio passado, fiscais encontraram bolivianos costurando para a M. Officer – o que já tinha acontecido em novembro passado.


CONSUMO

Raimunda nunca se arrependeu das compras: “No momento em que estou comprando, com tantos atrativos, nem raciocino”

Paulo e Silvia dizem pensar no trabalho degradante, mas na hora de comprar o que pesa é o preço

O que é trabalho escravo n As dificuldades para erradicar a prática se originam da pobreza. “Gatos” (agentes) aliciam trabalhadores em situação vulnerável em várias regiões do país. As despesas de viagem já começam a endividar o trabalhador, que ainda será “aprisionado” a custos com alimentação e medicamentos, por exemplo n O artigo 149 do Código Penal considera crime reduzir alguém à condição análoga à de escravo, “quer submetendo-se a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto” n Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o artigo 149 é consistente com a sua Convenção 29. A entidade considera o Brasil um país “fortemente comprometido” com o combate à prática da escravidão contemporânea n Em 27 de maio, o Senado aprovou a chamada PEC do Trabalho Escravo, depois de 15 anos de tramitação. A batalha agora é pela regulamentação. Defensores da PEC temem retrocesso. Pela PEC, podem ser expropriadas, para

fins de reforma agrária, áreas nas quais seja registrada ocorrência de escravidão n Em 1995, o governo iniciou as operações de fiscalização móvel, para erradicação do trabalho escravo. Até 2013, foram 1.572 em 3.741 estabelecimentos, com 46.478 pessoas resgatadas n No ano passado, pela primeira vez o número de trabalhadores no setor urbano (1.068) foi maior que no meio rural. O Ministério do Trabalho e Emprego credita parte desse resultado ao aumento da fiscalização nessas áreas. Construção civil e setor têxtil concentram ocorrências n Outras iniciativa no combate ao trabalho escravo no Brasil é a chamada “lista suja”, divulgada periodicamente, com nomes de empregadores que usam a prática. A relação atual tem 549 nomes. Acesse em bit.ly/mte_lista_suja n O Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo foi criado em 2005 pelo Instituto Ethos, o Instituto Observatório Brasil, a ONG Repórter Brasil e a OIT. No ano passado, surgiu o InPacto, instituto criado para “fortalecer e ampliar” as ações que visam a conscientizar as empresas sobre ocorrência de trabalho escravo na cadeia produtiva

Em julho, o MPT pediu à Justiça que responsabilize a marca por trabalho escravo, além de multa de R$10 milhões por danos morais e seja proibida de atuar no estado de São Paulo. Em maio, durante desfile da São Paulo Fashion Week, modelos e estilistas da Ellus subiram à passarela com camisetas com a frase: “Abaixo este Brasil atrasado”. A grife que “desabafava”, como alegaram seus idealizadores, é a mesma denunciada em 2012 pelo MPT por trabalho análogo à escravidão, tráfico de trabalhadores e trabalho indígena. O problema é outra face do trabalho degradante, que já foi mais comum no campo. Em 2013, pela primeira vez o número de trabalhadores resgatados em operações de fiscalização foi maior em áreas urbanas (confira quadro). O escândalo na moda e os boicotes intensificaram o debate em torno da questão. A ponto de, segundo o jornalista Leonardo Sakamoto, pressionar a instalação de CPIs estaduais e em nível nacional, que por sua vez influíram na aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 81/2014, no final de maio, pelo Senado, depois de quase duas décadas de REVISTA DO BRASIL

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Em seu desfile na São Paulo Fashion Week deste ano, a grife Ellus protestou contra várias coisas que considera erradas no Brasil. Mas omitiu que sua moda é produzida em oficinas clandestinas que usam trabalho escravo

Contra o atraso De 1995 a 2013, fiscalizações resgataram 46 mil trabalhadores em situação de escravidão Ano 1995 2000 2005 2010 2011 2012 2013 Total

Número de operações 11 25 85 142 170 141 179 1.572

Trabalhadores resgatados 84 516 4.348 2.628 2.485 2.750 2.063 46.478

Fonte: Secretaria de Inspeção do Trabalho/MTE

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VICTOR VIRGILE/GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES

debates. A PEC prevê o confisco de propriedades em que esse crime for encontrado e sua destinação à reforma agrária ou a programas de habitação urbanos. A emenda conceitua como escravo o trabalho exaustivo, a jornada exaustiva, o impedimento de ir e vir. Mas ainda depende de regulamentação, o que deve ser fonte de novos embates no Congresso. Coordenador da organização Repórter Brasil, que mantém um portal reconhecido pela atuação em prol do trabalho decente, Sakamoto diz que o boicote é um instrumento poderoso contra o trabalho escravo por afetar mais que as vendas. Por mais passageiro que seja, arranha a marca e influencia investidores – o maior patrimônio das empresas, como aconteceu com a Nike e agora com a Zara. No entanto, para ele, o consumidor se preocupa é com qualidade e preço. “Em geral, como não gosta de ser enganado, fica indignado quando paga caro por um produto e descobre que não há garantia social. É aí que fica indignado, insatisfeito e passa a boicotar”, diz. “É inadmissível as grifes explorarem mão de obra e ainda venderem roupas tão caras. Você não paga menos de R$ 400 em algumas camisetas de marca que pagam R$ 10 por peça bordada e que lançam coleções em desfiles como a São Paulo Fashion Week”, reclama a pesquisadora paulistana Ana Paula Nascimento, 41 anos. Consultor de conteúdos e metodologias do Instituto Akatu, associação que defende consumo consciente para a sustentabilidade, Dalberto Adulis concorda com Sakamoto. Mas entende que o consumidor está ficando mais crítico, que desconfia das promessas das empresas e prefere marcas comprometidas com o meio ambiente e que oferecem boas condições de trabalho a seus empregados. E seu comportamento, em franca evolução, depende de informação para ser ainda mais engajado. “O consumo consciente requer educação e informação quem nem todo brasileiro tem. Quando todos tiverem, vão cobrar e pressionar mais”, afirma. A professora Silvia Cristina Gomes, 31 anos, e seu namorado, o militar Paulo Henrique de Carvalho, 23, reclamam justamente disso. Eles contam que muitas

Sakamoto diz que o boicote é um instrumento poderoso contra o trabalho escravo por afetar além das vendas. Por mais passageiro que seja, arranha a marca e influencia investidores

vezes pensam no trabalho degradante na produção das roupas que usam – o que, porém, não faz diferença na hora de comprar. “Nunca me lembro disso nem deixei de comprar por essa razão. Compro conforme a promoção, o preço, o produto. Só depois vou pensar no trabalho escravo”, diz Silvia. “A gente vê a roupa na loja, no mostruário, mas não tem como saber a sua procedência”, completa Paulo. Adulis, do Akatu, destaca que os consumidores de menor renda, que mais se identificam com os trabalhadores, são os que acabam se beneficiando com a oferta de produtos mais baratos em função da exploração da mão de obra. “A questão é como assegurar preço para produto com atributo de sustentabilidade ambiental, social e trabalhista que o mantenha competitivo em relação aos outros.” “Acho muito triste essa situação; lojas tão grandes, marcas de grife, pagar tão mal para o trabalhador”, comenta a recepcionista Raimunda Silva, 59 anos, de São Paulo, que afirma nunca ter se arrependido das compras que faz mesmo em lojas ligadas ao trabalho escravo. “No momento em que estou comprando, com tantos atrativos, nem raciocino.” A auxiliar de saúde bucal Maria do Carmo Conceição de Santana, 43 anos, vai além: “Sou meio desligada. E quando compro estou envolvida com a escolha, não lembro de mais nada. Mas acho que trabalho escravo deve ser fiscalizado pelo governo, não pela gente”.

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CONSUMO


EMIR SADER

O que resta à direita latino-americana Na falta de projetos, ela se refugia em setores da mídia para formar cadeias que resistem a transformações democráticas

A

direita latino-americana já teve várias fisionomias: economias primário-exportadoras e regimes políticos oligárquicos, ditaduras e governos neoliberais. Nenhuma parece suficientemente atraente para fazê-la voltar ao governo onde deixou de sê-lo. O modelo primário exportador sofreu golpe mortal com a crise de 1929. As ditaduras serviram para brecar avanços políticos das esquerdas surgidas ou fortalecidas na reação àquela crise. O projeto neoliberal parecia ser a boia de salvação das forças mais retrógradas das sociedades latino-americanas, permitindo que a direita trocasse de roupa, aparecendo como força “modernizadora”. Contra um Estado qualificado como parasitário, pela livre circulação dos capitais que supostamente permitiria reativar economias e promover o mercado e o grande empresariado como os agentes mais dinâmicos da sociedade, surgia uma “nova direita”. Essa fisionomia foi ajudada pela adesão de forças antes próximas ao campo popular. Partidos de origem nacionalista como o PRI mexicano e o peronismo, social-democratas como a Ação Democrática da Venezuela, o Partido Socialista do Chile, o PSDB no Brasil, entre outros, seguiram a trilha dos partidos socialista da França e da Espanha, pioneiros a “aderir”. O historiador Perry Anderson constatou em seu texto Balanço do Neoliberalismo que não tinha havido um modelo tão abrangente como o neoliberal. Se ainda no começo dos anos 1970 um conservador como Richard Nixon tinha afirmado “somos todos keynesianos” – confessando a hegemonia do modelo conhecido pelo Estado indutor do desenvolvimento e do bem-estar social –, não muito tempo depois até a social-democracia internacional dizia o oposto: “Somos todos neoliberais”. A esquerda histórica era desqualificada como superada, marginalizada dos grandes movimentos da globalização. Políticos oligárquicos eram reciclados para o liberalismo de mercado. Projetava-se o século 21 como o século da nova direita.

O modelo, pujante no seu início, revelou no entanto seus limites. As crises financeiras se multiplicaram – do México à Coreia do Sul, do Brasil à Rússia, da Argentina à Grécia. Depois de ter sido o continente que teve mais governos neoliberais e nas suas modalidades mais radicais – com os de Pinochet no Chile (1973-1990) e Menem na Argentina (1990-2000) –, a América Latina viu florescer governos antineoliberais. Esses governos ocuparam lugares amplos no campo político, deslocando a direita tradicional, agora associada à nova direita. Diante do pacto político na região de não aceitar governos que se estabelecessem pela força, como tentou-se, sem sucesso, na Venezuela, esse segmento teve de buscar outras vias e espaços. Novos governos – Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador – se consolidaram por atuar nos pontos mais frágeis do neoliberalismo: promovendo a centralidade das políticas sociais no lugar da dos ajustes fiscais. Recuperando o papel do Estado como indutor de crescimento e de direitos sociais, no lugar da centralidade do mercado. Priorizando diálogo regional em vez de tratados com os Estados Unidos. A direita teve de se refugiar onde mantém espaços de poder privilegiados – os meios de comunicação. Em situação monopolista, pelo poder do dinheiro e pela articulação com lobbies internacionais, se criam cadeias de formação antidemocrática da opinião pública, com poder de pressão sobre governos. A direita consegue desgastá-los, mas não vencê-los eleitoralmente, pois faltam-lhe plataforma, capacidade de projetar líderes e de conquistar bases de apoio além de decadentes setores das classes médias. Resta à direita latino-americana promover formas de desestabilização, combinando campanhas terroristas na mídia, mobilizações de setores que resistem às transformações democráticas e apoio internacional, buscar brecar os impulsos desses governos e, eventualmente, ganhar eleições. Essas formas de ação, já derrotadas em várias ocasiões na Bolívia, Equador e Brasil, se concentram agora especialmente na Venezuela e na Argentina. Aí jogam todas suas cartas. REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

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ão mais de 8 da noite de uma quinta-feira de julho em São Paulo, e algumas dezenas de pessoas estão reunidas para ouvir falar de dores. É uma sessão pública de uma Clínica do Testemunho, projeto criado em 2013 sob a responsabilidade da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, para ouvir gente atingida, direta ou indiretamente, pela violência cometida por quem deveria protegê-las: o Estado. Essas clínicas escutam pessoas que sofreram ou testemunharam dores da ditadura. Depois de alguma timidez inicial, elas começam a se dirigir ao microfone. Os relatos mostram três sensações comuns. O medo que se sentiu e ainda permanece. A dor vivida, física e mentalmente. E a desconfiança do Estado, que ainda desrespeita direitos básicos. “Eu era mais jovem, militante na JEC (Juventude Estudantil Católica). Discutindo a encíclica, os problemas sociais, estávamos nos comitês que havia em Natal. Toda aquela efervescência acabou, aquela alegria, as pessoas participavam das coisas da cidade. O que fazer?” “Nasci em 1974. Sou filha de um operário. A fábrica que o empregou veio dos Estados Unidos, com promessas de desenvolvimento. Meu pai não teve acesso à história que é contada hoje. Para quem não faz parte dessas famílias (de perseguidos), a verdade vem à tona agora.” “Sou professor de História, militante, já trabalhei com sindicatos e com sem-terra. Ainda há uma massa sólida de injustiça. Quem tem poder, continua. Só se arranha (a estrutura). Estamos em busca de uma justiça que não sabemos onde encontrar.”

Desconfiança

Para o presidente da Comissão de Anistia e secretário nacional da Justiça, Paulo Abrão, as Clínicas do Testemunho compõem a quarta vertente de um programa de reparação que é considerado modelo. As três anteriores são a econômica, a moral (pedido de desculpas) e a coletiva (com projetos de memória). O projeto lançado em 2013 propõe, além da atenção terapêutica, capacitar profissio34

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DESABAFO Sessão pública de uma Clínica do Testemunho, em São Paulo

A voz contra o medo e a dor Clínicas do Testemunho abrem espaço para expor traumas da violência provocada por quem deveria proteger o cidadão: o Estado Por Vitor Nuzzi

nais na área de psicologia para enfrentar a violência institucional. “Vínhamos acumulando a percepção de que os danos são transgeracionais”, diz Abrão. Uma preocupação das clínicas é cuidar dessa “peculiaridade traumática” para a superação do medo, da dor e da desconfiança. A destruição das liberdades por aquele que deveria garanti-las leva à sensação de que não há a quem recorrer. “É um trauma levado à máxima potencialidade”, diz o secretário. Outro objetivo, segundo ele, é resgatar a confiança no Estado e nas instituições. “Fa-


O documentário Verdade 12.528, dirigido por Pen Robles e Paula Sachetta, reflete sobre a Comissão da Verdade

zer com que o cidadão perceba que algo mudou e que o Estado tem consciência dos erros do passado.” A militante estudantil do primeiro depoimento citado neste texto conta ainda que deixou a organização clandestina em que atuava por não se sentir preparada. “Disse a um companheiro: não tenho estrutura para estar onde estou. Ele disse: ‘companheira, a estrutura se faz no processo’. Eu saí. Respeitaram a minha decisão. Meu namorado foi preso e levado para Recife. Foi um primo que denunciou. Passei depois a esconder

pessoas. Medo muito grande. Culpa por não estar participando. Continuei uma militância não formalizada.” (A voz fica bastante pausada.) “Era um medo muito grande de conversar com as pessoas. Meu filho demorou a falar, por falta de convívio social. Amigos sendo mortos, presos. As relações eram todas permeadas por medo e por culpa.” Quatro institutos respondem pelas cinco clínicas atualmente em funcionamento, em São Paulo (duas), Pernambuco, Porto Alegre e Rio de Janeiro. No dia da sessão pública, os testemunhos eram

FOTOS GERARDO LAZZARI/RBA

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acompanhados por três psicanalistas. O testemunho é um articulador do tratamento, diz o terapeuta Issa Mercadante, para “falar sobre aquilo que ficou sem lugar de escuta”. É um “lugar de circulação de uma palavra que não pôde ser dita”, acrescenta Rodrigo Blum. Ou onde se dá “a quebra do silenciamento pela identificação de experiências”, nas palavras de Maria Marta Azzolini. Antes dos depoimentos, é exibido o documentário Verdade 12.528, referência ao número da lei que em 2011 criou a Comissão Nacional da Verdade. Dirigido por Paula Sachetta e Pen Robles, o filme foi lançado em outubro do ano passado, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ela nasceu em 1988. Ele, em 1985. “Não vi o que foi a ditadura, não tenho parente morto ou desaparecido. No entanto, o Brasil hoje sofre os resquícios daquela época. É um filme para o jovem mesmo”, diz Paula. O filme tem 55 minutos de duração justamente para caber em uma hora-aula. E deve ser distribuído na rede municipal paulistana ainda este ano. A Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania está preparando um kit “direito à memória e à verdade”, que inclui esse e outro documentário (O Dia que durou 21 Anos, de Camilo Tavares) e três livros. Financiado parcialmente pelo site coletivo Catarse, Verdade 12.528 traz dezenas de depoimentos colhidos durante um ano – Amélia Teles, Bernardo Kucinski, Clarice Herzog, Criméia de Almeida, Franklin Martins, Ilda Martins da Silva, Ivan Seixas, Laura Petit, Marcelo Rubens Paiva, Maria Rita Kehl, Pedro Pomar, Paulo Sérgio Pinheiro, Vera Paiva, camponeses do Araguaia, uma representante da Frente de Esculacho Popular (Lavínia Del Roio), entre outros. Narra dramas pessoais e propõe uma reflexão sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que está em seus últimos meses de funcionamento (leia à página 37). Exibido o filme, alguém da plateia lembra uma passagem com Franklin Martins, para quem o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra tem vergonha do que fez. “Malhães não tinha vergonha. Falou tudo aquilo com prazer enorme. REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

JOSÉ CRUZ/ABR

Minha pergunta é: que mecanismo leva uma pessoa como Malhães a dizer tudo aquilo?” Era referência ao depoimento do também coronel reformado Paulo Malhães, ex-agente do Centro de Informações do Exército, à Comissão da Verdade, na qual relatou uma série de torturas sem demonstrar arrependimento. Em 25 de abril, um mês depois desse depoimento, o ex-militar foi encontrado morto no sítio onde morava, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Esquecimento

Os depoimentos prosseguem. “Vou ter de falar, desculpe. Não tenho ninguém da minha família, nem perto de mim, que foi torturado. Eu era uma criança muito sensível, que vivi muito medo na minha infância. Minha mãe dizia: ‘filha, você não pode falar do governo’. Eu nem sabia o que era governo. O medo estava presente o tempo todo. A gente tem de lembrar, sim. A educação foi destruída. Meus primos tiveram educação pública de qualidade. Por que acontece ainda hoje (repressão) em Belo Monte? Porque não foi lembrado, não foi trazido à tona.” “Quando a sociedade lembrar, talvez as pessoas possam esquecer um pouco. Não tem nada a ver com fazer uma ode ao passado, mas tem a ver com construir um outro futuro.” “Existem patriotas nossos que entram numa sala dessas e não se sentem seguros. Não podemos cair no erro de achar que isso está superado.”

DANOS TRANSGERACIONAIS Paulo Abrão: capacitar profissionais na área de psicologia para enfrentar a violência institucional

Segundo Paulo Abrão, as clínicas formam uma nova política pública, “inovadora e inédita no Estado brasileiro”, e superaram expectativas, com mais de 2 mil atendimentos até aqui. “Há 160 pessoas ativamente recebendo atenção terapêutica.” Já se decidiu pela prorrogação das clínicas por seis meses, até junho do ano que vem. Abrão observa que foi uma decisão cautelosa, considerando o ambiente de transição governamental. “Hoje, as Clínicas do Testemunho são um programa permanente da Comissão de Anistia. Não se cogita extinção. Mas não vamos tomar decisão de cima para baixo.” Um senhor de olhos pequenos e cabelos totalmente brancos se identifica. É o

gaúcho Emilio Ivo Ulrich, ex-praça do Exército, preso em novembro de 1970. “Saí da prisão no final de 71 e nunca falei. Eu sou hoje um ex-calado. Às vezes nem eu entendo o que aconteceu nesse período pós-cadeia. As pessoas dizem: teve uma ‘ditadurinha’, mas o país se desenvolveu. Fui perceber que tinha de contar uma coisa de natureza pessoal, que foi a humilhação que sofri pelo Exército brasileiro”, se apresenta. Não é a primeira vez que Emilio participa de uma clínica. Ele já contou ter sido torturado no Doi-Codi de São Paulo durante 30 dias seguidos. “Um ano atrás, praticamente não me manifestei e chorei muito.” Conta ter feito um exercício para falar sem se emocionar. “Não é dividir a dor, é só recompor. É tentar racionalizar para contar de forma objetiva.” E ele con-

Falar é recompor A psicanalista Bárbara Conte, coordenadora da Clínica do Testemunho no Rio Grande do Sul, vê no silêncio prolongado uma das situações de maior impacto nos atendimentos. “Há quanto tempo essas pessoas vivem nesse silêncio, e não tiveram espaço onde falar sobre isso? Inclusive pessoas que militaram juntas e não sabem bem a história dos outros. Isso tem proporcionado reencontros”, relata. Há entraves sociais e individuais para que o silêncio perdure. “As pessoas têm medo de falar”, diz Bárbara. E também de mexer onde dói. Tem pessoas que enlouqueceram, que tiveram suas vidas interrompidas – não no sentido da morte.” As clínicas buscam proporcionar o espaço para acolher os testemunhos. “As pessoas criam elos de identificação e dão outro sentido à experiência vivida.” E existe a peculiaridade de se tratar de uma violência que 36

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partiu do próprio Estado. “Na nossa experiência, isso dificulta a confiança. Como o Estado que fez isso agora se propõe a reparar?”, observa Bárbara. Para ela, há outras iniciativas de reparação que ajudam a recuperar a credibilidade, e o ato de falar da própria experiência já configura uma reparação. “Falar é recompor. Psiquicamente, recompor elos, vivências que foram rompidas, mutiladas. A partir da fala dirigida ao outro (profissional da psicologia) e aos iguais, aqueles que viveram a mesma situação.” Nas clínicas gaúchas participam militantes e familiares de primeiro e segundo graus. Muitos só recentemente descobriram o que aconteceu com pessoas próximas. “Muitas nunca souberam e tomam conhecimento ali”, diz. “Por meio da fala, da escuta, do compartilhamento, as pessoas experimentam uma nova situação como sujeito na sua comunidade, na sua família.”


30 DIAS DE TORTURA Emilio conta ter feito um exercício para falar sem se emocionar. “Não é dividir a dor, é só recompor. É tentar racionalizar para contar de forma objetiva”

GERARDO LAZZARI/RBA

CIDADANIA

ta que um de seus torturadores se enfureceu ao ouvi-lo dizer algo como “ai, minha mãe” ou “minha mãezinha” em plena cadeira do dragão. “O torturador disse que quem devia estar lá ‘era a filha da puta da sua mãe’”, lembra. No pau de arara, outro grito: “Ai, meu Deus do céu”. Fúria do delegado: “Desta porta pra dentro, nesta sala, Deus sou eu”. Conta outras barbaridades. “Um ano atrás eu falava isso chorando, chorando, chorando. Tive companheiros mortos.” Não militante, dava suporte à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Vinculou-se a um de seus comandantes, Yoshitami Fujimori, morto em dezembro de 1970. Emilio distribui a quem pede um poema chamado Elogio de Praça, “dedicado” a Brilhante Ustra, que ele viu se encaminhar para a sala de tortura em um dia chuvoso no Doi-Codi. O temor ainda está presente, mas ele parece se sentir melhor. “Agora estou me tornando um sujeito tão atrevido como quando tinha 17 anos nas ruas de Porto Alegre.”

Faltam poucos meses para a entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, prevista para ocorrer no Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro). A expectativa é a mesma desde que a comissão foi instalada, em 16 de maio de 2012: até que ponto vai a comissão e que impacto poderá ter seu relatório? Para o coordenador da CNV, Pedro Dallari, a percepção da sociedade já começou a mudar. Ele identifica duas missões para o colegiado. Além do relatório, desenvolver iniciativas que ajudem a reconstituir o período de investigação, sensibilizando a sociedade para o tema. “Entendo que as duas serão cumpridas de maneira satisfatória. O relatório vai consolidar muito do que já se sabia e agregar informações. Eu tenho dito que as investigações sobre as graves

violações de direitos humanos não começaram e não vão acabar com a Comissão Nacional da Verdade. Será (o relatório) um documento muito abrangente, muito consistente.” Se adiante haverá responsabilização de envolvidos com essas violações, Dallari destaca que essa não é uma atribuição da CNV. “Temos tido essa preocupação de fazer com que essa hipótese de responsabilização não seja um fator de dificuldade para os trabalhos da comissão. Queremos que os depoimentos ocorram, que as pessoas falem. Agora, é inevitável que o relatório e as atividades da comissão acabem tendo um impacto a favor da tese de uma responsabilização. Não porque a gente queira, mas por decorrência natural do trabalho da comissão.”

Avanços já ocorreram, salienta Dallari. Com ajuda da comissão do Rio de Janeiro, por exemplo, o caso Rubens Paiva, desaparecido em 1971, foi desvendado. “A única informação que falta é o destino que foi dado ao corpo.” Além disso, segundo ele a divulgação de relatórios parciais ajudou a “esvaziar” os atos que buscavam celebrar os 50 anos do golpe. “Apesar do quadro de insatisfação com a política, que é evidente, essa insatisfação não foi canalizada para uma onda nostálgica em relação à ditadura.” O coordenador destaca ainda o fato de as Forças Armadas terem aceitado investigar casos de tortura em algumas de suas unidades, ainda que o resultado da sindicância tenha sido “decepcionante”. Para Dallari, a negativa de admitir violações é “brigar com a história comprovada”.

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Comissão da Verdade: últimos meses

Dallari: a negativa de admitir violações é “brigar com a história comprovada”

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CULTURA

Luz do sol, câmera,

Estação de arte, sustentabilidade e cinema, Cinesolar promove sessões itinerantes de filmes. De graça e com energia limpa

Os filmes são sempre brasileiros e apresentam a temática de sustentabilidade com três eixos principais: meio ambiente e questões sociais e econômicas

Por Xandra Stefanel

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m 2013, o cinema brasileiro bateu recorde de produção e de público. Segundo a Agência Nacional de Cinema (Ancine), de 4 de janeiro de 2013 a 2 de janeiro deste ano 127 longas-metragens nacionais foram lançados no país e 27,8 milhões de espectadores estiveram às salas para ver produções nacionais. Foi o melhor resultado das duas últimas décadas. Mesmo sem a mesma velocidade, o parque cinematográfico brasileiro também tem aumentado. Dados da Ancine mostram que 2013 foi o quarto ano consecutivo de crescimento, com destaque para as regiões Nordeste e Centro-Oeste, com, respectivamente, 14,3% e 13,1% salas a mais. Ao todo, são 2.679 cinemas espalhados pelo país. Mas nem tudo são flores: dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 392 tinham salas de cinema. 38

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Além disso, mesmo nas cidades bem servidas de salas de cinema nem sempre o acesso – seja pela localização, seja pelo preço – é facilitado. Outro obstáculo é que, salvo as produções cercadas de grifes televisivas e fortes sistemas de distribuição, muitos filmes nacionais de qualidade acabam ficando pouco tempo em cartaz e logo desaparecem da programação. Para suprir essa lacuna e levar o cinema onde geralmente ele não chega, alguns projetos começaram a ficar conhecidos por realizar sessões itinerantes e gratuitas, como o Cine Tela Brasil e o Cinema BR em Movimento. Se o público não vai ao cinema, o cinema vai ao público. O resultado passa pela democratização do acesso e do espaço de exibição. No ano passado, surgiu mais uma iniciativa, o Cinesolar, idealizado pela agência e produtora cultural Brazucah, com apoio da Associação Cultural Sim-

bora e a Semearte Productil. Parceira do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região com o projeto Cine B – que proporciona a exibição de filmes nacionais em regiões periféricas da Grande São Paulo –, a Brazucah agora investe em aliar a versatilidade do cinema itinerante com conceitos de sustentabilidade. A iniciativa foi inspirada na experiência holandesa do World Solar Cinema. “E quando a gente foi desenvolver no Brasil, descobriu que seria mais que um cinema solar simplesmente. A gente entendeu que daria para montar essa estação móvel de arte, sustentabilidade e cinema”, afirma Cynthia Alario, diretora da Brazucah e responsável pela iniciativa. Assim nasceu o primeiro cinema itinerante sustentável do Brasil, que também promove workshops de ecografite e construção de instrumentos musicais com materiais reutilizados.

FOTOS CINESOLAR/DIVULGAÇÃO

AÇÃO


CULTURA

Até meados de junho, o Cinesolar já tinha realizado quase 60 sessões em vários municípios de São Paulo, Bahia, Brasília e Goiás

FOTOS CINESOLAR/DIVULGAÇÃO

Workshop de ecografite e construção de instrumentos musicais com sucata

Compacto e atraente

Tudo o que precisam para as sessões de filmes e ateliês cabe em uma van: três arte-educadores, as placas que captam energia solar e a transformam em energia elétrica, uma bateria de armazenamento, cadeiras, tela de cinema, sistema de projeção, de som e uma mesa de DJ. O impacto começa pelo visual do carro, grafitado por Deddo Verde a partir de estêncil de folhas naturais, especialidade do artista. “A ideia era que essa van chamasse a atenção das pessoas onde quer que chegasse, que fosse uma instalação artística móvel. Trouxemos o lúdico para o carro. Às vezes, as pessoas nem reparam que tem placas solares em cima, mas elas vão reparar que o carro está todo grafitado. É uma maneira de a

gente trazer as pessoas, explicar o que vai acontecer para que elas participem dos workshops e das sessões de cinema”, acrescenta Cynthia. Os filmes são sempre brasileiros e apresentam a temática de sustentabilidade com três eixos principais: meio ambiente e questões sociais e econômicas. A intenção é promover as sessões sempre em locais abertos, como praças e parques, e priorizar os filmes que tiveram pouco espaço nas salas convencionais. “Nossas palavras-chave são democratização e acesso ao cinema, por isso buscamos principalmente lugares abertos para poder ter essa mágica do cinema ao ar livre e damos prioridade para lugares que têm poucos equipamentos culturais. Quando a cidade é grande, a

gente vai até as periferias”, afirma a responsável pelo projeto. Até meados de junho, o Cinesolar já tinha realizado quase 60 sessões em vários municípios de São Paulo, Bahia, Brasília e Goiás. Levou filmes como Saneamento Básico, dirigido por Jorge Furtado, e Colegas, de Marcelo Galvão, a mais de 6 mil pessoas, com uma economia de energia que chegou a aproximadamente 56 mil watts. A programação e outras informações sobre o Cinesolar estão no site do projeto: www.cinesolar.com.br. Duas dessas sessões foram organizadas em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Ambiental Sustentável (Ideas), que atua em Capão Bonito e Ribeirão Grande, no interior de São Paulo. Cada ateliê contou com cerca de 60 estudantes de escolas públicas – inclusive da área rural – e as sessões de filmes reuniram em média 100 pessoas cada, a maioria alunos dos cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Segundo o coordenador executivo do instituto, Paulo Henrique Queiroz, grande parte não tinha acesso à salas regulares de cinema, localizadas a 60 quilômetros de distância, nas cidades de Itapetininga ou Itapeva. “Dificilmente os moradores daqui têm acesso a cinema, especialmente os de Ribeirão Grande, que é uma cidade menor, com 5 mil habitantes. Não são pessoas familiarizadas com esse tipo de arte”, diz. “Mas quem foi para assistir, ficou até o final e gostou. O cinema já não é uma coisa comum aqui, ainda mais com essa tecnologia, que traz a questão da energia solar. Chamou muito a atenção.” No início de junho, o vigilante Benedito do Carmo Costa, de 48 anos, assistiu a Saneamento Básico em uma sessão do Cinesolar em Cajamar, região metropolitana paulista. Sua cidade também não tem nenhuma sala de exibição – para isso, tem de ir à vizinha Jundiaí. “Nunca tinha assistido nada em um cinema assim. Fiquei maravilhado com o esquema e com o filme. Os que eu vejo no cinema normal, como Titanic e Tarzan – A Evolução da Lenda, são diferentes. Gostei de ver um filme nacional. É claro que tem filmes estrangeiros bons, mas a gente tem de valorizar o cinema brasileiro.” REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

E S N E S N NO O D A Z I POLIT Livro resgata obra do cartunista Fortuna, referência do humor político brasileiro durante décadas Por Vitor Nuzzi

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EM FORTUNA, O CARTUNISTA DOS CARTUNISTAS

Ilustração para capa do livro Lições de um Ignorante, de Millôr Fernandes

m texto de 1980, o escritor Antonio Callado comparou os cartunistas, em tempos de ditadura, a posseiros de uma “terra” proibida, o território do comentário político, tendo o pincel como uma espécie de enxada. E apontou Fortuna como um dos líderes do cartunismo editorial brasileiro. Era 1965 quando o próprio Callado levou Fortuna para o Correio da Manhã – já era um desenhista maduro, com 34 anos de idade e mais de 15 de colaboração em veículos diversos. Um traço que se tornaria referência a ponto de ganhar o epíteto de cartunista dos cartunistas. É o título do livro lançado este ano (pela editora Pinakotheke) para homenagear a obra de

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Reginaldo José Azevedo Fortuna. “Para que saibam quem foi esse brasileiro”, diz o também cartunista Cássio Loredano, organizador do trabalho. “Um brasileirinho excelente, esse maranhense”, diz, afetuosamente. “Todo mundo adora ele. O que faz isso acontecer é o refinamento, a clareza mental. Além de tudo era um ótimo leitor, um homem culto.” Pessoalmente, um doce: “Uma pessoa de trato cordial, no sentido da coisa do coração. A fala dele era suave. Engraçado no trabalho. E escrevia bem pra caramba”. Fortuna nasceu em São Luís, em 1931. Morreu em 1994, ao sofrer um enfarte fulminante. Curiosamente, a sua última charge, publicada no jornal Gazeta Mercantil, tratava do tema. “A morte, que coisa incrível. Eu guardei (o desenho), está comigo até hoje”, lembra Loredano.

Visão social

A Cigarra, Senhor, Pif-Paf, Correio da Manhã, O Pasquim, Veja, O Bicho, Folhetim (pioneiro caderno cultural da Folha de S.Paulo, publicado aos domingos), Careta e Gazeta Mercantil foram alguns dos veículos por onde Fortuna passou desde os anos 1950. Antes, em publicações como a revista infantil Sesinho, assinava Ricardo Forte. Já n’A Cigarra, adotou a assinatura definitiva por sugestão do amigo Millôr Fernandes. Com o tempo, seu trabalho passou a ter marcante visão dos problemas sociais brasileiros. Seu filho mais velho, Felipe

OVIDIO VIEIRA/FOLHAPRESS/ EM FORTUNA, O CARTUNISTA DOS CARTUNISTAS

CULTURA

Reginaldo José Azevedo Fortuna era maranhense de São Luís. “Um brasileirinho excelente”, nas palavras do organizador do livro, Cássio Loredano

Fortuna, escreve na apresentação do livro que ele poderia ter sido um crítico de economia. Foram dezenas de cartuns sobre inflação, carestia e temas afins, sobre as dificuldades do dia a dia. “Depois do golpe, mas até um pouco antes, o Fortuna ganhou muita preocupação social.” Algo com que ele não se preocupava – mesmo – eram os prazos. Todos os relatos de quem trabalhou com Fortuna referem-se à demora na conclusão dos desenhos, o que certamente se tornava desesperador em publicações com horários apertados de fechamento. Felipe

conta que ele não sofria nem um pouco com isso. “Acho que o sofrimento era para os outros. A lógica do mercado não era muito importante para ele. Mas tinha um nível de perfeccionismo alto, o que a qualidade do seu trabalho demonstra.” Outra característica de Fortuna era o hábito de mostrar seus desenhos, logo que concluídos, para todo mundo. O porteiro, o gráfico, quem estivesse por perto. “Ele gostava de mostrar, de conversar com as pessoas das máquinas, saber a reação. Ficava feliz quando as pessoas riam”, conta Felipe. “Parece aqueles grandes atores...”, observa Loredano, sobre a lentidão do colega e amigo. “Ele ficava lambendo, vinha mostrar... Até ficar satisfeito e mandar para a gráfica. Ele tinha o estalo e ficava buscando a melhor forma de contar a piada, de torná-la inteligível”, acrescenta o desenhista, que compreende a necessidade de retorno do criador. “Eu tinha esse carma. Trabalhar no vácuo é ruim.” Loredano “narra” um desenho que acabou não saindo no livro: de um computador enorme, sai uma fita “maior que uma sala”, dizendo que errar é humano. E destaca Madame e Seu Bicho Muito Louco (“Achava sensacional aquele cachorro de gravata, bigode”), publicado na revista O Bicho, em meados dos anos 1970. Era um reduto de cartuns e quadrinhos “não enlatados”, como anunciava. Por ali passaram, entre outros, novatos como Paulo Caruso, Laerte, Nani, Luiz Gê, craques

EM FORTUNA, O CARTUNISTA DOS CARTUNISTAS

Ilustração para crônica de O analista de Bagé (o primeiro à esquerda), de Luis Fernando Verissimo. Da esquerda para direita: João Figueiredo, Leitão de Abreu, Aureliano Chaves, Paulo Maluf, Ulysses Guimarães e Armando Falcão (Playboy, fevereiro de 1982)

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CORREIO DA MANHÃ, 20 DE MARÇO DE 1968 EM FORTUNA, O CARTUNISTA DOS CARTUNISTAS

CULTURA

como o francês Wolinsky e o argentino Quino, então mais conhecido como criador de Mafalda. Durou só oito edições. No número 7, de agosto de 1976, é apresentado um certo Luis Fernando Verissimo, “humorista de texto, que também manda ver no desenho”. Se tinha fama de lento, Fortuna era ágil no traço, testemunha Felipe. “Ele esboçava uma ideia com muita rapidez. Com lápis, depois desenho em nanquim. E retocava com guache. Ficava nesse jogo entre o retoque e a arte final”, conta o filho, diplomata, poeta e crítico literário, que se confessa uma “nulidade” no desenho, mas recorda que sair com o pai e os irmãos para comprar material – geralmente importado, em poucas papelarias especializadas – era um dia especial. “Era uma coisa mágica”, resume. Ele também se lembra de ter derrubado umas garrafinhas de nanquim na prancheta do pai, “o que causava um certo estorvo”.

Prisão

No final de 1970, a turma d´O Pasquim (Fortuna, Jaguar, Ziraldo, Paulo Francis, Sérgio Cabral pai, Luiz Carlos Maciel e outros) foi presa pelo Exército. A redação 42

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inteira passou dois meses na cadeia, na Vila Militar, no Rio de Janeiro. “Lembro perfeitamente dos agentes policiais chegarem em casa. E a gente só soube onde ele estava 48 horas depois”, lembra Felipe. “Eu ia visitá-lo. É um pouco aquele filme do Benigni (A Vida é Bela)... Eu achava fascinante um quartel. Tinha uma mesa de sinuca, provavelmente dos oficiais. Eu ficava brincando lá enquanto esperava.” A prisão da trupe teria sido causada por uma montagem em que Dom Pedro I, às margens do Ipiranga, muda de grito e exclama “Eu quero mocotó!!”, em paródia

do quadro de Pedro Américo. O filho acha que o conteúdo marcadamente político do desenho de Fortuna contribuiu para um relativo esquecimento em seus 15 últimos anos de vida, a partir do processo de anistia. “O trabalho altamente politizado dele já não era uma demanda. Cada um dos desenhistas do Pasquim foi tomando caminhos diferentes do humor político.” Isso não diminui a importância de sua obra. “É possível entender substancialmente uma história do Brasil a partir do humor. E o Fortuna teve papel importante nesse processo.”


CULTURA

PAULO GARCEZ/DEZ,1970/ EM FORTUNA, O CARTUNISTA DOS CARTUNISTAS

REVISTA CARETA, Nº 2743, 17 DE SETEMBRO DE 1981/ EM FORTUNA, O CARTUNISTA DOS CARTUNISTAS

Um desenho político, mas também com muito nonsense, define Felipe. Um humor ao estilo Groucho Marx, voltado para o cotidiano. Inquieto, Fortuna também foi um experimentador, pesquisador de formas, tonalidades, materiais: “Muitas capas de revista foram feitas com tinta Suvinil. Ele gostava de testar a espessura... Era um trabalho completamente artesanal”. Sendo assim, será que o artista aceitaria utilizar técnicas mais modernas? “Ele não está aqui para responder, mas me arrisco a dizer que ele não faria com os recursos atuais”, afirma Felipe, para quem havia certa “sensualidade” no manuseio da tinta, do papel, no movimento das mãos. “Acho que ele não aceitaria desenhar diretamente no computador. As facilidades de hoje não resolvem o problema do artista diante da folha do papel.”

A TURMA DE O PASQUIM Dois dias depois de deixar a prisão na Vila Militar, no Rio, Fortuna, Paulo Francis, Sérgio Cabral, Grossi (de bigode, diretor comercial de O Pasquim), Flávio Rangel, Jaguar (de barba), Ziraldo, Luiz Carlos Maciel (de colar) e, no fundo, Chico Junior, funcionário da redação. Defronte à casa do jornal, na rua Clarice Índio do Brasil, em Botafogo REVISTA DO BRASIL

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Sotaque nordestino

NO RIO Apesar de ameaças de descaracterização, a Feira de São Cristóvão é ponto de encontro de nordestinos há 69 anos. E preserva sotaques, sabores, ritmos e raízes Por Hélcio Lourenço Filho. Fotos de Jesus Carlos/Imagemglobal 44

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influência nordestina está por toda parte no Rio de Janeiro. Nas palavras, na música, na gastronomia, na construção civil, nas ruas. Mas há um lugar onde ela é a essência de tudo e ponto de encontro dos filhos e netos dos nove estados da região: a Feira de São Cristóvão, há quase 11 anos rebatizada de Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas e ainda hoje chamada por muitos de Feira dos Paraíbas. A dez minutos de carro do centro do Rio, a maior feira do gênero fora do Nordeste funciona há 69 anos. Tem 156 mil metros

RITMOS A feira se espalha por 156 mil metros quadrados, abriga dois palcos para shows, quatro praças de forró e uma dedicada aos repentistas

quadrados, abriga dois palcos para shows e quatro praças de forró e uma dedicada aos repentistas. Tudo em meio a 690 barracas, entre restaurantes e bares, doces, farinhas, ervas, temperos, carnes, queijos, legumes e produtos típicos e artesanais, como redes e roupas – embora não esteja imune à invasão de bugigangas chinesas e de praças afins. Por muito tempo, a feira funcionou apenas aos domingos. Agora, só fecha às segundas. Mas é a partir da manhã de sexta-feira, quando funciona ininterruptamente até as 22h de domingo e pega fogo à noite, que ela se transforma num


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dos pontos de encontro que mais atraem gente no Rio. O dia mais tradicional, porém, segue o mesmo. “A feira é domingo”, resume o sergipano Leônidas Cardoso, que há dez anos – em um “momento de loucura”, como diz – abriu uma livraria numa das ruas da feira. Pela manhã, é o mercado que atrai frequentadores – nessa hora, café da manhã com tapioca é boa pedida. É possível caminhar por ruas ainda tranquilas e fazer compras. É o momento mais família também. O pernambucano José da Silva, 83 anos, vestido como “Zé das Bandeiras”, espécie de vaqueiro verde e amarelo, já

está lá, vendendo algodão-doce e brinquedos e atendendo a pedidos para fotos. Ele frequenta o local desde 1958. Naquele ano, deixara Surubim, no agreste de Pernambuco, “capital da vaquejada”, num pau de arara rumo ao Rio. Chegou duas semanas depois, com planos de trabalhar como servente em obras e “ganhar salário mínimo”. A feira já era ponto de chegada e partida dos caminhões que levavam o migrante para o sul. Zé nunca mais a abandonou. Para ele, é a expressão da cultura nordestina que atrai tanta gente. Faz as contas e diz que num fim de semana posa para mais de 200 fotos ao lado de

visitantes. A maioria não compra nada, mas ele gosta e diz que jamais pensou em lucrar com isso: “Pra quê, se eu morro e não levo nada?”.

A cultura é a essência

O dia avança, o burburinho cresce. Mais gente chega. Os restaurantes e bares ganham vida. A música – ora agradável, ora estridente – vai dominando o ambiente. As atrações culturais ganham peso. O forró já toca na Praça Câmara Cascudo e faz muitos pares dançarem. Começam os desafios na Praça Catolé do Rocha, área central e polo cultural mais tradicional. REVISTA DO BRASIL

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FESTAS TÍPICAS Em junho, a feira comemora a rigor o dia de cada santo

Mal a reportagem se aproxima é provocada por Miguel Bezerra, que travava um desafio com José Duda. “Aquele camarada/ com caderno na mão/ escreve alguma coisa/ sobre a minha profissão/ eu sou cabeça chata/ repentista do sertão”, canta o violeiro. Pouco depois, se apresenta: “Nasci no Ceará, me criei no Rio Grande do Norte e moro no Rio de Janeiro desde 1974”. Afirma ser o melhor repentista da feira – e não há quem o conteste. Bezerra do Ceará, como é conhecido, tem 62 anos e criou a família “à custa da viola, do repente e do improviso”. Ele explica que desafio é a disputa entre dois violeiros com versos improvisados – rimados de seis frases que saem de repente. Diz que gosta de desafios “quentes”, “pegados a dente de cachorro”, sem combinação prévia. “A gente sente o bom repentista pela plateia”, diz. Afinal, vivem de rodar o chapéu. Na noite 46

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anterior, Bezerra arrecadou R$ 700 entre 21h e 2h da manhã. O violeiro é presença certa aos sábados e domingos em São Cristóvão. “É uma tradição, é não deixar cair a cultura”, afirmar. A divisão da feira em ruas bem delimitadas e simétricas, como é hoje, é relativamente recente. Por muito tempo, foi um labirinto de barracas que misturavam produtos, comidas, cheiros, música, dança e poesia. Ganhou o formato atual – com mais estrutura, higiene e roletas que cobram ingresso de R$ 3 no fim de semana – faz pouco mais de uma década. Agregou conforto, mas para alguns perdeu as raízes. “Toda evolução vai perdendo a sua essência, a característica de feira não existe mais. Eu diria que é um shopping nordestino”, diz o xilógrafo Erivaldo Ferreira. “Precisamos de uma mudança de comportamento, preservar as tradições, a cultura é a

FIGURINHA CARIMBADA Zé das Bandeiras calcula que posa para mais de 200 fotos a cada final de semana

PERDEU A ESSÊNCIA O xilógrafo Erivaldo: shopping nordestino


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REPENTE Miguel Bezerra trava um desafio com José Duda: o melhor, sem contestação

essência. Se for só pela gastronomia, isso tem em qualquer canto do Rio”, defende. Com uma pequena barraca na praça dos repentistas, Erivaldo faz ali mesmo as xilogravuras, arte característica do Nordeste. Aos 48 anos, frequenta a feira desde os 14. Aprendeu o ofício com o pai, Expedito Silva, e foi pessoalmente incentivado por dois mestres da arte: o pernambucano J. Borges e o paraibano Ciro

Fernandes. As xilogravuras de Erivaldo já compuseram a abertura de novelas como Cordel Encantado e A Indomada. O livreiro Leônidas Cardoso, de 58 anos, também teme pela cultura tradicional. Ele mantém a livraria há 11 anos, única em todo o bairro. Livros, pouco vende. São os cordéis, folhetos que saem a R$ 3, que sustentam o negócio. “A feira vive um conflito, e as mudanças acirraram a luta de classes”,

polemiza, referindo-se às diferenças cada vez maiores entre os grandes e pequenos barraqueiros. Mas ressalva que a criação do centro de tradições foi um inegável reconhecimento da cidade aos nordestinos. “Aos domingos, a feira atrai uma massa humana em busca de comida, cerveja, de uma música eletrônica que não gosto, mas também em busca da raiz, de uma alma nordestina, que de alguma forma o pai, a avó, impregnaram nessas pessoas”, resume. Descaracterizada ou não, ela mantém reservas dessa raiz cultural. Como José Duda, de 80 anos, violeiro paraibano de Campina Grande, desde 1954 na área. Após 60 anos e tantas transformações, diz que hoje o que mais gosta na feira é o povo. “De primeiro, era muito preconceito com o nordestino. Hoje está todo mundo misturado aqui”, diz. A noite chega. Não há mais desafios naquele final de domingo. José Duda se despede. Pega a viola e ruma para casa, na favela Nova Holanda, também na zona norte, onde a família o aguarda. Na semana que vem, estará de novo encantando com seus versos no palco da Praça Catolé do Rocha.

Ponto de chegada Na mais célebre frase de Os Sertões, clássico da literatura brasileira, Euclides da Cunha afirma: “O sertanejo é acima de tudo um forte”. A definição se encaixa na história de resistência da Feira de São Cristóvão. É o que garante o paraibano José Pereira de Souza, o Deda do Gás, um dos mais antigos feirantes. “Os paraíbas são guerreiros, vieram dispostos a vencer. Se a feira continua aqui, é porque aqui é cheio de guerreiros. Mas a guerra permanece.” Nascida na segunda metade da década de 1940, a partir de um ponto de chegada e partida de paus de arara que transportavam o migrante nordestino, a feira fincou suas bases no bairro. Ao longo de décadas, teve a

sua permanência contestada por autoridades. “A feira era só aos domingos e a gente desmontava a barraca na dúvida se na outra semana continuava”, recorda Deda, ali desde 1950. A história da feira está registrada em estudos e em cordéis, como nos versos de José João dos Santos, o Mestre Azulão: “O Campo de São Cristovão/ Foi palco de tradição/ Dos primeiros nordestinos/ Que deixaram seu torrão/ Sua família querida / Vieram tentar a vida / Viajando em caminhão/ Depois de dez doze dias/ Numa viagem sofrida/ O Campo de São Cristovão/ Era o ponto de descida/ Onde cada nordestino/ Procurava seu destino/ Em busca de nova

vida/ Iam para as construções/ Onde outros trabalhavam”. Informal por mais de 35 anos, o espaço só foi reconhecido pela prefeitura em 1982. Depois de três décadas, as barracas dos domingos ganharam também os sábados e,

posteriormente, as sextas. Ganhou o perfil atual, permanente e fechado, em 2003, quando os feirantes conseguiram transferi-la para o Pavilhão de São Cristóvão, antigo prédio que abrigava exposições, após uma grande mobilização. REVISTA DO BRASIL

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Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Renata Rosa

Mulher Golfinho

Brasil encantado Inspirada pela sonoridade indígena da região onde nasceu, o Baixo São Francisco, a cantora e rabequeira Renata Rosa lança seu terceiro disco, Encantações. Maracatu rural, coco, cavalo-marinho, ciranda se misturam com jazz, música clássica, árabe e cigana. Entre as nove faixas, está a canção de domínio público Jurema, que Renata adaptou com um canto típico da zona da mata de Pernambuco e participação dos índios da etnia Xariri-Xocó. Saudades do Futuro tem livre adaptação do poema Renascer de Miguilim, de Tunico Rosa, pai da cantora. Depois dos álbuns Zunido da Mata (2002) e Manto dos Sonhos (2008), ela encanta com uma espécie de trilha sonora de um Brasil que não passa na TV. Uma bela mistura de um país riquíssimo (também) em cultura popular. R$ 20.

Arte inclusiva

A exposição Pintura Sem Limites, que fica em cartaz até 29 de agosto no Sesc Carmo, na capital paulista, apresenta obras de artistas com deficiência integrantes da Associação dos Pintores com a Boca e os Pés (APBP). As 14 obras podem ser conferidas pelo público em geral, incluindo pessoas com deficiência visual, já que a mostra conta com audiodescrição e legenda com caracteres ampliados. De segunda a sexta-feira, das 9h às 19h30, na Rua do Carmo, 147, centro de São Paulo. Mais informações: (11) 3111-7000. Grátis.

Pacífica

Romance policial-zen Aos 16 anos, Tony Ferraz escreveu O Artífice, uma mistura de romance policial com filosofia zen-budista. Depois de passar 13 anos engavetada, a obra chega às livrarias pela Universo dos Livros (240 págs., R$ 25). Conta a história de uma investigação sobre um serial killer que vinha assombrando Londres agindo inusitadamente durante tempestades. Como as pistas deixadas pelo criminoso eram esotéricas, um detetive da Scotland Yard recorreu a um mestre budista para solucionar o mistério.

O lugar onde é ambientado o livro do grego Antonis Papatheodoulou parece, à primeira vista, nada incomum: tem praças, estátua, chafariz, museu, agência de correios, parque, ruas, bicicletas, carros, crianças e adultos. Mas, observada com mais cuidado, A Cidade que Derrotou a Guerra (Cia. das Letrinhas, 40 págs.) é incrível. Suas ruas traçam a própria rota, criam atalhos para as ambulâncias, suas árvores contam histórias para quem chega bem perto, os museus guardam obras que mudam de acordo com o espectador, refletindo a alma e o sonho das pessoas... Enfim, era uma harmonia só, até o general Armando Aguerra chegar. Neste tour, o leitor vai conhecer a cidade por meio das poéticas ilustrações de Myrto Delivoria. R$ 33. 48

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STEPHAN RODIER/DIVULGAÇÃO

curtaessadica


Solidão é lava

Juvenal está quase sempre cercado de gente, mas ao mesmo tempo sempre sozinho. Margô nunca tem ninguém por perto, porém tem muitas relações virtuais. Ele, um solitário maquinista de metrô, se mistura ao aglomerado de gente nas plataformas e no centro de Belo Horizonte em busca da sensação de estar acompanhado, sem nunca interagir. Ela, controladora de tráfego, se conecta a muitas pessoas que, no entanto, não “têm corpo”. O filme O Homem das Multidões, do mineiro Cao Guimarães e do pernambucano Marcelo Gomes, é uma ficção que retrata a sufocante solidão das metrópoles. Seu formato quadrado de tela faz aumentar ainda mais a sensação de claustrofobia. Livremente baseado no conto homônimo de Edgar Allan Poe, o longa-metragem, em cartaz a partir de 31 de julho, é um filme silencioso e aflitivo que provoca uma profunda reflexão sobre o desespero silencioso da solidão contemporânea.

Daniel de Oliveira, o pai

Graça Dias, a mãe

Cesar: executado

Um pai em busca de justiça “Meu nome é Daniel Eustáquio de Oliveira, pai de Cesar Dias de Oliveira, de 20 anos, que foi assassinado pela polícia em primeiro de julho de 2012, junto com seu amigo Ricardo Tavares da Silva, também de 20 anos, em uma suposta resistência seguida de morte.” O depoimento abre o documentário Quando Eu Me Chamar Saudade, dirigido por Renan Xavier, Laison Nascimento e Daniel Santos. Daniel investigou por conta própria as contradições que constavam no boletim de ocorrência e provou que seu filho e o amigo foram executados a sangue-frio pela polícia paulista. “Reconhecemos que histórias como a de Daniel, que culminam na prisão dos agressores, são uma minoria quando estes agressores são membros da própria instituição policial. No entanto, acreditamos que, em meio a este triste cenário social, a narrativa da história de um pai que desafiou o próprio Estado em busca de justiça possa confortar e trazer esperança àqueles que compartilham lutas semelhantes”, declarou Renan, um dos diretores do curta-metragem que pode ser assistido na íntegra em http://bit.ly/quandoeumechamarsaudade. REVISTA DO BRASIL

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ROSILDA CRUZ/SECULTBA

ARIANO SUASSUNA

Do Auto da Compadecida João Grilo: – Padre João! Padre João! Padre, aparecendo na igreja: – Que há? Que gritaria é essa? Chicó: – Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer. Padre: – Para eu benzer? Chicó: – Sim. Padre, com desprezo: – Um cachorro? Chicó: – Sim. Padre: – Que maluquice! Que besteira! João Grilo: – Cansei de dizer a ele que o senhor benzia. Benze porque benze, vim com ele. Padre: – Não benzo de jeito nenhum. Chicó: – Mas padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho. João Grilo: – No dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor não o benzeu? Padre: – Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar. Chicó: – Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor. Padre: – É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro? João Grilo: – É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é o motor do major Antônio Morais e outra benzer o cachorro do major Antônio Morais. Padre, mão em concha no ouvido: – Como? João Grilo: – Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio Morais. Padre: – E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Morais? João Grilo: – É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar. Padre, desfazendo-se em sorrisos: – Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o cachorro! João Grilo, cortante: – Quer dizer que benze, não é? Padre, a Chicó: – Você o que é que acha? Chicó: – Eu não acho nada de mais. 50

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Padre: – Nem eu. Não vejo mal nenhum em abençoar as criaturas de Deus. João Grilo: – Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo satisfeito. Padre: – Digam ao major que venha. Eu estou esperando. Chicó: – Que invenção foi essa de dizer que o cachorro era do major Antônio Morais? João Grilo: – Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era “Que maluquice, que besteira!”, agora “Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!”. Chicó: – Isso não vai dar certo. Você já começa com suas coisas, João. E havia necessidade de inventar que era empregado de Antônio Morais? João Grilo: – Meu filho, empregado do major e empregado de um amigo do major é quase a mesma coisa. O padeiro vive dizendo que é amigo do homem, de modo que a diferença é muito pouca. Além disso, eu podia perfeitamente ter sido mandado pelo major, porque o filho dele está doente e pode até precisar do padre. Chicó: – João, deixe de agouro com o menino, que isso pode se virar por cima de você. João Grilo: – E você deixe de conversa. Nunca vi homem mais mole do que você, Chicó. O padeiro mandou você arranjar o padre para benzer o cachorro e eu arranjei sem ter sido mandado. Que é que você quer mais? Trecho do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, encenado pela primeira vez em 1956. O escritor e pesquisador de cultura popular morreu em 23 de julho


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o i d á r u e s o n o d a i m e r p o m s Jornali Anelize Moreira e Marilu Cabañas são as duas repórteres da Rádio Brasil Atual que levaram o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos de 2013. Isso é reconhecimento ao talento das jornalistas e à presença da rádio no noticiário humanista.

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A Prefeitura de Osasco trabalha, planeja e investe para reforçar a educação pública. Creches novinhas são construídas, escolas reformadas e novidades como a creche noturna trazem benefícios inéditos. É assim que Osasco está avançando para a vida melhorar.

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