Revista do Brasil nº 099

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WANDERLEY GUILHERME O Brasil ralou para se preparar para o século 21. Agora virão os grandes PIBs

SONHO EMANCIPADO Vozes de quem deixou de ser invisível ao Estado

nº 99 setembro/2014 www.redebrasilatual.com.br

CUIDADO NA URNA Adesão dos bancos e de caciques do PSDB a Marina Silva escancara o que está em jogo nestas eleições: avançar no desenvolvimento com distribuição de renda e inclusão social r etroceder ao tempo em que o mercado estava acima dos empregos e da cidadania


Previna-se das armadilhas da desinformação.

Acompanhe aqui a cobertura das eleições. E siga nas redes sociais nosso jornalismo crítico, cidadão e transformador

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ÍNDICE

EDITORIAL

12. Economia

O mercado e Marina se assumiram

Emprego e renda: o Brasil ainda precisa e pode mais

14. Brasil

Os movimentos sociais e os desafios de ampliar a democracia

20. Entrevista

Wanderley Guilherme dos Santos: oposição quer faturar o legado

Com o fracasso do PSDB em se firmar como braço político da elite econômica, PSB e Marina destoam de compromissos históricos e abraçam essa agenda

26. Na Rádio

Autoritário e repressor, aparato policial descuida da segurança

32. Cidadania

Mais que renda, Bolsa Família é emancipação com dignidade

A

36. História

Oito séculos de erros e acertos da nossa língua portuguesa

40. TVT

Uma parceria com a TV Brasil mergulha nos direitos humanos

42. Música

Taiguara, libertário, gostava de viver com quem sonhava

SÔNIA ODDI

Islamismo e cristianismo sob o mesmo teto

44. Viagem

Santa Sofia, na Turquia. Encontro de crenças e civilizações

Seções Cartas 6 Destaques do mês Lalo Leal

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Marcio Pochmann

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Emir Sader

25

Mauro Santayana

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Curta essa dica

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Crônica: Lola Aronovich

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adesão do mercado financeiro à candidatura de Marina Silva foi instantânea. E o programa do PSB, já com a candidata na cabeça de chapa após a morte de Eduardo Campos, torna nítida essa aliança em temas relacionados a mercado de trabalho, direitos dos trabalhadores e condução da economia. Diz o programa de Marina: “A terceirização de atividades leva a maior especialização produtiva, a maior divisão do trabalho e, consequentemente, a maior produtividade das empresas”. É essa a linguagem utilizada pelas empresas e bancos quando substituem seus quadros de funcionários por serviços terceirizados para economizar com salários e direitos e desorganizar categorias. E são esses os argumentos da bancada empresarial no Congresso desde 2004, na tentativa de aprovar um projeto de lei (o PL 4330) que escancara as portas da legislação trabalhista para essa fraude na subcontratação de mão de obra. Atualmente, as empresas perdem na Justiça do Trabalho os processos contestando essa prática. E com um programa desses, podem acabar com a “insegurança jurídica”. O objetivo de “reduzir os custos” do trabalho no Brasil não é novo. Um projeto de lei com esse fim foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 2002, último ano de governo FHC. Quando Lula tomou posse, em 2003, retirou o projeto, que já estava no Senado, e enterrou sua tramitação. De lá para cá, o Brasil conviveu com um processo de desenvolvimento que apostou no fortalecimento do mercado interno, permitiu a criação de empregos e o aumento da renda. Para retomar aquela agenda que havia sido superada, Marina precisará de uma coalizão neoliberal conservadora no Congresso, nos moldes daquela que deu ­­ sustentação às políticas da era FHC. Com o discurso da “nova política”, vai precisar de adesões do pior da “velha política” para cumprir seus “compromissos”. Seu programa defende a independência do Banco Central, o que significa retirar do Estado o papel de regulador da economia e deixar ao sabor do mercado a regulação dos juros, do crédito e do câmbio, por exemplo. Não por coincidência, estão entre os gurus econômicos do PSB uma das donas do Itaú Maria Alice Setúbal e os economistas de alma tucana Eduardo Giannetti e André Lara Resende. Por meio da candidata, propõem superávits primários (sobras de caixa para arcar com o pagamento de juros da dívida pública) mais elevados que os atuais. Mesmo que ao preço de conduzir a economia brasileira a um forte arrocho fiscal, levando à redução dos investimentos públicos e dos gastos sociais. O programa de Marina para a política comercial também repete o ideário neoliberal que prevaleceu no Brasil durante os anos 1990, e que destruiu economias em todo o


AYRTON VIGNOLA/AE

Marina com Maria Alice, a Neca Setúbal: muito à vontade

mundo. Os acordos bilaterais propostos pela candidata do PSB contrariam a tendência de fortalecimento dos blocos econômicos como o Mercosul. A diminuição da importância do pré-sal também é um dos anseios da “nova” aliança, o que anularia os enormes investimentos em pesquisa e tecnologia feitos para que o Brasil assumisse posição de protagonista no campo energético mundial. E prejudicaria o retorno desses investimentos, já previsto em lei, para a educação e a saúde. Outra curiosidade do caderno de projetos do PSB para o Brasil é destinar cinco páginas à importância do agronegócio, e de se garantir seu crescimento, e somente três parágrafos à agricultura familiar, que responde pelo emprego de 74% da mão de obra na área rural, por aproximadamente 38% da produção nacional, e por 60% da produção de alguns itens básicos da alimentação brasileira. O programa reserva ainda a redução do papel do BNDES e dos bancos públicos, tanto no que diz respeito ao crédito de longo prazo quanto ao consumidor. Marina propõe acabar com crédi-

to direcionado, aquele que financia casa própria, agricultura, pequenos e médios empresários e industriários. Em benefício dos bancos privados, que poderiam cobrar juros mais altos na concessão desse tipo de empréstimo, que hoje é regulamentado. Os riscos desse receituário são conhecidos dos brasileiros: recessão de fato (muito além da “recessão técnica”) e a volta do desemprego. Um cenário dos anos 1990, que enfraquece os trabalhadores e diminui sua capacidade de promover a distribuição de renda por meio de aumentos reais em seus acordos coletivos. Com o fracasso do PSDB em se firmar como braço político da elite econômica, no plano nacional, o PSB e Marina aceitam assumir essa agenda. Ela une sua fome de ganhar uma eleição com a vontade do mercado de devorar o projeto de desenvolvimento com distribuição de renda e inclusão social que vem sendo construído desde 2003 ao longo dos governos Lula e Dilma. É isso o que está em jogo no dia 5 de outubro.

Não por coincidência, estão entre os gurus econômicos do PSB uma das donas do Itaú Maria Alice Setúbal e os economistas de alma tucana Eduardo Giannetti e André Lara Resende

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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Diego Sartorato, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Hylda Cavalcanti, João Peres, Moriti Neto, Sarah Fernandes, Rodrigo Gomes e Tadeu Breda Iconografia: Sônia Oddi Capa Fotos de Thiago Ripper (Wanderley Guilherme dos Santos) e Ana Nascimento/MDS (Bolsa Família) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Roberto Salvador, Raimundo Suzart, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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Jornalismo econômico Gostaria de saber o conteúdo do curso de um publicitário que diz que o povo quer saber do futuro e não do legado (“Uma boa e uma má notícia”, ed. 98). Todo mundo sabe o que pode acontecer se associarem o futuro ao legado. Como diz o próprio diretor do Data Popular, os jovens hoje têm mais escolaridade que os pais. Como não associar isso ao legado dos governos do PT? Os tucanos apresentam exatamente a proposta que quebrou o país três vezes, tirava os sapatos para entrar nos EUA, deixou o país sem energia, SP sem água e MG com 98 mil contratações ilegais. Rui Viggiano Fortuna O texto sobre a obra do cartunista Fortuna (ed. 98) está entre os melhores publicados por ocasião do lançamento do livro do cartunista. Sem deixar de trazer todas as informações biográficas e profissionais do Fortuna, a edição é generosa na escolha dos desenhos, no espaço dado a cada um deles, e mesmo no achado do título: “Nonsense politizado”. A matéria trata objetivamente do perfeccionismo do humorista, bem como do valor do seu trabalho político. A expressão de Cássio Loredano – chamar meu pai de “um brasileirinho excelente” – foi muito tocante. Em suma, o texto é envolvente, escrito para informar num país sem memória e para mostrar o valor da arte e do humor. Felipe Fortuna

Trabalho escravo O problema não é se importar ou não com a procedência da mercadoria (“Escravos da moda”, ed. 98). O público faz pior que isso quando a adquire em camelódromos e assemelhados. As empresas acusadas pelo Ministério do Trabalho são regularmente estabelecidas, com empregados registrados, pagam impostos e representam menos que 20% desse mercado. Os outros 80% sonegam e escravizam à luz do dia e não são molestados por autoridades. Em todos os casos de flagrante certamente é encontrado um “senhor de escravos”, que aliciou... Punir essa gente produziria mais resultado do que envolver terceiros de boa fé. Eduardo Manquehue O gol não mostrado A Copa no Brasil, exceto pelo fiasco da seleção, agradou em todos os aspectos. Sobretudo pelo gesto que pretendia mostrar ao mundo o quanto pessoas como Miguel Nicolelis, Gordon Cheng, Alan Rudolph e Lumy Sawaki dedicam tempo e esforços em prol do sonho de pessoas como o Juliano. Esse “gol” será marcado na vida de famílias que sofrem ou venham a sofrer em ver um ente querido desejando andar e não poder. Parabéns pelas reportagens de Cida de Oliveira: “O Gol que a Fifa não mostrou” e “Além do exoesqueleto” (ed.97). José Geraldo da Silva Participação social As ações do poder público precisam ser acompanhadas, o que não acontece com a frequência necessária (“Quem tem medo de democracia”, ed. 97). Um orçamento, municipal, estadual ou federal, deve contar com a participação dos interessados, ou seja, as comunidades. Quando o governo estimula a Política Nacional de Parti­ cipação Social abre essa possib­ ilidade. Quem se posiciona contrário é porque quer continuar tomando decisões sem que comunidade seja ouvida. Uriel Villas Boas

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Mudança de hábitos Entusiastas da bicicleta vêm conquistando ciclofaixas na cidade de São Paulo. O objetivo do prefeito Fernando Haddad é entregar 400 quilômetros de rotas exclusivas e estimular o uso do veículo como meio de locomoção, e não apenas para o lazer. Falta convencer motoristas, sindicatos, igrejas, condomínios e pequenos comércios. Lojistas se queixam do fechamento de vagas de estacionamento. Motoboys reclamam da substituição de faixas exclusivas. E usuários das magrelas ainda cobram mais sinalização, segurança e integração das vias com terminais de ônibus e metrô. Em 25 de agosto, cerca de 100 cicloativistas reuniram-se no Largo Santa Cecília, região central, para apoiar a expansão de seu espaço – reivindicam o triplo do planejado pela administração. A prefeitura já concluiu 50 quilômetros de ciclovias. E já tem pronto projeto para ampliar a rede no canteiro central da Avenida Paulista, sem prejuízo nas faixas hoje destinadas aos carros. O grupo se mobilizou depois que comerciantes organizaram abaixoassinado, acionaram polícia e Ministério Público. “Moro aqui há muitos anos e sempre usei a bicicleta, inclusive para fazer compras”, pondera a produtora cultural Mariane Bonardi. “Todos podemos mudar nossos hábitos. Não queremos entrar em conflitos com os comerciantes nem com os motoristas. Desde que troquei o carro pela bicicleta tenho mais dinheiro para gastar”, diz o técnico de informática Roberson Miguel. Ele defende que os ciclistas apoiem as lutas dos motoristas de ônibus, a exemplo do que ocorreu em torno do Movimento Passe Livre em junho de 2013. “Foi importante unir defensores do transporte público.” bit.ly/rba_ciclovias

FOTOS DANILO RAMOS/RBA

Ciclofaixas: período de adaptação

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Estranho no ninho

ANTONIO CRUZ/ABR

Romero Jucá: precarização do trabalho

Ex-líder do governo, ex-ministro de Lula e cacique do PMDB, o senador Romero Jucá (RR) tem atuação marcada por visível apoio ao PSDB e DEM em projetos de precarização trabalhista, corte em programas sociais e conflitos agrários. E no último dia 13 de agosto, afirmou que política “socialista” de Dilma “serve para o Cazaquistão”. Em palestra no Conselho Regional de Economistas de seu estado, afirmou que fará de tudo para que eleitores da região Norte contribuam para a derrota da presidenta nas urnas e que, com a morte de Eduardo Campos (PSB), votará no colega Aécio Neves (PSDB). “Não quero forçar ninguém, mas eu vou falar o meu voto. Eu vou votar no Aécio. Jucá é relator, no Senado, do projeto de lei que pode mudar a definição legal de trabalho escravo. bit.ly/rba_romero_juca

Irlanda, um drama

COSMO_71/FLICKR/CC

Belas paisagens e riquíssima tradição cultural, moldadas por um clima quase sempre fechado, compõem cenário de um país que vive perigosamente à beira da recessão. A Irlanda é um país extremamente literário (James Joyce, William Yeats, Oscar Wilde, Samuel Beckett, Bernard Shaw). Uma literatura tão rica quanto rebelde. Mas hoje é palco de outros dramas. Foi o primeiro país europeu a declarar-se oficialmente em recessão depois da crise financeira de 2008. A partir dos anos 1990, tornara-se menina dos olhos do neoliberalismo em expansão. Desregulamentou completamente seu sistema bancário, promoveu expansão descontrolada do crédito imobiliário e contraiu dívidas colossais no sistema financeiro internacional. Instituiu imposto corporativo único, de 12,5%, o que atraiu mais capitais financeiros. Quando a crise estourou nos Estados Unidos, estes se retiraram e o sistema bancário quebrou. Vieram os inevitáveis planos recessivos do FMI, da União Europeia e do Banco Central Europeu, com suas receitas amargas. A dívida subiu a 125% do PIB, o desemprego em um ano foi de 6,5% da força de trabalho para 14,5% (2009) e os escândalos bancários se avolumaram. O número de furtos e roubos cresceu a 10% ao ano, a prostituição dobrou. E a economia irlandesa é descrita oficialmente como “em recuperação”. http://bit.ly/rba_irlanda

Irlanda: o preço da desregulamentação do sistema bancário ficou caro demais

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Questão de saúde pública

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Periferia Ativa e o Fórum Popular de Saúde protestaram em 27 de agosto contra a má qualidade dos hospitais do estado de São Paulo. Os movimentos realizaram manifestações simultâneas, na Secretaria estadual da Saúde e nas municipais de Embu das Artes e de Taboão da Serra. O secretário estadual, David Uip, recebeu os militantes e suas reivindicações. Jussara Basso, da coordenação do MTST, quer investigação sobre os investimentos do dinheiro público nas contratações dos serviços de saúde de agentes privados. E questiona a “política de dupla porta” nos hospitais estaduais. “A população carente não é atendida. Atende-se mais plano privado do que a população.” bit.ly/rba_saude


LALO LEAL

As pesquisas e a mídia

A história não autoriza a descrer totalmente das pesquisas, mas ressalta a importância de se ter muito cuidado, principalmente, com a forma como a pesquisa é “tratada” pelo veículo que a encomenda

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esquisas de intenção de voto não mudam apenas os humores de candidatos e eleitores. Elas são cada vez mais importantes para o direcionamento das doações dirigidas às diferentes campanhas. O dinheiro corre com mais facilidade para os cofres dos que aparecem com mais chances de vitória. Prestam-se também para influenciar eleitores indecisos ou determinados a mudar o voto na última hora, deixando de lado a escolha inicial e optando por outra, não tanto de sua predileção, mas capaz de evitar o sucesso do maior adversário, criando o chamado “voto útil”. Sem falar na desmobilização de militantes antes do fim do pleito ao verem seu candidato desabando nas pesquisas. Em 1985, nas eleições municipais em São Paulo, o candidato Fernando Henrique Cardoso sentou na cadeira de prefeito antes da hora, confiando na pesquisa do Datafolha. Nas urnas, a vitória foi de Jânio Quadros, que não perdeu a oportunidade de usar seus dotes teatrais, desinfetando o trono antes de ocupá-lo. Danosa, no entanto, para o jogo democrático, foi o papel da pesquisa e o seu uso pela mídia nas eleições de 1998 para o governo de São Paulo. Dois dias antes da eleição do primeiro turno, o Datafolha divulgou pesquisa apontando Paulo Maluf, com 31% dos votos, seguido de Francisco Rossi com 18%; Mário Covas, candidato à reeleição, com 17%; Marta Suplicy, com 15%, e Orestes Quércia, com 6%. Na véspera da votação, a imprensa tratou a eleição como se a decisão se limitasse a saber quem entre Covas e Rossi enfrentaria Maluf. E o temor da ida ao segundo turno de dois candidatos conservadores, Maluf e Rossi, levou um grande contingente de eleitores de Marta a optar por Covas, realizando o “voto útil”. Abertas as urnas, sentiram-se enganados. Covas ficou a apenas 0,9% de votos à frente de Marta e ela superou Rossi em 5,39%. Sem a influência do Datafolha e, sobretudo, da forma como a pesquisa foi “trabalhada”, Marta e não Covas (tampouco Rossi) teria disputado o segundo turno com Maluf. São lembranças que não autorizam a descrer to-

talmente das pesquisas, mas ressaltam a importância de se ter com elas muito cuidado, principalmente sabendo-se de como são usadas pela mídia. Neste ano, por exemplo, a Rede Globo considerou os 3% das intenções de voto do Pastor Everaldo suficientes para levá-lo à bancada do Jornal Nacional para uma exposição de 15 minutos. O objetivo era claro: ainda com Eduardo Campos na disputa, a tendência seria a eleição se encerrar no primeiro turno com a vitória de Dilma Rousseff. Uma pequena ascensão do pastor evitaria isso, e o Jornal Nacional estava ali, à disposição, para dar o empurrão necessário. Tarefa oposicionista que o principal noticioso da Rede Globo realiza não apenas durante o período eleitoral, embora seu protagonismo cresça nessas épocas. Sempre se soube disso, mas agora os dados são mais concretos. Nas eleições de 2002 e 2006, um trabalho de fôlego da pesquisadora Flora Neves, da Universidade Federal de Londrina, analisou 199 edições do Jornal Nacional, constatando a manipulação do noticiário. Um exemplo: em 2006, entre início no horário eleitoral obrigatório e o primeiro turno das eleições o JN levou ao ar 68,57% de notícias positivas para o candidato Geraldo Alckmin, 61,76% para Heloísa Helena, 52,94% para Cristovam Buarque e 16,43% para Lula. A íntegra está no livro Telejornalismo e Poder nas Eleições Presidenciais, da Summus Editorial, 2008. Em 2014 a história se repete, e quem nos prova isso é o site Manchetômetro, importante realização do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública sediado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Seus pesquisadores acompanham desde o início do ano as manchetes dos três jornalões brasileiros (Folha, Globo e Estado) e as do Jornal Nacional. O alinhamento dos quatro veículos em oposição ao governo fica evidente. O Manchetômetro constatou que entre 1º de janeiro e 22 de agosto o JN dedicou quase uma hora e meia do seu tempo para apresentar notícias negativas em relação a Dilma. Sobre Aécio foram quatro minutos. REVISTA DO BRASIL

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Sob nova direção Em sua primeira cerimônia depois de eleito presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Ricardo Lewandowski disse que seu maior desafio será o julgamento dos processos com repercussão geral que tramitam no tribunal. São cerca de 600 casos que firmarão jurisprudência, ou seja, formularão decisões que valerão para todas as ações sobre um mesmo tema em tramitação nos tribunais brasileiros. Calcula-se que essas ações terão impacto direto sobre 300 mil processos existentes nos tribunais de primeira e segunda instâncias – muitos deles consistem de ações coletivas ajuizadas por até mil pessoas. Por exemplo, a constitucionalidade de ressarcimento dos expurgos inflacionários nas contas de poupança durante antigos planos econômicos. Lewandowski ressaltou que o trabalho que tem pela frente é árduo, mas conta com o apoio dos demais ministros do STF na missão de dar celeridade aos julgamentos. Afirmou também que pretende buscar maior diálogo com o Legislativo, o Executivo, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e as entidades representativas de magistrados – caso da AMB. O tribunal já implementou atividades de força-tarefa para analisar processos separados e acelerar a tramitação – perto de 1.600 deles (independentemente dos 600 de repercussão geral). Outra gestão do Judiciário é possível. bit.ly/rba_lewandowski 10

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E não teve água

Segundo o Datafolha, 46% dos paulistanos sofreram com interrupção no fornecimento de água entre julho e agosto (28% relataram interrupção por cinco dias ou mais). Na pesquisa anterior, eram 35%. A escassez é conhecida por 99% da população do estado – 57% se dizem “bem informados” sobre o tema e 34%, mais ou menos. Desde o início do ano, quando a crise de escassez de água começou, os relatos de corte no fornecimento aumentam a cada mês. No entanto, 28% dos entrevistados ainda aprovavam a atuação do governador Geraldo Alckmin (PSDB) na atuação diante da crise. bit.ly/rba_racionamento

Miriam Belchior: 8,8% sobre o Mínimo

O mínimo em 2015

A partir de 1º de janeiro de 2015, o salário mínimo deve ser R$ 788,06, segundo o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) 2015. A proposta enviada pelo Planalto ao Congresso prevê reajuste de 8,8% sobre os atuais R$ 724. O índice projeta inflação de 6,14% para este ano, e é acrescido de um aumento real de 2,5% correspondente ao crescimento do PIB em 2013. A ministra do Planejamento, Miriam Belchior, antecipou que o Ploa prioriza ainda investimentos em saúde, educação, combate à pobreza e infraestrutura. A legislação que assegura essa fórmula de reajuste do mínimo, porém, só vale até o próximo ano. bit.ly/rba_novo_minimo

VALTER CAMPANATO/ABR

Lewandowski: desafio de limpar a mesa

NELSON JR./SCO/STF

MARCOS SANTOS/USP IMAGENS

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MARCIO POCHMANN

Desafio ao pensamento único

O país hoje se reinventa, apostando em projeto de desenvolvimento melhor para o conjunto do seu povo. A compreensão deste momento é tarefa de quem acredita que o Brasil pode e merece mais

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esde a irrupção da crise de dimensão global em 2008, acreditou-se que a hegemonia do pensamento único imposto pelo neoliberalismo estaria com os seus dias contatos. Ledo engano. Seis anos depois, constata-se que somente duas regiões (Ásia e América Latina) e alguns países não se encontram alinhados com o receituário econômico e social neoliberal anglo-saxônico. Em certa medida, as experiências atuais dos governos pós-neoliberais possibilitam ensaiar a construção das bases do desenvolvimento num novo mundo multipolar, ao contrário da perspectiva unipolar reinante nos Estados Unidos, após o desaparecimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) no final da década de 1980. Nesse sentido, a evolução dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) tem apontado para a formação de um sistema monetário e financeiro favorável ao desenvolvimento, alternativo ao quadro internacional desolador da desregulação competitiva. Isso, contudo, exerce enorme tensão e pressão sobre os governos dos países que soberanamente buscam construir caminhos próprios para o enfrentamento simultâneo dos problemas de seus povos e do mundo, com maior justiça social. Exemplos disso não faltam hoje em dia no Brasil, que tem registrado resultados muito satisfatórios, sobretudo se comparado às nações assentadas nas políticas neoliberais. Entre 2008 e 2013, o Brasil obteve a criação de 11 milhões de empregos formais. Para o mesmo período de tempo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o mundo registrou a destruição de 62 milhões de postos de trabalho. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil vai conseguindo – como poucos países no mundo – reduzir a pobreza e a bárbara desigualdade de renda. Nas economias submetidas às orientações do receituário neoliberal, o quadro tem sido desolador, com rebaixamento dos direitos sociais e do trabalho, em meio ao

maior desemprego, pobreza e concentração de renda. Continuar nessa perspectiva não será simples, como permite observar a complexidade atual da condução da economia brasileira. O gradualismo adotado no conjunto das medidas de transição econômica para um novo modelo produtivo com justiça social exige apoio popular e uma maioria política engajada no desbravamento do caminho próprio do país. As críticas ao projeto em curso buscam oferecer o paraíso, sem apresentar o caminho a ser seguido. Implicitamente, defendem que o combate à inflação deveria se dar com a elevação drástica na taxa de juros e a valorização cambial, permitindo que o tarifaço a ser cedido pela elevação do preço do petróleo, da energia elétrica e outros preços básicos da economia se completasse como uma terapia do choque. Ao mesmo tempo, o corte nos gastos públicos, com a suspensão dos concursos, a promoção do arrocho salarial no funcionalismo e o menor recurso para as áreas sociais e de investimento completassem o ­ajuste fiscal aprofundado. Em síntese, a recessão como meio de contenção do tamanho do mercado de trabalho, provocando aumento do desemprego e o rebaixamento do nível de remuneração. Esse filme – é verdade – já passou nos anos 1990 no Brasil, quando a base da pirâmide social foi a que pagou pelo custo do ajuste econômico, sem sucesso sustentável no tempo. Na Grande Depressão de 1929, o Brasil foi um dos primeiros países que mais rápido recuperou a sua economia e perseguiu um novo modelo de desenvolvimento nacional. Mesmo assim, a década de 1930 foi repleta de críticas daqueles que não aceitavam o caminho próprio construído pelo país a partir de então. O país hoje, guardada a devida proporção, se reinventa, apostando em projeto de desenvolvimento melhor para o conjunto do seu povo, não obstante as contradições que apresenta. A compreensão deste momento constitui tarefa substancial de todos aqueles que acreditam que o Brasil pode e merece muito mais, não menos. REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

Emprego cresceu, renda aumentou,

formações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, mostram ainda mão de obra mais escolarizada (1,1 milhão de empregos foram criados em 2013, entre trabalhadores com ensino médio completo) e madura (na faixa de 30 a 39 anos). Mas o ritmo do mercado formal caiu drasticamente nos últimos meses. Em julho, foram criados apenas 12 mil vagas. Os números de pesquisas mensais do IBGE mostram taxas médias de desemprego em torno de 5% – no início da série histórica, a partir de 2002, essas taxas chegavam a 13%. No período mais recente, o nível baixo se manteve, principalmente, porque houve redução da procura de trabalho. Em outras palavras, menos gente procurou emprego, o que provocou menor pressão na taxa. Esse movimento também foi detectado na pesquisa feita mensalmente pelo Dieese e pela Fundação Seade. Segundo o coordenador de análise do Seade, Alexandre Loloian, o mercado vem “andando de lado”, embora continue exibindo resultados razoáveis. A preocupação maior se concentra no setor industrial. Só em São Paulo, a estimativa da Federação das Indústrias (Fiesp) é de fechamento de 100 mil vagas este ano. Mas a entidade lembra que as dificuldades não são novas – a participação da indústria de transformação no PIB, hoje em torno de 13%, era de 25%, em média, no período 1973-1992. “Estamos falando de décadas, de muitos governos e muitas responsabilidades”, diz o diretor da Fiesp Paulo Francini.

e agora?

Mercado de trabalho melhorou nos últimos anos. O desafio é como garantir um crescimento que sustente essa expansão Por Vitor Nuzzi

O

s indicadores do mercado de trabalho nos últimos anos não deixam dúvida quanto à melhoria de cenário. O emprego formal, do qual se dizia estar em extinção nos anos 1990, se recuperou. Os salários cresceram acima da inflação. As taxas de desemprego, ainda que limitadas a algumas regiões metropolitanas, chegaram aos menores níveis históricos. Essas são as boas notícias. A questão, agora, é como garantir que esses avanços se sustentem. Isso passa, necessariamente, por crescimento, investimento e qualificação.

Nos três primeiros anos de governo Dilma, o Brasil criou 4,9 milhões de empregos formais. Só em 2013, foram 1,5 milhão, concentrados, principalmente, em serviços (559 mil) e administração pública (403 mil). O rendimento médio real, descontada a inflação, cresceu 3,18% em relação ao ano anterior. O avanço da renda é contínuo. Se for considerado o período 2003-2013, que abrange os dois mandatos de Lula e o atual, são 20 milhões de vagas formais, entre CLT e estatutários. De 1995 a 2002 – gestão Fernando Henrique Cardoso –, foram 5 milhões. Os dados da Relação Anual de In-

RAFAEL NEDDERMEYER/FOTOS PUBLICAS

Acordos

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As negociações salariais têm assegurado reajustes acima da inflação, segundo mostra levantamento sistemático feito pelo Dieese. Em 2013, por exemplo, 87% de quase 700 acordos pesquisados tiveram aumento acima do INPC-IBGE. Foi menos do que em 2012 (95%) e com índices um pouco menores, em parte por uma pressão maior da inflação. Mas a tendência segue positiva. Pelo último dado disponível, divulgado em agosto, 93% dos acordos no primeiro semestre deste ano tiveram ganho real­ – quase metade entre um e dois pontos percentuais acima do INPC. Para o Diee-


ECONOMIA

se, contribuíram para o bom resultado um ímpeto menor da inflação e a permanência do desemprego em níveis baixos. Para o segundo semestre, a expectativa também é de bons resultados, mas o técnico Airton Santos alerta para possíveis dificuldades no médio prazo. “O que está pegando no Brasil agora é o crescimento.” O economista Cláudio Dedecca, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Cesit-Unicamp), considera que o país teve recomposição do segmento formal e evolução favorável da renda, especialmente pela política de valorização do salário mínimo. Por outro lado, não combateu alguns gargalos. “Poderíamos ter realizado uma estratégia mais consistente em termos de nossa estrutura produtiva”, afirma o pesquisador. “Nós chancelamos um mercado de trabalho que tem um setor terciário exacerbado, um perfil de baixa qualificação e uma economia com baixo nível de competitividade.” Para ele, o Plano Brasil Maior, de política industrial, foi uma iniciativa correta, mas limitada. “Faltou clareza por parte do governo.” Além de planejamento estratégico, diz Dedecca. Ele identifica um cenário mais difícil para o futuro. “Claramente nossa restrição em termos de emprego se ampliou. As dificuldades do mercado de trabalho refletem as da nossa estrutura produtiva. O setor terciário é insuficiente para dar sustentação a um crescimento mais robusto.” Para Dedecca, o Brasil não aproveitou um momento favorável, pré-crise. Poderia ter pensado mais em estratégias de médio e longo prazo, por exemplo. E elevar a qualificação da força de trabalho – nessa

Emprego formal no Brasil Ano

Número de vagas criadas

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

88.495 74.576 274.116 387.207 501.630 1.235.364 960.985 1.494.299 861.014 1.862.649 1.831.041 1.916.632 2.452.181 1.834.136 1.765.980 2.860.809 2.242.276 1.148.082 1.489.721

Total por período de governo 1995/2002

5 milhões

2003-2010

15 milhões

2011-2013

4,9 milhões

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais/ Ministério do Trabalho e Emprego

questão, considera que o sistema público de emprego que vinha se esboçando terminou “desmontado” por razões políticas. Mas “não é o apocalipse”, acrescenta o professor, que identifica “posições conservadoras se armando em torno do mercado financeiro”. A implementação de medidas com esse viés embutiriam um risco de recessão. “Qualquer política conservadora vai significar menos crescimento.” O diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, vê como grande questão para o país a sustentação do crescimento. “E como

esse crescimento rebate positivamente sobre o mercado de trabalho, que se expandiu nos últimos anos, além de já sentir efeitos positivos da redução da taxa de natalidade e da entrada mais tardia de jovens.” O economista atribui esse segundo movimento, entre outros fatores, à melhoria da renda familiar, que diminui a necessidade de outros membros da família ingressarem no mercado, e também à maior oferta de vagas públicas no ensino superior e técnico. Mas ele alerta que o país precisa se preparar, porque em algum momento parte da população economicamente ativa (PEA) tentará entrar no mercado de trabalho, o que exigirá maior abertura de vagas. “A questão é como fazer o próximo passo”, diz Clemente. “Você não tem mais 40 milhões de miseráveis para colocar no mercado de consumo. Esse movimento não se repete. Colocar esses 40 milhões como trabalhadores qualificados leva mais tempo. Fazer isso é muito mais complexo.” É necessário, aponta, expandir a capacidade produtiva e manter políticas de transferência de renda. Nesse sentido, ele avalia que a política de valorização do salário mínimo trouxe “efeito virtuoso” para o mercado interno – e continua sendo fundamental pelo efeito de redução de desigualdades. O diretor também identifica risco em caso de implementação de certas “opções políticas”, que se traduzem como “medidas impopulares” que possam atingir o mercado de trabalho. “Reduzir o custo do trabalho pelo salário ou ajustar a macroeconomia pela redução do emprego aumenta a demanda. Se a demanda não cresce, você não tem como sustentar o crescimento”, observa.

Três contra um As centrais sindicais se queixam que o atual governo foi menos receptivo às reivindicações do que o anterior. Insistem no atendimento de itens considerados básicos, como a redução da jornada de trabalho e o fim do fator previdenciário. Mas segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), várias leis aprovadas no período recente garantiram avanços trabalhistas. Levantamento do Diap cita diversas medidas em temas como teletrabalho, ensino técnico, aviso prévio, correção da tabela do Imposto de Renda, manutenção da política do salário mínimo, isenção de IR para pagamentos de participação nos lucros ou resultados (PLR) de até R$ 6 mil e combate ao trabalho escravo, entre outros.

Diretor do Diap, o analista político Antônio Augusto de Queiroz vê risco real de retrocesso se a bancada trabalhista no Parlamento não for ampliada. “Tem projeto de tudo quanto é gosto para prejudicar os trabalhadores. Esse é o grande desafio. A investida patronal a partir do ano que vem contra os trabalhadores será assustadora.” Hoje, a bancada empresarial é três vezes maior que a dos trabalhadores (273 parlamentares a 91). Um dos temas que deve retornar “com força” ao debate é o Projeto de Lei 4.330, sobre terceirização da mão de obra. O PL é combatido pelos sindicalistas e visto como prioritário por entidades empresariais, como a Confederação Nacional da Indústria REVISTA DO BRASIL

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MAIS Democracia Cidadania Crescimento O país melhorou nos últimos anos. Falta aprofundar o combate às raízes da desigualdade e aumentar os canais de participação social e de inclusão dos trabalhadores na vida política do Brasil Por Vitor Nuzzi

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ANA NASCIMENTO/MDS

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processo eleitoral que envolve 143 milhões de brasileiros largou com reviravoltas em uma das principais entre as 11 candidaturas à Presidência da República. A campanha efetivamente começou ainda sob o impacto da morte trágica de Eduardo Campos (PSB). Mas, além do mundo das pesquisas, que muitas vezes mais desnorteiam do que indicam, é preciso refletir sobre as ideias em jogo nesta eleição. Quem pode, de fato, fazer com que o país continue na rota do combate à injustiça social? A receita inclui três ingredientes: mais democracia, mais cidadania, mais crescimento. Mas passa pela ocupação dos espaços políticos. Dependendo de quem fizer isso, o Brasil poderá andar para a frente – ou dar ré. “O ponto central é preservar e ampliar as conquistas recentes”, diz a cientista política e historiadora Dulce Pandolfi, professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas) e diretora do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. “Ainda temos níveis altíssimos de concentração de renda, de riqueza.” Ela identifica avanços, mas também aponta riscos de retrocesso. “São escolhas, são opções políticas. Não há garantia de que essa rota não seja desviada.” Para o diretor-geral do Instituto Brasileiros de Análises Sociais e Econômicas


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UM PASSO À FRENTE Maria Juzeuda Nascimento, beneficiária do Bolsa Família em Boa Vista, com seus filhos e o marido: a distribuição de renda melhorou, mas o país continua muito desigual

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ARQUIVO PESSOAL

DIVULGAÇÃO

(Ibase), Cândido ­Grzybowski, prioridade derrotar o projeto também há motivo de preoque vem sendo executado nos cupação. “O risco maior é o últimos 12 anos. De avanços de retorno a um liberalismo sociais tremendos, de crescimento movido a promoção solto, mais feroz do que foi de empregos e distribuição no tempo de Fernando Henrique. E seria muito ruim volde renda.” tar a um liberalismo ortodo- Eduardo Fagnani: xo”, afirma. Com críticas à “Os setores que Governabilidade fazem oposição “A principal questão é políatual gestão, ele observa que ao governo tica, e não econômica. O eno governo “pelo menos tentou são defensores trave está no que o PT chamitigar um pouco daquele le- dos interesses dos mercados gado neoliberal e retomar um financeiros. O PSDB ma de governabilidade, o que papel mais ativo do Estado”. propõe uma volta prevê a não ruptura com setores como o financeiro, o Mas as ruas precisam ser mais ao passado” agronegócio, as empreiteiras, ouvidas – e o cientista político que são forças que represenespera que o país “radicalize” a sua democracia, para buscar um novo tam o atraso. Houve uma aliança capaz de dividir a classe dominante e ganhar modelo de desenvolvimento. A presença dos movimentos sociais as eleições, fazer coisas boas. Agora prenas ruas, para Grzybowski, deixou a cisamos de uma onda que promova direidesejar. Talvez por uma ilusão de que tos universais e cidadania para camadas a proximidade com o governo permi- mais amplas da população. É que os notisse uma evolução da agenda social. O vos movimentos estão querendo”, afirma presidente da CUT, entretanto, conside- Grzybowski. ra que a central e os movimentos popuO economista Eduardo Fagnani, prolares nunca deixaram de pressionar. “O fessor do Instituto de Economia da que faltou foi ousadia ao governo para Universidade Estadual de Campinas dar mais vazão a demandas do campo (Unicamp) e coordenador da rede Plademocrático e popular. Isso vale para te- taforma Política Social – Agenda para o mas localizados do mundo do trabalho, Desenvolvimento, ressalta a importâncomo a redução da jornada e uma solu- cia da “construção coletiva” de um proção para o fator previdenciário. E tam- jeto de transformação. No período rebém para enfrentamentos mais amplos, cente, observa, o Brasil conseguiu abrir como a reforma política, a reforma tri- brechas, em meio a uma visão neolibebutária e a democratização dos meios de ral hegemônica, no sentido de conduzir comunicação”, diz Vagner Freitas. um processo de política econômica com O sindicalista ressalta, entretanto, que inclusão social. o único caminho para que esses avan“Desde os anos 80, anos 90 no Brasil, a ços sejam empreendidos é a continuida- visão hegemônica no mundo era o neo­ de desse processo de mudanças que vem liberalismo: mercado, indivíduo, meritosendo posto em prática desde 2003. “Está cracia, o esvaziamento da esfera pública, perda de poder dos Estados em jogo esse processo de inclusão da classe trabalhadora nacionais. O poder dos mercados financeiros globalizana vida política e econômica dos continua sendo mundialdo país. Aécio já deixou claro que a equipe econômica mente forte”, afirma Fagnani, de sua campanha representa transportando a discussão para o cenário eleitoral. “Os seo retorno à era FHC. E Marina tem sua campanha diritores que fazem oposição ao gida por banqueiros e econo- Dulce Pandolfi: governo são defensores desmistas ligados a eles. Virou “Falta pensar em ses interesses. Simples assim. como ampliar a instrumento da elite econô- presença social na O PSDB propõe uma volta ao mica do país que tem como política” passado.” 16

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REALIDADE E ESPECULAÇÃO Dilma entrega unidades do Minha Casa Minha Vida: há mais um clima de expectativa desfavorável do que uma situação totalmente ruim

Segundo ele, falar, por exemplo, em diminuição da meta de inflação, traria como consequências aumento “alucinado” dos juros, desorganização do mercado de trabalho, redução do investimento social. “O que está em disputa hoje é isso”, diz o economista. “Ajuste com política econômica ortodoxa, você pode rasgar o capítulo ‘política social’.” Principal economista da equipe de Aécio Neves, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga já declarou publicamente considerar alto o atual centro da meta de inflação (4,5%). O passo seguinte, para Fagnani, é continuar insistindo na redução da desigualdade, via mobilidade social, com políticas de transferência de renda. “No campo progressista, é avançar na inclusão pela cidadania social. É impossível fazer isso com uma política de ajuste.”


ROBERTO STUCKERT FILHO/PR/FOTOS PÚBLICAS

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Confiança

ROBERTO PARIZOTTI/CUT

o MDA. O Ministério do DeSegundo o professor João senvolvimento tem o BNDES, Saboia, do Instituto de Economas o Meio Ambiente não mia da Universidade Federal tem. A gente conseguiu ganhar do Rio de Janeiro (UFRJ), há governos, mas não conseguiu mais um clima de expectativa fazer valer a agenda democrática-popular”, afirma o diretor desfavorável do que uma situação efetivamente ruim – e, Vagner Freitas: do Ibase. “Eu sou o primeiro a nisso, há certa contribuição da “Faltou ousadia ao dizer que este governo alcanpara dar çou mudanças históricas para mídia: “Parece que o país está governo vazão a demandas o país. Mas o país precisa muicaindo aos pedaços. O que pio- democráticas” rou realmente é o crescimento to mais, e é possível conseguir. econômico. Houve uma granA necessidade de distribuição de desaceleração”, observa. “Acho que a de riqueza ainda é incontornável. Talvez gente tem de melhorar o clima de con- essa campanha eleitoral ocasione um fiança. Tem mercado interno muito gran- “susto” que desperte para um novo dinade, tem espaço para exportação. Não é só mismo e recomposição das forças mais o governo. A gente tem potencial muito consequentes.” grande para retomar o crescimento. Não Segundo ele, crescimento da renda e de adianta jogar para baixo.” oportunidades para os “novos batalhadoÉ preciso pressionar, pede Grzybowski. res” – citando uma expressão do sociólogo “Com esse governo, temos mais chance Jessé de Souza – ainda não representa cidade disputar as mudanças necessárias, dania. “É empreendedorismo, e individumas temos de criar dificuldades para o alismo. Não é universalização de direitos. governo. O agronegócio leva o Ministé- Eu não queria mais gente tendo condições rio da Agricultura e a agricultura familiar, de ter acesso a um plano privado de saú-

de. Eu queria o SUS funcionando. É claro que o SUS melhorou, é evidente. Mas não é suficiente. Na busca da universalização, paramos no meio do caminho. Na educação, tem muito mais gente na escola, mas que escola temos? Tem mais gente comprando carros, mas resolve? Ou isso está parando as cidades?”

Participação

São questões relacionadas à qualidade do desenvolvimento, como propõe Luciane Udovic, da coordenação do Grito dos Excluídos Continental e do Programa Justiça Econômica. “É verdade que a redução da pobreza e da pobreza extrema é significativa, tanto pela transferência direta de renda (Bolsa Família e outros programas) como pelo aumento do salário mínimo e do crédito. Contudo, a situa­ção estrutural de distribuição de renda ainda apresenta poucas mudanças, pois os 10% mais ricos ainda detêm algo como 43% do total da renda, enquanto os 40% mais pobres ficam com 10%. Portanto, é preciso aprofundar não apenas a REVISTA DO BRASIL

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transferência de renda, mas sim a elevação da massa salarial.” Ela ressalta, ainda, outros dois itens: reforma tributária (“fundamental para a redução da pobreza e da desigualdade”) e redução de juros. “Como grande parte da ‘inclusão’ social dos últimos anos tem sido via crédito para consumo, os juros terminam comendo grande parte do salário das pessoas e assim temos uma financeirização da economia em que todo mundo está envolvido”, comenta. Ao citar relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio que inclui os temas da superação da fome e da desnutrição, Luciane observa que há menções ao sucesso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), mas falta discutir o modelo agrícola “baseado no consumo altíssimo de venenos”, em referência ao uso de agrotóxicos no país. “É algo que tem consequências para a saúde e o meio ambiente. E não podemos apenas fechar os olhos ou limitar a análise ao fato de a fome ter sido (quase) erradicada, algo sem dúvida bom, mas que não deve nos levar a esquecer que a qualidade do regime alimentar também é importante.” É o momento de crescer o investimento na infraestrutura, aponta Eduardo ­Fagnani. “Apesar dos avanços que tivemos, as desigualdades sociais são marcas profundas, têm raízes históricas. São desafios complexos, não são coisas para

ED FERREIRA/ESTAD√O CONTE⁄DO/AE

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AUMENTO REAL A política de valorização do mínimo foi resultado de pressão social

resolver em quatro anos”, afirma, pedindo uma agenda de desenvolvimento para discutir questões estruturais – e não apenas setoriais. “O campo progressista precisa voltar a pensar nessas questões. Hoje já há uma fragmentação muito grande.” As manifestações de 2013, diz, reforçaram a necessidade de avançar em termos da cidadania social. “E universalizar esses direitos que a Constituição já garante”, acrescenta. Para o economista Claudio Dedecca, também da Unicamp, ainda falta pensamento estratégico. “A sociedade brasileira não se perguntou qual era a estratégia,

que país queremos para daqui a dez, 15 anos, e quais são as políticas chave. Estamos carentes de uma visão de médio e longo prazos. Você não pode pedir para as instâncias do governo que tocam o dia a dia para que elas pensem o futuro estratégico.” A cientista política Dulce Pandolfi observa que, além de se planejar pouco, existe a questão da descontinuidade. Para ela, falta também pensar em como ampliar a presença social na política. Nesse sentido, a professora da FGV e diretora do Centro Celso Furtado, além de ressaltar a importância dos conselhos já exis-

Reforma política com participação social Na primeira semana de setembro, aquela em que é lembrada a independência brasileira, o país discutiu a importância da reforma do sistema político. Um plebiscito de valor simbólico – pois oficialmente só pode ser convocado pelo Congresso – coletaria o “sim” de milhões brasileiros à convocação de uma Constituinte exclusiva com objetivo de fazer essa reforma. O movimento toma corpo desde o ano passado, quando reunia 60 entidades de variados seto18

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res da sociedade. E iniciou setembro com 373 organizações unidas em torno da consulta. A movimentação prossegue nos próximos meses, até que sejam reunidas condições de apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular. O advogado Ricardo Gebrim, um dos coordenadores da campanha, lembrou que a Constituinte exclusiva foi sugerida em junho do ano passado pela presidenta Dilma Rousseff ao Congresso, após as manifestações populares, e parou

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no Congresso. “Vamos retomar essa iniciativa.” O presidente da CUT, Vagner Freitas, lembra que parte das mudanças para aprofundar a democracia brasileira passa pelo Parlamento. “O Congresso teria de ser um espelho do Brasil. E não é. Empresários, grandes proprietários rurais, bancos, planos de saúde têm o controle, menos de 20% dos parlamentares tem origem nos movimentos de trabalhadores”, diz. “Essa representatividade só vai melhorar se aca-

barem as doações de empresários a campanhas”, afirma. O secretário-geral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cláudio Pereira, assinala que 95% das doações para campanhas saem de empresas da iniciativa privada. “Precisamos de um sistema mais transparente, que permita ao eleitor ser, de fato e de forma efetiva, o senhor da sua decisão”, defende. “Queremos que o povo ajude a tomar as principais decisões no nosso país”, afirma dom


LIVRE MERCADO A regulamentação da mídia não vingou nos 12 anos do PT no poder

tentes, elogia a recém-criada política de participação social. “É um projeto altamente participativo. E esse mecanismo será aperfeiçoado.” Luciane, do Grito dos Excluídos, é mais reticente quanto aos espaços de participação existentes. E identifica “movimento fragmentados e agendas decididas po cima”. Um certo desalento captado nas intenções de voto pode ser visto também

como um desafio, analisa o diretor do Ibase. “As novas gerações não sabem o que é uma ditadura. E deviam saber que a pior democracia é muito melhor. Nós, militantes por esse Brasil de mais mudanças, não podemos deixar prosperar isso. Falta convencimento para essa gente desalentada de que a participação pode desempatar o jogo”, diz Grzybowski. Dulce também capta certa descrença

DORIVAL ELZE/CUT

BRUNO FERNANDES

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Organizadores: reforma é prioritária para aprofundar a democracia

na sociedade com a política de participação. “Não é gratuita. O Congresso Nacional deixa muito a desejar. E a gente tem no Brasil uma tradição de regimes autoritários. A democracia no Brasil é muito recente. E democracia, como ela diz, é disputa de ideias e funciona sob pressão. “A cidadania é precedente da democracia.” Colaborou Paulo Donizetti de Souza

Joaquim Mol, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), lembrando que as mulheres também são mal representadas, com menos de 10% de assentos nos parlamentos do país. Valdir Misnerovicz, do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), reforça: “Sem reforma política não serão observados avanços em conquistas para os principais problemas da sociedade”. Freitas observa ainda que se os movimentos sociais imaginam um segundo mandato

mais sensível às principais reformas reclamadas, terão de reaglutinar forças. “Empresário não quer reforma política porque quer dominar o Congresso, não quer democratizar a mídia porque quer controlar a circulação de informação, e não quer mais participação social nas decisões de governo. A disputa pelo poder seguirá acirrada, antes e depois da eleição”, acredita o presidente da CUT. PauloDonizetti de Souza

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Oposição quer colher Para o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, o Brasil investe desde 2007 em infraestrutura e políticas públicas historicamente vetadas pelas elites. Alguns frutos já colhe. Outros estão por vir Por Paulo Donizetti de Souza

Q

uando escreveu a obra Quem vai dar o Golpe no Brasil?, em 1962, Wanderley Guilherme dos Santos conquistou um respeitável espaço na ciência política ao antever a tramoia civil-militar detonada dois anos depois, que interromperia por quase três décadas os avanços sociais, políticos e culturais do país. Desde então, jamais deixou de investigar as contradições e desafios da democracia brasileira. Ainda hoje, estuda de seis a oito horas por dia para quatro pesquisas acadêmicas – sem deixar de desfrutar, “a lazer”, de livros de arqueologia, romances policiais e séries do Netflix. Com história acadêmica ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde graduou-se em Filosofia em 1958, hoje é professor aposentado de Teoria Política da UFRJ, professor e fundador do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj). A completar 79 anos no próximo 13 de outubro, com 18 obras publicadas, dedica um de seus trabalhos a desconstruir as contradições entre os liberais contemporâneos e a escola do pensador Adam Smith, precursor dessas teorias no século 18, mas que mesmo ele ainda pressupunha ter uma dose razoável de valores morais humanistas e solidários a sustentar as sociedades que viriam a fundar o capitalismo – “Vivemos o mundo da antipatia social”, diz. Para o cientista, poucas vezes o Brasil tentou empreender um ciclo econômico mais expansivo para o desenvolvimento humano. Teve alguns períodos, com Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, em que os avanços acabaram sendo alvos de “vetos das elites”. Segundo Wanderley, as políticas sociais iniciadas por Lula em 2003, seguidas de investimentos em infraestrutura antes negligenciados pelos governos de plantão, iniciaram um novo ciclo – mantido e ampliado por Dilma –, que permitiu ao país trilhar rumos diferentes dos ditados pelas potências do centro econômico que semearam a crise mundial de 2008. Ele acredita que o Brasil está pronto para novos saltos de crescimento em seu PIB nos próximos anos. Está em jogo nestas eleições uma disputa com a velha oposição despida de projetos, ávida para desfrutar desse legado e desviar-lhe da rota mais adiante. 20

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Um trabalho seu de 1962, Quem vai dar o golpe no Brasil?, anteviu 1964. E hoje, o senhor vê algo que permita temer um choque de retrocesso da democracia?

Em absoluto. Em 64 havia uma fragmentação das forças políticas relevantes, além de a própria sociedade também estar muito fragmentada. Isso tornava impossível a formação de uma coalizão sustentável de apoio ao governo. Por outro lado, a oposição também estava de tal modo fragmentada que não conseguia formar uma coalizão alternativa, só conseguia formar uma coalizão de veto. E havia uma radicalização ideológica profunda que não permitia uma composição. Era impossível a negociação política. A proposta hegemônica da esquerda no período, de pressionar pela aprovação de um projeto consistente de desenvolvimento, era suicida. Isso hoje não existe. Em um artigo recente na revista CartaCapital, o senhor fala da presença, no cenário político, dos “especuladores da moral”. Qual é a semelhança entre eles e os especuladores do mercado financeiro?

Os especuladores dos mercados financeiros lucram com expectativas. Não criam nada, captam recursos e os revendem. O lucro deles não vem da criação de produto. Vem da diferença obtida com a especulação. A mesma coisa são os especuladores do mercado político. Eles criam fatos e factoides, podem eventualmente “lucrar” algo, um acréscimo em termos de aprovação, mas sem a criação de um projeto. A fama ou o apoio que recebem não decorre de uma sugestão de valor nacional ou econômico, mas de uma expectativa. É simplesmente “vamos acabar com a corrupção”, “isso tudo precisa mudar” etc. O sucesso tanto em um caso, o especulador financeiro, quanto no outro, o especulador moral, não decorre da criação de nada. Decorre da manipulação de expectativa. É a mesma coisa. O mundo ainda sofre efeitos da crise de 2008, mas os países do centro econômico ainda querem restaurar os mandamentos que desencadearam a crise. Os mercados podem determinar as dinâmicas dos governos?


ENTREVISTA

er o que não plantou O potencial de novas ondas especulativas escapa da possibilidade de intervenção de governos como o brasileiro e de outros países emergentes. O que cabe a países como Brasil, Índia, Argentina, México, é administrar a defesa dos efeitos negativos desses ciclos. E nesse sentido o desempenho do Brasil tem sido espetacular. Mas os empresários brasileiros ficam na expectativa das decisões do FED (o banco central norte-americano) mais que das decisões do BC. Isso mostra o caráter subordinado de uma parte da economia brasileira, e curiosamente a que tem um papel importantíssimo, uma vez que os estímulos para a expansão e fortalecimento desse segmento industrial têm sido dados sistematicamente pelo governo, pela defesa do mercado interno justamente quando acaba o mercado externo. O empresariado pouco moderno não acompanhou a transformação do país.

Fala-se muito em gargalos de infraestrutura que não deixam o país ser competitivo, o que, aliás, não é de hoje. O país deixou de fazer alguma lição de casa?

Aí é que está a questão. Durante décadas, o Brasil, seus governantes e mesmo seu empresariado nascente não estavam dispostos ou preparados nem para sonhar com um país moderno, economicamente forte, aquilo que eles diziam que queriam. Na década de 1930, o debate fundamental era se o Brasil só devia exportar ou se devia criar indústria. Então, durante todas essas décadas, em não havendo sonho da possibilidade de um país moderno, não foram lançadas as condições básicas dessa modernidade, rodovia, ferrovia, aeroportos, transportes hídricos, nada. Isso tem a ver com o PIB, hoje dito pequeno, e do qual a oposição brasileira deseja se aproveitar nos próximos anos.

THIAGO RIPPER/RBA

Os empresários brasileiros ficam na expectativa das decisões do FED mais que das decisões do BC. Isso mostra o caráter subordinado de uma parte da economia brasileira, e curiosamente a que tem um papel importantíssimo, uma vez que os estímulos para a expansão e fortalecimento desse segmento industrial têm sido dados sistematicamente pelo governo REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

O que está acontecendo agora é justamente um investimento maciço naqueles setores, nas condições absolutamente necessárias para o crescimento do PIB. Porque no contexto existente não haveria mais como crescer o PIB, não tem mais pra onde andar o agronegócio, não tem como as empresas industriais crescerem. Então, o Brasil cresceu enquanto foi possível. Para crescer mais, não tem jeito: tem de expandir isso, e isso obviamente, enquanto está sendo feito, reduz um pouco a capacidade de crescimento. Agora a partir de 2016, 2017... O número considerado do PIB é o geral, a média do país. Se tomarmos por setores, transporte, aeroviário, portuário, seria muito diferente. O número geral dilui os indicadores e tem servido pouco para medir o que está se passando no país em termos de transformação. O crescimento do PIB do Nordeste nos últimos anos é três a quatro pontos percentuais acima do crescimento nacional. O do Centro-Oeste é PIB chinês. Como o indicador nacional inclui tudo isso e misturado, fica pequeno. Quando todos os investimentos – em geração de energia, portos, estradas etc. – que hoje estão sendo feitos estiverem em condições de operar, o PIB vai ser uma enormidade. A oposição sabe disso. E se chegasse ao governo se apropriaria. Diria: “Tá vendo? Como eles não sabiam governar, o PIB agora está crescendo”. Seria fácil, porque, até apesar dessa oposição, o PIB vai crescer. Houve o crescimento da renda e do mercado interno, está havendo crescimento da infraestrutura e descentralização da economia – o que era fundamental. A oposição quer colher o que não plantou. A propósito de oposição, fala-se muito numa suposta necessidade de medidas impopulares, reduzir salários, promover desemprego para segurar a inflação, cortar gastos públicos. Precisa?

Do ponto de vista do manual ortodoxo da economia, e daí o meu espanto com a mediocridade dos nossos economistas de oposição, eles estão certos. Afinal, é isso que está escrito nos livros, e eles não conseguem dizer outra coisa. Mas estava escrito em 2002 também, em 2005, 2006. E a partir de 2007 o país começou a fazer o PAC, o Plano de Aceleração do Crescimento. E em 2008, quando começou a crise braba, o Lula já havia promovido um processo de substituição de consumidores. Durante muito tempo, o Brasil viveu um processo de substituição de importação. A partir das políticas de transferências de renda, de valorização do salário mínimo, de estímulo ao consumo interno, o Brasil chegou a 2007, 2008, pronto para um processo de substituição de consumidores. E isso não ocorreu a nenhum deles da oposição. Não há uma determinação divina de que a aplicação de sua cartilha seja inevitável. A espécie humana sobrevive justamente por sua capacidade de se reinventar e superar desafios. E não por reincidir em experiências desfuncionais, como essas medidas de austeridade. Como é que elas podem ser consideradas remédios eficazes para os mesmos problemas que ajudaram a causar? 22

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THIAGO RIPPER/RBA

Os números do PIB são confiáveis e essenciais?

A política social “cria problemas” para si própria. Excelente! O que está sendo feito é o Brasil do século 21. A fase do governo dos trabalhadores se deu em duas etapas, de 2003 a 2006 e 2007 para cá. Agora virão os grandes PIBs

Em 2006, antes da reeleição do Lula, seus articuladores argumentavam que o governo ainda devia muito ao país, pois não se resolvem 500 anos de problemas em quatro. Que ficou devendo em relação ao que havia prometido, mas que não ficou devendo a nenhum governo anterior. Esse diagnóstico ainda perdura?

No primeiro mandato, de 2003 a 2006, foram lançadas bases de uma política social que propunha distribuição de renda. Bolsa Família, valorização do salário mínimo, ProUni, redução de impostos, política de cotas, Minha Casa, Minha Vida... Agora, é preciso equacionar as reformas por onde vai caminhar o desenvolvimento, senão nem essas políticas se sustentam. Há uma lista enorme de programas criados entre a década passada e depois de 2010. Hoje, para gente que antes não existia, há a presença do Estado do berço à velhice, mas isso será sempre pouco, estará sempre aquém da capacidade de qualquer governo. A política social “cria problemas” para si própria. Excelente! Então, a partir de 2007, começa uma mudança estrutural em relação aos eixos anteriores e tudo isso deixa um legado histórico. O que está sendo feito é o Brasil moderno, do século 21, não é brincadeira. Agora é que estamos terminando a primeira grande fase do governo dos trabalhadores, que se deu em duas etapas, uma de 2003 a 2006 e outra de 2007 para cá. E agora virão os grandes PIBs.


ENTREVISTA

O que definiria a ruptura com a “outra fase”?

O Pronatec já havia sido criado pelos quadros do Ministério da Educação ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, mas o governo vetava. Já existia um programa social aqui e ali, mas que não fazia diferença na vida do país. Então, a ruptura foi em 2003, quando se dá um significado maior a esses programas e a seus efeitos. E agora continua. O que existe hoje é um conjunto de políticas destinadas a segmentos sociais que até 2002 não faziam parte dos roteiros governamentais. A agenda de vetos dos governos elitistas, até 2002, era maior que a agenda positiva. A elite se unia em torno do que não queria que fosse feito. A ruptura com isso teve de ser enorme, e está sendo. E quando você mexe em algo em que antes não se mexia tem consequências. Então, claro que há deficiências, mas criadas pelo avanço. E que só pelo avanço serão resolvidas. A existência de mais de 30 partidos não é um entrave para o entendimento pelos cidadãos da democracia e da política como meio de ­realização de suas aspirações?

Não é a quantidade de partidos que determina se o sistema político funciona ou deixa de funcionar. A Inglaterra, por exemplo, tem 12 partidos, mas a taxa de desperdício de voto na Inglaterra, ou nos ­Estados Unidos, é fora do comum. O Brasil tem uma das menores taxas de desperdício do voto do mundo, porque aqui todos os votos contam: o seu voto para uma pessoa, mesmo que ela não se eleja, conta para a coligação. Na verdade, haveria muito menos problemas se não tivesse um segundo turno eleitoral. A necessidade de ir para um segundo turno é que faz com que você tente se apropriar de uma mercadoria criada pelo Tribunal Superior Eleitoral, que é o tempo de televisão, a moeda de chantagem dos pequenos partidos. O senhor acha que a Marina é uma terceira via como pretendia ser o Eduardo Campos?

Marina Silva é o que há de mais atrasado dentro do espectro político brasileiro. Ela é atrasada economicamente, na concepção de sustentabilidade que tem, na modernização da política da produção, em termos de costumes sociais, em relação a tudo. É uma missionária retrógrada. E pode ganhar uma campanha contra ela, se ameaçar Aécio. Os protestos do ano passado produziram um impacto negativo sobre a política – sem nome, sem rosto, nem classe, nem lado – e também ao PT e a Dilma. Por que os outros políticos não foram chamuscados?

Eu não tenho resposta para isso a não ser uma brincadeira: São Paulo deveria ter sido vitorioso em 1932, porque isso só acontece em São Paulo. Em Minas, que foi o terceiro estado a ter mais depredação e violência, o Fernando Pimentel (PT) está levando numa boa. E aqui no Rio, o segundo, não existe PSDB. No Rio sempre foi uma disputa ruim, mas não como São Paulo. O Garotinho é o norte atrasado do estado. Não houve nada no Norte Fluminense em junho de 2013, nem em 2012, nem em 2011, está fora do tempo. E o Garotinho que quer que continue atrasado, porque se avançar ele deixa de ser representante. O Crivella é o evangélico. Pezão é um centro mais moderno, mas não é “político”. Lindberg é aventureiro. Então, o Rio de Janeiro está essa porcaria. O senhor escreveu que considera a mídia brasileira fechada e reacionária e que a principal vítima disso é o cidadão comum. Por que o governo não mexeu nesse vespeiro?

Eu diria que é o dilema do revolucionário. Um líder revolucionário não toma uma iniciativa se não sabe qual apoio terá. Há dois erros possíveis de cálculo: um é não tomar a iniciativa quando haveria um apoio grande, mas que não pode se manifestar porque não houve uma ação inicial, uma sinalização; outro é quando há a iniciativa e não há apoio nenhum. Eu não sei qual foi o cálculo feito pelo governo. Mas se pensa que tem pouco apoio para essa medida, está temeroso demais. Estaria superestimando o poder das empresas de comunicação...

Eu acho que esse foi o cálculo. Então, tem de haver um poder de persuasão. Se tomar iniciativa, poderá constatar que o mesmo povo que antes da revolução parecia não estar nem aí pode chegar e dizer “opa! era por isso mesmo que eu não estava satisfeito, eu vou nessa...” O próprio ato ilustra, ilumina, esclarece. Eu posso citar Lênin: a revolução educa. Há uma óbvia insatisfação do cidadão educado, que busca revista, jornal, procura se informar. E pra isso é que existe a política, para dar exemplo, fazer e ver o que acontece. Não vai ter censura nem restrição de liberdade. Quem não está satisfeito com o jornal vai querer que o jornal acabe? Não. Vai querer um jornal melhor. O que o senhor acha do ensino universitário? O número de universidades públicas aumentou, algumas passam por crises. No geral, a universidade brasileira vai ajudar a construir um novo modelo de sociedade? Ou ficou voltada para formar reprodutores do sistema baseado no consumo?

A elite se unia em torno do que não queria que fosse feito. A ruptura com isso teve de ser enorme. Quando você mexe em algo onde não mexia há consequências. As deficiências criadas pelo avanço só pelo avanço serão resolvidas

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ENTREVISTA

O crescimento indubitável do número de universidades e de universitários fatalmente vai levar a uma redução do nível. Vai ter de haver um tempo de maturação para que essas universidades passem a ter realmente um papel maior na criação do saber. E não vejo como justo cobrá-la disso agora. Há, sim, nichos de excelência que estão botando pra quebrar. Mas o problema é que a universidade no mundo todo está ficando obsoleta, porque a taxa de crescimento do conhecimento e suas subsequentes criações tecnológicas estão a uma velocidade que a universidade leva tempo para alcançar. A universidade é uma organização, uma forma de garantir a manutenção e a difusão do conhecimento, e nela outros conhecimentos vão surgindo. O problema é que hoje a universidade difunde um conhecimento que já é obsoleto. O mundo está perdendo a fertilidade de líderes e pensadores? Ainda vai haver inteligência capaz de propor novas soluções?

Não sei que cálculo levou o governo a não fazer a lei de meios, mas foi temeroso demais. A revolução educa. O cidadão educado e insatisfeito não quer que um jornal acabe. Mas vai querer um melhor 24

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Ah, vai, de outro tipo, mas vai. Eu tenho um neto de 8 anos, ele vive num mundo do qual eu não participo. Sabe tudo, faz o diabo, tem opiniões estéticas dos filmes que vê com o pai e a mãe, sobre pintura, vai a museu. Essa cultura faz parte da formação dele. Eu sou um homem obsoleto, mas as novas gerações não são. Tenho dificuldades de incluir na minha concepção humanista certos tipos de procedimentos ou de concepções, que eles tratam de maneira perfeitamente natural. Assim como o século 19 absorveu tudo aquilo que foi criado no século 18, que foi um século de explosão cientifica. Enquanto pensadores do século 18 resistiram às novidades, os do século 19 reagiram numa boa. Isso pra mim (aponta para o computador) não é natureza. Pra mim, natureza é datilografia, aprendi numa boa; aprendi taquigrafia... Então, o problema da universidade é complicado, de longo prazo e não sei como vai ser resolvido. Eu sei que o que ela está ensinando é obsoleto, mas quais são os canais para refazer aquela junção entre a difusão e a inovação? Não faço ideia. O senhor ainda lê muito?

Estou trabalhando em quatro pesquisas. Uma ­ elas tem a ver um pouco com esse “mundo.com”, d ­esse mundo novo, do ponto de vista social. Esses grupos pequenos que aparecem têm a ver com o ­processo importantíssimo da divisão social do traba­ lho globalizado que está em andamento e é irrever­ sível, vai tomar conta. Eu estava lendo ­ontem que o (empresário do setor de siderurgia) Jorge ­Gerdau ­está montando­fábrica não sei onde porque­fica mais barato do que montar aqui. Imperialismo moderno. Um produto hoje tem um componente fabricado na REVISTA DO BRASIL

Austrália, outro na Inglaterra, outro no Rio Grande do Sul, e mesmo incluindo os custos de transporte, e instalando uma outra unidade não sei onde para receber tudo e montar, sai mais barato do que fazer tudo numa planta só. É o outsourcing economics. Provoca impacto nas cadeias produtivas e também nas cadeias de solidariedade entre os trabalhadores. Não há uma formação de uma identidade permanente de um certo setor, porque não tem “um” setor. Parte dos precarizados da Espanha tem a ver com isso. E como está indo?

Eu comecei com Adam Smith (precursor da teoria do liberalismo econômico, 1723-1790) e os clássicos. Sempre houve na economia de mercado uma tensão entre o interesse material e os valores morais – simpatia, benevolência, solidariedade, nada disso junta com interesse material. Isso é uma tensão muito grande, em todos os séculos que eu estou vendo, de lá até o momento atual. Que é um momento de subversão, de recusa da tentativa de encontrar uma solução que compatibilize, é um momento de “fodam-se”. Smith desenvolveu o conceito do fundamento utilitário da simpatia social, termo com que ele explicava a origem da capacidade da humanidade, apesar da naturalidade de seu egoísmo, de imaginar-se no lugar dos outros, o que torna as pessoas conscientes de si e da moralidade de seu comportamento. E a desistência dos pensadores liberais contemporâneos em relação é isso é total. Então, é o mundo da antipatia. Estou te dando de primeiríssima mão como é que eu vou estudar o mundo moderno no qual o Brasil está entrando. Seria o mundo da desumanização das relações?

É. Você vê aquela disputa em torno da biografia autorizada? Você transforma tudo em mercadoria, não é? A biografia só autorizada significa o seguinte: eu faço da minha vida uma mercadoria. A Paula Lavigne, é isso que ela está dizendo: “Não é que a gente não queira, só precisamos negociar...” O Roberto Carlos está vendendo a própria biografia. É claro que é seletiva. Uns pedaços que dão mais ibope. O resto ele não conta. “A vida secreta de Roberto Carlos por ele mesmo”... Mas vai vender...

Oh! Mas, meu caro, esse é o mundo horroroso no qual nós estamos entrando. É claro que isso não vai ficar sem resposta. Nem sem reação. Esse é o inimigo. A “mercadorização” de tudo. O cálculo utilitário levado às últimas consequências. Colaborou Vitor Nuzzi


EMIR SADER

Polarização no campo político eleitoral

Um provável segundo mandato de Dilma deve ser distinto e, segundo Lula, melhor que o primeiro. Requer um novo pacto e uma reforma política para contornar obstáculos hoje existentes

T

al qual nos outros países com governos pós-neoliberais, também no Brasil a oposição se situa sempre à direita do governo. Na Bolívia, no Equador, na Argentina, na Venezuela, no Uruguai e aqui também, a polarização se dá entre os governos e forças de direita. A ultraesquerda foi incapaz de construir força política, permanecendo no plano das denúncias. O forte apoio popular que as políticas sociais promovem nesses países dificultam a articulação da oposição de direita e levam a ultraesquerda a um isolamento. Diante da dificuldade de tomar posição diante das políticas sociais bem-sucedidas desses governos, as oposições transitaram da negação à aceitação, ficando embaraçadas para se propor como alternativa diante de administrações que satisfazem as necessidades populares, negadas por eles quando governantes. Já os setores historicamente, em tese, mais identificados com as causas populares, em vez de se posicionar mais à esquerda do governo – criticando seus erros, mas reconhecendo seus méritos –, em todos os países mencionados caíram na armadilha oportunista de se situar de forma equidistante entre governos e oposição de direita. E, na prática, tomando os governos como principais adversários, porque têm consciência de que enquanto esses governos mantiverem seu sucesso não há lugar para eles. Então, se aventuram a alianças de fato com a direita contra os governos progressistas. Os governos pós-neoliberais latino-americanos encontram mais problemas no cerco internacional a seus países pelo capital especulativo e pelas campanhas da mídia externa e interna do que na oposição politica. A pressão recessiva vinda de fora encontra aliados internos, que canalizam investimentos para a especulação financeira, em vez de investimentos produtivos, pressionando para que as economias entrem em recessão – como segue acontecendo nos

países do centro do capitalismo. A oposição busca explorar isso, valendo-se do monopólio privado dos meios de comunicação, para fomentar um clima de pessimismo, que tem efeitos sobre o grande empresariado, ele mesmo alinhado politicamente com a oposição. Nas eleições brasileiras, com a provável vitória de Dilma – no primeiro ou no segundo turno –, o segundo mandato deve ser distinto do primeiro. A promessa de baixar as taxas de juros aos patamares internacionais deve ser um objetivo central, para poder concretizar o que ela anuncia como um novo ciclo expansivo da economia. O que só pode vir acompanhado da elevação do dólar, que ampare a competitividade externa do Brasil. Será um outro governo, como tem expressado o ex-presidente Lula, ao dizer que o segundo mandato de Dilma será melhor que o primeiro. Um mandato em que o próprio Lula terá uma ingerência mais direta e que, segundo ele, terá de se fundar em um novo pacto político, que contorne alguns dos maiores obstáculos políticos existentes até aqui. Entre os novos elementos estará, sem dúvida, a reforma política, que introduza o financiamento público, o voto por lista e as cotas nessas listas, talvez até mesmo o patamar de votação mínima para a existência de partidos. Um novo impulso nos processos de integração latino-americana poderia apontar até para ênfases novas na política exterior, de que o sucesso das últimas decisões dos Brics são uma demonstração. Quanto à oposição, caso não triunfe agora, enfrentará muitas incertezas. Os tucanos devem sofrer sua pior derrota, mesmo que logrem manter São Paulo, diminuindo sua bancada e ficando sem um nome presidenciável. A morte de Eduardo Campos deixa a oposição sem alternativa, já que a candidatura de Marina não cumpre os requisitos para essa difícil função. REVISTA DO BRASIL

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93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio

Insegurança sem Tendência de crescimento das taxas de violência expõe fracasso da política de segurança no estado de São Paulo e a necessidade de reformas urgentes, como unificação das polícias e desmilitarização

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ra um domingo, por volta das 11h. Rumo a uma estação do metrô, a produtora cultural paulistana Calu Baroncelli caminhava tranquilamente nu­ ma passarela nas proximidades do Terminal Bandeira, no centro de São Paulo. Até que foi surpreendida por um assaltante. Como sua bolsa estava bem presa ao cor26

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po, com a alça cruzando seu tronco, ele passou a puxá-la violentamente. Na tentativa de impedir o roubo, segurou-a o mais forte que pôde, mas, quando se deu conta, estava no chão, sendo arrastada pelo ladrão, que logo conseguiu se desvencilhar e correr com a bolsa na mão. Apesar da cena e dos gritos, as pessoas que passavam por ali não esboçaram

a menor reação e seguiram seu caminho, como se nada estivesse acontecendo. “E ainda fui xingada por ele quando tentei dialogar, pedindo que não levasse meus documentos”, lembrou Calu, que chegou a andar pelas ruas das imediações, em vão, à procura de policiais. Algum tempo depois, longe dali, encontrou agentes da Guarda Civil Metropolitana. Mas já


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SEM AJUDA Calu Baroncelli foi surpreendida por um assaltante, que a arrastou pelo chão enquanto puxava sua bolsa

era tarde. Nunca mais ela recuperou o que foi roubado. “Moro em frente à Câmara Municipal e me lembro de muitas viaturas da PM e da Tropa de Choque quando movimentos por moradia estavam acampados ali, durante a votação do Plano Diretor. Para reprimir os movimentos sociais há sempre policiamento, mas não para proteger a po-

GERARDO LAZZARI/RBA

fim

pulação quando está em perigo”, disse ela capital paulista – e 333 mil em todo o estaà repórter Marilu Cabañas, da Rádio Bra- do. “Mantida a tendência, é possível que sil Atual. A produtora, aliás, já havia sido ultrapassemos os picos históricos tanto assaltada duas outras vezes: na primeira, em números absolutos como relativos, dentro de um ônibus, por ladrão arma- como já aconteceu em 2013”, destaca o do, e na segunda, no Viaduto 9 de Julho, pesquisador Marcelo Nery, do NEV. Enna mesma região central, em uma noite tre as várias ocorrências em crescimento estão os roubos de veículos. No estado, quando voltava da faculdade para casa. Outra vítima é a jornalista Tatiana 68,5 mil em 2010 e 98 mil em 2013. ­Vitta. Numa tarde, quando voltava do trabalho de carro, com os vidros fechados, Números abaixo do real “A gente observa desde 2000 uma evofoi abordada por dois ladrões ao parar em um semáforo próximo a um acesso à ave- lução no número absoluto de roubos de nida Vereador José Diniz, no Campo Be- carros tanto na capital como no estado lo, bairro da zona sul da capital. “Chamou como um todo, uma tendência crescente”, a atenção o barulho das pedras batendo diz Nery. Porém, de acordo com o pesquino vidro do lado do passageiro. Logo em sador, a situação pode ser bem pior. Isso seguida, o vidro do meu lado foi quebra- porque os números, considerados altos, do. Levaram celular, bolsa e não refletem a realidade. “Há algumas coisas no console e As ocorrências subnotificação de alguns tipos de roubos, como no casaíram correndo”, contou Ta- são pouco tiana. Ela relatou a ocorrên- investigadas so de celulares, que as pessocia à polícia, mas nunca re- e criminosos as não registram. Ou mesmo cuperou o que levaram. roubos a transeuntes, em que ficam Em Santos, litoral pau- impunes. É as pessoas que tiveram a bollista, a dona de casa Maria pequena a sa roubada preferem não registrar a ocorrência por conHelena Calo Lema foi assal- chance de tada perto de casa, no bairsiderar que o trabalho não um indivíduo ro Campo Grande, às 19h vale a pena em função do vapassar pelo lor baixo do que foi roubade um sábado. Contou que do”, observa Nery, para quem quando voltava de uma far- trâmite legal, mácia, caminhando, um ho- sendo preso, é fundamental o acesso a inmem de bicicleta subiu na julgado e formações de qualidade. calçada, parou à sua frente punido com a Para estimar o quanto e sacou da arma. “Nossa se- justa pena as pessoas estão expostas à nhora! É horrível. A gente fiviolência, em 2010 e 2013 o ca tremendo, não sabe o que faz, dá medo NEV perguntou às pessoas se elas ou aldo que ele vai fazer”, disse. Maria Hele- gum familiar tinha sido assaltado ou se na ficou com medo durante muitos dias, tinha visto alguém sendo assaltado. A desconfiando de todas as pessoas na rua, maioria disse que sim. “Quanto maior a olhando para todos os lados. Não deixou declaração de terem sido assaltadas ou temais a filha adolescente, de 14 anos, sair rem familiares assaltados, maior é a tensozinha. “A gente fica com medo, mas os dência de que as pessoas daquele grupo adolescentes não. E muitos deles estão pesquisado estejam sendo vítima desse tipo de violência”, explica Nery. sendo assaltados na região.” Ainda segundo o pesquisador, outro asAs histórias são algumas entre milhares que engrossam as estatísticas que apon- pecto importante, além da subnotificação, tam para o crescimento dos roubos no é que as ocorrências são pouco investigaestado de São Paulo. Dados do Núcleo de das e criminosos ficam impunes. Outra Estudos da Violência da Universidade de pesquisa do NEV, coordenada pelo sociSão Paulo (NEV/USP) indicam uma ten- ólogo e professor Sérgio Adorno, obserdência de retorno aos índices de 2000, os vou o fluxo de ocorrências policiais no sismaiores da série histórica. Naquele ano, tema de Justiça criminal na cidade de São foram registrados 170 mil roubos só na Paulo entre 1991 e 1997. Foram 344.767 REVISTA DO BRASIL

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boletins de ocorrência registrados em 16 delegacias situadas na região noroeste da capital, referentes a crimes violentos (homicídio, roubo, roubo seguido de morte, estupro e tráfico de drogas) e não violentos (furto, furto qualificado e consumo de drogas). Apenas 8% dos roubos tiveram algum tipo de punição. “Em São Paulo, a impunidade é muito grande para todos os crimes. É pequena a chance de um indivíduo passar pelo trâmite legal, sendo preso, julgado e punido com a justa pena”, avalia Nery. De acordo com ele, a investigação e punição estão diretamente associadas ao conhecimento da autoria. “Se numa ocorrência se sabe quem é o autor, há uma prisão em flagrante, por exemplo, a chance de ser preso e condenado é muito grande. Tirando isso, a chance é muito pequena.” Para o coronel da reserva da PM José Vicente da Silva Filho, membro do Fórum Nacional de Segurança Pública, a polícia deveria investigar mais. “Apenas 1% dos roubos de carros é esclarecido, o que é muito pouco. Há muita desculpa, mas a população não quer desculpas”, salientou. Ele criticou também a inércia da polícia em relação ao roubo de celulares, cada vez mais comun devido à valorização desses aparelhos no mercado paralelo e também pela facilidade encontrada pelos ladrões – “as pessoas vivem distraídas, com os aparelhos nas mãos, sem o menor cuidado”. Para chegar a essas quadrilhas, segundo José Vicente, a Polícia Civil deveria rastrear os celulares roubados e monitorar anúncios de venda de aparelhos a preços convidativos. “Antes eram as feiras de troca de toca-fitas. Agora, são os celulares.” Na opinião de analistas, reduzir as taxas de roubos e assaltos – e a sensação de insegurança e medo da população – depende de vontade política e da desmilitarização, reforma e unificação das polícias. “A segurança deveria ser prioridade da agenda dos candidatos nessas eleições”, defendeu o ativista da Conectas Direitos Humanos Marcos Fux. Além disso, segundo ele, é preciso unificar as polícias e investir nessa nova polícia para torná-la mais eficiente, investigativa e que tra28

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balhe em prol da população. “Temos de pensar numa polícia mais cidadã, mais próxima da comunidade, nos moldes da polícia comunitária americana, que conhece a população, seus hábitos, suas necessidades e que também seja bem remunerada, bem equipada.”

Novas responsabilidades

A analista sênior Carolina Ricardo, do Instituto Sou da Paz, defende a redefinição das responsabilidades de cada ente quanto à segurança, além de informações de qualidade, com dados padronizados e consistentes para respaldar políticas públicas para o setor: “Hoje, nosso modelo policial não é eficiente. Cada polícia faz uma parte e não há integração entre elas. Precisamos ter instituição de um ciclo completo na polícia para daí então

discutir a modernização penitenciária”. No final de julho, especialistas e organizações, entre as quais o Sou da Paz, lançaram uma agenda prioritária de segurança pública, com propostas concretas e ­urgentes para o país. O documento reforça a necessidade de priorização do tema pela União e aponta áreas consideradas importantes para a melhoria da segurança pública, como um novo pacto federativo. Pelo atual, a responsabilidade principal pela segurança é dos estados por meio das polícias Civil e Militar, deixando muito ampla e vaga a definição das competências da união e municípios na matéria, inclusive em relação ao financiamento. Isso favorece o permanente jogo de empurra entre os poderes. Um segundo ponto é o aperfeiçoamento da capacidade de difusão e gestão das informações de


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Carros roubados Capital paulista Estado de SP 2010 35.000 68.500 2013 50.000 98.000

SUSTO Tatiana teve o vidro do carro quebrado. Levaram celular, bolsa e algumas coisas no console

Crimes não violentos Furto Furto qualificado Uso de entorpecentes

3,88% 3,23% 5,30% 89,92%

Crimes violentos Estupro Homicídio Roubo Latrocínio Tráfico de entorpecentes

8,14% 22,33% 60,13% 4,88% 67,20% 92,71%

Ocorrências não criminais Encontro de cadáver Morte a esclarecer Resistência seguida de Morte Verificação de óbito

7,34% 62,87% 30,90% 82,93% 3,41%

CLARICE CASTRO/FOTOS PÚBLICAS

Taxa de conversão de boletins de ocorrência (BO) em Inquéritos Policiais (IP)

GERARDO LAZZARI/RBA

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), com base em dados da SSP/SP

segurança pública, produção e o uso de informação de qualidade para que políticas para o setor tenham sucesso – o que é considerado hoje um gargalo considerável. A redução nas taxas de homicídios aparece no documento porque, segundo um estudo global da Organização das Nações Unidas, o Brasil está em 12º no ranking de desses crimes por 100 mil habitantes, perdendo apenas para países como Honduras, Venezuela, África do Sul e Colômbia. O dado é considerado inaceitável pelos especialistas, em um país que tem melhorado a economia e reduzido a desigualdade social e que mesmo assim convive com o altíssimo índice, que compromete o desenvolvimento do país. A reforma do modelo policial aparece entre as prioridades. De acordo com os autores, o atual modelo estabelece, além da existência das polícias Federal, Rodoviária e Rodoviária Federal, a existência

NOVO MODELO Especialistas apontam para um modelo de polícia cidadã, mais próxima da comunidade

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP) REVISTA DO BRASIL

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de polícias civis e militares em cada uma das unidades da federação. E em relação a essas polícias, a Militar, força reserva do Exército, faz o policiamento ostensivo e preventivo nas ruas por meio do patrulhamento, e a Polícia Civil investiga os crimes a partir dos boletins de ocorrência que registra nas delegacias. Significa que cada polícia faz metade do trabalho, sem a integração entre ambas. As entidades defendem ainda a revisão

de aspectos da política de drogas. A que está em vigor retirou a pena de prisão para o usuário, mas aumentou o número de pessoas presas por tráfico, sem real impacto nas dinâmicas criminais organizadas. Como a lei não especifica as quantidades de droga necessárias para caracterizar o uso ou o tráfico, fica a cargo do policial e do juiz determinarem se o indivíduo é usuário ou traficante. O que significa que a definição de quem é usuário acaba sendo baseada

somente em critérios subjetivos por parte dos operadores do sistema. “Diante do crescimento da violência e criminalidade, é fundamental proporcionar um debate público com maior qualidade, que fuja das soluções simplistas, além de pressionar para que as propostas sejam incorporadas pelos programas de governo dos candidatos à Presidência”, comenta Carolina Ricardo, do Sou da Paz.

Policiais defendem a unificação e desmilitarização

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dos entrevistados consideram que devam ser mantidas. E para 62,1% as polícias deveriam ser organizadas em carreira única, com uma só porta de entrada, com concurso para ingresso. Entre todos os policiais militares ouvidos, 48,6% discordam totalmente da ideia de que as atuais carreiras policiais são adequadas e deveriam ser mantidas. Entre os policiais civis, o percentual é de 44,9%. Também pensam assim a maioria dos policiais federais (82,3%), federais rodoviários (55,7%), bombeiros (37,9%) e científicos/peritos (37,9%). Especificamente em São Paulo, apenas os bombeiros não são maioria quanto a essa opinião, comum entre a maioria dos PMs (39,6%), civis (53,6%), peritos (44,4%) e os federais que atuam no estado (82,3%) e federais rodoviários (43,8%). Quanto ao modelo mais adequado à realidade brasileira, 27,1% (a maior parte, embora espremida) entendem que o modelo mais adequado à realidade brasileira é uma nova polícia de ciclo completo, de caráter civil, com menos hierarquia e organizada em carreira única. A manutenção do atual modelo é defendida por 13,22%. Para 6,51%, a polícia deve ter ciclo completo de policiamento, atuando cada uma delas conforme os tipos de crime. Entre os PMs paulistas, 23% querem a unificação com os civis, formando polícias estaduais

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MUDANÇA Para 62,1% dos policiais, as polícias deveriam ser organizadas em carreira única, com uma só porta de entrada via concurso ROGÉRIO SANTANA/GERJ/FOTOS PÚBLICAS

A maioria dos policiais militares, civis e federais (inclusive rodoviários), além de bombeiros e peritos, é favorável à unificação das polícias, bem como a sua desmilitarização. A tendência foi verificada em consulta realizada pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas (CPJA), da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, com apoio do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça. Dos participantes do estudo Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública, 83,2% concordam totalmente com a modernização dos regimentos e códigos disciplinares, de modo a se adequar à Constituição de 1988. E 69,3% concordam plenamente com a regulamentação do direito de sindicalização e de greve dos policiais militares, enquanto 58,3% são totalmente favoráveis à retirada de PM e Corpo de Bombeiros do papel de forças auxiliares do Exército. Tais resultados – dados referentes à maioria das opiniões – coincidem com o que pensam os policiais da PM de São Paulo: respectivamente 74%, 60% e 48%. Do conjunto dos participantes, a maioria (51,2%) discorda totalmente que as atuais carreiras policiais sejam adequadas – apenas 6,9%

integradas. Os pesquisadores da FGV enviaram questionários eletrônicos, individuais, com acesso por senha, para 462 mil policiais cadastrados na Rede de Ensino à Distância do Ministério da Justiça, nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, além do Distrito Federal, e para outros 1.790 que manifestaram interesse em responder. Foram devolvidos 21.101 questionários válidos entre 30 de junho e 17 de julho. Um perfil básico revela que 39,1% têm nível superior completo, 45% têm 30 a 39 anos, 66,2% acreditam que as carreiras policiais não são adequadas da maneira como estão organizadas, 80,9% pensam que as polícias devem ser organizadas em carreira única e 58,3% afirmam que a hierarquia nas polícias e demais forças de segurança

provoca desrespeito e injustiças profissionais. Os pesquisadores Renato Sérgio Lima, Samira Bueno e Thandara Santos ponderam que os resultados não podem ser expandidos para o universo de policiais brasileiros e que a amostra deve ser contextualizada. Entretanto, os dados permitem supor que existe na base das corporações um ambiente favorável a que os formuladores de políticas de segurança pública incentivem a participação desses profissionais na definição dos rumos de suas instituições. E que a construção de uma polícia cidadã pode não ser uma tarefa tão utópica quanto sugerem os que insistem em manter a estrutura autoritária, ultrapassada e ineficaz no combate à violência e na defesa social. Cida de Oliveira


MAURO SANTAYANA

Drogas, proibição e violência

A situação chegou a tal ponto que a pergunta que deveríamos nos fazer é: o que mata mais, as drogas ou a estrutura do aparato de repressão a elas?

P

ara a juventude, fazer o que não é permitido, afrontar as regras impostas pelos adultos e pelas “autoridades”, não deixa de se confundir, também, com certo tipo de ritual de passagem. Da mesma forma que o menino, na adolescência, questiona a autoridade do pai, e com ele compete, até certo ponto, na formação e afirmação de sua própria personalidade – e essa conquista de um espaço próprio independe de sexo –, tentar quebrar os limites impostos pelas gerações anteriores tem sido parte, há séculos, da própria evolução da humanidade. Isso talvez explique parte da popularidade das drogas nos últimos 100 anos. Até serem proibidas, a maconha e a cocaína, antes restritas aos consultórios psiquiátricos e gabinetes dentários, como relaxantes e analgésicos, nunca foram vistas como uma forma de transgressão social. Foi justamente a partir da Lei Seca, nos Estados Unidos, que elas começaram a adquirir um caráter mais contestatório. Na década de 1970, a maconha era a droga da contestação, o LSD, a da criação e do esoterismo, a heroína, a da autodestruição, e a cocaína, ainda, principalmente a das festas e da burguesia. Por um lado, o sistema aumentou a repressão ao seu consumo, como parte de sua reação a uma geração que contestava a Guerra do Vietnã e o complexo industrial-militar nos Estados Unidos, e tomava as ruas e as universidades em países como a França, o México e o Brasil. Para quem ocupava o poder, era interessante associar a utopia e a luta por um mundo melhor a uma espécie de fuga, de negação ao equilíbrio e à responsabilidade, favorecida pelo consumo de entorpecentes. Por outro lado, apertar a repressão aumentava também a demanda e o preço dessas substâncias, criando um mercado de bilhões de dólares, que favorecia, paradoxalmente, o enriquecimento fácil de parte do próprio sistema. Surgiram os cartéis de produção, transporte e comercialização, a partir da Bolívia, do

Peru, da Colômbia e do México, que se transformou em corredor para o acesso ao mercado norte-americano, o maior do mundo. E, como ocorreu na época da Lei Seca, o lobby do proibicionismo como única resposta da sociedade às drogas ilícitas criou, nos países produtores e consumidores, uma rede de milhares de advogados, jornalistas sensacionalistas, deputados e senadores que se elegem sob a égide do “combate à violência”, ONGs de todo o tipo e policiais corruptos, que sobrevivem, direta ou indiretamente, da repressão vigente. Hoje, no Brasil, a situação chegou a tal ponto que a pergunta que deveríamos nos fazer é a seguinte: o que mata mais, as drogas ou a estrutura do aparato de repressão a elas? Tivemos, em nosso país, mais de 600 mil homicídios nos últimos dez anos. A população carcerária aumentou exponencialmente, e o número de crimes continua crescendo. Em nome do combate às drogas, morrem, todos os anos, policiais e traficantes, “aviões” e moradores, inocentes, da periferia. As prisões estão se enchendo, dia a dia, de pessoas que, muitas vezes, misturam substâncias químicas em casa, e que disputam o direito de vender essas substâncias – basicamente anfetaminas – como se fossem derivadas da cocaína. Milhares de brasileiros têm sido assassinados ou roubados, dentro de suas casas, para que viciados possam comprar sua próxima pedra. Esse verdadeiro beco sem saída tem levado países como o Uruguai e alguns estados norte-americanos a mudar, paulatinamente, a forma de se tratar a questão das drogas ilícitas, começando pela maconha, cuja produção e consumo, inclusive para fins medicinais, têm sido progressivamente liberados. As drogas – incluindo o álcool e o tabaco – são um problema de saúde pública e não de polícia. No Congresso, na imprensa, na sociedade, precisamos entender que a repressão, como único caminho, só vai levar a mais mortes, e a cada vez mais violência. REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

O direito de pensar em

futuro Pesquisadores mostram que, mais do que transferir renda, o Bolsa Família emancipa pessoas que não existiam para o Estado e reduz a influência dos “coronéis” Por Cida de Oliveira

“M

inha filha já alcançou coisas que eu não alcancei e meus filhos não passam fome... Eu digo pra eles: olha, vocês têm de estudar porque tem a oportunidade que eu não tive. A única herança que eu tenho é botar eles na escola”, diz dona Norma Alves Duarte. “Estou terminando meus estudos e pretendo continuar... Quero fazer curso de enfermagem, fazer faculdade e dar uma vida melhor para minha mãe, porque eu não quero seguir a carreira que ela teve. Quero ter um futuro para lá na frente eu me orgulhar”, completa a jovem Mirele Aline Alves da Rocha. Esses depoimentos estão no curta-metragem Severinas, disponível na internet, 32

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que a documentarista Eliza Capai realizou por meio do concurso de microbolsas de reportagem da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. No vídeo com duração de dez minutos, gravado entre julho e agosto de 2013, em Guaribas, sertão do Piauí, outras mulheres participantes do programa dão sinais de emancipação, deixando para trás a submissão e a extrema pobreza. As histórias inspiraram outro trabalho de Eliza, que está incorporando cenas extras e mais duas personagens, além de corrigir cores, desenho, som e mixagem com qualidade para sala de cinema para o No Devagar Depressa dos Tempos. A estreia está prevista para este mês de setembro, no Vitória

Cenas dos documentários Severinas e No Devagar Depressa dos Tempos, de Eliza Capai, filmados na cidade de Guaribas, sertão do Piauí


CIDADANIA

Cine Vídeo, festival de curtas realizado na capital capixaba. Como outros documentaristas do Brasil e do exterior, Eliza encontrou inspiração no livro Vozes do Bolsa Família – Autonomia, Dinheiro e Cidadania (Editora Unesp), escrito por Walquiria Leão Rego, professora de Teoria Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e o italiano Alessandro Pinzani, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Lançada em junho de 2013, ano em que o programa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) completou dez anos, a primeira edição superou expectativas, despertou o interesse do público além dos muros da academia e esgotou-se em apenas três meses. No final de agosto foi lançada a sua segunda edição. Para os autores, o êxito está não só na análise qualitativa dos impactos do programa federal sobre seus participantes ou bolsistas – eles combatem o termo beneficiário, que consideram pejorativo. Mas, principalmente, na voz dada a esses brasileiros historicamente esquecidos, negligenciados e abandonados. “Nossa pesquisa desfez equívocos, estereótipos e preconceitos que insensibilizam as pessoas, reforçam visões erradas, inexatas e ignorantes sobre o programa e sobre a pobreza e colocam a luta contra a desigualdade como algo menor, sem importância”, diz Walquiria. Com recursos próprios, eles percorreram os sertões de Alagoas, Piauí, Maranhão e as regiões do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e de Recife, entre 2006 e 2011, ouvindo centenas de depoimentos de pessoas em situação de maior vulnerabilidade. Viram na prática que a pobreza tem mesmo cor, cheiro, varia de região para região

e pode ser ainda mais cruel na falta de acesso a serviços básicos, como escolas e postos de saúde e de oportunidades de trabalho. E as histórias que ouviram, bem como as realidades que testemunharam nesses seis anos, desmentem a superficialidade e o preconceito que marcam a compreensão sobre o programa.

Passar a existir

“No sertão não tem peixe”, responde sempre Alessandro Pinzani a uma das críticas mais comuns, de que o Bolsa Família dá o peixe e não ensina a pescar. “O ditado não faz sentido entre populações carentes de tudo”, destaca. Conforme os autores, tal estereótipo – da acomodação pela renda fácil, garantida todo mês – evidencia a ignorância sobre o funcionamento da política de transferência de recursos e, principalmente, sobre a dura realidade das pessoas pobres, na qual a renda é apenas uma das dimensões da pobreza. “Vimos famílias abandonadas, cercadas por grandes propriedades, sem estradas, escolas, postos de saúde, onde uma doença, um acidente sem atendimento pode se transformar em tragédia. Analfabetos dificilmente conseguiriam emprego mesmo que houvesse fábricas. Como então dizer que não trabalham por que não querem? As pessoas esquecem que outra dimensão da pobreza é a privação de habilidades, de potencialidades”, obser­va Walquiria. O que não falta são relatos que expõem o abandono histórico dessas populações. “Antes ninguém olhava para nós. Foi a primeira vez que enxergaram a minha pessoa, me disse uma senhora do interior alagoano”, conta a pesquisadora. “Esta é a primeira vez que um programa oficial se ocupa delas, que as fez passar a existir diante do Estado e aos poucos as torna conscientes de seus direitos.” Conforme ressalta Alessandro, é evidente que bolsistas como ela ainda não exercem plenamente sua cidadania. “Mas o programa é de inclusão cidadã, a passagem para esse patamar mínimo para o cidadão.” O pesquisador lembra outro aspecto importante: o programa praticamente REVISTA DO BRASIL

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se autofinancia com o aumento da arrecadação de impostos pelo aquecimento do consumo entre essa população. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que para cada R$ 1 investido – e não “gasto” no Bolsa Família, como realça – voltam para o estado R$ 0,73 em forma de arrecadação decorrente do impacto da transferência de renda na economia. E o benefício é sacado geralmente pelas mulheres, que têm o cartão magnético cadastrado em seu nome. “Algumas delas até brincaram com a possibilidade de os companheiros gastarem o dinheiro com cachaça, mas o verdadeiro motivo é que são elas que têm experiência para lidar com a casa e gastar bem o dinheiro curto”, lembra Walquiria. Em geral, a bolsa tem permitido a compra de alimentos e materiais escolares. Mas há casos de realização de sonhos para muitos brasileiros, como poder comprar, pela primeira vez na vida, um pacote fechado de macarrão – no sertão é costume o comerciante abrir as embalagens e vender a granel – ou mesmo poupar. Há quem tenha relatado aos pesquisadores, com os olhos arregalados de contentamento, que tinha conseguido comprar colchões para toda a família, à vista, separando um pouquinho do dinheiro todo mês. “A gente não imagina o que é a extrema pobreza”, diz Walquiria. “O que pode parecer banal, como comprar ou trocar o colchão, para muitos é uma proeza, uma grande conquista. A realidade da pobreza é muito mais dramática do que nós podemos imaginar.”

Compra de votos

Italiano de Florença e professor da UFSC desde 2004, Alessandro se habituou ao argumento de que o Bolsa Família é um programa de cunho assistencialista e sobretudo eleitoreiro ao permitir a compra de votos das pessoas incluídas. Inconformado com o viés, elaborou seu próprio discurso. “Criar incentivos para a produção industrial, com isenções fiscais para empresas, também é um programa eleitoreiro. A diferença é que é aceito como legítima a compra dos votos do empresariado. O rico pode votar na defesa dos seus interesses. Por que o pobre não pode?”, questiona. 34

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JAILTON GARCIA/RBA

CIDADANIA

VOZ PARA OS INVISÍVEIS Os pesquisadores Alessandro Pinzani e Walquiria Leão Rego: “Nossa pesquisa desfez argumentos contrários, estereótipos e preconceitos que insensibilizam as pessoas, reforçam visões erradas, inexatas e ignorantes sobre o programa e sobre a pobreza e colocam a luta contra a desigualdade como algo menor, sem importância”

A resposta, conforme emenda Walquiria, está no modo carregado de crueldade com que a sociedade brasileira olha para a pobreza. “A origem está nos 300 anos de escravidão. Nenhuma sociedade fica imune a isso. Abolida a escravatura, o desafio é abolir a obra da escravidão e o que ela produziu em nós, nos interpelando não mais pela escravidão, mas pela pobreza.” Em relação a eleições, outra mudança promovida pelo Bolsa Família nos sertões, conforme os pesquisadores, é a emancipação política. Percebendo prefeitos jovens em muitas reuniões, o que

seria impossível anos atrás, quando os coronéis se revezavam no poder, questionaram as lideranças. A resposta: hoje há prefeitos de todos os partidos, porque o Bolsa Família “emancipou” o voto. “O coronel agia nesse limiar da extrema pobreza e miséria, negociando alimentos, cesta básica. E a renda monetária, o dinheiro na mão, proporciona liberdade, autonomia. Dar cesta é dizer o que tem para comer. E a bolsa transformada em renda monetária regular traz a autonomia moral que permite à pessoa com renda, por mínima que seja, de programar a vida”, analisa Walquiria. “Essas


CIDADANIA

Norma: “Minha filha já alcançou coisas que eu não alcancei e meus filhos não passam fome”

Mirele: “Quero ter um futuro para lá na frente eu me orgulhar”

pessoas, que passaram a vida toda sem saber se iam comer no amanhã, como animais, estão sendo humanizadas. Em vez de caçar, escolhem. Minimamente, é verdade, mas estão escolhendo. E a escolha é fundamental numa democracia.”

Mudança de vida

Essa mudança, segundo os autores, é que explica o discurso das personagens na abertura do texto. As novas Severinas, as filhas do Bolsa Família, já sonham em ser médicas, engenheiras. Um salto e tanto para quem nem sequer imaginava ter um futuro. E esse futuro já é realidade para muitas delas, que se não conseguiram mudar as próprias vidas, mudaram a

de seus filhos. Como a moça bonita, loirinha, que há alguns meses pediu a palavra logo após uma palestra de Walquiria no campus de Santana do Livramento (RS) da Universidade Federal dos Pampas (Unipampa). “Num auditório lotado, 600 pessoas, ela enfrentou, sozinha, os ataques de um rapaz contra o programa: eu sou filha do Bolsa Família e entrei nesta universidade pública, onde estudo Relações Internacionais.” Os pesquisadores ressaltam que essas histórias constituem exemplos isolados, de pouco ou nenhum peso estatístico. Mas não duvidam de que algo de muito importante está acontecendo e modificando o ciclo da pobreza em ­muitas

famílias. Pela primeira vez, segundo ­ eles, populações inteiras estão tendo o direito de pensar em futuro, num futuro diferente da vida das gerações anteriores. Exatamente como a traduzida por Graciliano Ramos em Vidas Secas. Para o personagem Fabiano, assim como para o sertanejo, não havia nenhuma outra possibilidade de sonhar. Apenas uma sina. No entanto, em 11 de janeiro de 1930, quando era o prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas, o próprio Graciliano escreveu num relatório: “Pobre povo sofredor. Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene” – entende-se por higiene qualidade de vida, hospitais, saneamento. Ou seja, o despertar para a cidadania dos mais pobres que coloca em risco interesses dominantes há séculos. Desde que o Bolsa Família foi criado, 1,7 milhão de famílias se desligaram do benefício por terem superado a pobreza e conquistado renda maior e autossuficiência. Além disso, outras 1,1 milhão de famílias não atualizaram seus cadastros. Isso acontece com muita gente que melhora de renda e deixa o programa dessa forma, embora o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) não contabilize esse segundo número como saída voluntária. REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

Ela dá o que falar há 800 anos Este ano há uma festa de aniversário muito especial. Tão especial que até o Parabéns a Você foi escrito com o próprio aniversariante: a língua portuguesa Por Paulo Nogueira

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era cristã. Depois os chamados bárbaros (germânicos, celtas, godos) deram um chega pra lá nos ibéricos, só para serem acotovelados pelos muçulmanos, que invadiram o território no século 8. Resumo da ópera: além do latim, a língua portuguesa também incluiu as barbaridades dos bárbaros e os arabescos dos árabes (com seus zilhões de palavras começadas por al: álcool, alcachofra, algodão, alicate, álgebra etc.)

Meio milhão de palavras

Dos 2.796 idiomas contemporâneos catalogados pela Academia Francesa, o português é o quinto mais falado do mundo (o primeiro é o chinês, com bem mais de 1 bilhão de falantes). O português é também a terceira no Ocidente e a primeira no hemisfério sul. Segundo a Academia Brasileira de Letras, nosso bom e velho idioma tem cerca de 500 mil palavras. Essas unidades estão todas dicionarizadas no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Mas devagar com o andor, que tem mais: o dicionário ­Houaiss contém 228.500 entradas, 376.500 acepções, 26.400 antônimos e 57.000 palavras arcaicas. Ou seja: não falta munição para jogarmos conversa fora. O português é o idioma oficial de nove países (por ordem alfabética): Angola, Brasil, Cabo Verde, Timor-Leste, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Juntos, eles constituem uma entidade cuja sigla é CPLP (Comunidade dos Países de ROSINO/FLICKR/CC

A

certidão de nascimento da língua portuguesa é considerada o testamento do rei luso Dom Afonso II, em 1214 – o mais antigo documento escrito no idioma, oito séculos atrás. Ele está guardado a sete chaves, na santa paz de um cofre do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, com outro tesouro histórico: a carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, comunicando ao rei de Portugal o descobrimento do Brasil. Todo o cuidado é pouco com essas inestimáveis relíquias: havia 13 cópias do Testamento de Afonso II, mas apenas duas resistiram (a outra está na Catedral de Toledo, antiga capital espanhola). É difícil estimar quantos idiomas ou dialetos existiam na Europa antes da invenção da imprensa, no século 16. Estudiosos já identificaram cerca de 3 mil línguas, não contando os dialetos menores que ainda se falam. Daí a importância óbvia da ortografia na fixação das línguas nacionais, chamadas “vernaculares”, em oposição ao latim, que era o inglês daquela época, o idioma internacional (mas sem memes ou smiles). Com o nascimento de sua língua específica, os portugueses pararam de gastar o seu latim. A origem da língua portuguesa remonta exatamente ao latim vulgar, falado mal e porcamente e assim estropiado por soldados, lavradores e comerciantes do Império Romano, que se instalaram na Península Ibérica entre os séculos 2 antes de Cristo e 5 da


FANATIC STUDIO/GETTY IMAGES

HISTÓRIA

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HISTÓRIA

Língua Portuguesa). E acredite: o português é matéria obrigatória nos currículos escolares da Argentina (e, já que tocamos no assunto, também do Uruguai). Podemos acrescentar àquele número de falantes a imensa diáspora de cidadãos de nações lusófonas (de língua portuguesa) espalhados pelo mundo, estimados em 10 milhões, 3 milhões dos quais são brasileiros. Segundo estatísticas da Unesco, o português é um dos idiomas que mais crescem entre as línguas europeias, mordendo os calcanhares do inglês e do espanhol. Por anos e anos a fio, Portugal (que até 1975 incluía várias colônias na África e na Ásia) e Brasil não chegaram a um consenso sobre a legislação do idioma comum, tomando decisões unilateralmente e instituindo duas normas reconhecidas internacionalmente. Assim, o português virou a única língua do mundo ocidental falada por mais de 100 milhões de pessoas com duas ortografias oficiais – o inglês tem diferenças ortográficas ocasionais, mas não ortografias oficiais diferentes. Até que em 1990 foi aprovado pelos nove países da CPLP um

Acordo Ortográfico, para acabar de vez com a lambança e uniformizar a língua. Polêmico e controverso, esse acordo não está completamente aplicado até hoje, um quarto de século depois de sua aprovação. Escritores brasileiros e portugueses, por exemplo, não podem vê-lo nem pintado e juram que, mal por mal, preferiam escrever na língua do P.

Acordos a cumprir

Geralmente se esquece (ou simplesmente se ignora), porém, que houve quatro acordos anteriores: em 1911, 1943, 1945 e 1971. Como o idioma é dinâmico, naturalmente tem de ser calibrado de acordo com a evolução das sociedades, para que não sofra de reumatismo verbal. Reparem uns poucos exemplos dos inúmeros verbetes em que os acordos anteriores aplicaram um

Passos está na ilha Até hoje, o mais prestigioso prêmio literário internacional – o Nobel – contemplou apenas um autor de língua portuguesa, José Saramago, em 1998. Mas a plasticidade encapetada de nosso idioma está mais do que demonstrada por inúmeros escritores do cânone universal, de Machado de Assis a Guimarães Rosa, de Camões a Mia Couto. E na escrita ou na oralidade cotidiana, um dos indícios fascinantes dessa matériaprima são os trocadilhos – que, quando bem executados, requerem acrobacias mentais e uma intimidade incestuosa com a língua. O maior craque em trocadilhos em português foi o poeta curitibano Emílio de Meneses, da estirpe do baiano Gregório de Matos – cuja língua era tão aguçada que ficou conhecido como “Boca do Inferno”. Quando o pernóstico acadêmico Guimarães Passos, autor de um Tratado de Versificação, foi convalescer de uma doença em Florianópolis, Meneses tascou: “Passos está na ilha, onde tem tratado de ver se fica são”. Num bonde, ao presenciar uma mulher obesa quebrar 38

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um banco sob seu peso, exclamou: “É a primeira vez que vejo um banco quebrar por excesso de fundos!” Mas a apoteose de Meneses foi numa feira agrícola. Um desafeto decidiu se vingar do trocadilhista e, quando Emílio estava perto da barraca de milho, berrou: “É milho, é milho!” Meneses não perdeu o rebolado: “Caramba, hoje você está com a veia! É com isso que eu me intrigo!” Ao ver o engraçadinho tentar fugir, Meneses agarrou-o pelo braço: “Não s’evada!” Forçou o outro a ocupar uma cadeira e deu o golpe de misericórdia: “Sentei-o!” Moral da história: nestes 800 anos de idioma, todos podemos assinar embaixo da frase de Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa”. O que nem todos sabem é que até o etéreo poeta dos heterônimos foi publicitário da Coca-Cola e escreveu o primeiro slogan da bebida em Portugal: “Primeiro estranhase, depois entranha-se”. Pois é: com as palavras todo o cuidado é pouco. Afinal de contas, o inventor do alfabeto era um analfabeto.

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Pessoa e a Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”


ROSINO/FLICKR/CC

HISTÓRIA

INUSITADO Estudantes da Ilha do Ibo, Moçambique: a cultura do sudeste da África se encontra com a brasileira dentro da mesma língua

botox: alphabeto, alumno (aluno), anonymo (anônimo), architectura, belleza, cahir (cair), chimica (química), civilisação (civilização), ­elle/ella (ele/ela), sciencia. Seja qual for, uma língua é uma delicada filigrana de regionalismos e universalismos – e, na era da globalização, da internet e das redes sociais, aberta de par em par às influências planetárias. Mas não é só de agora. A expressão “banho-maria”, que parece tão vetustamente lusitana, na verdade pertence ao vocabulário internacional dos alquimistas. Empregado por 85% dos falantes do português, o padrão brasileiro é hoje o mais falado, escrito, lido e estudado no mundo. As diferenças entre as variedades do português da Europa e do Brasil estão no vocabulário, na pronúncia, na sintaxe e nas gírias – o que não é pouco. Por mais que isso possa revelar provincianismo, alguns dos chamados “lusitanismos” soam cômicos ou desconcertantes aos brasileiros. Como “bicha” (fila), “puto” (menino, moço – Cristiano Ronaldo é conhecido em Portugal como “o puto maravilha”), “autoclismo” (descarga de privada), “cueca” (roupa íntima masculina e feminina). Ao longo do tempo, uma série de estrangeirismos também foram incorporados ao português cotidiano – uns permanentemente, outros temporariamente. Alguns: abajour (abajur),

club (clube), cocktail (coquetel), football (futebol), leader (líder), maillot (maiô), sport (esporte). O português é ainda língua oficial em várias organizações internacionais, como Mercosul, Organização dos Estados Americanos (OEA), União Africana­e União Europeia. Terceira nas redes sociais e quinta na internet em geral, a CPLP faz campanha agora para que a língua portuguesa seja integrada aos idiomas oficiais da ONU – que atualmente são seis: árabe, chinês, espanhol, francês, ­inglês e russo. Em nossos dias, a CPLP pode esgrimir trunfos econômicos para puxar a brasa a sua sardinha: 50% dos recursos petrolíferos descobertos na ú ­ ltima década estão em países nela incluídos. Em meados deste século, o gás e o petróleo produzidos pelo Brasil, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau representarão 30% da produção mundial – o equivalente à do Oriente Médio. Em março de 2006, foi fundado em São Paulo o Museu da Língua Portuguesa, um espaço interativo sobre o idioma, na cidade com o maior número de falantes do português em todo o mundo (quase tantos como em Portugal todo). Desde 1994 funciona em Curitiba o Bosque de Portugal, com o Memorial da Língua Portuguesa, que homenageia os imigrantes lusófonos – sobretudo em 5 de maio, dia da Língua Portuguesa. REVISTA DO BRASIL

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TVT

Canal 44 UHF Digital: Grande São Paulo. Canal 2 NET Digital: São Paulo (das 19h às 20h30). Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

Movimento Transverso

Muito mais direitos humanos Série da TV Brasil em coprodução com a TVT estreia em setembro

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ara prevenir situações de violência, o Grupo de Mulheres Cidadania Feminina distribui apitos entre os moradores do bairro Córrego de Euclides, em Recife. Quando alguma mulher se sente ameaçada, seja na rua ou em casa, começa a apitar e outras seguem o exemplo. O apitaço intimida o agressor e amplia as chances de se evitar a agressão. São iniciativas como esta o foco da série + Direitos + Humanos, realização da TV Brasil, com produção com a TV dos Trabalhadores (TVT), que estreia em 10 de setembro, às 19h30, na TV Brasil. A série dirigida por Max Alvim e Kiko Goifman é apresentada pelo cineasta ­Jeferson De (diretor de Bróder) e pela atriz Sílvia Lourenço (de Contra Todos, Bicho de Sete Cabeças e O Cheiro do Ralo). São 13 programas, com uma hora de duração cada, que tratam sobre cidadania, 40

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diversidade e democracia a partir de experiências singulares de grupos de jovens de todas as regiões do país que atuam na defesa dos direitos humanos. Não importa se do meio urbano ou rural, do centro ou da periferia, a iniciativa pretende dar voz a todos: mulheres indígenas, negros, travestis, prostitutas, surdos, idosos, imigrantes... A intenção é fazer com que o espectador percorra caminhos inusitados e conheça propostas originais e ousadas que são pouco conhecidas. Para tanto, os jovens abrem um diá­ logo criativo entre as diferentes iniciativas e conversam em um ambiente em que todos – entrevistados, plateia e grupos musicais – são convidados a participar. O tema do primeiro programa da série é “governos do corpo”. Participam a Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, responsável por um projeto de realocação de travestis no cárcere,

a Casa Ângela, de São Paulo, que atua no resgate do parto humanizado, e a banda Mustache e Os Apaches. No episódio seguinte, a discussão é “comunicação e migração”, com o grupo Oficina de Imagens, que combate o trabalho infantil e atua na promoção dos direitos da criança e do adolescente por meio da linguagem fotográfica e videográfica, e o Adus, Instituto de Reintegração de Refugiados no Brasil. Com o tema “as esquinas e as feiras”, o Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará conta, no terceiro programa, sobre sua atuação na defesa dos direitos humanos das trabalhadoras do sexo. A entidade reivindica a legalização do o­ fício e promove ações, eventos e debates. Já o Disco Xepa, de São Paulo, apresenta o projeto criado por jovens para combater o desperdício de alimentos e que, em parceria com o Coletivo Gastromotiva,


A partir de 10/09, toda quarta, às 19h30 Cidadania, diversidade e democracia. Apresentação de Jeferson De e Sílvia Lourenço. Direção de Max Alvim e Kiko Goifman 10/09 Governos do Corpo. Com Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul e Casa Ângela, de São Paulo. Banda convidada: Mustache e os Apaches. 17/09 Comunicação e Migração. Com Oficina de Imagens de Pedra Azul (MG) e Instituto de Reintegração de Refugiados no Brasil. Banda convidada: Quarteto Bonanza. 24/09 As Esquinas e as Feiras. Com Grupo de Mulheres Prostituas do Pará e Disco Xepa (SP). Cantor convidado: Rincon Sapiência. 01/10 Adolescentes nas Aldeias e Periferias. Com Jovens Facilitadores de São Paulo e Associação de Jovens Indígenas de Dourados (MS). Banda convidada: Pitanga em pé de amora. 08/10 Violência e Memória. Com grupo de mulheres Cidadania Feminina e a Frente de Esculacho Popular de São Paulo. Banda Convidada: Zulumbi. 15/10 Exploração Sexual e Abandono. Com Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Belém e Instituto História Viva. Grupo convidado: Trummer SSA. 22/10 Intervenção Urbana e Ação no Campo. Com o Coletivo Transverso de Brasília e o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de MG. Banda convidada: Ilú Obá de Min. 29/10 Mulheres Indígenas e Diversidades. Rede de Mulheres Indígenas da ONG Thydewá e Grupo Conexão G (da Fevela da Maré, Rio de Janeiro). Banda convidada: Charles e os Marretas.

05/11 E ducação e Redes de Cidadania. Com os grupos Vila Esperança de Goiás Velho e Saúde e Alegria de Santarém (PA). Cantora convidada: Bárbara Eugênia. 12/11 Periferia e Participação Popular. Com o grupo de rap Xeque Mate La Misión (Xemalami) de São Paulo e Levante Popular da Juventude de Vitória da Conquista, na Bahia. 19/11 Mediação de Conflitos e Resistência no Campo. Com a ONG Ação Educativa e a Comissão de Jovens do Polo da Borborema (PB). Banda convidada: Xaxado Novo. 26/11 I dentidades e Territórios. Com a Frente Quilombola e o Coletivo Negração (ambos do Rio Grande do Sul) e o grupo Corposinalizante, de São Paulo. Banda convidada: Vivendo do Ócio 03/12 Família e Inclusão. Com os grupos Movimento Down (RJ) e Apemas (PE). Banda convidada: Maglore.

Família e Inclusão

Onde sintonizar: Na TVT (www.tvt.org.br) e tvbrasil.ebc.com.br/comosintonizar

Rede de Mulheres Indígenas da ONG Thydewá

promove a inclusão social por meio da gastronomia. O quarto episódio aborda “adolescentes nas aldeias e periferias” e conta com o programa Jovens Facilitadores, de São Paulo, e a Associação de Jovens Indígenas, de Dourados (MS), que usa o teatro para defender os direitos indígenas. Na mesma edição do Grupo de Mulheres

Grupo de rap Xeque Mate La Misión

Cidadania Feminina, a Frente de Esculacho mostra aos espectadores as ações que fazem para constranger aqueles que cometeram crimes de tortura e desaparecimento de vítimas da ditadura sem nunca terem sido punidos. Já as outras edições abordam os seguintes temas: exploração sexual e abandono; intervenção urbana e ação no cam-

Projeto Vila Esperança

po; mulheres indígenas e diversidades; educação e redes de cidadania; periferia e participação popular; mediação de conflitos e resistência no campo; identidades e territórios; e família e inclusão. Todas trazem histórias de pessoas e grupos que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária, sem esperar que a mudança bata na porta. REVISTA DO BRASIL

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CINEMA

Injustiça não é

BRINCADEIRA

CONFLITO Caio (Giovanni Gallo) é acusado de um crime e acaba na cadeia

U

m adolescente de classe média é tratado da mesma forma que um pobre quando é pego cometendo um crime? A diretora Caru Alves de Souza aborda essa questão no longa de ficção De Menor, que estreou agora em setembro nos cinemas. Na história, a advogada recém-formada Helena (Rita Batata) divide seu tempo entre cuidar do irmão Caio (Giovanni Gallo), de quem é tutora, e a defesa de jovens infratores no Fórum de Santos, no litoral paulista. Tudo desmorona quando o irmão é acusado de um delito. Com participação de Caco Ciocler como juiz, o filme não trata diretamente sobre a redução da maiori42

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dade penal. Mas leva a uma inevitável reflexão sobre o tema. Caru ouvia muitos relatos da prima, defensora pública da Vara da Infância e da Juventude de Santos. “Ela me contava sobre os meninos e as meninas que passavam pelo fórum. E me interessou muito o quanto essa realidade estava mudando o olhar da minha prima, que vinha de uma posição social muito diferente da dos meninos. O filme nasceu disso: do embate entre duas realidades sociais diferentes. Eu quis encurtar essa diferença botando o drama dentro da própria família da defensora”, afirma. Para fazer seu primeiro longa-metragem, a filha da também cineasta Tata

Amaral frequentou, entre 2007 e 2008, audiências de casos que envolviam jovens infratores na cidade de Santos. A diretora pôde confirmar o que já sabia: os adolescentes que passaram pelas audiên­ cias eram quase todos pobres, negros ou pardos. “Enquanto eu estava fazendo a pesquisa, não teve nenhum caso de um menino da classe média. Mas fiquei me perguntando o que aconteceria se um menino da classe média entrasse em uma audiência. Haveria uma quebra de paradigma? Esse menino seria tratado diferente? Não seria?”, questionava, partindo do pressuposto de que a Justiça é excludente e escolhe um lado. “Isso eu comecei a

IGOR LAVRADOR/DIVULGAÇÃO

Filme sobre menores infratores expõe o quanto o discurso da redução da maioridade penal é movido a racismo, comodismo e demagogia Por Xandra Stefanel


CINEMA

PREMIADO De Menor foi um dos vencedores do título de melhor filme no Festival do Rio 2013

JUSTIÇA EXCLUDENTE Caco Ciocler interpreta um juiz

FOTOS IGOR LAVRADOR/DIVULGAÇÃO

DESIGUAL Helena (Rita Batata) defende jovens infratores no Fórum de Santos: pobres, negros ou pardos

perceber a partir de notícias de jornal. Um menino pobre e negro é pego com um Pinho Sol e está condenado a cinco anos de ‘prisão’, enquanto o filho do Eike Batista atropela, mata um cara e está solto, até onde eu sei.” Segundo Caru, todos os casos que acompanhou eram parecidos. “São situações de abandono, de o menino ir para o fórum e a mãe e o pai estarem ausentes. Muitas vezes os pais são usuários de drogas, são meninos que moram sozinhos desde adolescentes... Isso foi muito forte para mim, tanto que no filme nenhum tem mãe. Mas o que eu achei uma loucura era quando ia uma testemunha falar das ‘atrocidades’ que eles tinham feito. Quando entravam para dar depoimento, era muito clara a situação de fragilidade. Você via realmente que se tratava de uma criança ou de um adolescente que estava lá, e não do monstrinho que a sociedade gosta de pintar. Para mim, ficou muito claro que eram adolescentes e que deveriam ser tratados como tal e ter um cuidado especial. Mas a sociedade não parece entender dessa maneira.” É por isso que a questão sobre a redução da maioridade penal volta sempre à tona. O que Caru espera com De Menor é contribuir com um debate construtivo sobre o assunto. “Se ficasse em cima do muro, eu colaboraria com essa visão turva da sociedade. Espero que o filme seja matéria-prima para o debate e que as pessoas comecem a olhar para essa questão de uma maneira mais generosa. É uma questão de classe e de raça, sim. Existe um componente racista ali que é muito forte. São meninos negros e pobres que estão lá, em sua maioria. Tem alguma coisa errada aí, não?” Para a cineasta, os meios de comunicação incitam a sociedade contra esses jovens. “A mídia ajuda muito a formar essa opinião pública a favor da redução da maioridade penal. Essa é sempre ‘a solução’, e ninguém fala sobre tratar o problema pela raiz, como promover uma maior distribuição de renda, com igualdade de oportunidades e mecanismos para que o racismo realmente seja eliminado da sociedade. É preciso trabalhar essa questão de verdade.” REVISTA DO BRASIL

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MÚSICA

Tempos de

TAIGUARA Livro a ser lançado em outubro relembra batalhas do compositor contra a censura. CD trará músicas inéditas Por Vitor Nuzzi

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aiguara “era um menino do sol e da Silva”, definiu em uma de suas canções, regravada em 2012 por seu filho mais novo, Lenine Guarani, hoje com 26 anos. Também filho de músicos, Taiguara é lembrado por boa parte do público pelo sucesso na chamada era dos festivais (com Modinha, de Sérgio Bittencourt, e Helena, Helena, Helena, de Alberto Land) e canções românticas, como Universo no teu Corpo, Hoje e Teu Sonho não Acabou. Mas um livro a ser lançado em outubro jogará luz em outro aspecto da carreira do compositor que surgiu na noite de São Paulo, ainda nos anos 1960, e morreu em 1996, aos 50 anos: a de criador fustigado pela censura. “Ele foi um dos artistas mais perseguidos, talvez o músico mais perseguido pela ditadura”, diz a jornalista Janes Rocha, autora de Os Outubros de Taiguara. O trio de autores, por assim dizer, preferencial da censura – na visão da pesquisadora – foi formado por Taiguara, Chico Buarque e Gonzaguinha. Como exemplo, a partir de buscas no Arquivo Nacional, ela cita um lote de 140 músicas de Taiguara registradas no Departamento de Censura e Diversões Públicas, da Polícia Federal, de 1970 a 1974. Só aí foram 48 canções vetadas. “Teve ainda outras que ele fez fora (do país), vetadas, e que não passaram por esse processo”, acrescenta, citando um disco inteiro gravado em Londres. E, claro, o emblemático LP Imyra, Tayra, Ipy, 44

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de 1976. O álbum chegou a ser distribuído, para ser recolhido em seguida. Um show de lançamento previsto para a região das Missões, no Rio Grande do Sul, foi cancelado sem explicações. “Estava tudo certo, contratado. Mandaram avisar que não ia ter show nenhum”, conta Janes. “Ele era uma pessoa que se expunha muito e não tinha meias-palavras”, observa a jornalista. “Acabou ficando muito no alvo. Imyra foi a gota d’água para ele. Oitenta músicos, um trabalho primorosíssimo, uma produção maravilhosa... Ele nunca foi preso nem torturado. Essa foi a tortura: perder o trabalho.” Taiguara, que acabara de retornar ao Brasil após um período na Europa, deixou novamente o país, rumo à África. Na volta, já nos anos 1980, enfrentou resistência pelo discurso pró-comunismo. Compôs, inclusive, uma canção para Luiz Carlos Prestes (O Cavaleiro da Esperança). Janes diz que a relação de Taiguara, mais que partidária, era pessoal, essencialmente com o veterano líder. “Quando voltou de viagem, ele radicalizou mesmo”, afirma Janes, citando o LP Canções de Amor e Liberdade, de 1984, que tem Voz do Leste como uma das composições mais conhecidas (“Sou voz operária do Tatuapé/ Canto enquanto enfrento o batente com a mão”). “A censura conseguiu o objetivo deles, que foi tirar ele de circulação. Quando ele voltou e quis retornar, foi difícil.”


MÚSICA

Mergulho criativo

Imyra, mergulho criativo e experimental de Taiguara, reuniu nomes como Wagner Tiso (regência), Hermeto Pascoal (arranjos), Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Paulo Braga, Jacques Morelembaun e Novelli. As 11 faixas, algumas instrumentais, trazem sonoridades brasileiras, africanas, indígenas, ibéricas, fruto de raízes e viagens do autor. Três composições são assinadas pela companheira de Taiguara na época, Gheisa, em uma tentativa de escapar da censura. Não adiantou. Uma delas era Terra das Palmeiras, referência clara ao Brasil e ao período autoritário: Sonhada terra das palmeiras Onde andará teu sabiá? Terá ferida alguma asa? Terá parado de cantar? Sonhada terra das palmeiras Como me dói meu coração Como me mata o teu silêncio Como estás só na escuridão Ah! Minha amada amordaçada De amor forçado a se calar Meu peito guarda o sangue em pranto Que ainda por ti vou derramar Nivaldo Ornelas conta que ninguém conseguiu ouvir o disco na época. Ele só foi escutá-lo no relançamento do disco, em formato de CD, no ano passado, pela Kuarup, com autorização da gravadora EMI, que detém os direitos originais do disco. “Acho uma obra-pri-

ma. Descontando a parte técnica – 40 anos fazem diferença –, era muita ideia bacana. Foi gravado em dois canais. Quando alguém errava, começava tudo de novo. No meu modo de ver, não é um disco, mas um tratado”, diz Ornelas. “Foi rápido e rasteiro”, acrescenta, referindo-se à gravação. “O encontro foi fantástico. Ele pegou um pessoal que já se conhecia. Acho que não teve nem ensaio.” Ele também destaca o momento criativo da música brasileira do período. “Muita coisa vinha sendo feita. Eu já tinha gravado com o Milton (Nascimento) o Milagre dos Peixes e Minas, o Corações Futuristas com Egberto (Gismonti) e o festival de Montreaux com Hermeto”, lembra. Segundo o instrumentista, Taiguara era “excelente músico e tocava bem piano”. No início da carreira, era um cantor que “fechava quarteirão”, famoso pelo repertório romântico. E foi “um cara de caráter forte”, que defendia suas posições. Eram outros tempos mesmo, conta Ornelas. “As pessoas não tinham pressa, não tinha de entregar produto, não havia pressão. Tinha diálogo. Era se reunir num estúdio e nem tinha tanto ensaio. Muitas vezes, encontrava-se nos botecos da vida e ali nasciam as ideias.” Curadora de parte da obra de Taiguara, a Kuarup prepara, também para outubro, o lançamento do CD Ele Vive, com faixas inéditas e outras gravadas ao vivo. Outubro foi o mês de nascimento de Taiguara Chalar da Silva, uruguaio de origem, filho do bandeonista Ubirajara e da cantora Olga, desde os 4 anos no Rio de Janeiro e a partir dos 15 em São Paulo. Outubro está no título do livro de Janes Rocha e fez parte do nome de um show do artista em 1986. Também remete à Revolução Russa. Taiguara era um libertário. Segundo Ornelas, “gostava de novas ideias, de conviver com gente que sonhava”.

“Não sou cantor, não sou nada. Eu sou boêmio”, disse Lupicínio Rodrigues durante uma entrevista ao extinto O Pasquim, em 1973, menos de um ano antes de morrer. Bedel, dono de bar, autor do hino do Grêmio, quarto de 21 filhos, o gaúcho Lupicínio completaria 100 anos neste 16 de setembro. Ele morreu há 40 anos, em agosto de 1974. Foi praticamente um criador do “gênero” dor de cotovelo na música brasileira. Em texto recente para o jornal Valor Econômico, o pesquisador Zuza Homem de Mello o compara a Herivelto Martins, como autor

da canção romântica voltada para o dramático, explorando temas como traição, sofrimento, ciúme, despeito, vingança, melancolia, dor, remoroso, saudade, solidão, ódio, paixão. Lupi, como era chamado, começou como cantor, imitando Mário Reis, no início da década de 1930. Tinha seus 16 anos. A primeira desilusão amorosa veio aos 17 e inspiraria, anos depois, Nervos de Aço, um de seus clássicos. Vingança também surgiu assim, depois que um empregado do compositor ficou com a mulher com quem Lupicínio viveu

durante seis anos. Vingança ganharia um arranjo punk, ao estilo Sex Pistols ou Ramones, conforme explicou o autor da versão, o músico e poeta gaúcho Ricardo Silvestrin. Em 1995, Arnaldo Antunes lançou uma versão roqueira de outra canção de Lupicínio: Judiaria, com Edgard Scandurra, do Ira!, na guitarra. Claro, o grande intérprete de Lupicínio era mesmo Jamelão. “Mas Lupicínio, com voz débil, tem interpretações embargadas e contundentes nas poucas, mas preciosas, gravações que deixou”, anotou Zuza.

FOTOS FOLHAPRESS

Se acaso você chegasse

Lupicínio: “Não sou cantor, não sou nada. Eu sou boêmio”

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VIAGEM Os quatro minaretes lebram que ali existiu uma mesquita, depois de ter sido a maior catedral do mundo cristão

Sob o céu de

Santa Sofia

Templo na Turquia é local de encontro das civilizações cristãs e islâmicas, e onde as crenças podem coexistir em paz Por Sônia Oddi, texto e fotos 46

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basílica de Santa Sofia é o monumento mais visitado da Turquia. No ano de 2013, mais de 3 milhões de pessoas conferiram de perto aquela que é considerada uma obra-prima da arquitetura e da arte bizantinas. A edificação integra as zonas históricas da capital, Istambul, declaradas Patrimônio Mundial da Unesco há 29 anos. Atualmente, funciona como museu. Mas nasceu como templo cristão, e tornou-se mesquita quando os turcos conquistaram Constantinopla – nome anterior de Istambul –, em 1453. Santa Sofia – em grego, “divina sabedoria” – foi construída por iniciativa do imperador Justiniano na capital do antigo Império Romano do Oriente (Constantinopla), entre os anos de 532 e 537. Para tal feito contratou os arquitetos Isidoro di Mileto e Antemio di Tralle, e reuniu mais de 10 mil trabalhadores. No local, onde antes existia um templo pagão, haviam sido erguidas duas outras basílicas. A primeira, no século 4, acabou incendiada durante uma rebelião. E a segunda, maior, no século seguinte, fora destruída na sangrenta Revolta de Nika, juntamente com outros edifícios da cidade. Pode-se dizer que o evento detonador do conflito que ocorreu no ano 532 foi a rivalidade entre equipes que disputavam uma corrida de bigas. A rixa foi, entretanto, apenas o estopim. Os principais combustíveis para a revolta, uma das mais violentas da história de Istambul, eram mesmo a fome, a falta de moradia e os pesados impostos cobrados pelo império. Trinta mil


VIAGEM

Na cúpula da basílica observa-se um versículo do Alcorão

Os capitéis (ao lado) que decoram as colunas são ricamente entalhados e datam do período bizantino. No mosaico Pantocrator (abaixo), Cristo, com o imperador Leão IV ajoelhado à sua esquerda, segura a Bíblia, na qual se lê: “A paz esteja com você. Eu sou a luz divina”

Maria e Jesus ao lado de um dos oito medalhões caligráficos introduzidos pelos muçulmanos: experiência única para o visitante

pessoas foram encurraladas no hipódromo e massacradas por mercenários comandados por Belisário, general de Justiniano. A poucos metros do antigo hipódromo está a entrada da S­ anta Sofia, de onde pode-se percorrer o local projetado para ser o reflexo terreno dos céus – e perceber o caráter cristão da arte bizantina. Com altura equivalente a um prédio de aproximadamente 20 andares, a catedral foi durante quase mil anos a maior do mundo. Sua vasta cúpula pousa sobre quatro colunas e quatro grandes arcos. Através de inúmeras janelas, a luz invade o espaço e ilumina os mosaicos espalhados por todo o ambiente. Capitéis detalhadamente entalhados arrematam as colunas de mármore trazidas de longínquas cidades do império que se estendia da atual Espanha até o Oriente Médio. Os mosaicos, feitos de pequenos pedaços de vidros, ouro, prata, terracota e pedras coloridas, retratam Jesus Cristo, Maria e personagens bíblicos ao lado de integrantes da corte bizantina. Na Igreja Ortodoxa, o imperador é considerado o representante de Deus na Terra, sendo responsável, inclusive, pela escolha do Patriarca, o cargo mais alto da Igreja. Sediada na capital de um estado teocrático, Santa Sofia acolhia os rituais da comunidade cristã e os eventos de coroação dos imperadores bizantinos.

A cúpula da basílica ruiu algumas vezes em consequência de terremotos, ao mesmo tempo em que reformas e reconstruções eram empreendidas. No século 13, durante a Quarta Cruzada, foi saqueada por cristãos latinos. Dois séculos depois, em 1453, pelas tropas do sultão Mehmed, que havia prometido aos seus soldados três dias de saques como recompensa pela tomada da até então invencível Constantinopla. Era o fim do Império Bizantino. Naquele mesmo ano, a obra foi transformada na primeira mesquita de Istambul. A maioria dos turcos já havia se convertido ao islamismo. Santa Sofia funcionou como mesquita durante cinco séculos. Ao longo desse período recebeu reparos que a mantiveram em pé. Historiadores reconhecem a importância da intervenção dos otomanos para que esse patrimônio arquitetônico e cultural tenha sido preservado. Já no século 20, Santa Sofia (Ayasofya para os turcos) foi transformada em museu. Muçulmanos e cristãos ainda reivindicam que a basílica volte a ser espaço sagrado de orações. Enquanto isso, sob sua vasta cúpula coexistem ícones do cristianismo e do islamismo, exemplo – a ser semeado pelo mundo – de civilidade e respeito ao diverso. REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica Foto e música

Nos últimos 18 anos, Daryan Dornelles colecionou fotografias de grandes nomes da música brasileira. Com mais de mil retratos publicados e mais de 100 capas de discos, o fotógrafo resolveu compilar o melhor de seu trabalho no livro Retratos Sonoros (Ed. Sonora, 192 págs.). A obra traz 156 fotografias de Chico Buarque, Marisa Monte, Dominguinhos, Paulinho da Viola, Ney Matogrosso, Criolo, entre outros músicos de estilos diferentes e calibre incontestável. Para captar a “alma” do artista, Daryan Dornelles faz uma imersão na obra do músico e busca sintonia entre imagem e personalidade musical. O livro custa R$ 140, mas é possível ver alguns cliques em www.daryandornelles.com

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Elza Soares

Chico Buarque

A vida que Eliane Brum via

Outro lado da história

Performance O Samba do Crioulo Doido de Luiz de Abreu

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RENATA D’ALMEIDA/DIVULGAÇÃO

A exposição Memórias Inapagáveis – Um Olhar Histórico no Acervo Videobrasil, em cartaz até 30 de novembro, no Sesc Pompeia, em São Paulo, apresenta 18 vídeos artísticos que propõem um olhar crítico de episódios polêmicos e de conflitos. São reflexões pessoais que artistas brasileiros e estrangeiros fazem sobre temas como a chegada dos portugueses ao Brasil, o golpe militar no Chile, o ataque às torres gêmeas e a luta dos índios Sataré-Mawé contra uma multinacional petrolífera. De terça a sábado, das 10h às 21h, e aos domingos e feriados das 10h às 19h, na Rua Clélia, 93, São Paulo, (11) 3871-7700. Grátis.

A escritora, jornalista e documentarista Eliane Brum é capaz de transportar o leitor ao mais íntimo universo dos personagens sobre os quais escreve. Autora do romance Uma Duas, dos livros-reportagem Coluna Prestes – O Avesso da Lenda, A Vida que Ninguém Vê e O Olho da Rua, agora ela resgata em Meus Desacontecimentos (Ed. Leya, 144 págs.) sua própria infância. A força narrativa não é acaso e é com ela que Eliane conta como foi salva pela palavra escrita, além de relembrar personagens e fatos fantasticamente reais: a irmã morta mais viva que todos da família, a imaginação fértil da avó, o pavor do escuro, a presença constante da morte e de mulheres bondosas e tristes demais. A cada linha, a autora transforma seu silêncio doloroso em narrativa quase poética. R$ 30.


ALFREDO MELGAR

Paulinho da Viola

Miró pelo Brasil

Mapeamento cultural No início de agosto, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, anunciou a criação de uma plataforma digital de mapeamento colaborativo e gestão cultural da capital paulista. Em SPCultura, a prefeitura e o Instituto Tim se juntaram para reunir informações sobre agentes, espaços, eventos e projetos culturais em um software livre com sistema de georreferenciamento que pode ser usado gratuitamente. Em http://spcultura.prefeitura. sp.gov.br, o usuário poderá consultar e inserir eventos culturais de Sampa.

Até 28 de setembro, a Caixa Cultural Rio de Janeiro exibe a exposição A Magia de Miró, Desenhos e Gravuras, com 69 obras do pintor espanhol e fotografias em branco e preto em que Alfredo Melgar registrou o artista. A mostra apresenta esboços e notas, além de obras produzidas sobre papel com lápis e giz de cera em seus últimos anos de vida. Há também ilustrações produzidas entre 1962 e 1983 e que revelam seu processo criativo. A exposição, que já passou por São Paulo e Curitiba, segue em outubro para Recife e em dezembro para Salvador. De terça a domingo, das 10h às 21h, na galeria 3 da Caixa Cultural RJ. Avenida Almirante Barroso, 25, Centro, (21) 3980-3815. Grátis.

A doce voz de Ceumar

A cantora, compositora e instrumentista Ceumar foi morar na Holanda em 2009, mas não deixou de lado a musicalidade brasileira. Ao contrário. Em seu sexto álbum, Silencia (Selo Circus), ela mistura a delicada mineirice com ares de world music. Com direção musical do francês Vincent Ségal, o disco tem 13 faixas e traz composições de Vitor Ramil, Kiko Dinucci, Miltinho Edilberto, Gildes Bezerra, Déa Trancoso e Sérgio Pererê, entre outros. Com xotes, sambas, marchinhas, cocos e chulas, o novo trabalho faz uma ode ao silêncio: “São músicas que eu gosto de cantar, mas quero também trazer instantes de silêncio e contemplação, que é uma busca pessoal nestes tempos”, afirma a cantora. Silencia custa R$ 25, e também pode ser baixado gratuitamente em www.ceumar.com.br. REVISTA DO BRASIL

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LOLA ARONOVICH

Só voto em mulher

A ONU ranqueou 188 países em matéria de participação das mulheres na política. E acredite: estamos no 141º lugar, atrás do Afeganistão

S

ou feminista assumida desde os meus 8 anos. Mas só em 2010, dois anos depois de ter começado um dos maiores blogs feministas do país, tomei uma decisão: só vou votar em candidatas mulheres, pelo menos para cargos legislativos. Até então, votava mais em homens. E já falei que sempre fui feminista? Pois é. Se nem eu faço o mínimo esforço, como vou reclamar que apenas 11 das 81 vagas no Senado sejam ocupadas por mulheres? Claro, nunca votaria em alguém só por ser mulher. Se eu fosse britânica, não teria votado em Margaret Thatcher... Quando avisei que só iria votar em mulheres, vieram as acusações de costume: “Isso é sexismo!” “É discriminação de gênero!” “Se alguém dissesse que só votaria em homem, você faria um escândalo”. “Viu? Eu sabia! Você odeia homenzzz.” Quem disparou essas bobagens partia do princípio de que vivemos em igualdade. E nem termos uma mulher na Presidência e várias ministras importantes no governo melhora nossa condição no mundo. A ONU ranqueou 188 países em matéria de participação das mulheres na política. E acredite: estamos no 141º lugar, atrás do Afeganistão. Nas eleições de 2010, o número de candidatas mulheres até aumentou para 21% do total (eram 11% em 2002 e 12% em 2006). Mas as que acabaram eleitas foi o mesmo percentual de 2006, apenas 8,8%. Mas por quê? Primeiro, não é verdade aquela pérola de que “mulher não vota em mulher.” Vota sim. Segundo, graças às deusas, já se passou o tempo em que homens deixavam de votar numa mulher. Tanto é que naquele ano duas candidatas mulheres levaram dois terços dos votos a presidente, disputando contra sete homens. Nesta eleição, temos o recorde de contar com três mulheres disputando a presidência. E segundo as pesquisas, uma delas será, ou continuará sendo, presidenta em 2015. As mulheres candidatas aos cargos legislativos são 29%, embora a Lei 12.034/09 obrigue não só que cada partido tenha no mínimo 30% de mulheres candidatas. E de que adianta ter 29% de candidatas, se não vamos elegê-las? Continuaremos com me50

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nos de 10% de mulheres na Câmara. Em maio, fui a Brasília a convite de um grupo de feministas, principalmente para discutir estratégias para legalizar o aborto. Acabamos nos reunindo com três deputadas federais, as três do PT. E o que elas disseram foi desolador: que as votações são todas dominadas pela bancada religiosa, que elas não conseguem aprovar nada, no máximo ­impedir que os reacionários aprovem algo, que acham que a participação feminina na Câmara vai diminuir... E pediram que os protestos não fossem só na rua. Deveria haver pressão popular também nas sessões do Congresso. (O voto em lista poderia ser uma saída para aumentar o número de mulheres, pois se votaria no partido e o congresso de cada legenda seria obrigado a seguir a porcentagem de 30% das vagas femininas.) É o seguinte: vamos aposentar aquilo de “eu voto na pessoa, não importa se for homem ou mulher, branco ou negro”. Enquanto pensarmos assim, nosso Congresso continuará sendo quase exclusivamente masculino, branco e hétero. Precisamos votar em mulheres para mudar a desigualdade que tanto atinge as brasileiras. Em mulheres feministas, de esquerda (redundância, eu sei, já que desconheço feministas de direita), comprometidas com causas sociais e com projetos para mulheres. Se a candidata for ligada a movimentos negros e LGBT, melhor ainda. Também estamos sub-sub-sub representadas nesses quesitos. Quando, quem sabe, as mulheres alcançarem 50% das cadeiras no Congresso, posso voltar a votar em homens. Ou seja, vou votar em mulheres até morrer, porque certamente não será durante a minha vida que chegaremos à tão sonhada igualdade.




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