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Paulo Freire vive e se reinventa!
No ano que a sociedade celebra o centenário de nascimento de Paulo Freire, a revista FADESP convidou seu filho caçula, o sociólogo, professor e coordenador do Arquivo Paulo Freire, Lutgardes Freire, para ser a entrevista principal desta última edição de 2021. Gentil, cativante e muito sorridente, nosso entrevistado especial rememorou a mãe e épocas distintas da vida familiar, marcada pelo exílio [longos 16 anos]. Sem perder a doçura, talvez um dos legados emocionais mais fortes da mãe, Elza, e do pai, Paulo, Lutgardes se emocionou, falou do cenário histórico tão difícil, das ofensas à memória do patrono da educação brasileira e revela as últimas frases do educador que mudou, para sempre, a visão sobre alfabetização, educação integradora, reforçando – talvez – uma inspiração que veio de seu maior Mestre: é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã.
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Revista FADESP: Gostaria de começar essa entrevista pelo que entendo ser o começo de toda uma trajetória muito aguerrida, que foi a prisão do Paulo [o educador foi preso, em 1964, e ficou em cárcere por 72 dias, acusado de subversão e de querer implantar o comunismo no país]. Li, em um relato dele, que seus pais decidiram omitir a prisão de Joaquim e de você, que era o menor de todos. Posteriormente, já no exílio, ele revelou o encarceramento, com detalhes. Você lembra desse momento, especificamente, dessa conversa?
Lutgardes Freire: Eu tinha 4 ou 5 anos. Era uma criança e meu irmão era dois anos mais velho que eu, ou seja, muito jovem também. Minha mãe achou melhor não contar para a gente, porque ela achava, primeiro, que não entenderíamos e, em segundo lugar, que poderíamos ficar traumatizados com isso, chocados. Quando, mais tarde, viajamos para o Chile, eu já estava com quase 7 anos e Joaquim, 9, nosso pai revelou a prisão. Durante a prisão dele, achávamos que ele estava viajando, porque era o que nossa mãe nos dizia... mas também víamos ela chorar pelos cantos da casa. A gente sabia que havia algo estranho, mas não sabíamos exatamente o que era, tanto que quando chegamos ao Chile, eu achava que estava no Brasil e falava Português com as outras crianças. Eu dizia: “vocês são loucos, porque não entendem o que digo!”, enquanto eles diziam: “louco é você que não entende o Espanhol!”. [ele ri]. Demorou um tempo até assimilar que morávamos em outro país.
Revista FADESP: Sempre que ouço ou leio matérias relacionadas a esse período da vida de vocês, percebo que sua mãe, Elza, era considerada a espinha dorsal da família, ao passo que você se refere ao exílio como uma “grande fratura emocional”....
Lutgardes Freire: Meu pai sempre dizia: “Elza é minha infraestrutura e eu sou a superestrutura da família”. O papel de minha mãe é enorme para nossa sobrevivência desde a época do exílio e até mesmo antes dele. Quando se casaram, em 1944, eles tinham uma vida um tanto quanto pobre, difícil, mas eles foram melhorando e meu pai quis ser advogado, formando-se em Direito no Recife. Sua primeira causa foi defender os interesses de um credor junto a um dentista. Chegando à casa do dentista, que era muito humilde, meu pai disse que ele teria de pagar a dívida, ao que o dentista disse que teria de vender seus instrumentos de trabalho. “Mas, aí, como eu vou viver? O senhor pode levar esse tapete, o sofá, aquela mesa... mas a minha vida o senhor não vai levar”. Meu pai ficou tão chocado com aquilo, sabe, Lorena,
que ele voltou para casa e disse: “Elza, eu não sou mais advogado!”. Minha mãe, que já era professora primária no Recife, respondeu: “mas eu já sabia que você não prestava para a Advocacia! Seu dom é a educação!”. Felizmente, ele não seguiu a carreira de advogado! [e ri] No exílio, minha mãe foi uma pessoa fundamental à manutenção dos nossos equilíbrios psíquico, mental e sobrevivência! Ela cuidava de todos nós, cozinhava... e teve uma importância sem igual durante o tempo em que viveu com meu pai. Há quem diga que ela foi uma “educadora silenciosa” de papai. Ela foi a primeira leitora dele, a primeira pessoa a ler a “Pedagogia do Oprimido” e tem muito dela na obra! Ela era uma mulher muito forte!
Revista FADESP: Qual a maior herança emocional que você tem dela, professor? [Lutgardes fica em silêncio por um tempo, está emocionado. Até que começa a responder aos poucos]
Lutgardes Freire: Essa pergunta me deixa um pouco emocionado. É difícil dizer, mas acho que a maior lembrança que tenho é ela, no Chile [primeiro país em que a família viveu, já no exílio], servindo aquele peixe de forno maravilhoso todos os domingos para nós! Nossa casa vivia cheia de pessoas: chilenos, estudantes chilenos, brasileiros exilados e não-exilados. Meu pai cativava muito as pessoas e aonde quer que fosse, a porta de casa estava sempre aberta para quem quisesse entrar. Ele gostava muito de conversar e era impressionante porque ele era hipnótico. Ainda criança, eu olhava e pensava “o que será que meu pai tem, que chama tanta gente? Que mágica será essa?”.
Revista FADESP: E descobriu a mágica?
Lutgardes Freire: Ah, sim, claro! O que ele falava era tão cativante, porque era sobre a própria educação, mas seu aspecto óbvio, lógico da educação. Tanto que na América Latina ou na Europa, já não me lembro, cunharam um termo sobre ele: “andarilho da obviedade”! O que ele falava era óbvio, mas não era tanto assim! Isso atraía demais as pessoas.
Revista FADESP: Neste ano, em que celebramos o centenário de nascimento de seu pai, atravessamos ainda um momento difícil, e a memória e o legado do Paulo foram muito atacados por defensores da extrema-direita. Como você vê a crescente ascensão, que não é só brasileira, mas global, do ultraconservadorismo e qual o sentimento diante da afirmação deles de que é “necessário expurgar a ideologia de Paulo Freire da educação brasileira”?
Lutgardes Freire: Acho isso um absurdo, porque meu pai, >>> Meu pai começou a pensar que não precisava ir à Igreja “ para ter esse contato com Deus. Ele dizia:
O próprio Leonardo
Libertação’ e meu pai dizia: ‘se o próprio
em primeiro lugar, estava acima dos partidos! Até sua última obra, “Pedagogia da autonomia”, ele dizia que o livro não era apenas para aqueles que tinham uma ideologia de esquerda; mas para todos os professores, fossem eles de direita, centro-direita, centro-esquerda ou esquerda. São pontos básicos da educação! Meu pai era um intelectual que refletia sobre a filosofia da educação e sua obviedade. É uma lástima que as pessoas não entendam isso até hoje! Há quem diga que ele era comunista e meu pai não era. Ele costumava dizer: “olha, Lute, eu nada tenho contra o Comunismo, mas para mim, há um momento anterior da estadia do homem sobre a Terra!”. Meu pai acreditava em Deus, era muito católico. Sua mãe era católica. Meu pai perdeu o pai dele muito cedo, fato que impactou muito na vida dele. Sinto pena de quem não compreende a importância de meu pai para a educação brasileira e mundial! Agora sobre a ascensão, acho que estamos passando momentos históricos bastante complicados. Penso que os surgimentos dessas tendências neofascistas são empurrados pelo aspecto econômico das sociedades! O mundo inteiro está vivendo um período difícil, não somente pela pandemia, mas pela própria utilização da terra. A Terra está clamando para que cuidem dela! Não podemos continuar destruindo o planeta em que vivemos e a extrema-direita está também se aproveitando disso, o que é uma lástima!
Revista FADESP: Você falou de seu pai ser muito católico e me lembrou aqui algo que li, dito pelo próprio Paulo, de que, depois que ele conheceu a Teologia da Libertação, em algum momento, com muito jeitinho, ele comunicou à sua mãe que não comungaria mais na Igreja... Entretanto, o padre, em pessoa, foi à casa de vocês, compartilhar o pão.
Lutgardes Freire: [ele cai na gargalhada] Ah, que lembrança maravilhosa! Isso foi no Chile, quando ainda éramos muito crianças. Meu pai começou a pensar que não precisava ir à Igreja para ter esse contato com Deus. Ele dizia: “Deus está dentro de mim! Meu corpo é o templo de Deus!”. O próprio Leonardo Boff disse que meu pai “foi o precursor da Teologia da Libertação” e meu pai dizia: “se o próprio Leonardo Boff disse isso, quem sou eu para desdizer?!?” [e ri novamente] No Chile, nossa casa era frequentada por padres brasileiros, chilenos. Eles celebravam a missa em casa, eu lia a Bíblia. Era tudo muito bonito, e eu compreendi que meu pai não estava sendo desrespeitoso ou coisa do tipo, muito ao contrário, ele comungava conosco o contato com Deus, com Cristo.
Revista FADESP: Como você acha que ele observaria esse momento de cortes na educação, altas nos preços, aumento do mapa da fome, exclusão, cortes na Pesquisa, fake news, ministro da educação dizendo que universidade é para poucos... ao mesmo tempo em que falamos mais abertamente sobre sexualidade, gênero, racismo, inclusão?
Lutgardes Freire: Ele ficaria abismado com tudo isso! Penso que Deus faz as coisas certas.... mas meu pai era uma pessoa muito forte. Certamente, ele escreveria uma obra, que seria voltada para a Cultura, a Ecopedagogia... talvez um livro que recuperasse a terra, o mundo, a “Pedagogia da Ecologia”. Ele faria o que sempre amou fazer: ler, escrever, visitar as universidades. Ele tinha um amor louco pela vida! Tanto que, antes de morrer, ele dizia que queria ser lembrado como um homem que amou: as árvores, as plantas, as flores, os homens, as mulheres, o mundo! Ele foi fabuloso, um visionário!
Revista FADESP: Para finalizar nossa conversa, nesse centenário de vida de Paulo Freire, como você gostaria que seu pai fosse cultivado?
Lutgardes Freire: Olha, Lorena, preciso ser bem franco com você: meu pai não gostaria de ser “cultivado” [Lutgardes ri um pouco mais]. Ele dizia e acho que essas foram suas últimas palavras: “não quero ser imitado, venerado. Quero ser lembrado como alguém que vocês têm de reinventar! A melhor forma de me seguir é não me seguir”.