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E se estivermos a abrir a caixa de Pandora?

Na Grécia Antiga, Zeus deu a Pandora, como presente de casamento, uma caixa mas avisou-a para nunca a abrir, pois seria melhor deixá-la intocável. O desejo de a abrir superou qualquer precaução: coisas horríveis voaram para fora, incluindo ganância, inveja, ódio, dor, doença, fome, pobreza, guerra e morte. Hoje em dia, a caixa de Pandora continua a ser aberta, não por pessoas distraídas, mas por indivíduos da ciência, da política e da economia.

Na Europa, o mercado da carne cultivada seduz muitas startups, há milhões e milhões de euros envolvidos no campo do cultivo de células em busca do El Dorado que será criar carne sem criar animais, nem pastos. Mas será mesmo assim? E se estivermos abrir uma nova caixa de Pandora?

A carne cultivada promete revolucionar todo o sistema alimentar. Por isso, falamos, por email, com Ivo Rzegotta, Senior Communications Manager no Good Food Institute Europe, sediado na Alemanha, sobre os desafios e oportunidades em todo este processo de transformação.

Pode nos dar uma visão como é que este segmento se está a desenvolver?

Na Europa, o mercado de proteínas alternativas está a crescer. Cada vez há mais pessoas que não querem consumir carne convencional. O espectro de produtos de proteína alternativa variam desde substitutos de carne completamente à base de plantas, a produtos híbridos e carne cultivada.

Ao redor do mundo já existem, pelo menos, cerca de 1500 startups que pesquisam sobre carne cultivada. Além disso, também existem inúmeras empresas B2B (“business to business”, um termo de vendas que representa negócios realizados por empresas para outras empresas) que avançam com desenvolvimentos neste campo.

TODO O SISTEMA ALIMENTAR.

Na sua opinião a carne cultivada vai chegar ao consumidor a curto prazo?

Atualmente, o mercado de proteínas alternativas é formado inteiramente por proteínas vegetais e levará algum tempo até que a carne cultivada e os produtos à base de fermentação sejam lançados no mercado.

E os consumidores estão abertos a produtos cultivados?

Bom, os produtos híbridos representam apenas um nicho de mercado. No entanto pesquisas com a população indica que os consumidores estão abertos a produtos cultivados.

A carne cultivada ainda não foi aprovada como alimento na Europa. Na sua opinião quais são os principais obstáculos?

Nos últimos meses, houve um grande progresso no lançamento de carne cultivada no mercado. Os primeiros produtos foram aprovados nos EUA e também estão em andamento em outros mercados.

O mercado europeu depende basicamente de duas coisas: custos de produção e capacidade de produção. E isso exige não só grandes investimentos privados como públicos na pesquisa e construção de infraestruturas.

E sobre segurança alimentar?

Estará sempre dependente dos regulamentos de Novos Alimentos da UE, que um rastreio, um estudo total e uma revisão profunda e especializada completa de segurança alimentar antes dos produtos serem vendidos ao publico. No entanto, esse processo, é extremamente burocrático e leva muito mais tempo do que em outras partes do mundo.

A fermentação é um técnica que usa microorganismos e produz um produto com sabor a carne. O que tem a dizer sobre esta técnica?

Fascinante! A técnica da fermentação ainda está no inicio mas tem um grande potencial dentro do setor das proteínas alternativas. Em todo o mundo são cerca 140 empresas que estão a desenvolver esta técnica.

Por exemplo, a Alemanha é muito forte nesta área, com o terceiro maior número de startups depois dos EUA e de Israel. O ecossistema alemão está no caminho certo para se tornar um potencia global neste segmento emergente.

Os desafios no campo da fermentação são basicamente os mesmos do cultivo de células...

Sim. As tecnologias que estão por trás funcionam e as empresas já mostraram que podem ser usadas para produzir produtos saborosos e sustentáveis. No entanto, para reduzir os custos de produção ao nível das contrapartidas animais e produzir quantidades significativas, devem ser feitos esforços conjuntos pelos investidores privados e decisores políticos.

A CARNE ARTIFICIAL CHEGARÁ ÀS PRATELEIRAS DE SUPERMERCADO MAS, COLOCA MAIS PROBLEMAS DO QUE SOLUÇÕES, ESPECIALMENTE, EM TERMOS DE SAÚDE. FACTOS.

A carne “cultivada” ou carne in vitro parece cultivar uma grande oportunidade de negócio. Esta carne cultivada também chamada de carne limpa pelos seus proponentes, é um produto produzido em laboratório através de técnicas de bioengenharia.

Em 2013, Mark Post, professor da Universidade de Maastricht, apresentou o primeiro hambúrguer de carne cultivada. Desde então, a utopia do consumo de carne sem produção animal, decorrente da “agricultura digital”, ganhou muitos adeptos entre os defensores dos animais, mas principalmente na indústria.

A partir daí, grandes nomes da industria e grande investidores patrocinaram muitas startups com o propósito de colocar no mercado, a partir de 2020/2022, carne cultivada de bovino, aves, peixe a um preço acessível.

Sistema sustentável: manutenção de pastagens permanentes (1/3 das superfícies agrícolas da UE, ou seja, 66 mil milhões de hectares), verdadeiros sumidouros de carbono (570 kg de carbono por cada hectare de prados) e biodiversidade (3,5 toneladas de fauna presentes no solo de cada hectare de erva), manutenção do dinamismo dos espaços rurais.

Em 2020, as autoridades de saúde de Singapura autorizaram o consumo de nuggets feitos com carne cultivada de frango produzida em laboratório pela startup californiana “Eat Just”.

A pergunta que se coloca; carne artificial, utopia ou verdadeira revolução alimentar?

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO),a produção convencional de carne é responsável por uma parcela considerável das emissões de gases de efeito estufa(18%), uso da terra (30%), além da água (8%). Além disso, a organização estima que o consumo de carne deve duplicar em 2050. E nesse caso, a produção de carne estará já próximo dos limites. Como resolver este problema?

Para Mark Post “o gado bovino é muito ineficaz. A sua taxa de bio conversão é estimada em 15%, ou seja, para produzir 15 gramas de carne é necessários 100 gramas de proteína vegetal. A única forma de produzir carne de forma sustentável seria aumentar esse índice”, referiu.

Já foram consideradas várias abordagens como a produção de “carne” à base de plantas ou insetos. Mas essa alternativas não atraem os consumidores, porque nem sequer conseguem imitar minimamente o sabor e a textura da verdadeira carne. A carne in vitro poderia resolver este problema?

O que é carne “cultivada”?

Concretamente, tudo começa no isolamento do músculo de um animal adulto, através de uma biopsia de um pequeno número de células musculares satélites, cuja função é participar no processo de regeneração muscular. Nesta fase, ainda não são células musculares, são chamadas de células-tronco (células não diferenciadas com o potencial de se multiplicarem em quantidades de células) e, sob a influencia de certos fatores hormonais, de se diferenciarem em células musculares.

Cultivadas em bioreatores, ambientes esterilizados, contendo líquidos nutritivos. As células satélites são estimuladas por fatores de crescimento, que induzem a sua intensa proliferação. São então transformadas em células musculares, antes de serem montados mecanicamente em tecido muscular consumível, portanto, um pedaço de carne artificial...

A promessa da carne “cultivada”

Segundo o site neerlandês Mosa Meat, fundada por Mark Post, a produção de carne cultivada só traria vantagens. Reduziria drasticamente o impacto ambiental da produção de carne, bem como o risco de doenças infecciosas transmitidas de animais para humanos. Além disso, o sabor da carne “cultivada” seria próximo ao da carne convencional.

Um custo ambiental reavaliado por alto

Para além das promessas das startups, a produção em larga escala de carne “cultivada” levanta alguns temores sobre o seu real impacto ambiental.

É certo que a primeira comparação científica feita em 2011 entre carne convencional e carne “cultivada” foi muito lisonjeira para esta ultima. Em comparação com a carne convencional, reduziria os gases efeito estufa em 78 a 96% e exigiria 7 a 45% de energia e 82 a 96% a redução de água.

Mas os estudos mais recentes, efetuados por entidades científicas e independentes sugerem que o impacto ambiental pode ser maior a longo prazo do que o da pecuária. Ao contrário dos trabalhos anteriores, estes tiveram em conta, por um lado, o papel essencial na realização de um sistema sustentável: manutenção de pastagens permanentes (1/3 das superfícies agrícolas da UE, ou seja, 66 mil milhões de hectare), verdadeiros sumidouros de carbono (570 kg de carbono por cada hectare de prados) e biodiversidade (3,5 toneladas de fauna presentes no solo de cada hectare de erva), manutenção do dinamismo dos espaços rurais dos territórios, assegurando um fornecimento de produtos seguros, com reconhecidas qualidades nutricionais e altamente favoráveis à satisfação das necessidades de vários nutrientes essenciais numa alimentação equilibrada.

Por outro lado, tiveram em conta não só a natureza dos gases emitidos, mas também o custo energético das infraestruturas necessárias ao “cultivo”.

Os animais possuem um sistema imunológico que os protege contra infecções, principalmente bacterianas. No entanto, este não é o caso das culturas de células, que apresentam sérios problemas. De facto, num ambiente rico em nutrientes, as bactérias multiplicam-se muito mais rapidamente do que as células animais. Se quisermos evitar a obtenção de um bife de bactérias, é essencial que as culturas sejam realizadas em condições de alta esterilidade, a fim de evitar contaminação.

Na indústria farmacêutica, as culturas de células são realizadas em "salas limpas" altamente controladas e esterilizadas. A esterilidade é geralmente garantida pelo uso de material plástico descartável. Isso reduz consideravelmente o risco de contaminação, mas multiplica a poluição por plásticos, cujo nível nos ecossistemas já é alarmante. É certo que alguns dos equipamentos de cultura, feitos de aço inoxidável, podem ser esterilizados por vapor e detergentes. Mas esta operação também tem um custo ambiental.

Embora poucos estudos se tenham dedicado ao impacto ambiental da indústria farmacêutica, os dados disponíveis sugerem que suas emissões de carbono são 55% maiores do que as da indústria automóvel.

Além disso, o gado fornece muitos subprodutos e participa na reciclagem de grandes quantidades de resíduos vegetais que não são comestíveis pelos humanos e produz fertilizantes. Além disso, as pastagens permitem o sequestro de carbono, como em nenhuma outra industria. Portanto, o custo ambiental de longo prazo da transição da carne convencional para a carne “cultivada” seria extremamente complexa de avaliar.

Hormonas anabolizantes e substâncias químicas, desreguladores endócrinos: riscos significativos

Nos animais, o volume muscular aumenta lentamente e as células satélites musculares multiplicam-se muito pouco. Para obter em poucas semanas in vitro o que o animal leva vários anos para produzir, a proliferação de células satélites musculares devem ser continuadamente estimuladas por fatores de crescimento, incluindo esteroides sexuais anabolizantes.

Estes esteroides estão presentes em animais e humanos, assim como na carne convencional. Estimulam a sínteses de proteínas nas células, levando ao aumento da massa muscular. Podem ser apresentados pela industria como “fatores de crescimento”. No entanto, a super exposição a esses esteroides tem efeitos destruidores bem identificados. Na UE ,o uso de esteroides de crescimento na agropecuária é proibido desde 1981, pela Diretiva 81/602. Esta proibição foi confirmada em 2003 pela Diretiva 2003/74 e validada pelo European Food Safety Authority (EFSA), em 2007.

A pergunta é: dado que a carne cultivada não passa sem esteroides de crescimento, qual será a concentração desses esteroides na dita carne “cultivada”?

Além disso, um numero crescente de estudos evoca a toxicidade dos produtos plásticos de uso corrente. Os desreguladores endócrinos, compostos, capazes de interferir e desregular o sistema hormonal, podem ser transferidos através das embalagens de plástico. Sem surpresa, o mesmo fenómeno foi documentado durante culturas de células realizadas em recipientes de plástico para fertilização in vitro, mesmo antes da embalagem final.

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