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de Souza
As armadilhas do deslumbramento digital
Por Pedro de Souza
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É habitual comparar o atual processo de digitalização com a invenção da imprensa. Foi a invenção da imprensa que permitiu a divulgação da cultura religiosa e erudita em larga escala, e o consequente aprendizado da leitura que haveria de ter uma influência determinante no processo que culminaria com a declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, um dos fundamentos maiores da democracia. Por mais tosca que possa ser a invenção da Imprensa, comparada com a sofisticação do Informática, elas partilham algumas características fundamentais: ambas são invenções tecnológicas que põem à disposição trechos substanciais dos tesouros do conhecimento humano. Nisso são certamente fenômenos comparáveis. Porém um aspecto as distingue: enquanto a imprensa é algo compreensível por qualquer mortal, a digitalização aparece como uma vertente da ciência e da tecnologia atuais que exige um longo processo de aprendizado aos seus criadores, e mesmo a alguns de seus usuários, ou seja um alto capital prévio de conhecimentos, e disponibilidade financeira. Ao invés de unir, a digitalização introduz desigualdade na sociedade tal com ela é.
Por outro lado, se a “mundialização” relativa da imprensa a manteve de certa forma dentro dos quadros preexistentes, dando azo a uma “mundialização” incipiente, (daí aspectos como a censura que a travaram em muitos pontos do globo – por exemplo no Brasil, onde a coroa portuguesa a interditou, ou na Índia onde a escrita era considerada uma “excrecência” da sabedoria, baseada na oralidade e memória), a digitalização de agora conhece menos fronteiras geográficas, ou sociais. Digitalização e mundialização parecem hoje dois processos inseparáveis.
O processo de digitalização começou nas forças armadas durante a Segunda Guerra mundial, e depois nas grandes empresas, onde nos anos 60 se aplicava sobretudo ao cálculo dos salários e prestações sociais. Daí foi se espalhando para outras áreas como a das finanças, e nos processos industriais, com bons e maus resultados. Bons quando facilitavam operações complexas e demoradas, maus quando eram usados com o mero intuito de favorecer a especulação. A influência da velocidade proporcionada pela informática nas operações financeiras foi importante na especulação que envolveu a crise financeira de 2008. Mas não podemos esquecer por outro lado que com a sua qualidade de linguagem universal a digitalização torna possível fazer conversar máquinas em pontos distantes do globo, com aplicações de grande mérito em áreas como a medicina.
O grande incremento e popularidade da informática chegou com os PC (Personal Computer), a internet e as redes sociais: com estas inovações não eram mais máquinas que conversavam, mas pessoas. Não vamos entrar na discussão das vantagens e desvantagens dos hábitos criados pelas redes sociais. Trata-se hoje de um fenômeno de tal modo onipresente que criticá-lo equivale a condenar o ar que respiramos, pelo menos quando se trata de comunicações interpessoais. Digamos apenas que vários indícios apontam para que, de uma cultura da palavra escrita e da leitura, estaríamos passando a uma cultura do oral e do visual.
Mas o caso é diferente quando se trata de comunicações onde numa ponta temos uma corporação e na outra um indivíduo. Isso já acontecia com a publicidade, hoje porém existe a possibilidade de não mais se dirigir a um indivíduo genérico, definível grosseiramente pelo tipo de publicação que comprava, mas a indivíduos específicos, de que se conhecem muitos traços definidores, desde os seus gostos e aspirações (pelos sites e serviços na internet que visita), aos lugares que frequenta (através dos celulares), à suas operações financeiras (pelo menos em parte pelos pagamentos que faz pela internet), às doenças de que padece (através dos resultados das análises de sangue que recebe por email) e, com o reconhecimento facial, conhecer até as suas origens.
As consequências deste estado de coisas são sabidas: promoção comercial agressiva e constante difusão de “fake news”. Do ponto de vista político, as implicações destes sistemas são graves. Habituado a opinar através das redes sociais sobre qualquer assunto, o indivíduo desvaloriza o sistema representativo em que se baseia a de-
mocracia que temos - que implica em delegar em alguém os direitos cívicos. Por outro lado, como se viu no caso do Brexit (e também nas últimas eleições presidenciais americanas e brasileiras), esses recursos permitem endereçar mensagens específicas a públicos determinados, muitas vezes contendo mentiras, ou meias verdades exacerbadas, que, ao invés de contribuírem para uma discussão pública responsável sobre os assuntos em apreço, acirram as divergências e criam hostilidade entre os cidadãos. Diante destes problemas os Estados tendem a entregar cibersegurança a organizações para-militares que tentam bloquear as agressões vindas do exterior numa lógica bélica de Estado contra Estado.
Recentemente dois hospitais públicos franceses (Dax e Villefranche-sur-Saône) tiveram seus sistemas bloqueados, e pirateados os dados de seus pacientes. Segundo as informações do jornal Le Monde, o ataque teria vindo de hackers baseados em países do leste europeu, que pediriam avultadas quantias ao governo francês para devolverem ou desbloquearem os sistemas desses hospitais. A política do governo francês consiste em não pagar o resgate pedido, mas muitos particulares, diante do mesmo problema, acabam pagando. Alguns dias depois se soube que cada dossiê de paciente (contendo toda a espécie de dados pessoais e não apenas médicos: financeiros, seguros, telefones, endereços etc.) estava à venda por 2.000 euros cada. E que, em consequência, o real objetivo dos hackers não era negociar com o Estado, mas responder à demanda interna, francesa, de empresas atuando no negócio de compra e venda de bases de dados.
Por coincidência esse caso coincidiu com a disputa entre o Facebook e a imprensa australiana, que exigia pagamento pelo uso das informações que esse serviço veicula gratuitamente entre os seus clientes. Não chegando a acordo, o Facebook simplesmente tirou do ar o elo com os jornais e outras instituições, algumas delas públicas, na Austrália. Pergunta-se: existe uma real diferença entre a retenção de dados por parte de hackers europeus, ou de nerds americanos? Claro que num caso os dados são cedidos voluntariamente, enquanto no outro são subtraídos ilegalmente. Mas a retenção de dados é a mesma, o abuso de poder é o mesmo, os inimigos não estão apenas no exterior, mas no interior, “com loja na rua”. Este é apenas um exemplo dos problemas que têm de ser enfrentados com uma visão clara e não com as ideias da guerra fria.
Uma das diretivas aprovadas pela União Europeia para a reconstrução pós-pandemia na UE é precisamente o investimento na digitalização nos 27 países que a compõem. Com efeito, é de opinião geral que, diante de fenômenos como a pandemia, a digitalização é indispensável, sobretudo nas finanças, na saúde e na educação. Só através da digitalização, com boa parte dos trabalhadores confinados, é que empresas, hospitais e escolas poderiam continuar fornecendo os seus serviços.
Ainda há pouco tempo era lei entre educadores que a presença horas a fio dos jovens diante de computadores, era nociva. Hoje isso é considerado indispensável. Não esqueçamos, porém, que a transmissão do conhecimento é apenas uma das funções da escola, porventura não a mais importante, e que já está sendo suprida em parte pela internet, sem intervenção das escolas. Contudo, a função socializante das escolas, sobretudo em países onde o ensino é majoritariamante público, é algo que a internet não pode suprir. Muito pelo contrário, todo o desenvolvimento da internet tem consistido na individualização, não na socialização, não no fortalecimento daquilo que é comum a todos os membros da sociedade.
Não há progresso técnico que não provoque problemas e oposição. No entanto, pressupõe-se que esse progresso não subsistiria, se o balanço final não fosse positivo, descontando o deslumbramento que uma nova tecnologia sempre suscita. Hoje convém olhar essa ideia com cuidado, compará-la com a questão climática que nos leva a concluir que a técnica, fruto do progresso, também pode se voltar contra o homem. Até que este dê mostras de poder reverter os seus inconvenientes, e voltar a ser não o objeto, mas o sujeito do seu destino.
Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
A Teleducação e o Projeto Saúde Indígena do NTES/IMIP
Por Maria Cecília M M da Rocha
A partir de uma parceria firmada entre o Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP) e o Ministério da Saúde, em 2011, foi iniciado um programa voltado às comunidades indígenas do nordeste do Brasil, situadas nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão, Bahia, Ceará, Alagoas e Sergipe. Para atender a essas comunidades, são treinados aproximadamente 2 mil profissionais de saúde que lidam diariamente com as diversidades do contexto indígena, uma população de quase 135 mil índios de etnias distintas. O Núcleo de Telessaúde do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (NTES/IMIP), instituído em 2010, é integrante da Rede Universitária de Telemedicina (RUTE/RNP/MCTic) e faz parte do Programa Nacional de Telessaúde Brasil Redes do Ministério da Saúde como Núcleo Regional de Telessaúde Indígena. O NTES tem como prioridade desenvolver ações que atendam à Teleassistência, Teleconsulta e Teleducação, promovendo o atendimento, a consultoria e a qualificação profissional dos que trabalham na saúde indígena. Em 2013, firmou-se uma parceria entre o IMIP e o Ministério da Saúde, por intermédio do NTES, para apoiar a qualificação das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena que trabalham nas comunidades indígenas da região Nordeste do Brasil, através do Programa Telessaúde Brasil Redes. O Projeto Saúde Indígena, atualmente na etapa de expansão, tem o objetivo contribuir para a melhor qualificação das equipes de saúde que atuam nas comunidades indígenas da região nordeste do Brasil, no contexto da teleducação, planejando, desenvolvendo e ofertando cursos de qualificação a distância – síncronos e assíncronos - a partir da demanda das equipes de saúde indígena. Os Cursos em Ead do NTES/IMIP atuam na perspectiva de mediar a prática profissional daqueles que trabalham na ponta, muitas vezes aldeados, com o que há de mais recente na literatura, contribuindo efetivamente com sua qualificação e, consequentemente, com o melhor atendimento. Os módulos educacionais na modalidade à distância são planejados para que, através da utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), colaborem com a formação desses profissionais. No seu formato mais simples é conhecida desde o século XIX, mas somente nas últimas décadas adquiriu importância que a coloca no alto das atenções pedagógicas. Na sua evolução, podemos ir muito atrás, na história na Grécia antiga, onde alguns autores supõem que a troca de correspondências entre os cavaleiros configurava-se nos primeiros passos da EaD. Ou até mesmo no século I, Paulo, o apóstolo de Cristo, teria sido o primeiro “tutor” da educação a distância (GOMES, 2016). Na metade do século 19, nos processos de educação por correspondência, a tecnologia utilizada era os correios. Nos últimos anos, com a evolução da tecnologia e o advento da internet, sobretudo a partir da implantação do protocolo www (world wide web), os processos online foram alavancados à estratosfera. A educação a distância online vem se firmando como uma estratégia de ensino que objetiva atender a um público diversificado, desconstruindo tempo e espaço. No cenário atual global, com a pandemia da Covid 19, se estabeleceu não somente como modalidade possível de dar continuidade aos processos de aprendizagem, mas, especialmente, instituiu-se como única ferramenta facilitadora à educação, em razão da sua capacidade de interação, facilitando e viabilizando os processos de aprendizagem no contexto atual de distanciamento imposto pela pandemia do corona vírus.
São inúmeros os desafios subjacentes aos processos de construção do conhecimento, no cenário de imperativo tecnológico, de avalanches informacionais. Faz-se urgente querer buscar o sentido, o significado e a relevância da informação e suas inúmeras possibilidades de ser transformada em conhecimento. A rapidez com que as informações se tornam obsoletas traz a reflexão sobre a relação de significados entre informação e conhecimento, fazendo emergir o pensamento de que informação não é sinônimo de conhecimento. A construção do conhecimento é um processo complexo desenvolvido na mente dos sujeitos a partir da seleção, armazenamento, assimilação e, sobretudo, do sentido que se atribui à informação, para que os sujeitos, em um processo ativo, possam transformar a informação em conhecimento. No que tange à aprendizagem, de acordo com Freire (2000, p. 40), “não é possível ser gente senão por meio de práticas educativas. Esse processo de formação perdura ao longo da vida toda, o homem não para de educar-se, sua formação é permanente e se funda na dialética entre teoria e prática”. Aprender deve ser um processo sem interrupção, contínuo, contextualizado, movido pela curiosidade epistêmica, embasado no esforço compartilhado.
Com as tecnologias digitais cada vez mais presentes em todos os segmentos da sociedade, não poderia ser di-
ferente nos contextos educacionais. A tecnologia quando utilizada de forma pedagógica aprofundada, estruturada a partir de fundamentos epistêmicos que confirmem o pensamento de educação como prática de liberdade, e não somente instrumento para o mercado, pode expandir as possibilidades de construção de conhecimento dos sujeitos através da oferta de um material didático interativo e contextualizado disponibilizado nos ambientes virtuais de aprendizagem (AVA). Estes materiais são ofertados para despertar novos desafios e alternativas nos processos formativos e de capacitação, que, diante deste cenário de atrativos tecnológicos, fazem com que tais estratégias transcendam a aprendizagem e sedimentem o processo de educar, desfocando a estratégia da Educação a Distância do seu perfil neoliberal para que, através de novas dimensões e significados, seja compreendida não como uma modalidade, mas como um processo de educação que pode ter muito a contribuir com o enriquecimento e a melhoria da educação na sua integralidade e amplitude, uma vez que, na incompletude dos processos, “pode-se continuar a aprender até o fim da vida sem, no entanto, jamais se educar” (ARENDT, 1972. p.37).
Neste sentido de entender educação como processo inacabado e em permanente construção, a Teleducação do NTES/IMIP desenvolve cursos que colaboram na qualificação e atualização profissional, utilizando a modalidade à distância de acordo com os princípios da educação permanente numa perspectiva dialógica, na execução de “ações de saúde em rede para o aperfeiçoamento de recursos humanos para atuação em contextos interculturais” (IMIP/Nucleoead, s/d).
A estratégia de construção da teleducação está fundamentada no enfoque pedagógico dos cursos, com a elaboração de material instrucional de e-learning em ambiente virtual. Como os cursos da teleducação são voltados para capacitar profissionais que trabalham na ponta; precisam capacitar o profissional a otimizar o atendimento através da perspectiva da educação emancipatória. A proposta de cursos em EaD exige inovação em abordagens pedagógicas e a incorporação de práticas mais ativas, em ambientes virtuais de aprendizagem (AVA) mais informais, e a participação intensa do aluno. Mesmo nos processos à distância, com atores separados fisicamente (espaço e tempo), espera-se que haja interação, não somente pela utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC’s), mas, sobretudo, pela oferta do material didático planejado para facilitar a aprendizagem autônoma, como elemento mediador no processo de construção de conhecimento.
A Teleducação do NTES, com foco no Projeto Saúde Indígena, estruturou os seguintes cursos para atender a demanda dos profissionais de saúde: Curso Introdutório à Antropologia Indígena do Nordeste; Curso Cuidado Integral à Gestante e ao Recém-Nascido Indígena; Curso Dermatologia Pediátrica; Curso Doenças Exantemáticas na Infância. A produção de cursos para o Projeto Saúde Indígena envolve as desafiadoras etapas de estudo do público-alvo, formatação, transposição da riqueza do conteúdo contextualizado ao ambiente virtual, a formação dos autores na linguagem EAD e a definição de estratégias para implantação de sistemas de educação permanente à distância. Assim, a EaD é concebida como capaz de desenvolver processos formativos para profissionais do SUS e incrementar a Rede de Atenção Básica de Saúde.
No caso do Saúde Indígena estes desafios revestem-se de um caráter especial, pois lidar com realidades distintas e contextos diferenciados de crenças e outras condutas é o elemento mais complexo. Como ofertar uma medicina de qualidade sem extrapolar ou invadir crenças? Como lidar com os limites tênues no cuidado? Todos estes elementos constituem a riqueza do universo da estruturação e desenvolvimento dos Cursos da Teleducação do Projeto Saúde Indígena, com o compromisso de pensar conteúdos e objetos de aprendizagem como elementos de interação e dialogicidade.
Neste sentido, entendemos com Serra (2003, p. 251) que, numa sociedade em que é agravada a desproporção entre o conhecimento sempre limitado de cada indivíduo e a informação praticamente ilimitada posta a sua disposição, “um dos principais problemas que se coloca é, sem dúvida, a transformação da informação em conhecimento, a partir da seleção da informação relevante”. Sabemos que o volume de informações proporcionado pela web é inimaginável, porém, não é possível ninguém saber tudo, sobre tudo. A habilidade em selecionar a informação cresce no sentido inverso ao da sua explosão. A equidade de acesso à informação não determina a mesma igualdade na sua utilização. Quanto maior o número de informações, maior será a necessidade de mediadores que as selecionem, as organizem, as filtrem.
Assim, a Teleducação, através de cursos para atender a demanda dos profissionais de saúde, contribui com a capacitação profissional e o melhoramento do SUS, beneficiando milhares de usuários com um atendimento de qualidade na Atenção Básica. Podemos pressupor que, no sentido mais amplo, as iniciativas educacionais da Teleducação são voltadas à construção de um processo complexo, envolvendo múltiplos saberes voltados para a formação dos sujeitos através de processo de educação permanente que repercuta e possibilite melhoria na qualidade de vida da população.
Maria Cecília M M da Rocha é Mestre em Educação Matemática e Tecnológica pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutora em Educação pela Universidade da Beira Interior (Portugal).